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Algumas teses preliminares sobre o conceito de ecocivilização
John Bellamy Foster (*)
Na Revolução Industrial do século XIX, em Inglaterra, Newcastle estava no centro da indústria do carvão. A expressão idiomática “levar carvão para Newcastle” surgiu então para indicar levar algo inutilmente para um local onde já estava presente em abundância. Para um pensador ocidental falar para um público na China sobre civilização ecológica (ou ecocivilização) é como levar carvão para Newcastle, uma vez que é na China onde o conceito está mais desenvolvido. No entanto, defenderei que a noção de ecocivilização está intrinsecamente relacionada com o marxismo. Esta palestra terá, portanto, como objetivo examinar o conceito de ecocivilização numa ampla perspetiva ecológica marxista. Neste sentido, tenho dez teses preliminares sobre a ecocivilização.
(1) O conceito de civilização ecológica tem origens marxistas e é inerentemente socialista. Surgiu pela primeira vez como uma perspetiva sistemática no final dos anos 1970 e nos anos 1980, na União Soviética, inspirada por considerações do pensamento ecológico de Karl Marx, e foi imediatamente adotada por pensadores chineses. Praticamente não tem presença até hoje no Ocidente, pois está radicalmente afastado da noção de civilização capitalista, bem como das visões eurocêntricas da modernidade (1).
(2) A perspetiva filosófica fundamental da ecocivilização tem raízes profundas nas primeiras noções civilizacionais da modernidade, ou da relação humana ativa com o mundo orgânico-material, tal como descritas pelos pensadores marxistas Joseph Needham e Samir Amin nas suas críticas ao eurocentrismo. Esta perspetiva filosófica orgânico-materialista surgiu no que é conhecido como a Era Axial, particularmente na civilização helenística e no Período dos Estados Combatentes na China, do quinto ao terceiro séculos a.C.. O próprio Marx adotou desde o início uma visão orgânico-materialista, desenvolvendo uma noção dos humanos como seres da natureza automediadores, o que rompeu com o mecanismo ocidental e as conceções eurocêntricas da modernidade, por intermédio do seu encontro com a filosofia materialista epicurista (2). No entanto, muito disto foi soterrado no marxismo posterior e foi completamente extinto na tradição filosófica marxista ocidental. Na China, a continuidade da civilização através do taoísmo (que foi paralelo ao epicurismo), do confucionismo e do neoconfucionismo, significou a perpetuação destas primeiras visões orgânico-materialistas, tornando a China mais recetiva à ecologia e às perspetivas ecológicas de Marx em particular (3).
(3) Embora tenha raízes filosóficas antigas, a civilização ecológica, enquanto perspetiva histórica transformadora, é um produto da sociedade pós-revolucionária e do desenvolvimento do socialismo. Reflete a noção dos seres humanos como seres automediadores da natureza, que era parte integrante de toda a visão de Marx sobre o desenvolvimento humano sustentável, incorporada na sua teoria da fratura metabólica. Esta abordagem rejeita qualquer noção de que a ecocivilização seja um produto direto do pré-modernismo ou do pós-modernismo, ou que possa ser explicada, como propuseram alguns teóricos ecológicos chineses, pela sequência da civilização tradicional para a civilização agrícola, para a civilização industrial e para a civilização ecológica (4).
(4) O conceito de civilização ecológica socialista na China concretizou estas ideias da forma mais completa. A civilização ecológica socialista deve ser considerada um desenvolvimento dentro do socialismo. É importante realçar que não pode existir qualquer conceito de “civilização ecológica capitalista”, pois o capitalismo é inerentemente estranho e destrutivo à natureza/ecologia. Falar, então, de civilização ecológica socialista é falar simplesmente de socialismo completo, como a afirmação plena do desenvolvimento humano sustentável, incorporando tanto a igualdade substantiva como a sustentabilidade ecológica. Significa a reconciliação da humanidade com a natureza.
(5) A civilização ecológica aponta para aquilo que os marxistas chineses apresentaram como a necessidade de “modernização da existência harmoniosa entre a humanidade e a natureza”. Isto é sustentado pelos princípios básicos do socialismo. Por conseguinte, é antitético à chamada modernização ecológica como filosofia de mecanismo e como projeto puramente tecnocrático no Ocidente (5). Ao mesmo tempo, adota algumas das mesmas tecnologias necessárias para uma transformação ecológica, mas utilizadas de acordo com princípios socialistas, exigindo relações sociais diferentes. O que é crucial aqui é a conceção fundamentalmente diferente da modernização dentro do marxismo chinês e do pensamento ecológico (6).
(6) O conceito de “comunidade da vida” desenvolvido pela teoria ecológica socialista na China é essencial para definir a civilização ecológica. Esta tem três componentes: (1) comunidade de vida com ecossistemas; (2) “a comunidade da vida da humanidade e da natureza”; e (3) uma síntese dialética, constituindo “a comunidade de toda a vida na Terra” e um “futuro partilhado” (7). Como escreveu o grande conservacionista norte-americano do início do século XX, Aldo Leopold “Abusamos da Terra porque a consideramos uma mercadoria que nos pertence. Quando vemos a Terra como uma comunidade à qual pertencemos, podemos usá-la com amor e respeito”. Leopold propôs uma ética da Terra que alargou “os limites da comunidade… para incluir os solos, as águas, as plantas, os animais ou coletivamente: a Terra” (8). Marx defendia que ninguém é dono da Terra, nem mesmo todos os países e todas as pessoas do planeta são donos da Terra, mas meramente “seus possuidores, seus beneficiários, que têm de a legar num estado melhorado às gerações seguintes como boni patres familias [bons chefes de família]” (9).
(7) A noção de sustentabilidade ecológica incorporada no conceito de comunidade da vida é exemplificada no “Pensamento de Xi Jinping sobre a Civilização Ecológica”. Xi afirmou que se tivermos de escolher entre “montanhas douradas” e “montanhas verdes”, precisamos de escolher montanhas verdes, reconhecendo que “águas límpidas e montanhas verdejantes são ativos inestimáveis”. Adotando uma abordagem materialista marxista da ecologia, Xi defendeu que a ecologia é “a forma mais inclusiva de bem-estar público”. Fazendo eco de Friedrich Engels sobre a “vingança” da natureza, Xi indicou que “qualquer dano que infligirmos à natureza acabará por voltar para nos assombrar”. A questão da natureza, além disso, insiste ele, vai para além da mera sustentabilidade material, abraçando também a estética, como no seu conceito de “Bela China” (10). Desta forma, a noção de civilização ecológica, como comunidade da vida, é ampliada e recebe um significado social mais amplo para o trabalhador coletivo, por meio da renovação da linha de massas.
(8) Marx defendia que o roubo da natureza pelo capitalismo, resultando na rutura metabólica, significava o enfraquecimento da base natural ou ecológica eterna da civilização. Isto significa que a relação metabólica precisava de ser restaurada, o que só é possível no socialismo (11). Com o mundo mergulhado numa crise ecológica planetária, tal restauração é a primeira prioridade (para lá da ameaça nuclear) na determinação do futuro da humanidade. Nos países ricos, caraterizados pelo excesso, isto levanta a questão do decrescimento. Para a humanidade como um todo, isto levanta a questão do desenvolvimento humano sustentável e, em última análise, da civilização ecológica sob o socialismo completo.
(9) O conceito de decrescimento estava ausente do socialismo do século XIX, embora Marx tivesse uma visão do desenvolvimento humano sustentável. O decrescimento como processo de desacumulação atinge todo o seu significado numa perspetiva marxista, a partir do sistema irracional do capitalismo monopolista/imperialismo e das suas crises de sobreacumulação. Qualquer movimento decisivo em direção à ecologia nos principais países capitalistas no centro do sistema mundial requer, portanto, um afastamento das estruturas do capitalismo monopolista/imperialismo (12). Os países capitalistas dominantes, que são também os principais países capitalistas monopolistas e imperialistas, são caracterizados ecologicamente pelo excesso ambiental, tendo pegadas ecológicas para além — por vezes até três ou quatro vezes para além — do que a Terra pode suportar se generalizadas para a humanidade como um todo. Estas enormes pegadas ecológicas refletem o imperialismo económico e ecológico. Portanto, do ponto de vista da humanidade global, estas nações devem reduzir drástica e desproporcionalmente a sua utilização de energia per capita, a utilização de recursos e as emissões de carbono, juntamente com a sua expropriação líquida de riqueza do resto do mundo. Uma vez que o capitalismo monopolista promove um vasto desperdício económico como meio de acumulação/financeirização, gerando pobreza artificial, e exibe níveis astronómicos de desigualdade, com um punhado de indivíduos a deter mais riqueza do que metade da população, uma estratégia de decrescimento planeada é consistente com condições económicas e sociais dramaticamente melhoradas para a maioria da classe trabalhadora (13).
(10) Em todos os países do mundo, a crise ecológica planetária exige uma revolução ecológica, abrangendo tanto as forças produtivas como as relações sociais. Em todos os casos, isto significa o desenvolvimento do proletariado ambiental em conflito com o capitalismo monopolista generalizado e o imperialismo. Na China e em alguns outros países pós-revolucionários, tal pode ser efetuado por uma linha de massas ecorevolucionária e pela construção de uma sociedade sustentável enraizada em estruturas comunitárias e coletivas já existentes. Para a maioria dos países do Sul global, o desenvolvimento humano sustentável requer uma desvinculação do sistema imperial de valor e uma ação revolucionária por parte de um proletariado ambientalista que vise a sobrevivência humana e a criação planeada de uma sociedade de desenvolvimento humano sustentável. No próprio Norte global, a revolução ecológica exige a destruição do imperialismo e a reunificação da humanidade no seu todo numa base igualitária num processo de solidariedade mundial. As pegadas ecológicas precisam de ser equalizadas em todo o mundo. O trabalho nos países ricos não pode ser ecológico quando nos países pobres (e no planeta como um todo) as bases da existência ecológica estão minadas.
(*) John Bellamy Foster (n. 1953) é professor de Sociologia na Universidade de Oregon (E.U.A.) e o atual diretor da indispensável revista marxista norte-americana Monthly Review. Discípulo de Paul Sweezy e continuador da escola de pensamento crítico por este fundada (com Paul Baran e Harry Magdoff), tem publicado numerosos livros sobre a crise ecológica e sua interseção com a economia política do capitalismo, bem como sobre história do pensamento, desenvolvimentos científicos, atualidade política e muitos outros temas. Merecem destaque: The Vulnerable Planet: A Short Economic History of the Environment (1994); Marx’s Ecology: Materialism and Nature (2000); Ecology Against Capitalism (2002); Naked Imperialism: The U.S. Pursuit of Global Dominance (2006); The Great Financial Crisis: Causes and Consequences, com Fred Magdoff (2009); The Ecological Revolution: Making Peace with the Planet (2009); The Ecological Rift: Capitalism's War on the Earth, com Brett Clark e Richard York (2010); What Every Environmentalist Needs To Know about Capitalism: A Citizen's Guide to Capitalism and the Environment, com Fred Magdoff (2011); The Endless Crisis, com R. W. McChesney (2012); The Theory of Monopoly Capitalism (2014); Marx and the Earth, com Paul Burkett (2016); Trump in the White House: Tragedy and Farce (2017); The Robbery of Nature: Capitalism and the Ecological Rift (2020), com Brett Clark; The Return of Nature: Socialism and Ecology (2020); Capitalism in the Anthropocene: Ecological Ruin or Ecological Revolution, com Hannah Holleman (2022) e The Dialectics of Ecology: Socialism and Nature (2024). O presente artigo foi publicado originalmente no N.º 6 do Volume 76 (novembro de 2024) da revista Monthly Review. O presente texto resulta de uma palestra proferida (via rede) no Simpósio Internacional sobre “O Progresso Ecocivilizacional da China num Mundo em Mudança”, Universidade de Pequim, 20 de outubro de 2024, tendo sido publicado no Volume 76, N.º 8 (janeiro de 2025) da revista Monthly Review. Todos os direitos reservados. A tradução é da responsabilidade de Ângelo Novo.
___________________________ NOTAS:
(1) Leia-se a discussão desta história em John Bellamy Foster, The Dialectics of Ecology (New York: Monthly Review Press, 2023), pp. 161–66.
(2) Karl Marx, Early Writings (London: Penguin, 1974), p. 356; István Mészáros, Marx’s Theory of Alienation (London: Merlin Press, 1975), pp. 162–65; John Bellamy Foster, Breaking the Bonds of Fate: Epicurus and Marx (New York: Monthly Review Press, a publicar, 2025).
(3) Joseph Needham, Within the Four Seas: The Dialogue of East and West (Toronto: University of Toronto Press, 1969), pp. 27, 66–68, 93–97, 212; Samir Amin, Eurocentrism (New York: Monthly Review Press, 2009), pp. 13, 22, 108–11, 212–13; Foster, The Dialectics of Ecology, pp. 171–74.
(4) Leia-se Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China: From Marxist Ecology to Socialist Eco-Civilization Theory”, Monthly Review vol. 76, n.º 5 (October 2024): pp. 32–46 (um tradução em língua portuguesa deste artigo está publicado neste mesmo número de O Comuneiro); Zhihe Wang, Huili He e Meijun Fan, “The Ecological Civilization Debate in China: The Role of Ecological Marxism and Constructive Postmodernism—Beyond the Predicament of Legislation”, Monthly Review vol. 66, n.º 6 (November 2014): pp. 37–59.
(5) Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China,” 41–42; John Bellamy Foster, Brett Clark e Richard York, The Ecological Rift (New York: Monthly Review Press, 2010), pp. 41–43, 253–58.
(6) Chen Xueming, The Ecological Crisis and the Logic of Capital (Boston: Brill, 2017), pp. 467–72, 566–70.
(7) Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China”, pp. 41–43; Foster, The Dialectics of Ecology, p. 13.
(8) Aldo Leopold, The Sand County Almanac (New York: Oxford University Press, 1949), p. viii; John Bellamy Foster, Ecology Against Capitalism (New York: Monthly Review Press, 2002), pp. 86–87.
(9) Karl Marx, Capital, vol. 3 (London: Penguin, 1981), p. 911.
(10) Chen Yiwen, “Marxist Ecology in China”, pp. 42–43; Xi Jinping, The Governance of China (Beijing: Foreign Languages Press, 2020), pp. 3, 6, 20, 25, 54, 417–24.
(11) Karl Marx, Capital, vol. 1 (London: Penguin, 1976), pp. 637–78; John Bellamy Foster e Brett Clark, The Robbery of Nature (New York: Monthly Review Press, 2000), pp. 12–13.
(12) Paul Burkett, “Marx’s Vision of Sustainable Human Development”, Monthly Review vol. 57, n.º 5 (October 2005): pp. 34–62; Brian M. Napoletano, “Was Karl Marx a Degrowth Communist?”, Monthly Review vol. 76, n.º 2 (June 2024): pp. 9–36.
(13) John Bellamy Foster, “Planned Degrowth: Ecosocialism and Sustainable Human Development”, Monthly Review vol. 75, n.º 3 (July–August 2023): pp. 1–29.
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