Comunas socialistas e anti-imperialismo

A abordagem marxista

 

 

Chris Gilbert (*)

 

“A antítese direta do império era a Comuna.”

–Karl Marx, A Guerra Civil em França

 

 

A guerra genocida de Israel contra Gaza, que foi acompanhada por ataques implacáveis à Cisjordânia, ao Líbano, ao Irão, ao Iémen e à Síria, todos entusiasticamente apoiados e financiados pelos Estados Unidos da América, serviu de aviso para as pessoas de todo o mundo sobre os efeitos devastadores do imperialismo. Realizado com a cumplicidade de todos os governos ocidentais, o genocídio deve também abrir-nos os olhos para o sistema imperialista mais vasto, liderado pelos E.U.A.. Este sistema, mesmo quando não trava uma guerra aberta contra países do Sul global, coloca a maioria sob uma espécie de cerco generalizado, por vezes através de sanções (por exemplo, Venezuela, Cuba, Nicarágua, China e Irão) ou cercando-os com bases militares (como nos casos da China, Coreia do Norte e Venezuela, entre outros), para não falar da drenagem sistemática do valor e dos recursos materiais destes países pelo imperialismo, o que tem efeitos sociais e ambientais devastadores.

 

Perante este contexto, em que imperialismo versus nações e povos oprimidos representa claramente a principal contradição, pode questionar-se a importância de uma comuna socialista. Porquê discutir comunas? O que têm as comunas a ver com a luta urgente contra o imperialismo, que é evidentemente a luta central hoje? Mais preocupante ainda, pode-se apontar como o próprio projeto imperialista-sionista mobilizou comunas, os kibbutzim, para colonizar territórios palestinianos, armando-os com milícias para extirpar e exterminar palestinianos no seu projeto colonialista de povoamento. Algumas destas comunas-kibbutz foram alvos — alvos compreensíveis, dado o direito de um povo colonizado lutar contra os seus opressores — da Operação Inundação de Al-Aqsa, liderada pelo Hamas, em 2023 (1). Existem também organizações comunitárias noutras partes do mundo que, embora não sejam colonizadoras como os kibbutzim, têm dificuldade em ver para além do seu território autónomo, dificultando assim a sua participação em projetos mais vastos de libertação nacional da dominação imperialista. Por todas estas razões, seria compreensível que as comunas socialistas não fossem vistas como uma prioridade na luta crucial contra o imperialismo, o desafio central do nosso tempo.

 

Uma pessoa que pensa o contrário, e parece fazê-lo com muita veemência, é a célebre revolucionária palestiniana Leila Khaled. Em novembro passado, Khaled veio a Caracas no âmbito de um evento antifascista e pró-Palestina organizado pelo governo bolivariano. Uma vez lá, ela foi quase imediatamente para a Comuna El Panal, no bairro operário 23 de Enero. Falando aos comuneiros e membros do público ali reunidos, ela expressou o seu entusiasmo e admiração pela comuna. Observou como este projeto de 20 anos, bem como outras comunas na Venezuela, estava a tomar medidas concretas para garantir a soberania pela qual o seu povo, do outro lado do oceano, também lutava naquele momento. Apesar das agressões dos E.U.A., as comunas ajudaram os venezuelanos a serem "livres no seu território" (2). As palavras de Khaled foram comoventes, enquanto o seu anti-imperialismo sincero e também altamente informado foi ecoado pelos comuneiros reunidos em El Panal, que apontaram as semelhanças entre as lutas na Venezuela e na Palestina. Alguns até manifestaram o desejo de se juntarem ao movimento de resistência palestiniano, seguindo a longa tradição de internacionalismo militante no bairro 23 de Enero, mas Khaled considerou o seu trabalho tão importante que deveriam permanecer. Para Khaled e os comuneiros de El Panal, então, o projeto comunitário que tinham construído era praticamente sinónimo de luta anti-imperialista. Fica, no entanto, a questão: qual a ligação entre o anti-imperialismo e a construção de uma comuna socialista? Quando e onde é que uma comuna se qualifica como anti-imperialista, e como podem as comunas enquadrar-se na estratégia mais vasta de anti-imperialismo socialista que as pessoas de esquerda, particularmente os de cariz marxista, perseguem no mundo? Estas são questões a que este artigo tentará responder.

 

Projetos comunitários contemporâneos

 

Em todo o mundo, mas especialmente na América Latina, existe atualmente muito interesse pelas comunas, tal como existem, de forma ainda mais importante, projetos reais de construção comunitária. Alguns dos exemplos mais convincentes destes últimos são os esforços para construir o socialismo comunal ou "socialismo comunitário" que surgiram na Venezuela e na Bolívia, respetivamente. Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez propôs, em 2009, que o socialismo venezuelano — um projeto iniciado três anos antes — seria construído com base nas comunas, como as suas "células básicas" de autogoverno democrático e de produção coletiva. Na Bolívia, o processo de mudança, que começou em 2006 e tem raízes tanto na resistência indígena do país como nas lutas dos trabalhadores, propôs também uma variante do socialismo comunitário. Ligado ao conceito de buen vivir, o socialismo boliviano deveria ser construído com base nas comunas indígenas, ou ayllus, como uma das suas principais "alavancas". Um paralelo pode ser encontrado no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil, que luta pela reforma agrária através da ocupação de terras e, mais tarde, do estabelecimento de arranjos comunitários de vida e produção, denominados acampamentos e assentamentos. Embora seja um movimento social, o MST defende há muito o objetivo de construir uma nação soberana face ao imperialismo e, desde 1990, inclui o socialismo como um dos seus objetivos estratégicos. Estes são, na minha opinião, alguns dos exemplos mais promissores.

 

No entanto, tanto o discurso como a prática da construção de comunas podem ser altamente ambivalentes em relação aos projetos de construção socialista e de libertação nacional. Por vezes, um projeto comunitário que reivindica radicalmente a autonomia, frequentemente influenciado pela teoria autonomista, pós-moderna ou anarquista, pode não incorporar um processo viável de libertação nacional do imperialismo, ou pode virar as costas aos já existentes. Esta é, sem dúvida, parte da história do neozapatismo (Exército Zapatista de Libertação Nacional, EZLN) em Chiapas e é também uma crítica frequente às comunidades autónomas curdas (3). Além disso, o trabalho a nível comunitário é frequentemente promovido por organizações não governamentais, precisamente para evitar questões maiores, como a reforma agrária e a soberania nacional face ao imperialismo. A seguir, com o objetivo de determinar quando e onde uma comuna socialista se qualifica como anti-imperialista, examinarei as próprias reflexões de Karl Marx sobre a comuna - que assumiram maior centralidade na sua visão da mudança social nos anos finais da sua vida - considerando-as uma espécie de modelo do que é ser uma comuna socialista e anti-imperialista. O meu objetivo será mostrar como estas reflexões de Marx, apesar de terem sido mais plenamente desenvolvidas no seu último período (1870-1883), estão, no entanto, ligadas a todo o seu aparato teórico e projeto. Este projeto envolve uma intervenção revolucionária no Estado, seguida de uma transformação de toda a economia e sociedade, e é, pela sua própria natureza, oposto ao imperialismo. Assim, se as comunas forem concebidas da forma defendida por Marx, farão parte de uma estratégia anticapitalista e anti-imperialista em desenvolvimento.

 

O artigo prosseguirá mostrando, em primeiro lugar, como as reflexões mais conhecidas de Marx sobre as comunas tradicionais ou agrárias, como as que se encontram nos Cadernos Etnológicos e nas suas últimas cartas e nos rascunhos a Vera Zasulich, andaram de mãos dadas com a sua defesa dos povos colonizados e periféricos contra a expansão capitalista. Este é um aspeto do marxismo que Rosa Luxemburgo abordou, com uma sensibilidade impressionante para a questão colonial. No entanto, Marx foi mais longe do que ela, ao endossar a comuna rural como base para o socialismo num projeto de libertação nacional, mesmo tendo estabelecido condições muito claras sob as quais isso poderia acontecer. Numa segunda etapa, mostrarei como a afirmação de Marx de que a comuna poderia ser um elemento constitutivo do socialismo, mesmo que seja mais evidente na obra do que se pode chamar "Marx tardio" (1870-1883), não representa uma rutura com a sua obra geral. Muitos foram tentados a celebrar este período tardio de Marx como algo nitidamente distinto do resto da sua obra, com ecos de uma "rutura epistemológica", outrora alegada em relação ao jovem Marx (4). Na verdade, porém, a defesa da comuna rural por Marx, na parte final da sua vida, surgiu a partir do próprio tronco central da teoria marxista: a discussão das relações de valor na sua crítica da Economia Política, realizada em meados do século. Além disso, uma vez que o aparelho teórico de Marx, centrado no valor, se desdobra para incluir outras categorias utilizadas para construir uma crítica da concentração de capital, da formação de monopólios e do mercado mundial, segue-se que a alternativa fundamental de Marx à troca de mercadorias – que era a produção comunal desde pelo menos o final da década de 1850 – não pode ser separada da sua crítica plenamente desenvolvida do capitalismo e da sua tendência expansionista e imperialista. Também não pode ser separada das estratégias que Marx delineou para a classe operária no sistema mundial capitalista, como o projeto de emancipação nacional que considerava incorporado, ainda que imperfeitamente, na Comuna de Paris. Na secção final, analisarei como as conceções venezuelana e boliviana do socialismo comunal ou comunitário, cada uma à sua maneira, coincidem com a visão estratégica marxista de um projeto comunal, que não se trata de construir comunas isoladas ou radicalmente autónomas, ou mesmo redes de comunas, mas sim de as integrar em projetos nacionais estratégicos que se opõem ao imperialismo. O mesmo se aplica ao projeto do MST de uma "reforma agrária popular", que enfatiza a organização comunal e o cooperativismo, mas opera dentro de uma estrutura geral anti-imperialista e anticapitalista.

 

O "Marx tardio" foi um Marx tricontinental

 

Existem inúmeras investigações que analisam o último período de Marx, no qual estudou e defendeu as formas comunais como uma possível base para a construção socialista. Alguns autores chegam mesmo a saudar esta como uma descoberta, anunciando o surgimento de um novo e até então desconhecido Marx (5). No entanto, apesar deste entusiasmo pelo último período de Marx, raramente é suficientemente enfatizado que as reflexões de Marx sobre as comunas rurais daquela época quase sempre se centravam na periferia do sistema capitalista mundial: o campo russo, a aldeia indígena, a comunidade camponesa argelina e as comunidades indígenas da América do Norte e do Sul. A obra de Marx sobre a vida comunal rural durante o seu último período de vida está espalhada por notas, rascunhos e correspondência. Por exemplo, a discussão sobre a comuna rural russa aparece na sua "Carta ao Conselho Editorial de Otechestvennye Zapiski", não enviada, de 1877; na sua carta e rascunhos não enviados a Vera Zasulich e nas suas notas sobre a obra de Maxim Kovalevsky. As suas reflexões sobre a comunidade camponesa argelina surgem numa série de cartas escritas durante a última viagem de Marx, por motivos de saúde, à cidade de Argel, em 1882, e também nas notas sobre Kovalevsky. Durante este período, Marx tomou também notas sobre a posse de terras dos indígenas, que era um interesse antigo seu, e sobre a organização social dos aborígenes australianos, com base num trabalho etnográfico de Richard Bennett (6). Apesar da grande diversidade destes materiais e da amplitude dos estudos de Marx nesta época, todos eles têm uma coisa em comum: as formas comunitárias que ele estudava estão todas localizadas nas fronteiras da expansão capitalista e — é importante acrescentar — eram locais de resistência anticolonial.

 

Nas suas notas sobre estas comunidades agrárias, Marx destacou não só a forma como foram atacadas pelo capitalismo em expansão, mas também como se revelaram resilientes ao defenderem-se dele. Apontou consistentemente para a resistência indígena, mesmo criticando os colonizadores em termos inequívocos. Na Argélia, Marx observou como os colonialistas franceses, com a sua "arrogância descarada", expropriaram os árabes com o objetivo de fornecer mais terras aos colonos franceses e "quebrar a força das uniões clânicas" (7). No entanto, o povo argelino não se revelou passivo, e Marx observou com aprovação como a sua posse coletiva de terras resistiu a tais ataques. Olhando para a Índia, Marx chamou à supressão da propriedade comunal pelos colonizadores "um ato de vandalismo inglês, empurrando os povos nativos não para a frente, mas para trás" (8). Ao mesmo tempo, Marx salientou consistentemente que tais comunas rurais sobreviveram a todos os tipos de invasores ao longo dos séculos, e celebrou as rebeliões indianas contra aqueles a quem chamou "cães britânicos" e "asnos" (9). Os estudos de Marx sobre a comuna camponesa na Rússia são os mais extensos que realizou sobre as comunidades agrárias em qualquer parte (10). Levaram-no a reconhecer a possibilidade de uma comuna rural, num contexto periférico, se tornar um fulcro da construção socialista. No entanto, também salientou que isso exigiria o derrube do Estado czarista, subordinado às potências ocidentais e que fomentava apenas o crescimento dependente, através da "domiciliação de certos negócios" (11). Observando o foco deste Marx tardio nas comunidades resistentes da Ásia, África e Américas, o autor argentino Néstor Kohan, em tempos, gracejou que, nas reflexões de Marx sobre as comunidades rurais da periferia, estava a desenvolver uma "Tricontinental" avant la lettre, aludindo à conferência anti-imperialista organizada na Cuba revolucionária no século seguinte (12). Este espírito tricontinental, muito presente em Marx, é precisamente o que falta em grande parte do que é publicado sobre as últimas investigações de Marx sobre a comuna rural.

 

Embora a maioria dos intérpretes tenha minimizado o carácter anticolonial da obra tardia de Marx sobre as comunas, existe uma marxista de segunda geração que seguiu uma linha de pensamento análoga. Trata-se de Rosa Luxemburgo, que se interessou profundamente pelos povos e nações do que hoje se designa por Sul global. Se as reflexões de Luxemburgo se assemelham às do falecido Marx, tal deve-se apenas à semelhança do seu método, interesses e fontes, pois que ela não teve acesso às notas e rascunhos de Marx dos seus últimos anos, que só se tornaram disponíveis mais tarde. A maior parte da obra luxemburguista sobre as formações sociais e os modos de vida dos povos e nações não capitalistas surge no seu pouco reconhecido livro, Introdução à Economia Política, baseado nos cursos que ministrou na escola do Partido Social-Democrata (SPD), a partir de 1907. O livro faz uma análise impressionante do que hoje se designa por Sul global. Por exemplo, considera a comunidade aldeã indiana e as suas diversas manifestações, referindo que “a propriedade da terra correspondia simplesmente às comunidades camponesas indianas que a tinham trabalhado ao longo dos milénios... uma grande cultura social, na qual a terra não é um meio para explorar o trabalho dos outros, mas simplesmente a base da existência dos próprios trabalhadores” (13). O livro analisa também aquilo a que Luxemburgo chamou de “comunismo agrário” no Peru e no México, que ela afirmou ser a forma pré-colonial dominante nos respetivos contextos (14). Quando Luxemburgo se virou para o Norte de África, celebrou as relações resilientes de propriedade comunal dos povos árabes e berberes e a sua “resistência obstinada” ao “domínio do capital europeu” (15).

 

Enquanto seguia de perto os passos do Marx tardio (embora, em grande medida, sem o seu conhecimento), Luxemburgo também coincidiu com ele ao fazer uma avaliação geral positiva do que ela entendia serem exemplos de comunismo original ou, nas suas palavras, "instituições comunistas". A contradição entre tais formas comunais e a expansão capitalista faz também parte da narrativa luxemburguista. Por exemplo, ela observou que a conquista colonial leva a uma "abolição violenta da propriedade comum", resultando na destruição da "comunidade comunista" (16). A sua mensagem, que pode ser vista retrospetivamente pelo prisma do seu slogan "Socialismo ou Barbárie", era a de que o capitalismo atua barbaramente na sua expansão pelo mundo e no seu tratamento dos povos não capitalistas e das suas comunidades. Longe de trazer progresso, o efeito da expansão capitalista foi simplesmente prejudicial, com "os antigos laços a serem aniquilados e substituídos por disputas, discórdia, desigualdade e exploração" (17). O que Luxemburgo destacou, e está em total consonância com a obra tardia de Marx, é o carácter e o potencial anticolonial e anti-imperialista da comuna. Ou seja, tanto o Marx tardio como Rosa Luxemburgo examinaram as comunas rurais nas fronteiras da expansão capitalista — onde a dinâmica da expropriação é frequentemente sentida tanto como a da exploração — e ambos os teóricos entendiam tais comunidades como locais resilientes de resistência ao capitalismo.

 

Núcleos do socialismo, mas com condições e contexto

 

As investigações de Luxemburgo foram realizadas num contexto extremamente hostil, marcado pela atitude geralmente apologética da liderança do SPD em relação ao colonialismo (18). Isto torna a sua defesa dos povos colonizados e a sua celebração da resistência que mantinham nas suas comunidades "comunistas" ainda mais impressionantes. Ela também estava ciente das potenciais ligações entre as lutas anticoloniais na periferia e as da classe trabalhadora nos países centrais, referindo que a burguesia europeia tinha percebido “uma ligação entre os antigos restos comunistas que opunham uma resistência obstinada nos países coloniais... e o novo evangelho [revolucionário] da... massa proletária nos antigos países capitalistas” (19). Pode mesmo argumentar-se que as extensas reflexões de Luxemburgo sobre as comunidades da periferia, para as quais a expansão capitalista não era meramente uma questão laboral, mas uma ameaça existencial, destacavam implicitamente a agência revolucionária dos povos da periferia e das suas comunidades. Ainda assim, Luxemburgo não deu o passo adicional de permitir que a comuna agrária ou a comunidade indígena se pudessem tornar os blocos de construção de uma nova sociedade socialista. Aqui, a análise de Marx, talvez pela maior importância que atribuía à autodeterminação nacional, superou a dela, uma vez que tomou a iniciativa de afirmar, nos seus últimos anos, que tais comunas tinham o potencial de serem fulcros ("points de appui ") da regeneração social, ou células do socialismo. No entanto, a concretização deste potencial impunha algumas condições, caso se concretizasse — isto é, se a comuna rural contribuísse para o socialismo moderno.

 

De que tipos de condições estamos a falar? Podemos vê-las com mais clareza na discussão que Marx faz da formação comunal existente que estudou mais detalhadamente e sobre a qual tinha mais informação: a obshchina da Rússia. O seu ponto de vista foi expresso na sua "Carta ao Conselho Editorial de Otechestvennye Zapiski" (1877), na carta e rascunhos a Zasulich (1881) e no prefácio de 1882 à tradução russa do Manifesto do Partido Comunista, que foi escrito por Friedrich Engels, mas teve a aprovação de Marx. Nestes documentos, Marx dedicou-se a delinear como é que uma comuna, com propriedade coletiva e algum grau de autogoverno interno, se poderia enquadrar numa estratégia de transição socialista e de libertação nacional num país periférico. Uma questão eram as forças produtivas: Marx defendia que a comuna precisava de incorporar as conquistas tecnológicas do sistema capitalista, para o qual considerava a comuna russa particularmente adequada, pois, como uma forma comunal tardia que não se baseava principalmente em relações de parentesco, era "capaz de um desenvolvimento mais amplo" (20). Assim, poderia facilmente substituir "a agricultura fragmentada por uma agricultura de grande escala, assistida por máquinas". Estas novas forças produtivas eram também importantes porque permitiriam à comuna passar "do trabalho fragmentado para o trabalho coletivo", sendo o trabalho coletivo particularmente importante na perspetiva de Marx sobre a produção comunal (21).

 

Uma segunda questão era que as comunas precisavam de estar ligadas entre si. Segundo Marx, era "uma característica debilitante" que as obshchinas existentes fossem "microcosmos localizados", e chegou a sugerir que o seu isolamento era a "base natural para" o despotismo (22). Em terceiro lugar, era necessário que houvesse uma revolução política que transformasse o Estado existente e estabelecesse uma nova relação com as comunas, naquilo que era essencialmente um processo de libertação nacional. Marx percebeu que a Rússia do final do século XIX era aquilo a que hoje chamaríamos um "Estado dependente". Tal como muitos Estados do Terceiro Mundo de hoje, o regime czarista desenvolveu apenas "certos ramos do sistema capitalista ocidental" que estavam mais "facilmente aclimatados" (23). Em vez de ajudar as comunas rurais da Rússia, este Estado dependente fomentou uma série de parasitas, usurários e capitalistas especulativos (24). (Marx chamou-lhes "pragas capitalistas", e coincidem aproximadamente com a burguesia compradora nas formações sociais do Terceiro Mundo de hoje.)

 

De um modo geral, quando analisamos a discussão relativamente desenvolvida de Marx sobre a comuna russa, podemos ver como Marx via nela não a perfeição socialista, mas o potencial socialista. Reconheceu a comuna rural como um local de contradições internas — incluindo hierarquias emergentes — que, por isso, estava em constante evolução. Por conseguinte, se Marx afirmava que a obshchina poderia ser um ponto de partida para um sistema socialista, tinha o cuidado de não cair em idealizações românticas nem de a isolar de considerações estratégicas e geopolíticas (25). Por exemplo, reconhecia a necessidade de substituir as tradicionais assembleias volost das comunas, chefiadas por anciãos do sexo masculino, “por uma assembleia camponesa escolhida pelas próprias comunas” (26). Da mesma forma, condicionou a sua defesa da comuna russa à sua integração com preocupações estratégicas, especificamente um processo revolucionário nacional, no qual necessitaria de estar envolvida. Isto porque, como disse Marx, o “desenvolvimento posterior da comuna funde-se com o curso geral da sociedade russa”. A conclusão lapidar de Marx foi: “Para salvar a comuna russa, tem de haver uma Revolução Russa” (27).

 

A crítica de Marx à Economia Política apela ao controlo comunitário

 

A ideia de que o Marx tardio representa um Marx desconhecido e distinto aponta para um desejo de separar Marx em dois (28). Das fábricas de sonhos do marxismo da moda, somos por vezes encorajados a acreditar que existe um Marx mais atual, ecológico (até mesmo "decrescimentista"), decolonial e favorável às comunidades, que terá surgido por volta de 1870, o qual pode ser contrastado com o sombrio "Marx médio", que escreveu sobre classe, Economia Política, poder estatal e partidos políticos, sendo provavelmente etapista e "estalinista" além disso. Esta suposta separação é suspeita em si mesma. Não apontará para o desejo de promover um Marx "atualizado", centrado nas comunidades, que esteja separado tanto da própria crítica de Marx ao capitalismo como da análise posterior do imperialismo pelo marxismo? Não correrá isto o risco de repetir o gesto pelo qual o Marx supostamente mais humanista dos Manuscritos de 1844 foi utilizado para alimentar vertentes do marxismo ocidental que se distanciavam dos contributos e dos processos de aprendizagem do socialismo realmente existente, muitas vezes até rejeitando a crítica marxista do imperialismo? Acredito que sim. Entretanto, também se baseia numa interpretação textualmente espúria. Pois que o interesse pela forma comunal remonta ao início de Marx e perpassa toda a sua obra madura (29). Isto pode ser claramente constatado nas cambiantes reflexões de Marx sobre a troca baseada no valor, após o seu primeiro envolvimento com a Economia Política, ocorrido na década de 1840. À medida que o século avançava e Marx foi compreendendo a importância do valor como forma social — o que podemos ver ocorrer nos manuscritos dos Grundrisse de 1857-1858 —, postulou imediatamente a troca comunal como a antítese fundamental da troca de mercadorias. A partir daí, começou a perceber que seria necessária alguma forma social que envolvesse a produção comunitária, o intercâmbio comunitário e o consumo comunitário, para superar a forma social do valor.

 

Vejamos como isso acontece. No início dos Grundrisse, no capítulo sobre o dinheiro, Marx expõe a natureza social do valor. Observa como, na sociedade contemporânea, o valor de troca exprime o nexo social; incorpora a dependência mútua e geral de indivíduos que nada têm a ver uns com os outros, exceto como produtores privados ligados pelo mercado (30). O valor de troca é um nexo social que confronta o indivíduo como algo estranho e semelhante a um objeto (como dinheiro, pode ser transportado no bolso, diz). Devido a este carácter objetal, Marx conclui: “A ligação social entre pessoas transforma-se numa relação social entre coisas” (31). No entanto, Marx percebe imediatamente que o vínculo comunitário é a antítese fundamental desta situação. Existe uma relação inversa, observa ele, entre o controlo comunitário e a regra do valor: “Quanto menor for o poder social que o meio de troca possua... maior deve ser o poder da comunidade”. Aqui, Marx justapõe dois sistemas essencialmente contrários. Por um lado, existe o sistema do capital, de relações generalizadas de mercadorias com a sua socialidade indireta, através da troca de dinheiro e de mercadorias. Do outro, existe o sistema comunal, em que a “atividade produtiva e a participação do trabalhador na produção estão ligadas a uma forma específica de trabalho e de produto” (32). Nestes arranjos comunais, existe trabalho diretamente social devido a um planeamento ou controlo pré-ordenado sobre o trabalho e a distribuição.

 

A partir daí, Marx começa a desenvolver a ideia de que a produção social no futuro precisa de ser controlada como um património comum (“riqueza comum”, é a tradução habitual). Assim, projeta uma futura situação pós-capitalista em que as “relações sociais [se tornam] as suas próprias relações comunais [gemeinschaftlich, ou baseadas na comunidade]... subordinadas ao seu próprio controlo comunal” (33). A este arranjo futuro chama “produção comunal” e aponta como ele requer trabalho diretamente social — ou “diretamente geral” (34). Portanto, o que se propõe é a troca organizada de atividades, em vez da socialização indireta, post festum, que é conseguida na troca de mercadorias. A partir destas passagens e dos seus postulados parciais sobre a sociedade futura, será um pequeno passo para a defesa que Marx faz da comuna camponesa russa como um fulcro para a regeneração social (35). Vale a pena notar que, nestas mesmas passagens dos Grundrisse, que contrastam a troca comunal com a troca privada, Marx mantém consistentemente uma perspetiva sobre a totalidade do capitalismo. Poucas linhas depois de apresentar a justaposição básica, Marx observa como a troca de mercadorias e a sua divisão do trabalho conduzem à “aglomeração, combinação, cooperação, à antítese de interesses privados, interesses de classe, competição, concentração de capital, monopólio, sociedades anónimas... comércio mundial... dependência do chamado mercado mundial e do sistema bancário e de crédito” (36). Está implícito, portanto, que só o fim da troca privada e o restabelecimento de algum tipo de coordenação comunitária das atividades laborais evitarão a concentração de capital e a formação de monopólios, que é a base do imperialismo.

 

Aqui podemos ver como a troca privada de mercadorias está ligada, desde muito cedo em Marx, a toda a estrutura da sociedade capitalista e, portanto, também ao desenvolvimento posterior do capitalismo no sentido da concentração de capital, da expansão, da financeirização e do imperialismo. Como Marx afirma mais adiante nos Grundrisse, “As relações posteriores devem ser consideradas como desenvolvimentos oriundos deste germe” (37). Em contraste, a troca comunitária de atividades e os laços comunitários que subordinam a produção ao controlo coletivo são propostos como uma alternativa metabólica ao sistema alienado que desemboca no monopólio e no crédito. (É exatamente este o ponto que Marx defende no início dos Grundrisse, ao insistir que as contradições do capitalismo não podem ser resolvidas pelo tipo de reforma bancária ou monetária que Pierre-Joseph Proudhon e os seus seguidores propuseram.) Estes últimos emergem da alienação do trabalho e do processo de trabalho que acompanha a dinâmica da troca generalizada de mercadorias. Uma vez que a visão de Marx nestas passagens vai do micro-particular (controlo comunal versus troca privada de mercadorias) ao macro-todo, que inclui o comércio mundial, a expansão do mercado e o monopólio, segue-se logicamente que a proposição de Marx de um modelo alternativo de produção comunal – essencialmente baseado no controlo comunal sobre as atividades produtivas – não pode ser separada da sua crítica à totalidade da economia e da sociedade capitalista, incluindo as suas formações estatais e monopolistas e a rivalidade imperialista que se manifesta no mercado mundial.

 

O sistema comunal na transição para o socialismo

 

Foi na teorização de Marx nos Grundrisse que o filósofo húngaro István Mészáros baseou os seus argumentos sobre a necessidade de um sistema comunal para superar o sistema do capital, desenvolvendo teses que mais tarde serviram de inspiração para o projeto de Chávez de construir o socialismo comunal na Venezuela (38). A principal obra de Mészáros, Beyond Capital (Para Além do Capital), no seu capítulo 19, coloca o seu foco na lei do valor, que está no centro do sistema do capital. Seguindo Marx, Mészáros defendeu que a lei do valor, que mede a riqueza social através do tempo de trabalho abstrato, só pode ser ultrapassada por outra configuração social, uma abordagem que envolva a participação de todos os membros da sociedade numa organização planeada do trabalho e que distribua o tempo disponível de forma racional (39). Qual é a estrutura social capaz de superar a regra imposta do tempo de trabalho abstrato? Mészáros salientou que Marx insiste sempre que é a tomada de decisão deliberadamente comunal que supera a lei social genérica do valor, imposta à escondidas dos produtores (40). Daí o sistema comunal, que Mészáros propôs como a alternativa radical ao sistema capitalista.

 

É importante realçar, no entanto, que a abordagem de Mészáros ao sistema comunal — como aquela que ele inspirou a Chávez, como veremos adiante — nunca foi míope: nunca perdeu de vista o panorama geral. Pois ambas propuseram um projeto comunitário que, fiel à abordagem totalizante de Marx, iria do micro ao macro e envolvia uma estratégia global que clamava por uma revolução política (introduzindo uma nova estrutura de comando no Estado), seguida pela construção de um metabolismo social alternativo baseado nas comunas, que, em última análise, conduziria a uma transformação completa de toda a sociedade e à abolição de todas as instituições políticas alienadas. Uma vez que este projeto envolvia uma abordagem abrangente à totalidade do sistema capitalista, reconhecia também que as comunas faziam parte de uma estratégia de transição, cuja implementação de qualquer etapa mediadora teria de ter em conta, não só o horizonte estratégico, mas também as realidades concretas de uma situação particular, incluindo a geopolítica global e as correlações locais de forças. Neste espírito, Mészáros insistiu na necessidade de “estratégias mediadoras historicamente específicas...” e aceitou que “a plena realização desta visão marxista exige a articulação historicamente viável das mediações materiais necessárias no seu contexto global” (41).

 

Nem Mészáros nem Chávez demonstraram qualquer interesse particular pelo Marx tardio e pelos seus comentários sobre a comuna rural, apesar das suas afinidades com esta linha de pensamento (42). No entanto, é um facto que, após apresentar o esquema básico da produção comunal nos Grundrisse (referido mais tarde como “produção por pessoas livremente associadas” em O Capital), Marx começaria, na última década da sua vida, a investigar exemplos concretos de produção comunal em comunas rurais históricas e atuais, como as do povo Haudenosaunee, bem como em comunas e comunidades argelinas, russas e indianas. É assim que chegamos ao Marx tardio, que precisamente por essa razão nos recusamos a separar do resto da sua obra. É de salientar que existe uma continuidade muito completa e multinível entre a abordagem do Marx médio e a do Marx tardio em relação às comunas. Pois não só se trata de uma transição relativamente direta da proposta de Marx de controlo comunal da produção social nos Grundrisse para a sua defesa posterior – coincidindo com Nikolai Chernyshevsky – da comuna russa como fulcro da regeneração social, como também é verdade que a alternativa comunal que ele propõe, tanto nas suas formulações médias como tardias, permanece sempre ligada à sua crítica mais vasta das categorias capitalistas e da totalidade do sistema capitalista (posteriormente, imperialista).

 

A evidência deste segundo tipo de continuidade — a incorporação da alternativa comunal no projeto maior — pode ser encontrada na insistência do Marx tardio de que a comuna russa, para ser um fulcro da regeneração social, necessita de ser acompanhada por uma revolução política que envolva a tomada do poder estatal e a superação da condição de dependência. Portanto, como foi referido acima, o Marx tardio não defendia a comuna russa absolutamente autónoma em estado de perfeição, mas sim a comuna como parte de uma revolução levada a cabo pela classe operária organizada, muito provavelmente num partido político, com dimensões nacionais e também internacionais. Este aspeto da abordagem de Marx à comuna russa torna-se particularmente evidente no prefácio de 1882 à tradução russa do Manifesto do Partido Comunista, que aponta para a necessidade de uma "revolução proletária" para que as comunas sobrevivam e avancem. É também relevante que Engels (com a aprovação de Marx) tenha escrito uma crítica ao escritor russo Pyotr Tkachev, apontando como o Estado russo existente não está meramente "suspenso no ar", como Tkachev afirmava, mas está estruturalmente ligado às classes dominantes (43).

 

A abordagem geopoliticamente informada e fundamentalmente classista de Marx à comuna rural russa também ressoa com a sua abordagem um pouco anterior à Comuna de Paris de 1871. Na sua discussão sobre a Comuna de Paris, a que Marx chamou "a forma política finalmente descoberta sob a qual se concretiza a emancipação do trabalho [isto é, da classe trabalhadora]", ele enfatizou como ela emergiu de uma luta contra uma potência estrangeira e um governo capitulacionista (44). Marx também enfatizou a incompatibilidade da comuna com a configuração existente do Estado (era a "antítese do Império" mencionada na minha epígrafe). Tal como o Estado russo, o Estado francês não estava "suspenso no ar", mas era antes a "forma definitiva de poder estatal" da burguesia (45). Era, portanto, um instrumento de governo de classe que precisava de ser apreendido e radicalmente readaptado pelos trabalhadores (46). Este tipo de continuidade entre as visões de Marx em 1871 e 1881 não é surpreendente, dados os argumentos a favor da produção comunitária que Marx tinha estabelecido no seu trabalho maduro sobre Economia Política. Esta visão totalizadora, que ligava o modelo produtivo (comunitário ou privado) a toda a formação social envolvente, incluindo as suas estruturas nacionais e internacionais, foi o que levou Marx a celebrar a Comuna de Paris como tendo formado um “governo verdadeiramente nacional”, de que um pilar fundamental era o “povo armado” — na prática, um exército popular e soberano (47). Claramente, o carácter explicitamente político do projeto, a despeito do seu vigoroso internacionalismo, incluía a dimensão da libertação nacional, o que terá sido uma razão fundamental para a sua coincidência com a visão que Marx formou de como alcançar a emancipação através da confiança na forma comunal (48).

 

Venezuela: “A comuna isolada é contrarrevolucionária”

 

É muito comum — na verdade, uma das expressões mais claras do eurocentrismo entre os intelectuais — declarar precipitadamente os processos de mudança no Sul global como encerrados sempre que eles encontram o mais pequeno contratempo. Aos olhos dos intelectuais convencionais, tais processos estão em constante espiral descendente, como demonstra o coro de vozes especializadas sempre prontas a declarar o "fim de um ciclo" ou o refluxo da mais recente maré progressista (49). No entanto, com mais frequência do que o inverso, a revolução venezuelana, agora com 25 anos, tem encontrado formas de ascender (“spiral up”) num processo de reinvenção criativa e de autocrítica implícita. De facto, nada poderia ilustrar melhor a construção de comunas como parte de uma estratégia anti-imperialista e socialista compreensiva, do tipo que Marx endossaria, do que a forma como o Processo Bolivariano foi acumulando definições: tornou-se anti-imperialista em 2004, depois incorporou o socialismo em 2006 e começou a utilizar as comunas como células básicas do seu projeto socialista anti-imperialista em 2009-2010. Notavelmente, no preciso momento em que Chávez propôs as comunas como blocos de construção do socialismo, também afastou qualquer ideia de um projeto comunitário autónomo, ao indicar que a comuna isolada era “contrarrevolucionária”. Isto aconteceu no programa gravado Aló Presidente Teórico n.º 1, em 2009 (50). Além disso, no ano seguinte, o governo transformou em lei a ideia de que as comunas deveriam estar ligadas através de cidades comunais, federações e, finalmente, o “Estado comunal” (51). Claramente, então, tal como Marx via a forma comunal como parte de um sistema completo que era a antítese do sistema baseado na troca de mercadorias, que incluía também o monopólio, os mercados globais e o imperialismo; a comuna venezuelana era uma componente orgânica de uma estratégia revolucionária anti-imperialista e socialista. Era uma continuação, uma espiral ascendente, de um projeto nacional anti-imperialista e, portanto, o prosseguimento do esforço de libertação nacional que tinha sido parte integrante do Processo Bolivariano desde o seu início. Significativamente, quando Chávez cunhou a palavra de ordem “Comuna ou Nada!”, estava conscientemente a fazer eco do slogan de Simón Bolívar “Independência ou Nada!”. A implicação era que a construção da comuna seria a garantia de independência e soberania, enquanto a opção de nada, que estava a ser evitada, incluía a perspetiva de dominação imperialista (52).

 

O carácter anti-imperialista da comuna venezuelana receberia uma contínua corroboração nos anos que se seguiram à morte de Chávez. Isto era verdade, em primeiro lugar, no sentido económico. Pois, sob os efeitos devastadores das sanções norte-americanas e da guerra económica contra a Venezuela, iniciada na década de 2010, a comuna tornou-se o local onde a reprodução social foi assegurada para muitos venezuelanos, à medida que processos viáveis de produção e trocas solidárias eram desenvolvidos, tanto dentro como entre as comunas, para superar os efeitos da escassez imposta pelo bloqueio. Foi isso que Cira Pascual Marquina e eu documentámos na nossa série de livros Resistencia Comunal, que analisa as respostas das comunas ao bloqueio (53). No entanto, a comuna venezuelana não era apenas uma fortaleza económica de base, era também uma fortaleza política (54). Pois foi em grande medida a partir das comunas que o projeto socialista foi reafirmado na Venezuela através de uma série de etapas que envolveram a construção da Unión Comunera e de outras associações comunais (55).

 

No entanto, a expressão mais reveladora do potencial anti-imperialista da comuna venezuelana ocorreu na Primavera e no Verão de 2024, quando as comunas se tornaram a força popular a que o Presidente Nicolás Maduro recorreu, sob o grave ataque imperialista ocorrido no contexto das mais recentes eleições presidenciais. Naquele momento, quando a outrora poderosa corrente pró-negócios do Ministro do Petróleo, Tarek Al Asami, estava em queda livre, o projeto comunal tornou-se, mais uma vez, o pilar explícito da estratégia nacional do governo. Compreendida corretamente, tratava-se de uma estratégia cuja continuidade havia sido politicamente possível pela recusa obstinada do governo em se vergar às exigências imperialistas e pela sua criatividade na sobrevivência ao bloqueio, enquanto foi socialmente possível devido ao trabalho popular de base desenvolvido pelas comunas. Desta forma, o potencial do poder estatal transformado para tanto fomentar como beneficiar do poder popular — uma das lições mais importantes da Revolução Bolivariana — foi reafirmado na “Aliança Comuna-Estado”, que forneceu a chave para a resistência ao imperialismo (56). A centralidade das comunas no novo bloco revolucionário seria reforçada e ratificada pela implementação de processos trimestrais de consulta comunal no início de 2024, pela expansão do apoio financeiro às comunas e por uma reforma constitucional projetada para 2025, conferindo-lhes mais poderes (57).

 

Projetos comunitários paralelos na Bolívia e no Brasil

 

Tal como o projeto comunal venezuelano, também os promovidos pelo MST no Brasil e no processo de mudança boliviano coincidem largamente com a estratégia comunal marxista, tendo orientações tanto socialistas como anti-imperialistas. O projeto boliviano de socialismo comunitário tem raízes que remontam a muito antes de Evo Morales Ayma assumir a presidência em 2006. O seu partido, o Movimiento al Socialismo (MAS), foi concebido como um instrumento político dos movimentos sociais e baseava-se especialmente nas lutas indígenas e camponesas, onde existia de há longa data uma defesa da comunidade indígena ayllu como uma unidade organizacional, por vezes em coordenação com os sindicatos, por vezes como alternativa ao modelo sindical (58). O próprio Morales entrou no panorama político como dirigente de um movimento. cocalero (cultivadores de coca), sempre sob o olhar da "guerra às drogas" politicamente motivada pelos E.U.A.. Isto significou que a sua liderança deu um claro tom anti-imperialista ao projeto, tal como trouxe consigo a prática crucial de traduzir sempre as questões económicas e sociais locais em questões nacionais e internacionais (59). A nível doutrinal, foi o vice-presidente de Morales, o teórico marxista e antigo guerrilheiro Álvaro García Linera, quem desenvolveu as conceitualizações mais ambiciosas do socialismo comunitário.

 

A trajetória das reflexões de García Linera sobre a comuna e a construção socialista revela paralelos marcantes com a evolução do projeto venezuelano. Enquanto membro do Exército Guerrilheiro Túpac Katari (EGTK), nas décadas de 1980 e 1990, García Linera começou a analisar atentamente a forma comunal nos textos tardios de Marx, como as notas reunidas no Caderno Kovalevsky, que a sua organização clandestina publicou em 1989 (traduzido do inglês pela militante do EGTK, Raquel Gutiérrez) (60). Como teórico empenhado, García Linera estabeleceu a ligação entre as afirmações de Marx sobre a comuna camponesa russa e a comunidade ayllu andina no contexto boliviano. Evitando a ideia dogmática amplamente adotada pela esquerda boliviana de que os ayllus eram simplesmente formas feudais retrógradas e, por isso, precisavam de ser dissolvidos, García Linera seguiu o Marx tardio em afirmar que se poderiam tornar uma "força revolucionária" no movimento socialista (61). A princípio, a visão de García Linera sobre o Estado era simplesmente de antagonismo entre a comunidade e o Estado (62). No entanto, rapidamente percebeu que as comunidades não poderiam permanecer como singularidades geograficamente separadas, mas necessitariam de ser coordenadas num projeto estratégico que empregasse o poder estatal a médio ou mesmo longo prazo.

 

Em 1997, García Linera propunha que um aparelho de Estado transformado poderia fortalecer o potencial das comunidades (63). Desta forma, o futuro vice-presidente, respondendo aos acontecimentos em curso com análises concretas, passou a situar a sua defesa do "fulcro socialista" da comunidade numa estrutura maior, que incluía a situação geopolítica e um aparelho de Estado readaptado. Na viragem do século, reconheceu a importância de incorporar vários setores sociais no "bloco plebeu" revolucionário, transcendendo assim o que restava da visão comunitária estritamente autonomista que pudesse ter tido. Claramente, para o maduro García Linera, a comunidade que defendia era concebida não como algo isolado — como a hipotética comuna «contrarrevolucionária» contra a qual Chávez tinha alertado —, mas como parte de um projeto nacional que procurava a libertação do imperialismo. Da mesma forma, houve a perceção, que desde então se confirmou, de que seria necessário um longo período de transição, a que se referiu em 2010 como "uma ponte" (64). Na perspetiva do presente, podemos ver como o projeto boliviano, baseado no "socialismo comunitário" como orientação estratégica, fez avanços importantes em diversas áreas. Isto inclui os direitos das mulheres e dos povos indígenas, a conquista histórica de uma constituição que estabelece a Bolívia como um Estado plurinacional e a nacionalização dos hidrocarbonetos, entre muitos outros avanços. No entanto, o progresso na concretização do socialismo comunitário, em sentido concreto, foi impedido pelo golpe de Estado de 2019 e pelas suas consequências duradouras, bem como pelas dificuldades da liderança em conceber um programa, para além dos vários mandatos concedidos pela sua base social, por vezes fragmentada.

 

O projeto do MST no Brasil aponta também para um amplo horizonte estratégico que vai para além dos projetos comunitários incorporados nas suas ocupações de terras. Embora o movimento tenha começado em meados da década de 1980 com o objetivo imediato de promover a reforma agrária através da tomada direta de terras não utilizadas e subutilizadas (seguida pela gestão coletiva em acampamentos e assentamentos), nunca se separou da esfera política (65). Em 1990, o movimento, que conta hoje com um milhão de membros, tomou a iniciativa de se declarar socialista e sempre defendeu a soberania nacional face ao imperialismo (“Terra, Trabalho e Soberania Nacional” é um dos principais lemas da organização). Da mesma forma, o MST procurou relações simbióticas com partidos progressistas (principalmente o Partido dos Trabalhadores, mas também o Partido Socialismo e Liberdade) e governos a nível regional e nacional quando estes estão em mãos progressistas. Além disso, o MST evoluiu, ao longo das quatro décadas da sua existência, de um foco numa luta específica — essencialmente a "questão agrária" — para um desafio à totalidade do sistema capitalista-imperialista. Ao mesmo tempo, passou a compreender que isso exige a organização de toda a classe trabalhadora brasileira, tanto urbana como rural. Um exemplo de um projeto político estratégico assumido pelo MST nos últimos anos foi a longa e custosa luta que organizou para libertar Luiz Inácio "Lula" da Silva da prisão no estado do Paraná, tornando possível a sua bem-sucedida campanha presidencial de 2022. Esta campanha foi uma intervenção na política nacional que ultrapassou qualquer objetivo economicista ou local limitado, e levou à derrota do candidato fascista.

 

Estratégias anti-imperialistas abrangentes

 

Os três movimentos que examinamos acima têm muito em comum, apesar dos seus diferentes contextos e histórias. O diálogo entre movimentos é certamente um fator importante que contribuiu para o seu desenvolvimento paralelo e objetivos estratégicos partilhados. Mesmo assim, podemos ainda maravilhar-nos com a impressionante combinação de trabalho comunitário de base com anti-imperialismo estratégico nestes projetos latino-americanos bastante distintos. De facto, esta combinação representa uma longa tradição na América Latina. Há quase um século, José Carlos Mariátegui, frequentemente considerado o fundador do marxismo latino-americano, declarou que o socialismo era a forma que o anti-imperialismo latino-americano iria assumir. Num contexto marcado pela intervenção imperialista aberta na Nicarágua, no final da década de 1920, Mariátegui escreveu: “Só é possível opor efetivamente a uns Estados Unidos da América capitalistas, plutocráticos e imperialistas, uma América Latina socialista” (66). Mariátegui estabeleceu, assim, um estreito vínculo entre o anti-imperialismo e os projetos socialistas no continente, cujo carácter comunal também sublinhou (67). Esse é um vínculo que se mantém até ao presente. De facto, como vimos, os três projetos acima examinados exemplificam a reivindicação do marxista peruano, ao realizar as suas construções comunal-socialistas dentro de um horizonte estratégico anti-imperialista — um horizonte que incorpora a libertação nacional.

 

No que expusemos anteriormente, procuramos responder à questão: Quando e onde é que uma comuna é anti-imperialista? A nossa resposta seguiu a linha geral de raciocínio de Marx ao estabelecer as condições e o contexto para uma comuna anti-imperialista. Em primeiro lugar, observamos como as comunas realmente existentes que Marx analisou e defendeu se encontravam, na maioria das vezes, em situações de dependência ou coloniais, e via-as como locais de resistência ao colonialismo. Na comuna rural que investigou mais a fundo, a russa, Marx expôs as condições — principalmente a necessidade de um projeto revolucionário nacional — necessárias para que uma comuna se tornasse uma célula do socialismo moderno. De seguida, examinamos como a investigação de Marx sobre as comunas, ainda que tenha ocorrido com mais intensidade no seu último período (1870-1883), não representou uma grande mudança no seu pensamento, mas antes uma continuidade com os resultados da sua obra madura sobre Economia Política. Vimos como, já no manuscrito dos Grundrisse (1857-1858), Marx reconheceu que as relações comunais eram o oposto fundamental das relações de troca baseadas nas mercadorias. Apontou para o facto de que existiam antes do capitalismo, mas também deduziu que alguma forma de produção comunal restaurada faria parte da futura sociedade emancipada.

 

Isto significava que as comunas podiam ser utilizadas para construir o socialismo e, onde já existissem, podiam ser incorporadas no projeto socialista. No entanto, para que isso acontecesse, percebeu Marx, tanto nessa altura como posteriormente, seria necessário ter em conta todo o desenvolvimento do capitalismo, incluindo o Estado, o sistema bancário, o crédito e o mercado mundial. Seria também necessária uma estratégia abrangente que incluísse elementos geopolíticos, como a oposição à expansão agressiva do capitalismo no mundo, que na nossa época se transformou em expansão e extermínio imperialistas. Portanto, se as comunas forem utilizadas como células do socialismo, na forma proposta por Marx, farão parte de uma estratégia anti-imperialista que não ignora a necessidade de intervir e empregar o poder estatal. Concluindo, analisamos como vários projetos latino-americanos são fiéis a esta visão, combinando a construção comunal com uma visão anti-imperialista e socialista. No entanto, fechando o círculo e indo além da América Latina, é também bastante claro que, em nítido contraste com os kibbutzim dos colonizadores de povoamento que, na verdade, são funcionais ao imperialismo, é toda a resistência armada palestiniana unida (incluindo o Hamas), com a sua luta heroica contra o imperialismo e a sua insistência na libertação nacional, que se aproxima mais do ideal estratégico marxista da comuna. Foi isso que os comuneiros de El Panal perceberam durante a visita de Khaled ao seu bairro — e tinham razão.

 

 

 

 

 

 

(*) Chris Gilbert é professor de Estudos Políticos na Universidade Bolivariana da Venezuela, em Caracas, onde vive há muitos anos. As suas investigações versam temas como as comunas, a estratégia socialista, a teoria da reprodução social e o imperialismo. É autor ou coautor de obras como Venezuela, the Present as Struggle: Voices from the Bolivarian Revolution (Monthly Review Press, 2020); Commune or Nothing! Venezuela’s Communal Movement and Its Socialist Project (Monthly Review Press, 2023); Para qué sirve El Capital: un balance contemporáneo de la obra principal de Karl Marx (Várias edições, Editorial Trinchera, Botxe, PT México) ou¿Por qué socialismo? Reactivando un debate (Boltxe y Editorial Trinchera, 2017). É ainda criador e coapresentador, com Cira Pascual Marquina, desde 2007, do inestimável programa de televisão e podcast educativo marxista Escuela de Cuadros. Este artigo foi publicado no Volume 77, N.º 3 (julho-agosto de 2025) da revista Monthly Review, aliás coeditado pelo autor, como convidado. Todos os direitos reservados. A tradução é da responsabilidade de Ângelo Novo.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Os kibutzim em geral, independentemente dos diversos motivos dos indivíduos que neles participavam, fazem parte de um projeto colonialista com inevitáveis dimensões militares. Normalmente, isso envolve armar os habitantes ou usar equipas especiais de «segurança». A partir da década de 1980, a maioria dos kibutzim abandonou a sua dimensão igualitária e o seu caráter socialista para se privatizar cada vez mais através de um processo eufemisticamente chamado de «reforma» e que levou à implementação generalizada de relações salariais. Sobre os processos de privatização nos kibutzim, ver Raymond Russell, Robert Hanneman e Shlomo Getz, The Renewal of the Kibbutz: From Reform to Transformation (New Brunswick, New Jersey: Rutgers University Press, 2013).

 

(2) Andreina Chávez Alava, “The Day Leila Khaled Visited a Venezuelan Commune”, Venezuela Analysis, 6 de janeiro de 2025. Embora Leila Khaled pertença a uma organização diferente, a Frente Popular para a Libertação da Palestina, ela defende o Hamas, considerando ambas as organizações partes integrantes do movimento de resistência palestiniano mais amplo.

 

(3) A autonomia territorial não era tanto o objetivo inicial do projeto do EZLN, mas sim um resultado final. Quando o EZLN lançou a sua insurgência, tinha como objetivo intervir na política nacional, aspirando até mesmo a derrubar o governo central — embora sem tomar o poder para si. Desde o início, o EZLN também conseguiu angariar simpatia e apoio generalizados, tanto a nível nacional como internacional, chegando a procurar uma aliança com o Partido da Revolução Democrática. No entanto, as circunstâncias em mudança e os reveses político-militares obrigaram a organização a contentar-se com o estabelecimento de um controlo autónomo sobre o seu território, que tem sido a sua postura ao longo do século atual, apesar de esforços como La Otra Campaña de 2005. Fabiola Escárzaga, La comunidad indígena insurgente: Perú, Bolivia, México (1980–2000) (Coyoacán, México: UAM, 2017), pp. 311–410. Leandro Vergaro-Camus, Land and Freedom: The MST, the Zapatistas and Peasant Alternatives to Neoliberalism (London: Bloomsbury Academic, 2014), pp. 257–84.

 

(4) Entre aqueles que enfatizam a novidade do Marx tardio estão Enrique Dussel, Haruki Wada, Kohei Saito e (de forma qualificada) Teodor Shanin. Saito chega a usar o termo «rutura epistemológica» para se referir a uma suposta rutura ocorrida em Marx por volta de 1867, argumentando que Marx se tornou um «comunista do decrescimento» depois disso e até abandonou o materialismo histórico. Kohei Saito, Marx in the Anthropocene: Toward the Idea of Degrowth Communism (Cambridge: Cambridge University Press, 2022), p. 208; Enrique Dussel, El último Marx (1863–1882) y la liberación latinoamericana (Mexico City: Siglo XXI, 1990); Haruki Wada, “Marx and Revolutionary Russia” e Teodor Shanin, “Late Marx: Gods and Craftsmen” ambos incluídos em Late Marx and the Russian Road: Marx and the Peripheries of Capitalism, ed. Teodor Shanin (New York: Monthly Review Press, 1983). Para uma visão alternativa, enfatizando a continuidade, consulte Derek Sayer e Philip Corrigan, “Late Marx: Continuity, Contradiction and Learning” (Marx tardio: continuidade, contradição e aprendizagem), também incluído em Late Marx and the Russian Road. Marcello Musto também defende a continuidade e questiona as posições de Dussel, Wada e Shanin em seu The Last Years of Karl Marx: An Intellectual Biography (Stanford: Stanford University Press, 2016).

 

(5) Ver nota 4.

 

(6) Musto, The Last Years of Karl Marx, p. 23.

 

(7) Musto, The Last Years of Karl Marx, pp. 109, 21.

 

(8) Musto, The Last Years of Karl Marx, p. 66.

 

(9) Musto, The Last Years of Karl Marx, p. 23.

 

(10) Shanin observa que Marx tinha mais informações sobre a Rússia, porque “a Rússia estava mais próxima não só geograficamente [do que a China e a Índia], mas também no sentido básico do contacto humano, do possível conhecimento da língua e da disponibilidade de evidências e análises, geradas pelos próprios nativos”. Shanin, Late Marx and the Russian Road, p. 19.

 

(11) Presumivelmente, a necessidade de substituir o Estado czarista dependente e distorcido foi parte do que levou Marx a simpatizar com o grupo de vanguarda Narodnaya Volya, que tentava um derrube revolucionário do czarismo. Sobre a simpatia de Marx pelos populistas do grupo Narodnaya Volya, ver Shanin, Late Marx and the Russian Road, pp. 20–21.

 

(12) Isso ocorreu fora das filmagens, num programa de Escuela de Cuadros, “Néstor Kohan: Marx frente al colonialismo, Escuela de Cuadros, YouTube video, 1:51:55, 7 de novembro de 2023.

 

(13) Rosa Luxemburg, Complete Works, vol. 1, ed. Peter Hudis (London: Verso, 2013), p. 157.

 

(14) Luxemburg, Complete Works, vol. 1, p. 155.

 

(15) Luxemburg, Complete Works, vol. 1, p. 154.

 

(16) Luxemburg, Complete Works, vol.1, p. 249.

 

(17) Luxemburg, Complete Works, vol. 1, p. 153.

 

(18) Néstor Kohan, “Karl Marx y la dialéctica del Sur global”, in Marxismos y pensamiento crítico desde el Sur global, eds. Néstor Kohan and Nayar López Castellanos (Buenos Aires: Ediciones Akal, 2023), pp. 28–33.

 

(19) Luxemburg, Complete Works, vol. 1, p. 163.

 

(20) Segundo Marx, a incorporação da tecnologia ocidental na comuna russa era possível porque ela “existe num contexto histórico moderno: ela [a comuna] é contemporânea de uma cultura superior e está ligada a um mercado mundial no qual a produção capitalista é predominante”. Shanin, Late Marx and the Russian Road, p. 102.

 

(21) Marx acreditava que o processo de transição do trabalho fragmentado para o coletivo seria facilitado pela familiaridade dos camponeses russos com as associações cooperativas chamadas artels. Shanin, Late Marx and the Russian Road, pp. 121–22.

 

(22) Shanin, Late Marx and the Russian Road, p. 103.

 

(23) Shanin, Late Marx and the Russian Road, p. 115.

 

(24) Shanin, Late Marx and the Russian Road, p. 115.

 

(25) A abordagem de Marx era diferente da de Lewis Henry Morgan, que se aproximava do ideal do «nobre selvagem». Em vez do regresso a uma forma de vida do passado, Marx via o socialismo como uma “forma superior de sociedade”. Ver Musto, The Last Years of Karl Marx, p. 30.

 

(26) Shanin, Late Marx and the Russian Road, p. 111. Há uma crítica implícita ao patriarcado nos comentários de Marx sobre o volost, que ele chamou de “uma assembleia de homens barbudos”.

 

(27) Shanin, Late Marx and the Russian Road, p. 116.

 

(28) Ver nota 4.

 

(29) Uma expressão muito precoce da defesa de Marx dos bens comuns pode ser encontrada nos seus artigos de 1842, defendendo os direitos dos camponeses da Renânia de recolher lenha em terras comuns, publicados na Rheinische Zeitung. Karl Marx e Friedrich Engels, Collected Works (New York: International Publishers, 1975), vol. 1, pp. 224–63.

 

(30) Nos Grundrisse, Marx ainda não fazia distinção entre valor e valor de troca.

 

(31) Karl Marx, Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy (London: Penguin, 1973), p. 157.

 

(32) Karl Marx, Grundrisse, p. 157.

 

(33) Karl Marx, Grundrisse, p. 162.

 

(34) Karl Marx, Grundrisse, p. 172.

 

(35) Este artigo não aborda a célebre secção “Formen” dos Grundrisse, que trata das formações sociais pré-capitalistas, uma vez que Marx discute formas comunitárias que considera pertencerem essencialmente ao passado, sem considerar como elas poderiam ser núcleos do socialismo moderno.

 

(36) Karl Marx, Grundrisse, p. 159. O esboço de Marx sobre o seu futuro trabalho, incluído nos Grundrisse, que inclui livros projetados sobre o Estado, o comércio internacional e o mercado mundial, também aponta para a sua abordagem totalizante.

 

(37) Karl Marx, Grundrisse, p. 310.

 

(38) Chris Gilbert, Commune or Nothing!: Venezuela’s Communal Movement and Its Socialist Project (New York: Monthly Review Press, 2023), pp. 85–102.

 

(39) István Mészáros, Beyond Capital: Toward a Theory of the Transition (New York: Monthly Review Press, 1995), section 19.5.1, pp. 763–65.

 

(40) Mészáros, Beyond Capital, 19.1.1, p. 764.

 

(41) Mészáros, Beyond Capital, 19.3.1, p. 753; section 19.5.3, p. 769.

 

(42) Há uma breve discussão sobre a correspondência de Vera Zasulich em Mészáros, Beyond Capital, section 13.6, pp. 487–88.

 

(43) Friedrich Engels, “On Social Relations in Russia” (1875), in Karl Marx e Frederick Engels, Selected Works, vol. 2 (Moscow: Progress Publishers,1977), p. 388.

 

(44) Marx, “The Civil War in France” (Third Address), in Karl Marx e Friedrich Engels, Writings on the Paris Commune, ed. Hal Draper (New York: Monthly Review Press, 1971), p. 76.

 

(45) Marx, “The Civil War in France”, p. 72.

 

(46) É claro que, em última instância, o Estado terá de ser abolido, mas isso requer um processo prolongado, durante o qual terá de existir um poder estatal transformado.

 

(47) Marx, “The Civil War in France”, p. 80.

 

(48) O caráter de classe da Comuna de Paris é expresso na afirmação de Engels de que ela era o modelo da ditadura do proletariado, na sua introdução de 1891 à obra de Marx, A Guerra Civil na França. Note-se que Marx defendeu a comuna, mas fê-lo de forma crítica, salientando, tal como V. I. Lenin depois dele, que ela não agiu de forma suficientemente decisiva, não foi suficientemente centralista, não foi suficientemente um governo nacional e, presumivelmente, não teve uma visão estratégica suficiente. Engels, Introduction in Marx e Engels, Writings on the Paris Commune, p. 34.

 

(49) A enxurrada de artigos e simpósios proclamando o “fim do ciclo progressista” ou o recuo da Maré Rosa — um verdadeiro festival de schadenfreude — que ocorreu em meados da década de 2010 sintetizou essa perspetiva eurocêntrica. Era um tema favorito da Associação de Estudos Latino-Americanos e dos seus congressos.

 

(50) Hugo Chávez Frías, Aló Presidente Teórico, N.º 1, 6 de setembro de 2009, transcrito em todochavez.gob.ve.

 

(51) Ley Orgánica del Poder Popular, Gaceta Oficial de la República Bolivariana de Venezuela, December 21, 2010.

 

(52) Gilbert, Commune or Nothing!, pp. 27–39.

 

(53) Chris Gilbert e Cira Pascual Marquina, Resistencia Comunal, série de livros (Caracas: Observatorio Venezolano Antibloqueo, 2021–2025).

 

(54) Cira Pascual Marquina e Chris Gilbert, Venezuela, The Present as Struggle: Voices from the Bolivarian Revolution (New York: Monthly Review Press, 2020).

 

(55) Gilbert, Commune or Nothing!, pp. 126–39.

 

(56) A abordagem de longa data da Revolução Bolivariana — que enfatiza a construção do poder popular por meio de uma relação dialética bidirecional com o Estado — contrasta com os princípios mais estritamente autonomistas do neozapatismo.

 

(57) A partir de maio de 2024, têm ocorrido processos trimestrais de consulta comunitária. Estes envolvem a organização de eleições nas comunas para determinar a utilização dos fundos fornecidos pelo Estado para projetos que os membros da comuna debateram em assembleias organizadas anteriormente. No final de 2024, o governo comprometeu-se a fornecer 600 milhões de dólares a cerca de cinco mil comunas e circuitos comunitários no país (um “circuito comunitário” é essencialmente uma comuna em formação). O processo de consulta tem sido importante porque, para as comunas existentes, aumenta a participação e ratifica a comuna aos olhos do seu eleitorado. Para as comunas que ainda estão em processo de formação, as consultas servem como um forte incentivo para que os membros das comunidades levem adiante o processo de consolidação da comuna.

 

(58) O objetivo de ser um instrumento político dos movimentos sociais está refletido no nome completo do partido MAS: Movimiento al Socialismo — Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos (Movimento ao Socialismo — Instrumento Político pela Soberania dos Povos). A década de 1970 viu um surto de movimentos indígenas na Bolívia, nos quais a memória de Túpak Katari, um revolucionário aimará do final do século XVIII, teve destaque. Fundado em 1986, o movimento Ayllus Rojos, de Felipe Quispe Huanca, promoveu formas indígenas de organização e também a autodeterminação nas comunidades. Outro marco importante ocorreu em 1988, quando a organização camponesa Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos, então fortemente influenciada pelo katarismo, se levantou para defender o “poder comunal”. Fabiola Escárzaga, La comunidad indígena insurgente, pp. 217–18, 230–32.

 

(59) Soledad Valdivia Rivera, Political Networks and Social Movements: Bolivian State-Society Relations under Evo Morales 2006–2016 (New York: Berghahn Books, 2019), pp. 138, 145.

 

(60) Karl Marx, El Cuaderno Kovalevsky, trad. Raquel Gutiérrez (La Paz: Ofensiva Roja, 1989); Karl Marx, “Excerpts from M. M. Kovalevsky”, in Lawrence Krader, The Asiatic Mode of Production (Assen, Netherlands: Van Gorcum, 1971), pp. 343–412.

 

(61) Álvaro García Linera, “Introducción al Cuaderno Kovalevsky” (1989) in Karl Marx, Comunidad, nacionalismos y capital: Textos inéditos (La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia, 2018), pp. 22, 37–38.

 

(62) J. Fabian Cabaluz e Tomás Torres López, Aproximaciones al marxismo latinoamericano: teoría, historia, y política (Santiago de Chile: Ariadna ediciones, 2021), p. 93. Cabaluz e Torres mostram que García Linera nunca coincidiu totalmente com a abordagem autonomista de Gutiérrez e do grupo de intelectuais bolivianos Comuna, afastando-se cada vez mais das suas posições à medida que o século XXI avançava.

 

(63) Álvaro García Linera, Forma Valor y Forma Comunidad: Aproximación teórica-abstracta a los fundamentos civilizatorios que preceden al Ayllu Universal (La Paz: CLASCO/Muela del Diablo Editores, 2009 [1997]), pp. 203–29. Para mais informações sobre esta visão transformada do Estado, consulte a conferência de García Linera na Sorbonne sobre Nicos Poulantzas: “Estado, Democrácia y Socialismo”, in Álvaro García Linera, Socialismo Comunitario: Un horizonte de época (La Paz: Vicepresidencia del Estado, 2015), pp. 34–66.

 

(64) Álvaro García Linera, “Socialismo Comunitario: Un aporte de Bolivia al mundo”, Revista Análisis 3, n.º 5 (7 de fevereiro de 2010): p. 7.

 

(65) No processo de ocupação da terra, o MST primeiro estabelece um acampamento onde os camponeses sem terra se preparam, planeiam e, muitas vezes, ocupam uma parte da terra que pretendem obter. Quando o Estado reconhece a sua posse da terra, ela torna-se um assentamento permanente.

 

(66) Eds. Harry E. Vanden e Marc Becker, José Carlos Mariátegui: An Anthology (New York: Monthly Review Press, 2011), p. 129.

 

(67) Mariátegui acreditava que o “socialismo prático” existia nas comunidades ayllu andinas e defendia que essa deveria ser a base para a construção do socialismo nesse contexto. José Carlos Mariátegui, Siete ensayos de interpretación sobre la realidad Peruana (Caracas: Biblioteca Ayachucho, 1979). Ver especialmente o capítulo intitulado “El problema de la tierra”.