Será a China, vista do Ocidente (em especial de França), realmente uma desconhecida?

 

 

Tony Andreani, Rémy Herrera e Zhiming Long (*)

 

 

É um facto: a atual principal potência económica mundial, medida pelo Produto Interno Bruto (PIB) em paridades de poder de compra, é liderada por um Estado que se autointitula marxista e, acima dele, por um partido que ainda se autointitula comunista. Os neoliberais de todas as tendências deploram-no, esperando que tal "absurdo" chegue em breve ao fim – como "o fim da história". A maioria dos defensores do marxismo deveria acolher com agrado, mas, em geral, por sua vez, não compreendem realmente porque é que a China se tornou, pelo menos como acreditam, um país onde o capitalismo é dominante. Outros autores, incluindo nós, vêm as coisas de forma diferente. Este partido utiliza o capitalismo, controlando-o de forma muito rigorosa, para acelerar o desenvolvimento, sem se desviar do seu principal e constante objetivo: a forma chinesa de construir uma sociedade socialista; e para isso apoia-se no marxismo. Esta tese, embora muito minoritária, incluindo à esquerda, é ferozmente combatida nos países ocidentais, sobretudo em França, sem dúvida muito mais do que noutras partes do Ocidente. Isto talvez se deva, paradoxalmente, ao facto de, em suma, existirem fortes semelhanças entre os dois países. São duas nações políticas para as quais o papel do Estado é preeminente, não inclinadas para a guerra, enraizadas nos seus territórios e, em última análise, apegadas a valores comuns.

No entanto, existem múltiplos mal-entendidos entre elas e raros cruzamentos culturais, ao ponto de se tornar difícil, para além das barreiras linguísticas e dos clichés da propaganda, compreender os verdadeiros motores do crescimento económico da China e a natureza profunda do seu sistema sociopolítico (Parte I). É provável que os modos de pensamento destes dois povos sejam muito diferentes, especialmente nas suas respetivas formas de apreender contradições e de representar os movimentos da dialética (Parte II), bem como nas suas mobilizações diametralmente opostas de moralidade através do discurso político (Parte III). Por fim, veremos que consequências poderíamos retirar do exame desta comparação entre as duas culturas para interpretar o “socialismo com cores chinesas” (Parte IV). Para realizar a nossa demonstração, basear-nos-emos documentalmente, com frequência, nos Estatutos do Partido Comunista da China (PCC), nos seus preliminares. Existem muitos outros textos que poderiam ser utilizados, mas este documento, que foi revisto e atualizado, contém tanto uma declaração de princípios como um programa de ação e, como o PCC está no posto de comando, é, por isso, de grande importância.

 

Semelhanças e mal-entendidos

 

Apesar das aparências, a França e a China têm afinidades muito profundas devido à sua história e mentalidades. A primeira semelhança é que são, antes de mais, duas nações políticas, no sentido de que se baseiam inteiramente num pacto (ou contrato) social alheio a qualquer fundamento comunitarista, seja ele religioso, racial ou étnico. Comparativamente a muitos outros países, existem poucos rituais populares quotidianos, manifestações religiosas ou discriminação acentuada com base na cor da pele ou na etnia. Em França, isto remonta à Revolução de 1789, quando a nação foi definida pela soberania popular e pela cidadania, enviando uma mensagem ao mundo: os cidadãos são livres e iguais perante a lei, e as suas instituições não têm qualquer fundamento transcendental. Essa revolução, que foi interrompida, encontrou a sua continuação com a separação entre a Igreja e Estado e a afirmação da laicidade, que devolveu a religião à esfera privada. Como resultado, a França é a sociedade mais descristianizada do Ocidente, ainda que a impregnação espiritual não tenha desaparecido da mente das pessoas. A China Antiga, por sua vez, não era religiosa. O Imperador não era um Deus na Terra, mas representava uma ordem cósmica da qual era o garante. As filosofias chinesas eram, acima de tudo, lições de sabedoria, para uso tanto do povo como dos governantes. O culto dos antepassados fazia parte de uma ordem natural. A relação entre os súbditos e o seu Imperador baseava-se num pacto social: se o Imperador não garantisse a sua segurança e bem-estar, tinham o direito de o derrubar. Podemos até falar de uma nação política que existe há mais tempo do que a França, e isso é ainda mais verdade com respeito à China moderna.

 

Além disso, em ambos os países, o papel conferido ao Estado é eminente. A tradição estatista da França pode ser traçada até à sua história: a monarquia absoluta que subjugou o sistema feudal, unificou as províncias e chegou mesmo ao dirigismo colbertiano; o Império Napoleónico, com as suas regras racionais e instituições administrativas, algumas das quais ainda estruturam a vida política... E embora a intervenção do Estado na economia seja hoje reduzida, continua a recorrer-se ao Estado assim que a sua segurança é violada pela violência dos mercados. Esta é uma das razões pelas quais os franceses se sentem atualmente tão insatisfeitos e pessimistas: já não confiam no seu Estado e menos ainda nas elites que o governam (em conjunto com impostos ilegíveis, impotência perante interesses privados, submissão à União Europeia...). Como não fazer a ligação com a China, onde, política e economicamente, o papel do Estado tem sido central desde o Império Celeste até aos dias de hoje? Compararemos o recrutamento da elite francesa através dos competitivos concursos de admissão às Grandes Écoles e os processos de exame – herdeiros do passado imperial – que presidem atualmente à admissão no PCC; estamos perante duas meritocracias.

 

Também podemos encontrar semelhanças nas atitudes políticas. Na China, os cidadãos tendem geralmente a cuidar dos seus próprios assuntos, confiando ao Estado para o resto, desde que este forneça infraestruturas e progresso socioeconómico. Os franceses, que são mais ativos politicamente, estão, no entanto, na sua maioria basicamente satisfeitos com uma "monarquia presidencial" que confere ao chefe de Estado, através da Constituição da atual Quinta República, um poder inigualável no mundo ocidental. No entanto, a comparação fica-se por aí, porque prevaleceu a divergência. A pompa republicana é agora pouco mais do que um adorno, o Estado político francês está moribundo, o período gaullista está longe e o centro da tomada de decisões deslocou-se para uma tecnocracia liberal. Na China, o poder é menos visível, mas continua a ser eminentemente político, tanto ao nível do Comité Central do PCC, cujos Congressos e plenários pontuam a vida do país, como no das Assembleias Populares, com as suas sessões que formalizam os programas do governo. No Ocidente no seu conjunto, vemos apenas ditadura – e particularmente em França, embora os franceses sintam nostalgia pelo Estado forte e já não tenham a certeza de que, atualmente, vivam numa democracia.

 

O Império Chinês não foi um conquistador, e a China Socialista não fez a guerra contra ninguém, exceto sob ameaça externa – como no único caso do conflito de 1979 com o Vietname. À primeira vista, esta não é a mesma situação em França, que construiu um império colonial pela força e participou em todas as guerras imperialistas recentes (quando não tomou a iniciativa). No entanto, este é apenas um lado da moeda. É precisamente por ser uma nação política desde 1789 que a França não foi levada à guerra. De facto, os revolucionários, hostis à guerra, só mobilizaram os cidadãos da época porque a nação estava em perigo, ameaçada pelas coligações do Antigo Regime, lideradas pela Inglaterra. Vitoriosos após a revolta em massa e apoiados por rebeliões locais, ajudaram a criar repúblicas irmãs no continente. O próprio Napoleão liderou os seus exércitos, para preservar a nação da agressão dos inimigos, contrários aos princípios da Revolução, tendo-se tornado um fermento para a construção das nações europeias (a começar pela Alemanha, sob o olhar fascinado de um Goethe, de um Kant ou de um Hegel). Como encruzilhada de culturas da Europa Ocidental, a França sempre se sentiu ameaçada dentro das suas fronteiras, em terra e no mar. Neste sentido, existe uma simetria geográfica entre a China e a França, situadas nas duas extremidades da Eurásia. Ao contrário da China, a França lançou-se nas conquistas coloniais, porque a sua burguesia dominante procurava recursos para saquear e súbditos coloniais para explorar (a China recorda-se disto), sem que a massa dos cidadãos franceses o quisesse. E, se estes últimos apoiaram a conquista, foi na ilusão de que a "civilização" viria. Embora esta colonização francesa não tenha sido de colonatos – não havia necessidade disso, uma vez que a Revolução tinha distribuído as terras aos camponeses –, deixou cerca de 220 milhões de francófonos no mundo, o que não deixa de ter semelhanças com a imensa diáspora chinesa.

 

A França e a China têm ambos um fundo de mentalidade camponesa. O habitus é difícil de se extinguir nestes países. O facto de a França ter agora apenas 3% da sua população ativa na agricultura não a impede de ser, muito mais do que os seus vizinhos europeus, um grande produtor agrícola – por razões ligadas, em particular, ao seu passado, tendo a Revolução levado a cabo uma reforma agrária tão radical que os camponeses franceses não necessitaram de emigrar em grande escala, como tantos dos seus colegas europeus. Os franceses ainda têm um profundo amor pelas suas leiras e mantêm-se apegados, mais ou menos conscientemente, às suas raízes camponesas; o que nos faz pensar na China, onde a industrialização e a migração para as áreas urbanas estão em curso, mas onde as mentalidades e imaginações coletivas permanecem imbuídas das origens rurais dos habitantes das cidades. Uma indicação disso, entre outras, é o comportamento de poupança, que é abundante em França, e ainda mais na China.

 

Para além disso, os franceses têm a reputação de serem individualistas, os chineses, de serem comunitários. À primeira vista, tudo aqui parece opor-se entre estes dois países. As diferenças existem, de facto, mas não são assim tão nítidas. Diz-se que os chineses são rigorosos no seu trabalho, mas não se considera que tenham o gosto pela disciplina férrea. Tal como nos franceses, também existiria, entre os chineses, uma pequena propensão para o protesto, sendo as autoridades respeitadas apenas quando o merecem, o que não se verifica em sociedades mais policiadas (como o Japão e a Alemanha). Tais generalizações, questionáveis, encontram apoio nas estruturas tradicionais dos dois países. Ambos foram principalmente sociedades de produção camponesa e artesanal em pequena escala, não de grandes propriedades rurais e de capitalismo agrário. Odiava-se aí o sistema feudal, e depois a submissão ao trabalho assalariado. Isto explica por que razão os protestos e as revoltas ainda estão no horizonte. Só em certas regiões se pode opor a família nuclear francesa à família chinesa de parentesco alargado, porque noutras prevaleceram a família tronco e a habitação coletiva. A França é muito heterogénea – o que explica as diferenças no comportamento eleitoral, marcadas pelos seus territórios. Além disso, as comparações seriam arriscadas: a família francesa era patriarcal, com tudo o que isso implica em termos de conflitos intrafamiliares, enquanto a família chinesa estava focada na autoridade dos mais velhos e na sua consagração no culto dos antepassados.

 

Há também uma certa ideia de grandeza. Tanto para a China como para a França, a grandeza é, acima de tudo, uma forma de excelência intelectual e moral, a virtude dos justos, e não o poder. A França, que já não brilha com os seus académicos e artistas, foi a pátria dos direitos humanos graças à Declaração de 1789, que inspirou a Declaração Universal de 1948, mas essa mensagem foi esgotada, contrariada por tantas violações, do colonialismo à colaboração com o ocupante nazi, e ao humanitarismo mal dirigido. É a obscura consciência que os franceses têm disso que contribui para o seu sentimento de declínio, mais do que a descida do país na hierarquia do PIB. Os franceses sabem que a sua autoridade moral no mundo está arruinada. O trauma deixou a sua marca em ambos os países. A China foi atacada durante as Guerras do Ópio e foram-lhe impostos tratados desiguais pelo Ocidente, que a vassalizou, tendo depois conhecido a sangrenta ocupação japonesa; foi o Partido Comunista Chinês que lhe devolveu a sua soberania nacional. A França sofreu a derrota de 1870, que amputou parte do seu território, e depois a terrível derrota de 1940, seguida da ocupação nazi; a Resistência, maioritariamente comunista, salvou a sua honra perdida. Quando De Gaulle regressou ao poder, em 1958, queria restaurar a sua soberania através de uma política de independência dos Estados Unidos da América e da NATO. Foi o primeiro dirigente ocidental a reconhecer diplomaticamente a China Popular (1964). Não foi apenas por realismo político, como defensor do multilateralismo; ele conhecia a humilhação de uma nação e partilhava com a China de Mao a mesma aspiração de grandeza.

 

No entanto, aumentou o fosso entre os dois países. As suas trajetórias políticas diferem e, em alguns aspetos, são conflituantes. As estruturas sociais da China são profundamente diferentes das ocidentais, resultando em mal-entendidos e discrepâncias culturais que ainda hoje existem – e significam, por exemplo, que o termo democracia não tem aqui o mesmo significado que lá. Há também uma desconfiança, misturada de fascínio, dos franceses em relação à China, particularmente porque estão traumatizados pelas deslocalizações operadas pela globalização e vêm partes das suas indústrias desaparecerem no seu país em benefício da China, ao mesmo tempo que o "Made in France". É neste contexto que se constrói um consenso ideológico em torno do "óbvio" – que não é assim tão "óbvio" – quanto se afirma que a China "emergiu" recentemente, que o crescimento da sua economia era fraco antes da abertura à globalização, em 1978, que o seu sistema é a prova do sucesso do capitalismo. Todas estas "verdades" estão longe de ser certas – como demonstramos noutro lugar (1).

 

No entanto, a França e a China, embora ainda existam afinidades entre si devido à sua história e mentalidades, parecem estar a afastar-se. Os seus caminhos já não se cruzam. A França tem pouco a ver com o socialismo. A nível económico, entrou na órbita do capitalismo financeirizado, onde os verdadeiros mestres são os mercados financeiros. Esta evolução está parcialmente ligada à integração na União Europeia que, tal como os Estados Unidos da América, seu administrador, se tornou um espaço de neoliberalismo, mas aqui tingido com o ordoliberalismo alemão. Na China, a França era vista como a campeã do Estado social devido ao seu orçamento público e a um sistema de segurança social solidário. Isso é cada vez menos verdade. De resto, é um país cada vez mais capitalista, com empresas transnacionais vorazes e um sector público em declínio. Não é essa a orientação da China. Com estas tendências, unir pessoas e povos torna-se mais difícil. Muitas vezes, vemos apenas capitalismo desenfreado na China, sob a liderança de um regime autoritário de partido único. Isto é um erro: uma diferença essencial entre o Ocidente e a China é que nesta o Estado controla o capitalismo, enquanto naquele, pelo contrário, é o capital que controla o Estado. O atual sistema económico chinês assemelha-se a uma mistura de elementos socialistas, como a existência de um forte setor estatal, o planeamento de incentivos ou o controlo da moeda nacional pelas autoridades e regulações ao estilo keynesiano, adaptados à era da globalização.

 

Contradições e dialética

 

No entanto, as formas de pensar, apesar das semelhanças referidas, são muito diferentes. Os franceses são reputados por serem cultos e inclinados a pensar de forma cartesiana, tanto analítica como dedutivamente, enquanto os chineses pensam de forma holística, mais concreta, baseada em metáforas. Que assim seja, mas até certo ponto. O pensamento chinês é menos sensível ao princípio lógico da não contradição, porque a realidade, para ele, é composta de opostos, que podem ser conciliados e combinados (a discussão deve conduzir ao consenso), para além de complexa (multiplicando os ângulos de abordagem). O pensamento francês também se ocupa da dialética. O tríptico tese-antítese-síntese conduz ao equilíbrio, ao regresso à tese enriquecida pela antítese, o que contrasta com o modo de pensar anglo-saxónico. O leitor francês pode ficar perplexo com artigos (traduzidos) de autores chineses, que articulam as diretrizes (frequentemente de forma performativa) e acumulam dados (o que compõe a riqueza do conteúdo), quando ele ou ela estará habituado, em França, a ser demonstrativo, correndo o risco da abstração. As duas formas de pensar devem, no entanto, reforçar-se mutuamente.

 

Em Sobre a Contradição (1937), Mao Zedong defende que a contradição é uma lei geral da natureza e da sociedade. Nisto, segue Engels, na ideia de uma dialética inerente aos processos naturais e no cerne da evolução das espécies – algo que muitos outros marxistas criticarão ou relativizarão (2). “Sem contradição, não há universo”, diz. Ele inspira-se sobretudo em Lenine e na sua teoria da unidade dos opostos, em que um não pode existir sem o outro. Mao faz várias distinções. Em primeiro lugar, ele distingue a contradição fundamental das outras: na história das sociedades, a contradição entre forças produtivas e relações de produção determina todas as outras e não pode mudar. Em seguida, distingue entre aspetos principais e secundários: na contradição fundamental entre forças produtivas e relações de produção, as primeiras desempenham o papel principal, mas esta relação pode ser invertida sob determinadas condições – é aqui que intervém a ação consciente dos seres humanos: a política. Pode haver equilíbrio entre os dois polos, mas "a unidade dos opostos é sempre condicionada, transitória, relativa, enquanto a luta dos opostos mutuamente exclusivos é absoluta", porque o movimento das contradições é infinito. Por fim, Mao distingue entre contradições antagónicas e não antagónicas: a primeira não pode ser ultrapassada, a segunda pode.

 

Esta análise permite a Mao reconstituir a história da revolução chinesa, sobretudo o momento em que o PCC e o Kuomintang tiveram de se aliar contra o inimigo comum, mas não conseguiram reconciliar-se politicamente. Com algumas classes, as que não estão em contradição antagonística, a aliança mostra-se possível; mas outras classes, como a burguesia burocrática, são definitivamente opositores. O que aqui chama a atenção, portanto, é que não há uma "solução" definitiva ou desaparecimento da contradição antagónica. Mao pensa que a contradição entre proletariado e burguesia não será resolvida pela vitória do primeiro sobre a segunda, que a luta continuará na revolução, que haverá o risco de contrarrevoluções. Também não acredita num retorno à origem em direção a uma unidade superior, após o trabalho do negativo – numa conceção hegeliana da "negação da negação". E o próprio comunismo não estará isento de contradições, porque não há fim para a história.

 

Nisto, Mao, um grande leitor dos clássicos, insere-se num pensamento tradicional chinês que ignora a teleologia. Não retira este tema da contradição da filosofia confucionista, contra a qual lutou porque visava, acima de tudo, manter a ordem nas relações sociais, mas encontra inspiração no taoísmo, que se baseia na complementaridade e interação dos opostos, os do yin e do yang (isto é, masculino e feminino, sombra e luz, céu e terra, etc.). A corrente taoísta procurava a harmonia: a harmonia pessoal do equilíbrio interior (daí a práticas ginásticas e de alimentação); a harmonia entre os seres humanos (através da doação, entre outras coisas); a harmonia entre o ser humano e a natureza (que deve ser respeitada e preservada). O taoísmo chega mesmo a valorizar uma forma de quietismo (quando os seres humanos decidem não mais confrontar a natureza), de que encontramos vestígios em Mao quando este fala de um tempo de repouso na contradição – mesmo que a luta entre os opostos recomece imediatamente após estes momentos “fugazes e relativos”.

 

No entanto, o tema da harmonia – que também está presente no confucionismo, mas sem contradições – voltou com força nos discursos dos principais líderes do PCC. Esse foi o caso, em particular, de Hu Jintao e do seu projeto de uma “sociedade harmoniosa”, em resposta à crescente desigualdade e ao descontentamento social. Sucedendo à «sociedade relativamente bem-sucedida» de Jang Zemin, esta «sociedade harmoniosa» deveria ser construída através do desenvolvimento científico, visando uma maior concórdia, justiça, igualdade, democracia e proteção ambiental. Poder-se-á dizer que estes discursos são circunstanciais, destinados a legitimar a colocação em segundo plano da luta de classes e visando a manutenção do presente regime político-social, combatendo apenas abusos; pensamos, no entanto, que são mais profundos. A sua origem deve ser procurada neste fundo cultural taoísta: uma conceção de harmonia entre opostos que não é a simples busca de um meio-termo, mas de um modo de vida em que cada oposto encontra reforço na presença do outro, num movimento perpétuo que acaba por ser ascendente.

 

Nestas condições, poderíamos considerar que haveria duas categorias de dialética (3): uma dialética negativa, se um dos polos da contradição destruir o outro; e uma dialética positiva, se um usar o outro para se fortalecer. Não faltam exemplos da primeira categoria no sistema capitalista. O capitalista individual tende a explorar ao máximo os trabalhadores. Ao ampliar o capital fixo, os capitalistas esgotam os fluxos de mais-valia cuja fonte remonta ao trabalho dos proletários; daí a tendência para a queda da taxa de lucro. Da mesma forma, as forças produtivas, constantemente destruídas em benefício de outros, tornam-se destrutivas; daí a pilhagem da natureza. Por outro lado, quando o proletariado chegar ao poder com os seus aliados e puser fim ao domínio da burguesia, terá de implementar uma dialética positiva pela qual um dos polos utilizará o outro para se reforçar (quando o proletariado utiliza o capitalismo para modernizar a sua base produtiva) e, de forma mais geral, quando os polos se combinam de modo a que cada um consolide o outro, transformando-se em harmonia. Na mente de Mao, essa dialética positiva já estava presente – o objetivo era usar os capitalistas para acelerar o desenvolvimento. Foi aplicada durante os 30 anos que antecederam o triunfo da revolução, na forma de numerosas experiências em territórios conquistados pelos comunistas com o objetivo de manter grandes partes do setor privado em funcionamento e colocá-las em concorrência com os novos tipos de propriedade coletiva implantados. Estava no cerne do princípio maoísta de «andar sobre as duas pernas» (nas suas várias declinações: agricultura e indústria, pequenas/médias empresas e grandes unidades de produção, etc.).

 

Esta forma de pensar, baseada na complementaridade dos opostos e no seu reforço mútuo, não é familiar aos ocidentais e pode até parecer paradoxal, mas reflete-se em muitas instâncias do discurso político chinês. Para os indivíduos e as regiões, enriquecer antes dos outros torna-se, desta forma, o meio para o enriquecimento geral, numa sociedade de "riqueza média" partilhada. Não foi exatamente isso o que aconteceu, mas é esse o objetivo. E sobre a contradição entre plano e mercado, encontramos nos Estatutos do PCC esta formulação surpreendente: "é importante permitir que o mercado desempenhe um papel decisivo na distribuição dos recursos e que o Estado desempenhe melhor o seu papel e construa um sistema melhorado de controlo macroeconómico". À primeira vista, isto parece contraditório. Se o mercado (de mercadorias, de força de trabalho e de capital) aloca os "fatores" de forma otimizada, como acreditam os liberais, o plano apenas irá distorcer estes mecanismos; e se o plano controlar a afetação com demasiada rigidez, o mercado pouco terá a fazer. Vemos, pelo contrário, o que uma dialética positiva poderá significar: o plano reforça a eficiência do mercado quando combate os seus aspetos negativos (dominação do valor de troca sobre o valor de uso, monopolização da propriedade, concorrência entre trabalhadores...) através de um controlo adequado (legislação laboral, monitorização dos movimentos de capitais, bem como padrões de qualidade, higiene e segurança...), e de uma forma mais geral se o plano submete o mercado a fins coletivos, com a ajuda de alavancas específicas (como taxas de juro, impostos, subsídios...). Por outro lado, o mercado aumenta a eficiência do plano quando fornece informações (em particular sobre compras e vendas efetuadas, emprego, necessidades de financiamento...), evitando decisões arbitrárias, pressões ou barganhas... Esta conceção da relação entre polos opostos também se aplica aos planos coordenados de desenvolvimento urbano-rural (daí a promoção de polos regionais de média dimensão), bem como à “harmonização da relação entre o ser humano e a natureza” (ainda tão conflituosa no pensamento ocidental). Pelo menos ao nível das intenções, tudo isto é totalmente contrário à lógica formal, isto é, à de linhagem aristotélica, com os seus princípios intangíveis de não contradição e do terceiro excluído (tertium non datur), mas próximo das chamadas lógicas polivalentes ou parciais (que permitem a possibilidade de estados diferentes do verdadeiro ou falso); tanto que, no final, este tipo de análise lógica poderá representar um enriquecimento muito significativo da reflexão. Será o mesmo também verdadeiro para a moral e a ética?

 

Moral e ética à luz do discurso político chinês

 

De início, pode fazer-se uma observação: no Ocidente, a moral praticamente desapareceu do discurso político oficial e foi relegada para os indivíduos – embora o seu âmbito seja, por natureza, universal – quando ocupa um lugar de destaque no elenco dos objetivos prosseguidos pelo governo chinês, que, para além da economia e da legalidade, se encarrega também de melhorar a qualidade moral do cidadão. Algo insuportável numa "democracia liberal": é, na melhor das hipóteses, uma intrusão inaceitável na vida privada ou, na pior, prova de um totalitarismo persistente; a menos que seja tudo hipocrisia. Acreditamos, no entanto, que o discurso político da China sobre a moralidade deve ser levado a sério. É porque esta sociedade tende a tornar-se amplamente imoral que tal discurso se impõe às autoridades; e é porque o PCC está longe de ser irrepreensível que este discurso se dirige principalmente a si próprio. Ele revela a força do Estado, que mobiliza meios de persuasão, não apenas de punição. É escandaloso que o Estado se preocupe com a moral social e diga o que pensa sobre a moral privada? No entanto, a injunção moral é inútil se não for acompanhada por uma política que a favoreça, promovendo a igualdade e o bem-estar dos cidadãos.

 

Frequentemente percetível no discurso político, a moral pública chinesa situa-se em dois níveis. Em primeiro lugar, contém elementos da moralidade cidadã em geral. De facto, inclui o tema dos direitos humanos e dos cidadãos: “Incentivaremos a valorização dos conceitos de liberdade, igualdade, imparcialidade e práticas governamentais de acordo com a lei” (4). No entanto, estes direitos só são eficazes se não se limitarem à esfera política e se estenderem também aos direitos sociais. A cidadania deve ser social e económica para ser plenamente política. Das palavras aos atos, existe, naturalmente, hoje um fosso na China, onde as desigualdades, multidimensionais, são muito fortes. É precisamente para as combater que os dirigentes do Partido convocam os seus membros e, através deles, toda a sociedade. Será isto apenas propaganda? A vontade de aplicar a lei e reduzir estas desigualdades é clara. Hoje em dia, as autoridades estão a aplicar a legislação laboral no setor privado (apesar dos protestos das empresas transnacionais), generalizando o sistema de proteção social (que é ainda inferior ao da França, onde está de facto a regredir) e socializando amplamente os serviços públicos (apesar dos apelos para os abrir ao setor privado). Será esta a fachada de um capitalismo sui generis? O facto é que o compromisso de caminhar para o socialismo, uma sociedade mais igualitária, está a ser reafirmado, embora ainda existam grandes incertezas. Os dirigentes sabem que não se pode melhorar a moral dos cidadãos se não lhes proporcionarmos as condições sociais para o fazer. Por isso, é também aos dirigentes que este discurso se dirige, sendo eles quem deve construir estas bases e dar o exemplo.

 

Este discurso inclui também uma moral socialista, em particular. Em contraste com o capitalismo – que não é amoral (o seu objetivo técnico de maximizar a taxa de lucro afirma-se "neutro"), mas imoral (subordinando o assalariado, privatizando o lucro e transferindo riqueza por herança, logo impossibilitando a igualdade de oportunidades) –, o socialismo vai ao encontro de um requisito moral de igualdade, pois assenta em formas de apropriação social dos meios de produção, distribuição em função do trabalho, bem como em condições (de educação, entre outras) visando igualar as condições sociais de ação, logo, a autonomia dos indivíduos. É no socialismo que este discurso político afirma assentar, mas mantendo-o no horizonte. Pois, no que diz aos objetivos tradicionais do socialismo, permanecem em pano de fundo. Acima de tudo, enfatiza a apropriação social na esfera pública, que deve manter-se “predominante”, ao lado de outras formas de propriedade, e fala de um “sistema baseado principalmente na remuneração de acordo com o trabalho realizado, mas permitindo a coexistência de vários modos de distribuição” (5). Isto dar-se-ia porque a China ainda se encontra na fase primária do socialismo, que é inevitável e levará “cem anos a ser concluída”. Quanto à educação, que deve construir o sistema moralmente, afirma, como veremos, ser produto tanto do socialismo como da tradição cultural chinesa.

 

O que é, mais precisamente, esta moral socialista? Algumas indicações são muito gerais: respeito pela lei, preocupação com o bem e a verdade, assunção de responsabilidades familiares e sociais, consciência profissional. Mais conotadas são a devoção ao trabalho e a atmosfera que “honra o trabalho”, que fazem parte de uma moral transitória deste período histórico, quando é necessário sair da pobreza e criar os bens sociais indispensáveis à cidadania. A ênfase mudou em relação ao período maoísta, quando virtudes como “fazer todos os esforços” ou “servir o povo” significavam uma devoção inabalável à comunidade que suprimia as aspirações individuais.

 

O discurso político chinês também se ocupa das relações interindividuais. Não estamos, no entanto, perante uma intromissão moralista na privacidade, na ética pessoal (as únicas virtudes éticas recomendadas são o autorrespeito, a autoconfiança e a placidez). De resto, deixa os indivíduos inteiramente livres para se comportarem como desejarem na esfera privada, apenas os encorajando a elevar o seu nível cultural e a destacar virtudes gerais – matizadas pelo confucionismo: boa-fé, retidão, honra, benevolência, solidariedade... – nas suas relações com os outros. Pois a orientação específica do socialismo de estilo chinês implica também que se deve manter e até mesmo construir sobre o que, na tradição, reforça e promove a moral socialista. O discurso moral chinês, de facto, incorpora componentes daquilo a que poderíamos chamar uma ética social.

 

A cultura tradicional chinesa mistura diversas filosofias morais, especialmente o confucionismo e o taoísmo. A primeira teve a influência mais marcante e duradoura na conceção atual de moralidade. Ela rejeita a representação atomística dos indivíduos e uma hierarquia natural entre eles. O ser humano, enquanto ser social, existe apenas através das suas relações com os outros; Cabe-lhe a ele ou a ela tornar-se um ser superior, desenvolvendo o sentido de humanidade e justiça (longe da escala dos "talentos" concorrentes exaltada pelo liberalismo). O confucionismo admite, no entanto, uma hierarquia social, que é de base familiar e alargada também à ordem política. No confucionismo, certas correntes consideram que as virtudes e os sentimentos em relação à família enfraquecem à medida que nos afastamos dela e defendem um contrato social que estabelece uma segunda hierarquia, a do mérito, assente no sistema de exames imperiais, acessível a todos e exigindo apenas vontade. No topo desta hierarquia, o soberano deve ser o mais merecedor e deve fazer o interesse geral triunfar sobre os interesses particulares. Se o governo for justo, os cidadãos devem-lhe lealdade e obediência. Mas, no final de contas, existem duas classes sociais (como na conceção de Platão) num sistema ritualizado e congelado ou fixo – razão pela qual será atacado durante a Revolução Cultural. Será o PCC o herdeiro deste sistema, com os seus exames de admissão, os seus ritos de passagem, a sua preocupação em governar em nome do povo e para o povo? O Partido apenas reivindica um papel de "liderança" no período de construção do socialismo e, embora não negue que "a luta de classes continuará a longo prazo", afirma que "já não constitui um elemento fundamental" (6); o que indica que é colocado em espera até que as forças produtivas estejam melhor ajustadas ao novo modo de produção.

 

Tal discurso pode parecer uma máscara para esconder a ascensão do capitalismo, ou pelo menos a do setor privado. No entanto, devemos examiná-lo atentamente e, aqui novamente, sublinhar a ligação com a filosofia clássica. "Que cada um se enriqueça antes dos outros": este lema de Deng Xiaoping parece ser tipicamente capitalista. “Na realidade, explica Chieng (2006), Deng não se expressou dessa forma. O seu objetivo para a China não era o de enriquecer, mas apenas permitir que a maioria da população atingisse o nível de vida xiao kang, ou seja, de ‘recursos modestos’”. Isto está em linha com a tradição confucionista, que rejeitava o enriquecimento. Mas o que significa isto hoje, quando há tantos multimilionários no país? Em primeiro lugar, é de notar que a grande massa da população chinesa continua hostil à riqueza e à sua ostentação. O PCC está a começar a responder a isso. As estações de televisão e rádio chinesas tiveram de deixar de transmitir anúncios de bens de luxo, uma vez que estes anúncios são considerados como tendo “promovido valores inadequados e contribuído para um mau ethos social” (7).

 

Visto do Ocidente, isto é certamente uma censura intolerável. Estas proibições serão impotentes para conter o progresso do espírito do capitalismo (uma vez que estes sinais de riqueza continuarão à venda nas lojas), mas reforçam uma desaprovação popular que ainda está viva e de boa saúde. Deverá o poder político abster-se de qualquer moralidade pública, de qualquer exigência de pudor? Deveria então renunciar a qualquer promoção de valores morais, a quaisquer restrições à publicidade, ou até mesmo a qualquer tributação dos bens de luxo?

 

Neste sentido, uma característica marcante da cultura chinesa é a promoção da modéstia, tanto nas suas ações como nas suas relações com os outros. Como observa Chieng (2006), esta cultura ignora o carácter do herói, que realiza feitos e perturba a ordem das coisas. Ao contrário, valoriza aqueles que demonstram solidariedade e dedicação na vida quotidiana. A história contemporânea não nega esta disposição. Ao contrário da imagem que se difundiu, Mao era hostil ao culto da personalidade. Nunca se apresentou como um grande dirigente, mas como um educador que precisava de ser educado, como um timoneiro em vez de um capitão. Esta forma de ver as coisas é ainda mais clara hoje em dia, quando os dirigentes pouco ou nada alardeiam em carisma e quando os diretores das grandes empresas públicas não demonstram o seu poder. Não é um discurso de competição, de assunção de riscos e de sucesso a todo o custo o que prevalece, pois o espírito empreendedor significa, muitas vezes, apenas inovação. De facto, o consumo ostensivo de bens de luxo é o oposto da mentalidade tradicional chinesa, que preza a moderação – em termos que fazem lembrar o epicurismo.

 

Aquilo a que o poder atual chama "civilização espiritual chinesa" mostra que as virtudes defendidas pela tradição se enquadram bem na moral inerente ao socialismo, constituindo uma "ética social especial". E não é de estranhar que o Presidente Xi Jinping tenha adotado máximas confucionistas e as tenha combinado com certas referências maoístas, como a "linha de massas". Como estas duas dimensões são conciliáveis? Precisamos de fazer uma digressão através de uma discussão sobre o "socialismo com as cores da China".

 

Socialismo ao estilo chinês

 

Socialismo ao estilo chinês? Qual é o significado desta expressão recorrente no discurso político chinês? Um primeiro significado é a ideia de que o projeto socialista deve ser adaptado às condições concretas da China, um país em desenvolvimento, que teve de sair da pobreza para (não alcançar o Ocidente, mas) oferecer uma vida digna aos seus habitantes. Em termos marxistas, pode dizer-se que as forças produtivas sociais estavam atrasadas em relação ao que era exigido pelas relações de produção socialistas (no estádio inferior do comunismo). O voluntarismo maoísta tinha atingido os seus limites. Construiu a base industrial e agrícola, mas o seu desenvolvimento foi prejudicado pela coletivização e pelo planeamento imperativo. Era necessário dar “dois passos para trás” para poder avançar mais rapidamente e acelerar o crescimento do PIB. Este voluntarismo desenvolvimentista rompeu com o pensamento clássico, que era uma análise em termos de ciclos, tendo integrado a noção ocidental de progresso linear e cumulativo.

 

Perante o choque individualista, competitivo e consumista da "ocidentalização" do mundo, a China tem dificuldade em manter as suas referências culturais, e é este o significado do discurso a favor de uma "sinização" do socialismo. O que significa? Existe uma "sinização" do marxismo? Uma primeira abordagem aqui seria argumentar que o marxismo, como teoria geral, deve ser aplicado às condições históricas singulares da China. O interessante é que este caminho, enquanto aplicação da teoria marxista ao caso da China, pode ser apenas específico, mas pode também fornecer uma riqueza de lições para a teoria da história. No entanto, já não poderíamos então falar de uma "sinização do marxismo" que seria específica dos chineses. Uma segunda interpretação seria ver no marxismo chinês uma extensão teórica e um enriquecimento do marxismo clássico, segundo uma linhagem que vai do marxismo-leninismo ao maoísmo e até ao "pensamento de Xi Jinping". No entanto, a cultura chinesa não reivindicou, na história, o universalismo, nem a revolução maoísta procurou ser exportada, ao contrário de outras. No entanto, assim que aspira a adquirir um estatuto científico, não pode evitar a questão da sua universalidade. Se se trata apenas de aplicações concretas a uma situação concreta específica, o método chinês não é transponível e é aconselhável abster-se de o apresentar como um modelo que poderia ser seguido por outras sociedades – o que foi durante muito tempo a linha oficial, hostil ao proselitismo. Mas se se trata de um alargamento e enriquecimento da teoria geral, particularmente da questão da transição para o socialismo, então poderiam ser retiradas lições do método chinês que poderiam ser válidas noutros locais – é o que é atualmente sugerido por Xi Jinping. E justificar-se-ia tanto mais inspirarmo-nos nele, quanto a China teve uma trajetória de crescimento económico extremamente positiva e desenvolveu-se consideravelmente nas últimas décadas.

 

Pode, portanto, ter-se reservas quanto à ideia de uma "sinização" do marxismo, caso em que não lhe deveria ser conferido valor universal, interessando ela apenas os chineses. O marxismo deveria ser adaptado às condições concretas da China que, apesar do seu desempenho e modernização, é ainda, em muitos aspetos, um país em desenvolvimento, distante ainda da "sociedade relativamente rica". O discurso do Presidente Xi Jinping inspira-se na filosofia tradicional chinesa e, mais particularmente, no confucionismo, o que faz sentido numa sociedade que está a ser dilacerada pelo modo de vida ocidental (8). São também interessantes as suas referências ao legismo e, especialmente, ao taoísmo, com a ideia de uma harmonia a ser procurada entre os opostos, no ser humano, entre os seres humanos e entre os seres humanos e a natureza. É este pensamento que faz com que a China procure tanto resolver as flagrantes contradições sociais como comprometer-se com a conservação dos ecossistemas, no país como no planeta. Trata-se de matéria para um enriquecimento do marxismo, que tem estado marcado demasiado exclusivamente pela filosofia ocidental – em particular eurocêntrica.

 

Contra o necessitarismo reformista, a liderança chinesa opôs o seu construtivismo – aquele que Hayek detestava, alegando que proibiria o progresso e conduziria ao totalitarismo. Falam de "construir o socialismo", e a declaração dos princípios fundamentais que abre o texto dos Estatutos do PCC torna explícito o projeto: avançar pelo "caminho socialista" – o que não significa alcançar um modelo predefinido, mas antes lançar-se num processo, com um horizonte de longo prazo –, seguindo a trajetória proporcionada "pela liderança do PCC" e apoiando-se no "marxismo-leninismo e no pensamento de Mao Zedong". O voluntarismo do Partido pretende basear-se no real, isto é, na configuração das forças produtivas e das relações de produção – uma oposição que se situa no âmago da teoria marxista da história e que se encontra sintetizada no Prefácio de Marx à Contribuição para a Crítica da Economia Política (1859) (9). Como já salientámos, Mao escreveu que “na contradição entre forças produtivas e relações de produção, o principal aspeto é constituído pelas forças produtivas”, e que o mesmo se aplica à prática em relação à teoria ou à base económica em relação à superestrutura. Mas acrescentou: “Esta conceção é a do materialismo mecânico, e não a do materialismo dialético. As forças produtivas, a prática e a base económica desempenham, naturalmente, geralmente o papel principal e decisivo. Quem o nega não é materialista. No entanto, é preciso reconhecer que, sob certas condições, as relações de produção, a teoria e a superestrutura podem, por sua vez, desempenhar o papel principal e decisivo. Quando, na ausência de modificações nas relações de produção, as forças produtivas não se podem desenvolver, a modificação das relações de produção desempenha o papel principal e decisivo”. Isto ajuda a compreender o que era a política maoísta e o seu carácter voluntarista, mas também o significado da política de “reforma e abertura”, que será reajustar as relações de produção às forças produtivas no período pós-Mao.

 

Foi também dito que o discurso moral chinês nos convida a evitar todo o rigorismo e todo o maniqueísmo, porque esta forma de pensar desconhece as noções de transcendência e de absoluto – com as suas possíveis implicações religiosas. A moralidade, portanto, não é posta em causa, mas é o seu próprio conteúdo que deve ser evolutivo. O pensamento tradicional chinês opõe-se às ideias de que um está necessariamente errado e o outro certo, de que a verdade está sempre de um lado ou de que o vencedor de uma eleição tem plenos direitos após a vitória. A sua cultura de reconciliação dos opostos (se não forem antagónicos) pode ser interessante, pois uma coisa é rejeitar o princípio da autoridade ligada à hierarquia, por oposição ao princípio da igualdade exigido pela moral cívica, outra coisa é não respeitar o adversário na contenda democrática. Pode-se, portanto, colher inspiração em certos aspetos da moral tradicional chinesa para os inscrever numa moral de alcance universal.

 

A moral pública não é uma política de bem-estar, mas exige-a, se quisermos que seja possível. Os sujeitos sociais inclinam-se tanto mais para a moralidade quanto mais as suas necessidades são satisfeitas, o que faz passar a moralidade para uma questão antropológica. Qual é a situação na prática política chinesa atualmente? O discurso político chinês sobre o bem-estar social enfatiza a “harmonia social” e a “estabilidade” como valores essenciais, e a procura de “conciliação” e “consenso” como meios para as alcançar. Estas noções não só contrastam fortemente com a “guerra de classes” do marxismo ocidental, como também parecem suspeitas, dado que são geralmente a marca dos regimes conservadores. No entanto, não devemos esquecer o significado particular que assumem no pensamento chinês.

 

A procura da harmonia consiste em restabelecer equilíbrios onde estes foram quebrados, tanto na ordem natural como na ordem social. Na tradição confucionista, isto traduz-se numa filosofia de restauração, mas a noção de “progresso”, que vem do Ocidente, penetrou nesta forma de pensar, como atestam muitas expressões do discurso político chinês contemporâneo. Os opostos estão sempre lá, mas o equilíbrio, em movimento, pode e deve ser elevado a um nível superior de harmonia. As oposições de classe não podem ser erradicadas, mas podem deixar de ser antagónicas, através de um processo de equalização, e não de um golpe de força político, como na era maoísta. O mesmo se aplica à relação entre os seres humanos e a natureza: a atividade humana ameaça constantemente o ambiente, mas produz simultaneamente certas novas tecnologias que podem alcançar um equilíbrio controlado e global. A estabilidade, por sua vez, designa o ponto de equilíbrio, que só pode ser temporário, aguardando a procura do próximo. Alcançar a harmonia social – conceito diferente de “coesão social”, que visa evitar, num sistema desequilibrado como o capitalismo, pontos de rutura na sociedade –, exige esforços de conciliação e uma preocupação permanente com o consenso. O pensamento chinês desconfia do confronto, tanto ao nível da retórica do discurso (estar-se-ia certo ou errado) como no da prática democrática (em que qualquer argumento seria bom com vista a neutralizar o adversário). No entanto, o esforço para conciliar pontos de vista não significa procurar um “compromisso social” entre interesses antagónicos, onde o poder político se contentaria com um papel de arbitragem. Pois cabe-lhe encontrar, em nome do povo, “senhor da pátria”, o equilíbrio que marca o progresso em direção à harmonia.

 

Compreende-se o que significa procurar o equilíbrio quando se conhecem os desequilíbrios atuais da economia chinesa (dívidas, desigualdades, poluição...). Poder-se-ia pensar que se trata apenas de conciliar os opostos e reduzir as tensões que ameaçam a estabilidade. Mas aqui está mais em causa, porque está envolvida a unidade dos opostos. Estes últimos não são totalmente estranhos um ao outro, um pode fortalecer o outro numa dialética positiva, onde a ação sobre um dos polos da contradição pode consolidar o outro em vez de o enfraquecer, como na dialética negativa. Esta dialética positiva faz sentido socialmente, e dir-se-á, por exemplo, que a criação de um polo de riqueza pode ajudar o outro polo a sair da pobreza? Isto só pode ser dito aqui no sentido particular de um efeito de cascata, porque estamos em presença de um par antagónico, que opõe uma minoria a uma imensa maioria, as "grandes massas". Pelo contrário, a nível antropológico, a ideia de uma dialética positiva, tal como esboçada no discurso político sobre o bem-estar, faz sentido: haveria equilíbrios dinâmicos a encontrar no indivíduo entre os seus interesses pessoais e as suas necessidades sociais, entre os interesses individuais e coletivos e, finalmente, entre as necessidades e as exigências morais. O socialismo deixa então de ser um projeto escatológico, orientado para um comunismo perfeito – uma visão estranha ao pensamento chinês que se revolta contra o absoluto – para se tornar uma construção em movimento, com o comunismo a funcionar como uma bússola.

 

Na China, os dirigentes recorrem a um discurso de moralidade, explícita e voluntariamente, embora o Ocidente prefira culpá-los pela hipocrisia e pelo cinismo – ou, por vezes, ainda brandir o espectro do totalitarismo. No entanto, este discurso moral está imbuído de “ética social” e, por isso, há uma ênfase constante no “socialismo à chinesa”. Isso colocá-lo-ia em perspetiva e relativizá-lo-ia, se a moral for definida pela sua universalidade. O mesmo se aplica ao discurso chinês sobre o bem-estar, com as suas noções de harmonia social e harmonia entre necessidades, tão estranhas à cultura ocidental – e opostas ao espírito competitivo do capitalismo e à espiral ilimitada do seu consumismo. Lançam luz sobre uma política socialista de felicidade, condição para uma moralização da sociedade que daria livre curso a diferentes escolhas sociais, bem como às decisões individuais. Para a posição oficial chinesa, o problema é, antes de mais, sair do subdesenvolvimento. O socialismo está apenas no primeiro estádio, insistamos, e ainda precisa de aprender com o capitalismo, para construir uma base de poder económico e de influência política suficientemente forte para não correr o risco de ser desintegrado.

 

O pensamento marxista enfatizava estas contradições sociais e antropológicas, no interior do próprio indivíduo, entre o indivíduo e a comunidade, entre os coletivos de trabalho e o nível social global, entre o indivíduo e o cidadão, entre as nações e a humanidade, mas acreditava que eram ultrapassáveis, apoiando-se no otimismo do Iluminismo, na fé no progresso e numa leitura da dialética hegeliana como superação das contradições – que lemos em Marx sob a figura da Aufhebung. O maoísmo queria romper com esta visão: dois não se fundem num só, mas um divide-se sempre em dois, de tal modo que o movimento das contradições nunca cessa e a luta de classes não cessa. No entanto, Mao acreditava noutra forma de progresso, um "desenvolvimento em espiral" que tenderia a obscurecer as contradições. Até hoje, esta dialética tem sido sobretudo negativa, acabando um polo da contradição por dominar o outro, deformando-o ou mesmo aniquilando-o. Todo o problema do comunismo seria, portanto, tentar tornar esta dialética positiva, fazer com que cada polo fortaleça o outro, permitindo-lhe desenvolver o seu potencial, sem aniquilação. Reencontramos a inspiração da ancestral escola de pensamento chinesa, que vê nos opostos uma complementaridade que pode levar à harmonia.

 

Existe uma contradição, no interior do indivíduo, entre o desejo de afirmação pessoal e o desejo de pertencer à comunidade. Assim, na cultura tradicional chinesa, o indivíduo deve ter o seu lugar e enquadrar-se numa linhagem familiar, numa comunidade territorial, em redes de relacionamentos. Encontra aí o seu interesse, recursos, apoio, relações de confiança em que se baseiam as trocas, mas tal inserção traz-lhe também conforto psicológico e uma razão para viver, satisfazendo assim não só necessidades, mas também um desejo. A natureza opressiva das estruturas comunitárias e o peso que a tradição exerceu sobre os indivíduos não os impediram, contudo, de procurar afirmar-se, de utilizar estratégias para fazer prevalecer as suas escolhas individuais. Por outro lado, no Ocidente, o indivíduo ganhou força com a ascensão dos mercados, o luteranismo e, mais tarde, o triunfo na filosofia cartesiana do sujeito. As estruturas patriarcais ainda são fortes, mas já não estão isentas de tensões no seio das famílias. É o polo do desejo individual que se desenvolve e, muitas vezes, conduz, na atualidade, a um indivíduo desenraizado, rivalizante e narcisista. É este choque de culturas que também poderá ocorrer na China. No entanto, o objetivo do comunismo é precisamente conciliar esses opostos.

 

Conclusão

 

Um verdadeiro trunfo da China reside na sua cultura tradicional e naquela herdada do maoísmo. Encontramos aqui o debate que perpassa a história da China moderna, entre tradição e modernidade. Claramente, a atração pelo Ocidente e pelos seus costumes é forte, e isso explica-se pelo facto de que o polo do indivíduo, dos seus desejos e interesses, foi durante muito tempo contrarrestado. A cultura tradicional ainda está viva, no entanto, e os cérebros ainda não foram levados pelo egoísmo, pelas rivalidades e pela corrida ao dinheiro (10). O que é precioso no outro polo – isto é, no da comunidade, sociabilidade, ambição política – deve ser preservado em linha com a herança chinesa. Mesmo a moral confucionista, apesar dos seus aspetos reacionários e do seu lado "feudal", transporta uma espécie de imperativo categórico kantiano. A interação tradicional entre as solidariedades familiares, regionais e profissionais e entre redes de conhecimento, tem os seus lados bons, como a ética da honra e o sentido da palavra dada. São os seus aspetos negativos (como o nepotismo, o clanismo, a corrupção...) que devem ser combatidos, através do desenvolvimento da lei e da sua aplicação rigorosa. Quanto ao maoísmo, os seus aspetos negativos remetem para um certo comunismo utópico – mesmo que o próprio Mao não fosse um sonhador utópico de uma cidade ideal, antes pelo contrário –, mas pode ainda irrigar o pensamento e a ação de forma muito positiva através das reivindicações que fez (a começar pelo igualitarismo) e do seu agudo sentido das contradições.

 

Os dirigentes chineses pensam a longo prazo. O Império Celeste via-se como eterno, e as dinastias chinesas eram frequentemente mais fortes do que a realeza ocidental, porque o modo de produção não era feudal nem absolutista, mas estatista. Hoje, diz-se que a "primeira fase do socialismo" dura cem anos ou mais, antes de se passar para uma segunda fase. O problema é que o tempo é agora contado pela urgência climática e pela velocidade da degradação ambiental. As autoridades chinesas devem agir rapidamente e mudar o seu modelo de crescimento para o tornar mais eficiente, mas, acima de tudo, mais compatível com as constrições ecológicas. É certo que, sendo estes fenómenos globais, a China não pode controlá-los sozinha no seu próprio território. Mas a sua crescente posição na economia mundial dá-lhe a oportunidade de influenciar o curso dos acontecimentos. Poderia dar o exemplo, dado que, por muito tempo, não se preocupou o suficiente com o ambiente e com os danos causados pelo seu crescimento exponencial, e ainda está atrasada em relação a alguns países em determinadas áreas. Não há apenas uma necessidade de recuperar o atraso, mas, melhor ainda, de avançar.

 

 

 

 

 

 

(*) Tony Andréani (n. 1935) é um académico francês de origem corsa. Licenciou-se em letras clássicas e filosofia, tendo dado aulas no ensino secundário antes de se tornar assistente e depois mestre de conferências na Universidade de Paris X (Nanterre), onde os seus cursos versavam principalmente sobre a epistemologia das ciências humanas e a filosofia política. Dirigiu uma equipa de investigação fundada por Georges Labica associada ao CNRS (Centro Nacional de Investigação Científica). Atualmente é Professor Emérito de Ciência Política na Universidade de Paris VIII e editor-chefe adjunto do periódico Pensamento Crítico Internacional, da Academia Chinesa de Ciências Sociais.

Rémy Herrera (n. 1966) é um economista marxista francês com uma ligação eletiva a Cuba. É licenciado pela Escola Superior de Comércio (École Supérieure de Commerce, 1988), pelo Instituto de Estudos Políticos (Institut d’Études Politiques, 1990) e pela Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne (Mestrado em Filosofia, 1994; Doutoramento em Economia, 1996), Começou a trabalhar em auditoria financeira (1988), na OCDE (1992-1997) e no Banco Mundial (1999-2000). Lecionou em diversas universidades em França e no estrangeiro, incluindo as Universidades de Alepo (1998), Cairo (1999-2000), Vitória no Brasil (2006), Complutense em Madrid (2009-2013) e Lingnan em Hong Kong (2018). Está ou esteve associado a: Fórum do Terceiro Mundo (Dacar), União de Economia Política Radical (Nova Iorque), Iniciativa Internacional para a Promoção da Economia Política (Londres), Sociedad de Economía Política Latinoamericana (São Paulo), Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Buenos Aires) e Asociación Nacional de Economistas de Cuba (Havana). Foi secretário executivo do Fórum Mundial de Alternativas (WFA). Organizou, entre 2013 e 2023, o seminário "Marx no Século XXI" na Sorbonne. É investigador no CNRS (Centro Nacional de Investigação Científica) e orientador de teses de doutoramento em economia na Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne.

Zhiming Long, é um economista chinês, professor associado, bolseiro Tang e diretor de investigação na Escola de Marxismo da Universidade Tsinghua, em Pequim, especializado em economia e sociedade chinesas contemporâneas.

O presente artigo foi publicado no volume 4, n.º 4 (dezembro de 2024) de World Marxist Review. A tradução é da responsabilidade de Ângelo Novo.

 

__________________

NOTAS:

 

(1) Ver: Andréani, Herrera e Long (2018), Herrera e Long (2018).

 

(2) Ver: Mao (1937).

 

(3) Ver: Andréani (2018).

 

(4) Discurso do Presidente Hu Jintao no 18.º Congresso do PCC, em Novembro de 2012.

 

(5) Estatutos do PCC, revistos em 14 de novembro de 2012, p. 4.

 

(6) Idem.

 

(7) Le Monde, 8 de fevereiro de 2013.

 

(8) Ver: Xi (2014).

 

(9) Ver: Marx (2014).

 

(10) Ver: Herrera (2022).

 

 

 

 

 

Referências bibliográficas

 

Andréani T. (2018), Le “Modèle chinois” et nous, Paris: L’Harmattan.

 

Andréani T., R. Herrera e Z. Long (2018), “On the Nature of the Chinese Economic System”, Monthly Review, vol. 70, n.° 5, p. 32-43.

 

Chieng A. (2006), La Pratique de la Chine, Paris: Grasset.

 

Deng X. (1993), Textes choisis, Beijing: Éditions en langues étrangères.

 

Herrera R. (2022), Money: From the Power of Finance to the Sovereignty of the Peoples, New York: Palgrave Macmillan.

 

Herrera R. e Z. Long (2019), La Chine est-elle capitaliste?, Paris: Éditions Critiques.

 

Mao Z. (2008), De la pratique et De la contradiction, Paris: La Fabrique.

 

Marx K. (2014), Contribution à la critique de l’économie politique, Paris: Éditions Sociales.

 

Xi J. (2014), La Gouvernance de la Chine, Beijing: Éditions en langues étrangères.