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Introdução
Israel entrou na vereda do seu estertor final igual a si próprio e fiel ao que sempre foi, para quem nunca se deixou cegar pelas suas fábulas sentimentais legitimadoras. A direção deste projeto esteve sempre entregue a carniceiros, racistas, mitómanos, megalómanos e ignorantes. Durante três quartos de século, as suas proezas científicas de vigilância, metódico assassinato e carnificina (que nunca tiveram outras de relevo) foram o orgulho e o enlevo das televisões ocidentais. Agora esse idílio terminou, pelos vistos (1). Todavia, não será tão simples como isso destrinçar os destinos históricos de Israel dos do grosso do mundo ocidental. Por alguma razão, a presente ordem imperial global é pertinentemente designada como anglo-sionista. Minúsculo statelet que é, Israel alberga em si o Santo Graal do capitalismo. Pelo menos ao nível simbólico, é o vórtice centrífugo supremo do mundo liberal, de onde irradia incessante e exponencialmente a sua trindade dinâmica: agressão, esbulho e alheamento individualista. Tudo de uma forma aberta sobre o infinito. A isso chamam os neofascistas um horizonte de “liberdade”. É, enfim, a lâmina acerada e implacável do “progresso” contra a “inveja”, cavando sem remissão possível a ruína do nosso habitat natural. Por isso (e não por alguma compunção perante a memória de Auschwitz, que lhe passa completamente ao lado), a ordem burguesa reinante, reiterada e ritualmente se prosta em recolhimento profundo perante Israel. Esconjura anacronicamente um imaginário “antissemitismo”, para na verdade, em sua linguagem cifrada, esconjurar o anticapitalismo. A selvajaria crematística é a única coisa que apela ao seu sentido do sagrado.
A velha Inglaterra, sempre muito liberal, fundadora, decana e expoente fetichístico (com a sua decrépita realeza) da atual ordem mundial imperialista, tem o distinto privilégio de ter cometido o genocídio em todos os cinco continentes. Em simultâneo, seja, em paralelo, inaugurou a doce melopeia do atual humanitarismo imperial. Nos inícios ainda pio, depois já cada vez mais laico (David Livingstone foi uma figura de charneira). O seu braço armado trazia supostamente a luz. Após a conquista, imposta a lei, faz-se rogar na sua postiça magnanimidade universalista. Estas duas faces, a cara e a coroa do poder imperialista ocidental, são absolutamente inseparáveis. Consequentemente, o Ocidente quer desesperadamente a sobrevivência de Israel, mas, com igual desespero, não quer que isso se alcance à custa de lhe serem despidos à força os adereços humanistas com que disfarça (aos seus próprios olhos e aos dos seus lacaios) a nudez crua da pilhagem, da privação e da repulsa, com que impõe aos outros a sua ordem mundial de privilégio e exclusão. Afastando-os cada vez mais de si próprio, enquanto protesta assisti-los no seu desenvolvimento. É um dilema e tanto. Como socorrer um genocida sem se expor demasiadamente a si próprio como um outro, afinal bem maior? O império ocidental tem incorporado o seu justificativo humanístico de uma forma que se lhe tornou vital. E é sob essa capa que encara prosseguir imperturbavelmente a preparação de novos genocídios e a extinção final da humanidade, pelo menos neste planeta.
A fonte de maior perigo para a sobrevivência da humanidade é precisamente esta obstinação do imperialismo ocidental em manter-se na dominação do mundo, pereça ele. Aos seus olhos, o derrube do capitalismo e da supremacia do homem branco é uma aberração muito, incomparavelmente superior à extinção da espécie humana. É preciso manter o curso, custe o que custar. Estará ele disposto a sacrificar o peão Israel, para poder prosseguir o seu rumo consciente ou inconscientemente (pouco importa) catastrófico e humanicida? Há quem assim pense, mas essa está longe de ser a opinião prevalecente entre os atuais senhores do mundo. Por diversas e muito fortes razões. Uma delas – a mais imediata e superficial - é certamente a captura, de há longa data, do Estado norte-americano por uma plutocracia fanatizada pelo sionismo.
A outra razão, mais profunda, tem a ver com uma das descobertas mais geniais de Karl Marx: a queda tendencial da taxa de lucro. O mundo ocidental está cada vez mais assolado por esse terrível défice no seu oxigénio, o que o inclina, por reflexo condicionado, a acionar a opção (neo)fascista. Isso irmana-o definitivamente com Israel, acelerando a sua queda conjunta. Neste momento, é provável que a derrocada de ambos ocorra simultânea e solidariamente. O que pode, inclusivamente, ser precipitado pela liderança atrabiliária de Donald Trump, acintosa para com os seus “aliados”, propiciadora da ocorrência, a qualquer momento, de uma catástrofe económico-financeira e, inclusivamente, da eclosão de uma guerra civil larvar no seu próprio país. Tornar-se-ia assim fútil a guerra nas Caraíbas já em começo de execução e totalmente inalcançável o planeado confronto final nos mares da China. Será o fim da linha para o Ocidente. Talvez isso ocorra ainda a tempo de tornar possível a sobrevivência da espécie humana neste planeta Terra, como nos dita o teimoso vício da esperança.
Quem se deixou moldar pelo discurso ideológico incessantemente secretado pelas ciências e pela comunicação social dominantes no mundo ocidental e, ainda assim, leu este editorial até aqui, terá porventura pensado detetar nele manifestações de “antissemitismo”. A primeira resposta que temos a dar sobre isso é que não nos deixamos intimidar moralmente por profissionais do homicídio e do massacre, genocidas e, em última instância, humanicidas. A acusação de antissemitismo é completamente destituída de sentido para 5/6 da humanidade (aí incluídos os palestinianos), cujos antepassados nunca conheceram qualquer “questão judaica” nas suas terras. Os descendentes dos antissemitas europeus, esses sim, empenhados em deslocalizar a expiação dos seus crimes para o exterior, são quem tem sempre pronta-a-servir essa acusação de “antissemitismo”, para lançar contra os povos agredidos e quem se solidariza com eles. Os subscritores destas linhas são também ocidentais, mas descendem intelectualmente de quem lutou contra o antissemitismo, quando ele efetivamente segregava, discriminava, assediava, deportava e matava. Presentemente isso já não existe em lado nenhum. Descendem também de toda uma tradição radical e cosmopolita judaica, em que avultaram nomes como Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Leon Trotsky, Abraham Leon ou Albert Einstein. Essa tradição está hoje muito dispersa e diluída, mas ainda assim reúne companheiros (e colaboradores) nossos como Michael Löwy, Enzo Traverso, Norman Finkelstein, Noam Chomsky ou Ilan Pappé (este ainda com uma casa em Israel). Estas são algumas das opiniões a que daríamos peso na avaliação do nosso suposto “antissemitismo”. Israel é um projeto celerado e historicamente falido, que deve ser controlada e democraticamente desmantelado, com respeito pela vida e dignidade humanas. O Ocidente deve seguir-se-lhe, de imediato, uma vez que nisso faz questão. Já tivemos que chegue de povos eleitos. Quanto a nós, elegemos os povos, todos eles, irmanados e solidários na sua diversidade.
A guerra mundial em curso, por forma seccionada, vai abrir nos seus interstícios um novo ciclo de revoluções sociais, no qual estão depositadas as nossas apostas estratégicas. Prabhat e Utsa Patnaik afirmam que o agente revolucionário terá de ser uma fórmula nova da aliança operário-camponesa, que conduzirá a luta anti-imperialista (fase democrática da revolução) e a transição ao socialismo. Nesta última, é introduzida uma variação em relação à aliança de classes prevista no esquema clássico de Lenine, que lhe confere uma maior amplitude. Em contrapartida, o cooperativismo é entendido como sendo a forma padrão por que todas as secções do campesinato haverão de expressar a sua adesão ao socialismo. Revisitando os clássicos e fazendo uso da sua experiência venezuelana (mas também a boliviana e a do brasileiro MST), Chris Gilbert aponta a comuna com sendo a pedra de toque definidora da transição ao socialismo e o esteio fundamental na luta contra o capital-imperialismo, quer na fase de resistência, quer na da ofensiva libertadora. Num diálogo vivo e esclarecedor, John Bellamy Foster e Gabriel Rockhill expõem as caraterísticas definidoras do marxismo ocidental, como uma tradição intelectual que vira as costas à luta anti-imperialista, assim traindo necessariamente a sua missão transformadora e o rumo socialista.
O momento histórico presente é de triunfo para a ideia de epistemologias do sul, que Boaventura Sousa Santos vem propondo há décadas, como alternativa emancipadora ao reducionismo de via única, em rolo compressor, do conquistador ocidental. Enquanto, no mundo imperial, o autor arrosta com a peçonha da calúnia e do silenciamento, na África reerguida é chamado para partilhar a sua visão, nestes novos tempos de libertação do neocolonialismo. Michael Hudson entende também este momento histórico como um confronto civilizacional. De um lado, temos o domínio irrestrito das finanças e do rentismo imobiliário ou tecno-monopolista, que capturam o Estado ao seu serviço exclusivo; do outro lado temos as potências ascendentes nacionalistas - com a sua visão estratégica desenvolvimentista, com base num pacto social - que enquadram e disciplinam politicamente o funcionamento do mercado, com abertura para um desenlace socialista. O pensamento único da burguesia liberal triunfante já não o é, afinal. Passada a euforia do “fim da história” e da hegemonia imperialista de horizonte aberto, a nova ortodoxia da geoeconomia, diz-nos Michael Roberts, vira as costas decididamente ao universalismo das regras gerais e abstratas, passando a abraçar a política de força e a imposição unilateral de termos leoninos.
Se a humanidade conseguir evitar os estreitos apertados por onde está neste momento a singrar, vai ficar a devê-lo, sem dúvida, à República Popular da China. Será uma dívida a repartir entre o acervo acumulado da multimilenar civilização chinesa e o génio profético de Karl Marx. Não queremos parecer prosélitos, mas temos que estar devidamente informados para podermos ocupar o nosso lugar nas lutas que se avizinham. Neste número de O Comuneiro publicamos um conjunto de artigos que nos dão perspetivas inovadoras do que pode ser a influência da China neste momento da história mundial. Tony Andreani, Rémy Herrera e Zhiming Long assinam conjuntamente uma peça imensamente instrutiva sobre diferenças e semelhanças entre o Ocidente e a China, forjadas ao longo da história, por diversas tradições filosóficas, nas mentalidades, nos modos de apreensão do real, na criação conceptual e nas maneiras de ver o Estado, a sociedade e a vida pública. Cheng Enfu e Yang Jun (sobretudo o primeiro) são autores muito próximos da atual fação dominante na classe dirigente chinesa. A sua interpretação é autêntica e reveste grande autoridade, quanto ao enquadramento teórico e alguns desígnios particulares que enformam a atuação do aparelho estatal chinês, no momento histórico atual. Uma leitura atenta da sua exposição é informativa em alto grau, pois que a política do Partido Comunista Chinês obedece a rigorosas pautas doutrinais, não ao caos oportunista e hipócrita a que estamos habituados no Ocidente. Chen Yiwen traça-nos um bosquejo histórico e analítico da penetração, primeiro, e da formulação própria, depois, do marxismo ecológico no espaço académico chinês. Finalmente, explica-nos como essas reflexões enformaram a criação do conceito de ecocivilização socialista, central na atuação das autoridades públicas do país. É precisamente sobre esse conceito, como que em voz de retorno, que John Bellamy Foster (o mais destacado marxista ecológico do Ocidente), elabora dez teses preliminares, para salientar a sua aplicabilidade e urgência ao nível mundial.
Agradecemos toda a divulgação possível do conteúdo deste número de O Comuneiro, nomeadamente em listas de correio, portais, blogues ou redes sociais de língua portuguesa. Comentários, críticas, sugestões e propostas de colaboração serão bem-vindos. Agradeceríamos em particular a ajuda voluntária e graciosa de tradutores.
Os Editores
Ângelo Novo
Ronaldo Fonseca
NOTA: (1) Os seus indefetíveis continuam entretanto a expressar-se com todo o à vontade. Para os apologistas do genocídio há plena liberdade de expressão, palcos e honrarias sempre disponíveis, ao contrário do que sucede para com os partidários da causa palestiniana.
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