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O momento histórico das epistemologias do Sul (1)
Boaventura de Sousa Santos (*)
Esta é a segunda vez neste ano que me dirijo a vós para falar das epistemologias do Sul, o que mostra o vosso interesse por esta perspectiva epistémica. Um interesse agora eloquentemente demonstrado com a criação de um doutoramento sobre este tema.
O meu propósito nesta conferência é analisar de que modo as epistemologias do Sul podem contribuir para o vosso tema central: L’Afrique face aux défis contemporains.
Que essa contribuição é fundamental já foi decidido por vós ao criar um programa de doutoramento sobre as epistemologias do Sul. Trata-se apenas de identificar o modo como essa contribuição pode ser maximizada. Este tema é cada vez mais importante. Prova disso é o facto de estar a ser discutido em várias regiões do mundo para além da África. Por exemplo, no México o novo programa governamental sobre a educação intitulado “A Nova Escola Mexicana” tem como segundo eixo as epistemologias do Sul. No mês passado estive a discutir nas universidades e nas Secretarias de Educação do México temas que são relevantes para o que pretendo apresentar nesta conferência.
A primeira questão que se pode pôr é: Por que razão agora em África como na América Latina e na própria Ásia (o meu livro sobre as epistemologias do Sul acaba de ser publicado na Coreia do Sul), por que razão agora se recorre às epistemologias do Sul como parte de um projecto que vai muito para além do simples projecto educativo? Para os países que estiveram sujeitos ao colonialismo europeu trata-se de revisitar a questão do projecto de país que se pôs depois da independência e que agora se repõe com novos instrumentos e depois da experiência acumulada em sessenta ou setenta anos de independência política (ou um século, no caso da América latina).
A resposta mais simples a esta questão assenta em duas ideias. A primeira é a verificação dolorosa de que os processos de independência foram muito parciais. Quando muito, houve independência política, mas não independência económica, financeira, militar, cultural ou epistémica. As consequências negativas da independência incompleta foram-se tornando mais visíveis e graves à medida que os anos avançaram. A independência não conduziu a relações internacionais de interdependência entre iguais como os fundadores pretendiam. Conduziu antes a relações internacionais de dependência, da continuação dos tratados desiguais, da pilhagem dos recursos naturais, da submissão financeira e militar. E esta dependência reproduziu-se não só em relação às antigas potências coloniais como em relação a outros países tidos por mais desenvolvidos.
Esta questão foi identificada desde o início, com nuances distintas, por alguns dos fundadores dos novos países, de Kwame Nkrumah a Leopold Senghor, de Amílcar Cabral a Julius Nyerere, de Patrice Lumumba a Jomo Kenyata, de Ahmed Ben Bella a Habib Bourguiba, de Samora Machel a Sam Nujoma. Mas as condições políticas dos anos seguintes não puderam encontrar respostas eficazes. Pelo contrário, a dependência de tipo colonial agravou-se a partir de 1980 com o advento do neoliberalismo como versão dominante do capitalismo global. Por sua vez, os países do Sul global começaram a ter mais consciência desta dependência imperialista e a ter mais poder para reagir com a emergência de um novo dinamismo económico e político por parte de países que foram colonizados e ou humilhados pelo colonialismo e pelo imperialismo ocidentais, como é o caso da China depois das guerras do ópio de 1840. Só para dar um exemplo, emerge no horizonte com pujança sem precedentes uma acumulação capitalista não-ocidental protagonizada por países que, ou foram colónias europeias ou foram humilhados, dominados ou invadidos pelas potências ocidentais ao longo dos séculos. Refiro-me aos BRICS e sobretudo aos BRICS+ que, além dos países que compõem a sigla (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), integram hoje onze grandes economias emergentes e estão em vésperas de integrar muitos outros países. Representam hoje 49.5% da população mundial, cerca de 40% do PIB mundial, e 26% do comércio global. Já ultrapassaram o grupo dos países mais desenvolvidos, o G7, que representam 30% do PIB mundial e 10% da população mundial.
Por outro lado, nunca foi tão evidente o declínio do imperialismo ocidental, o qual procura atrasar esse declínio aparentemente irreversível, fomentando guerras para mostrar o domínio onde a sua supremacia ainda é incontestável, tornando-se cúmplice da brutal ocupação colonial da Palestina e do genocídio do povo de Gaza, e impondo a alguns países do Sul global a aceitação de imigrantes deportados dos EUA, uma medida que faz lembrar os piores tempos da deslocação forçada de populações no período do colonialismo histórico.
Acresce que as antigas potências coloniais e outros países criados por elas mediante a eliminação quase total dos povos originários (EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) revelaram durante muito tempo um nível de desenvolvimento que detinha uma aura de excelência e que parecia ser a incarnação do único futuro possível, um futuro de bem-estar para a esmagadora maioria da população. A essa aura chamou-se progresso e desenvolvimento. Essa imagem do desenvolvimento só em parte correspondia à realidade, mas constituía um grande atractivo para os novos países. A ideologia então dominante era que os novos países, com a ajuda solidária dos países desenvolvidos, chegariam um dia ao mesmo nível de desenvolvimento deles.
Como todas as ideologias, esta ideologia era falsa desde o início, mas a sua falsidade tornou-se uma realidade particularmente amarga nas três últimas décadas com a prevalência global da versão mais selvagem do capitalismo, o neoliberalismo, de que resultou o aumento da desigualdade social e da concentração da riqueza dentro de cada país e nas relações entre países com níveis diferentes de desenvolvimento.
Por outro lado, a dinâmica do próprio desenvolvimento capitalista conduziu ao surgimento de dois fenómenos que ameaçam a humanidade no seu todo - a ameaça de guerra nuclear e o colapso ecológico - e a outros fenómenos que desmentem por completo duas promessas que eram feitas depois da segunda guerra mundial. A promessa do fim das rivalidades entre imperialismos e o nascimento de uma convivência internacional pacífica de que as Nações Unidas eram o símbolo. E a promessa do avanço da democracia liberal à medida que os países se desenvolvessem.
A cruel realidade dos nossos dias vai no sentido oposto. Por um lado, como referi acima, assistimos impotentes ao genocídio de Gaza, à agonia lenta das instituições da Nações Unidas e à emergência de guerras entre vizinhos e de guerras civis incentivadas por potências estrangeiras na Ucrânia, na Asia Ocidental a que o Ocidente chama Médio Oriente, na República Democrática do Congo, no Sudão, entre a India e o Paquistão. Domina um unilateralismo imperial que ignora todos os tratados e convenções internacionais. Por outro lado, mesmo nos países ditos mais desenvolvidos emergem com cada vez mais intensidade forças de extrema direita e novas formas de fascismo que ameaçam destruir a convivência democrática e reduzir as regras democráticas a uma formalidade irrelevante na governação política.
Por todas estas razões, os países do Sul global deixaram de acreditar na miragem do desenvolvimento e o que observam nos países mais desenvolvidos mostra que esse tipo de desenvolvimento deixou de ser sequer um modelo de futuro desejável. Parece, pois, haver agora melhores condições para repor a questão do projecto de país e encontrar novas e melhores soluções.
É neste contexto complexo que os países que estiveram sujeitos durante séculos ao domínio capitalista e colonialista ocidental têm vindo a chegar à conclusão de que há algo profundamente errado nas ideias que dominaram o mundo sobretudo nos últimos setenta anos: uma crença sem precedentes na exclusiva capacidade da ciência eurocêntrica para resolver todos os problemas sociais e políticos, transformando-os em problemas técnicos, uma crença que atingiu o paroxismo nos últimos dez anos com a emergência da Inteligência Artificial.
A consciência deste erro levou a pensar que neste processo a maioria dos povos do mundo foi vítima de uma armadilha historicamente sem precedentes: a confiança exclusiva na ciência, sempre dominada pelos países mais desenvolvidos, transformou todos os outros países em países ignorantes, destituídos de conhecimentos próprios relevantes. As próprias elites destes países foram levadas a desprezar os seus conhecimentos endógenos, muitos deles anteriores ao encontro com o colonialismo europeu, outros nascidos nas lutas contra o colonialismo e o capitalismo. E abraçaram acriticamente a promessa de que a ciência por si só resolveria todos os seus problemas. Ao fazê-lo, abraçaram a ideia de progresso que os manteria para sempre atrasados, a ideia de desenvolvimento que os manteria para sempre subdesenvolvidos e a ideia de independência que os manteria para sempre dependentes.
Esta armadilha está finalmente a ser denunciada e a ser desarmada. As epistemologias do Sul representam um contributo importante para que tal processo avance. Começo por algumas considerações gerais para depois me debruçar sobre alguns temas concretos.
Orientações gerais
As epistemologias do Sul são um vasto e diverso campo de investigações e conhecimentos que questionam as correntes epistemológicas, teóricas e analíticas que têm dominado globalmente nos últimos quinhentos anos e que designamos como epistemologias do Norte. A designação “epistemologias do Sul” é recente, mas a sua prática é antiga, já que incide sobre conhecimentos endógenos, por vezes ancestrais, que têm orientado a vida quotidiana dos povos sobretudo no Sul global. O questionamento proposto pelas epistemologias do Sul assenta nas seguintes orientações gerais:
1. Aprender que existe o Sul epistémico; aprender a partir do Sul e com o Sul. Este Sul epistémico tem sido construído pelas classes e grupos sociais que ao longo de cinco séculos têm resistido e lutado contra os principais modos de dominação moderna, nomeadamente o capitalismo e o colonialismo.
2. Os conhecimentos nascidos ou usados nestas lutas sociais têm sido sistematicamente ignorados ou reprimidos pelas instituições encarregadas de produzir e legitimar o único conhecimento considerado válido e relevante, a ciência moderna, nomeadamente as universidades.
3. A exclusão epistémica está na raiz da exclusão social. Não há justiça social global sem justiça epistémica global.
4. A compreensão do mundo é muito mais vasta que a compreensão ocidental do mundo.
5. As epistemologias do Sul não são um movimento anticiência. A ciência moderna é um conhecimento válido, mas não é o único conhecimento válido. Deve, pois, incentivar-se o reconhecimento mútuo da ciência e de outros conhecimentos vernáculos e construir com base nele diálogos e ecologias de saberes, muitas vezes com recurso à tradução intercultural, que permitam realizar os seguintes objectivos:
Primeiro, contribuir para o fortalecimento das lutas de resistência contra o capitalismo e o colonialismo e todas as outras formas de dominação ao serviço do capitalismo e do colonialismo, como sejam, o patriarcado, o sexismo, o etno-racismo, o sistema de castas, o capacitismo, ou seja, a desvalorização ontológica de pessoas com deficiência, o idadismo, ou seja, a desvalorização social dos mais velhos, ou religião política, ou seja, o uso da religião para legitimar e aprofundar a exclusão social.
Segundo, compreender o declínio histórico do conhecimento e da concepção do mundo e da vida dominantes que podemos designar como eurocentrismo, civilização Ocidental, modernidade capitalista-colonialista-patriarcal que se globalizou a partir do século XV, e que, no plano geopolítico, se tem designado mais recentemente como Norte global.
Terceiro, compreender em que medida o objectivo central da globalização do modelo eurocêntrico (acesso a recursos naturais e extermínio ou controle violento das populações colonizadas) reprimiu a diversidade interna da própria cultura ocidental e favoreceu as versões desta que melhor se adequavam ao objectivo da conquista colonial, capitalista. Isso explica em parte porque Descartes foi tão celebrado e Espinosa, seu contemporâneo, foi considerado um filósofo maldito até ao século XIX.
Quarto, compreender o longo período de transição paradigmática ou interregno em que vivemos de modo a contribuir para a superação do quadro conceptual dominante construído a partir de uma concepção restrita de racionalidade, a racionalidade instrumental que separou o que se devia manter unido: a natureza, o corpo, a ética e a transcendência.
Quinto, contribuir para uma transformação do mundo que elimine a linha abissal – característica fundamental das epistemologias do Norte – que separa a humanidade da natureza e os seres considerados plenamente humanos dos seres humanos considerados sub-humanos. Só assim se devolverá a esperança à humanidade e à natureza.
Para isso, as epistemologias do Sul aproveitarão das epistemologias do Norte tudo o que destas pode ser – criativamente, rebeldemente e contra-hegemonicamente – mobilizado para construir ecologias de saberes. As epistemologias do Sul, longe de serem o oposto binário das epistemologias do Norte, representam a validação de formas holísticas de pensar, sentir e agir que foram suprimidas pelas epistemologias do Norte.
Sexto, contribuir no plano geopolítico para que o que hoje se designa como Sul global não seja nem um mero Sul geográfico nem sequer um Sul geopolítico. Para que seja um Sul epistémico, pois só assim poderá contribuir para um mundo de vida digna e de esperança para a humanidade e a natureza.
Orientações específicas
As epistemologias do Sul levantam novos problemas para os quais necessitamos de novas soluções, tanto na educação como na vida política, económica, social e cultural.
As epistemologias do Sul e as disciplinas
As epistemologias do Sul não são uma disciplina. São uma perspectiva epistémica teórica e analítica que atravessa todas as disciplinas, do direito à economia, da medicina à comunicação, da literatura e das artes à tecnologia. Implica uma profunda reforma da educação e sobretudo das universidades. O saber científico eurocêntrico deve ser posto em diálogo com os saberes vernáculos, sem nenhum idealismo romântico em relação a qualquer dos sistemas de conhecimentos. O objectivo é construir ecologias de saberes que enriqueçam a nossa compreensão da realidade e ajudem a construir planos de transformação social centrado no bem-estar das comunidades. Por idealismo romântico entendo a transformação de um qualquer sistema de conhecimento em sistema de crença. Enquanto o conhecimento é sempre objecto de crítica, a crença exige adaptação ou rejeição acríticas.
Crítica dupla
Ao contrário do idealismo romântico, as epistemologias do Sul propõem uma crítica dupla. Tanto uma crítica da ciência eurocêntrica como dos conhecimentos endógenos. Como toda a epistemologia é política, é necessário ter presente que as epistemologias do Sul visam fortalecer a luta anticapitalista, anticolonialista, anti-imperialista, anti-sexista, anti-racista.
As duas críticas têm vocações distintas. A crítica contra a ciência eurocêntrica é uma crítica contra a dominação epistémica e o epistemicídio que ela legitimou ao longo de séculos ao eliminar ou desprezar outros conhecimentos que rivalizavam com a sua visão restrita de racionalidade. A crítica dos conhecimentos endógenos é uma crítica solidária que visa mostrar em que medida a luta pela sobrevivência epistémica levou esses conhecimentos a uma certa estagnação e à negação da transformação social por que as sociedades foram passando. Não só estagnação, mas também uma certa rendição à condição de saber local e, portanto, irrelevante para tudo o que é importante na sociedade. Isto leva-me a outro tema.
Os limites do conhecimento e a ignorância esclarecida
Todos os sistemas de conhecimento têm limites. Nenhum deles por si só pode fornecer respostas a todas as questões. Todos os sistemas de conhecimento têm uma positividade e uma negatividade. O juízo sobre uma e outra depende de critérios de validação interna e dos objectivos para que se quer utilizar o conhecimento. É por esta razão que toda a epistemologia é política ainda que nem toda a política seja epistémica. Ter consciência desses limites é ser ignorante esclarecido. Todos os educadores devem aspirar a ser ignorantes esclarecidos, já que quanto mais sabemos mais conscientes estamos de quanto ignoramos. Por exemplo, a ciência só pode responder a perguntas que sejam formuladas cientificamente. Não é possível perguntar cientificamente: qual é o sentido da vida? Os nossos antepassados vivem connosco? O que é a felicidade? Para onde vamos depois de morrer? Etc. Os diferentes conhecimentos endógenos podem eventualmente responder a estas questões, mas deixam outras por responder. Os seres humanos são todos iguais? Que implicações retirar disso? Como democratizar a sabedoria? Como escolher entre as tecnologias que nos ajudem a pensar e a transformar a nossa sociedade? Como resolver os crescentes conflitos geracionais?
Quanto mais conscientes estiverem dos seus limites mais úteis serão os diferentes sistemas de conhecimento, mais disponíveis estarão para entrar em diálogo com outros conhecimentos e construir ecologias de saberes. A consciência dos limites de cada sistema de conhecimento tem consequências práticas na vida das sociedades. Por exemplo, a medicina alopática de origem eurocêntrica pode ser mais eficaz para resolver doenças agudas, enquanto a medicina tradicional pode ser mais eficaz para resolver doenças crónicas. O direito oficial do Estado pode ser mais eficaz na punição de comportamentos graves, mas o direito tradicional pode ser mais eficaz para reconstruir a coesão e reconciliação no seio das comunidades fracturadas por esses comportamentos e pelos conflitos a que dão origem.
Da racionalidade à razoabilidade
No sentido mais geral, a racionalidade é a designação para a consistência, coerência ou adequação entre pensamentos, entre vontades ou entre acções. Há vários tipos de racionalidade. Por exemplo, a racionalidade substantiva diz respeito à consistência em relação a princípios normativos, éticos ou outros. A racionalidade instrumental é a adequação dos meios aos fins, quaisquer que eles sejam. A ciência moderna eurocêntrica é dominada pela racionalidade instrumental. O importante não é o porquê das coisas, mas o como das coisas. Mais importante o fazer do que o ser.
O propósito das epistemologias do Sul é permitir um conceito mais amplo de racionalidade que podemos designar por razoabilidade, um conceito que dominou a filosofia política até ao século XVII e que afinal é o conceito que sempre regeu o conhecimento endógeno dos povos. A razoabilidade combina razões e valores, sentimentos e vontades. É dominada pela ideia de prudência em função das consequências das acções. Ser razoável é ser pragmático sem ser resignado ante a injustiça ou o erro. Para construir formas de racionalidade mais ampla e de razoabilidade sempre atenta às exigências éticas é fundamental a ecologia de saberes de que falarei adiante.
Como educar os educadores
A educação pautada pelas epistemologias do Sul implica uma profunda reforma do sistema educativo. Exige uma nova forma de literacia dos educadores e uma nova pedagogia. Enquanto o conhecimento científico sempre teve uma forte presença na educação formal, todos os outros conhecimentos endógenos estiveram ausentes da escola, mas muito presentes na sociedade e nas comunidades. Daqui decorrem duas consequências. Por um lado, a escola deve poder abrir-se aos sábios do conhecimento endógeno para que os estudantes possam ouvi-los presencialmente e discutir com eles. Por outro lado, a educação formal deve ocorrer em parte na sala de aula e em parte nas comunidades, tanto para os estudantes como para os professores. Estas duas condições devem realizar-se de modo adequado a todos os níveis da educação, desde a educação inicial até à universidade.
As epistemologias do Sul e a metodologia
Não há nenhuma razão para restringir o conceito de ciência ao conceito ocidental de ciência. Tanto a civilização chinesa como a indiana reivindicaram nos últimos duzentos anos que dispunham de uma ciência própria que rivalizava com a ciência ocidental em termos de rigor científico e de resultados tecnológicos. No caso da Índia em especial tem-se insistido muito na ideia de uma ciência indiana que combina elementos da ciência ocidental com uma criatividade própria que lhe permite adaptar a investigação científica às necessidades específicas da sociedade indiana.
Os processos de construção de ecologias de saberes tanto podem acolher novos conceitos de ciência como diálogos transformadores entre a ciência eurocêntrica e conhecimentos endógenos. O importante é que, designando-se ou não como científico, esse novo conhecimento supere a linha abissal, ou seja, parta da ideia de que a humanidade tem de ser reconhecida como uma totalidade que não reconhece a ideia de sub-humanidade, uma ideia que, além disso, considera a humanidade como parte específica da totalidade da vida na qual se inclui também o que designamos como natureza. Por outras palavras, as epistemologias do Sul promovem acima de tudo um conhecimento ou uma ciência pós-abissal.
A construção dessa ciência ou dessa ecologia de saberes não pode ser feita através das mesmas metodologias que fundaram a ciência abissal eurocêntrica. Estas metodologias são tão extractivistas como o próprio capitalismo e colonialismo que elas legitimaram. Assentam numa separação total entre sujeito e objecto; concebem a neutralidade ética como condição necessária da objectividade; condenam o envolvimento pessoal do investigador nos temas que investiga para além do que é estritamente exigido pela investigação; consideram as metodologias quantitativas mais rigorosas que as qualitativas.
As metodologias propostas pelas epistemologias do Sul são metodologias colaborativas. As metodologias colaborativas assentam na relação sujeito-sujeito e o seu objectivo central é construir conhecimento que amplie e fortaleça as subjectividades de todos os intervenientes. Nas epistemologias do Sul a objectividade não significa neutralidade social e política. Não há um ponto zero donde o cientista observe tudo e não tome partido pelo que observa. A objectividade proposta pelas epistemologias do Sul visa criar sujeitos mais capazes e mais conscientes da condição de objectos a que uma sociedade injusta e discriminatória os condenou. Por isso, a construção da objectividade vai de par com a construção da subjectividade tanto do investigador ou investigadora como da realidade humana ou não humana investigada.
A objectividade reside no uso de metodologias que elucidem a complexidade, a diversidade e a dinâmica internas da realidade investigada. A investigação colaborativa é uma conjugação de esforços entre investigador e investigado no sentido de evitar visões unilaterais, simplistas, superficiais, ou dogmáticas da realidade. No meu livro O Fim do Imperio Cognitivo dedico três capítulos às questões metodológicas, as mais frequentemente levantadas pelos jovens investigadores que pretendem adoptar a perspectiva das epistemologias do Sul.
O conhecimento pós-abissal é sempre co-conhecimento, um conhecer-com em vez de um conhecer-sobre. Possui uma autonomia relativa. Exige constante auto-reflexividade para cumprir o duplo critério de confiança: os procedimentos que garantem a autonomia do conhecimento que produz e o contributo que pode dar para o fortalecimento de uma dada luta social contra a dominação. Por outras palavras, confiança nas metodologias usadas para esclarecer a complexidade da realidade e confiança na utilidade da sua investigação para melhorar as condições de vida das grandes maiorias empobrecidas por um sistema económico global predatório.
As orientações metodológicas não são receitas mecânicas, pelo simples motivo de que os contextos de produção de conhecimento são muitíssimo diversificados. O conhecer-com pode ter lugar em arquivos, em bibliotecas ou em tempos e espaços habitados por grupos sociais subalternos; pode afirmar estar presente e partilhar uma certa acção ou experiência em curso, ou estudá-la anos ou mesmo séculos depois de ter acontecido; pode consistir em abrir o passado para entender o presente; pode implicar diálogos que, por sua vez, podem ser de viva voz ou virtuais, reais ou imaginários, com seres humanos ou não humanos; pode promover competências documentais ou conversacionais; pode suscitar uma mudança de hábitos, de língua e de linguagem; pode ou não necessitar de um forte investimento emocional ou físico; valoriza tanto o conhecimento escrito como o conhecimento oral; pode exigir um treino especial de cada um dos cinco sentidos.
A ciência moderna eurocêntrica nunca tratou os sentidos de forma igual; sempre privilegiou a visão e a audição, treinando-as para o exercício do extractivismo cognitivo e tornando-as, respectivamente, visão abissal e audição abissal. Porque o extractivismo é sempre orientado por aquilo que visa extrair, o olhar abissal foi treinado para ver apenas aquilo que quer ver, da mesma forma que o ouvido abissal foi treinado para ouvir apenas aquilo que quer ouvir, isto é, que considera relevante para os seus interesses. O que não se quer ou não se pode ver ou ouvir não se considera relevante. A experiência dos sentidos abissais é, assim, parcial e superficial, parcialidade e superficialidade essas que foram fundamentais para produzir (e para tornar invisível) a linha abissal presente na origem da ciência moderna.
As epistemologias do Sul levam a sério a ideia de que conhecimento tem uma dimensão corpórea e que por isso os diferentes sentidos devem estar disponíveis para a investigação. Por exemplo, ver e ouvir numa lógica pós-abissal é ver e ouvir profundamente com a abertura de quem entra num mundo que não controla e o pode surpreender. Investigação sem criar surpresa repete o que existe mecanicamente.
A diversidade de condições, contextos e objectivos específicos é virtualmente infinita. Nada disto significa anarquia metodológica. O cientista pós-abissal recorre às metodologias do mesmo modo que o artesão recorre às técnicas que aprendeu e aos instrumentos que usa. Ou seja, criativamente e não mecanicamente. O bom conhecimento das técnicas e o respeito pelos instrumentos são essenciais para não repetir o que já foi feito, para produzir peças novas, e de algum modo únicas, em que se reflecte a personalidade e o investimento emocional do artesão ou artesã.
Para uma nova imaginação do mundo
Os princípios e as metodologias propostos pelas epistemologias do Sul criam as condições para uma nova imaginação do mundo. Refiro, a título de exemplo, dois temas: fracasso versus êxito e vida e experiência vividas versus perícia técnica.
Fracasso e êxito
O conhecimento dominante num dado contexto histórico determina o que uma sociedade concebe como êxito e como fracasso. O colonialismo europeu e as epistemologias do Norte que o legitimaram impuseram aos povos colonizados a ideia de um fracasso estrutural. Este fracasso imposto por potências estrangeiras e conhecimentos estranhos foi tão duradouro que sobreviveu às independências políticas sob a nova designação de subdesenvolvimento. Este fracasso durou até hoje. O momento histórico que vivemos pode caracterizar-se pelo início de uma rebeldia consistente e global contra esse fracasso histórico.
Os desafios que enfrentamos podem formular-se assim. O fracasso imposto, apesar de estrutural e sem saída, apresentou-se aos povos colonizados como transitório e anunciador de um possível êxito futuro, desde que os povos aceitassem as condições estruturais que impuseram o fracasso e que foram evoluindo ao longo dos séculos sob diferentes designações – desde a evangelização cristã, aos valores da civilização ocidental, à ideia de progresso histórico linear, e finalmente à ideia de desenvolvimento e de ajuda ao desenvolvimento. Por outras palavras, o fracasso imposto dominou com base na ideia de que não era imposto, que os povos eram os verdadeiros responsáveis por esse fracasso e que o caminho para sair do fracasso e aspirar ao êxito era seguir as regras definidas por quem tinha imposto o fracasso.
A armadilha deste dispositivo ideológico consistiu em desarmar os povos colonizados e mais tarde os povos ditos subdesenvolvidos. Durante muito tempo foram ocultadas duas ideias. Por um lado, a ideia de que tudo o que estes países fizessem para obter êxito nessas condições significaria reproduzir o fracasso. Por outro lado, a ideia de que o fracasso deles era a condição do êxito das potências que lhes tinham imposto o fracasso. Assim, por exemplo, aceitando o pressuposto de que os países eram subdesenvolvidos, tornou-se credível a promessa de que se aceitassem a chamada ajuda ao desenvolvimento seriam países desenvolvidos num futuro mais ou menos próximo. Esta promessa, uma autêntica cilada, tornou-se tão credível que foi sendo repetida ao longo de séculos, apesar de a realidade dos factos a desmentirem sistematicamente. Tornou-se impossível pensar que só havia países desenvolvidos por que havia países subdesenvolvidos. E vice-versa.
As epistemologias do Sul são um contributo para desarmar esta armadilha, criando as condições epistemológicas para mostrar o carácter imposto e ilegítimo do fracasso histórico e para, a partir daí, construir concepções alternativas de êxito. Trata-se de construir os fundamentos epistémicos para formular outros projectos de país e outras formas de solidariedade internacional que não partam da imposição unilateral do fracasso por parte das potências dominantes no sistema mundial e na economia-mundo.
A denúncia do fracasso imposto assenta em dois conceitos fundamentais: a linha abissal e a sociologia das ausências. As epistemologias que dominaram nos últimos séculos estabeleceram uma linha radical entre dois tipos de seres humanos: os seres plenamente humanos e os seres sub-humanos. Os primeiros constituíam a sociabilidade metropolitana e os segundos a sociabilidade colonial. Uma linha tão radical que os princípios e valores que se aplicavam exclusivamente ao conjunto dos seres plenamente humanos (sociabilidade metropolitana) foram considerados universais e consagrados em declarações universais como a dos direitos humanos de 1948, aprovada no mesmo ano em que se intensificava a expulsão dos palestinianos das suas terras com o objectivo de criar o Estado de Israel. Assim supostamente se reparava um crime europeu, cometendo outro contra os palestinianos. Esta linha abissal fez com que na época moderna não seja possível a humanidade sem a sub-humanidade. Esta linha abissal não foi um exclusivo do colonialismo europeu, mas foi com ele que ela assumiu o seu máximo de destruição.
A sociologia das ausências é um conjunto de procedimentos por via dos quais as epistemologias do Sul denunciam a destruição de experiência histórica e do conhecimento endógeno (epistemicídio) que a linha abissal legitimou.
A denúncia da sociologia das ausências está bem expressa na citação de Kwame Nkrumah que serve de epígrafe ao prólogo do livro de Ousmane Oumar Kane, Au-delà de Tombouctou: erudition islamique et histoire intellectuelle en Afrique Occidentale (CODESRIA, 2017). Esta citação mostra que a sociologia das ausências foi produzida por várias invasões, ainda que a mais grave fosse a europeia. Escreveu Nkrumah: “Si l’université de Sankoré n’avait pas été détruite, si le professeur Ahmad Baba, auteur de 40 ouvrages d’histoire, n’avait pas vu son oeuvre et son université détruites, si l’université de Sankoré, telle qu’elle était en 1591, avait survecú aux ravages des invasions étrangères, l´histoire académique et culturelle de l’ Afrique aurait été différente de ce qu’elle est aujourd’hui”.
As epistemologias do Sul não se limitam a criticar, pretendem promover conhecimento propositivo, transformador, em suma, um pensamento alternativo de alternativas. Os procedimentos mais importantes são a sociologia das emergências e a ecologia de saberes, o que implica muitas vezes a tradução intercultural. A sociologia das emergências é um procedimento de descoberta, por vezes de escavação, dos conhecimentos e das experiências e práticas sociais que existiam antes dos invasores ou que foram inventadas depois como estratégias de resistência aos invasores. O que emerge é emergente, não porque seja novo, mas porque esteve suprimido e reprimido durante muito tempo, por vezes séculos. A sua emergência reside na sua revalorização ou transvalorização.
A sociologia das emergências pode assumir várias formas. As que têm emergido do meu trabalho são as seguintes: ruínas-sementes, apropriações contra-hegemónicas e zonas libertadas.
As ruínas-sementes são os conhecimentos e as experiências que sobreviveram nas piores condições de repressão e de marginalização, mesmo depois das independências políticas. Não se trata de nostalgicamente voltar a eles com uma visão romântica do passado. Trata-se de ver neles sementes de futuro, de olhar para trás para poder caminhar adiante com mais segurança. Como exemplos posso ver ruínas-sementes nas concepções da relação entre seres humanos e a natureza. Talvez esteja aí o segredo para combater a pilhagem dos recursos naturais, a eliminação da água potável e a prevenção do colapso ecológico. Também podemos identificar ruínas-sementes no modo como as formas de governo tradicionais das comunidades podem reforçar os processos democráticos de origem eurocêntrica e de base urbana.
As apropriações contra-hegemónicas referem-se a todos os conhecimentos e experiências não endógenas que podem ser examinadas, e selectivamente adoptadas para enriquecer as lutas pela soberania pelo bem-estar do povo em geral. Lembro o conselho de Amílcar Cabral quando insistia que o conhecimento que os colonizadores trouxeram para África não deveria ser rejeitado em bloco. Devia aproveitar-se o que interessava aos novos projectos de país independente e soberano e rejeitar tudo o que não interessava e até boicotava esse projecto.
As zonas libertadas são as experiências inovadoras de convivência social e de inovação técnica que encontramos espalhadas pelos territórios e que nunca foram devidamente valorizadas por serem consideradas locais e, portanto, irrelevantes à luz dos critérios ocidentais ditos universais. Tais experiências devem ser estudadas e reconhecidas como embriões de projectos mais amplos de sociedade, sempre com respeito pela enorme diversidade interna dos territórios.
A diversidade de conhecimentos e experiências que resulta da sociologia das emergências exige um procedimento que evite o caos cognitivo e o relativismo. Esse procedimento é a ecologia de saberes.
A ecologia de saberes põe em diálogo diferentes saberes. Como todos os sistemas de conhecimento são internamente diversos, a ecologia de saberes escolhe em cada um deles a versão que é mais aberta ao diálogo, menos dogmática. A ecologia de saberes inicia-se com um trabalho sobre a consciência dos limites de cada conhecimento e sobre o contributo de cada um deles para uma mais ampla compreensão do mundo e, consequentemente, para uma transformação do mundo e para um projecto de país mais inclusivo, consistente, prudente e eficaz. A consciência dos limites é um exercício sobre a positividade e a negatividade de cada sistema de conhecimento, por exemplo, do conhecimento científico e de um ou vários conhecimentos endógenos.
No trabalho de construção de ecologias de saberes há um momento crítico e um momento construtivo. Toda a adesão acrítica a um sistema único de conhecimentos é contrária às epistemologias do Sul porque tal adesão acrítica acaba por ser excludente e dividir os povos, as classes e os grupos sociais que, no fundo, partilham os mesmos interesses na construção de uma vida melhor, mais digna e mais justa. A ecologia de saberes não é um mero diálogo entre saberes. É antes um procedimento de transformação crítica dos diferentes saberes com o objectivo de fortalecer as lutas sociais emancipatórias. É uma arma contra o sectarismo e o dogmatismo. Toda a ecologia de saberes deve ser informada pela razoabilidade pragmática de que falei acima, o que implica uma discussão sobre fins, aspirações, projectos de comunidade, de sociedade, de país e de mundo.
A fusão entre o trabalho epistemológico e o trabalho político deve ocorrer segundo a lógica do que designo por artesania das práticas sociais emancipatórias. A evocação é a do trabalho dos artesãos que inovam quando parecem repetir e repetem quando parecem inovar. É um trabalho que se pode considerar revolucionário, mas que procede de forma a minimizar o risco de com a revolução crescer em paralelo, e por reacção, a contra-revolução.
Vida e experiência vividas versus perícia técnica
Um dos problemas da ciência e da erudição eurocêntricas em contextos não europeus é a distância entre o que se aprende na escola e na universidade e a vida vivida fora da escola, nas comunidades, na família. Esta distância é talvez intrínseca a todos os processos formais de aprendizagem. Entre muitas outras razões, a insistência na memorização do Corão a partir da arabização da África Ocidental, sobretudo do século X em diante, visava aproximar a nova cultura e religião islâmicas da vida quotidiana. A distância entre o conhecimento aprendido e o conhecimento vivido é muitas vezes intensificada pela diferença linguística. O conhecimento de diferentes línguas, o plurilinguismo não tem nada de negativo, muito pelo contrário. As populações que, ao longo dos séculos, foram sujeitas a várias invasões mesmo antes da invasão europeia são plurilinguísticas. A negatividade decorreu sempre da hierarquia social e política entre as línguas. Isso fez com que o plurilinguismo, em vez de ser valorizado como algo de muito positivo, em que os africanos, por exemplo, são muito mais dotados que os europeus, fosse concebido como negatividade.
Um tema conexo é a relação entre a experiência social acumulada ao longo de séculos e a perícia técnica assente na ciência eurocêntrica. Essa experiência multissecular desenvolveu técnicas sobretudo no domínio do manejo da terra e da água. A dominação da ciência e da tecnologia fez com que se desprezasse toda essa sabedoria acumulada, o que, por vezes, teve consequências dramáticas. Um dos casos hoje bem documentados foi o da substituição forçada do sistema tradicional de irrigação dos campos de arroz na ilha de Bali na Indonésia por um sistema técnico moderno. Essa substituição teve resultados tão negativos com a diminuição tão drástica da produção que o sistema tradicional acabou por ser reposto.
Conclusão
O mundo ocidentalizado caminha para transformar as relações sociais e interpessoais em relações virtuais, uma tendência que se intensificou exponencialmente com o advento da Inteligência Artificial. Os seres humanos vivem cada vez mais num mundo anónimo ainda que falsamente personalizado. Uma nova solidão emerge sobretudo nas novas gerações que confundem autonomia com auto-escravização. Nestas condições os seres humanos são reduzidos à sua produtividade.
As epistemologias do Sul privilegiam a presença e a co-presença porque só elas criam relações de confiança sempre que a acção colectiva envolve riscos. A presença e co-presença são os antídotos da política do ódio, do sectarismo e da conversão do outro em inimigo, um potencial alvo a abater. Sem a presença e a co-presença, a convivência pacífica e a partilha de interesses e de valores tornam-se praticamente impossíveis.
Tenho argumentado que o capitalismo e o imperialismo globais estão a produzir um enorme desequilíbrio entre o medo e a esperança. A esmagadora maioria da população vive com muito medo e pouca esperança, enquanto as elites super-ricas vivem com muita esperança e muito pouco medo, porque estão convencidas de terem derrotado os seus inimigos históricos – as massas oprimidas, exploradas e empobrecidas. As epistemologias do Sul são um contributo para reequilibrar o medo e a esperança. Para dar um pouco de esperança às grandes maiorias empobrecidas é necessário criar de novo algum medo às minorias enriquecidas.
(*) Boaventura de Sousa Santos (n. 1940) é um jurista, socio-antropólogo, politólogo e filósofo das ciências português, sobejamente conhecido em todo o mundo, em especial no mundo da língua portuguesa e por todo o continente americano. Nasceu em Coimbra, no seio de uma família dos meios populares. Uma bolsa da Fundação Gulbenkian permitiu-lhe conseguir o ingresso na histórica e elitista Faculdade de Direito da sua cidade natal. Aí se licenciou com grande distinção, em 1963. Fez uma pós-graduação em Berlim Oeste, após o que ingressou nos quadros docentes da sua faculdade, com a categoria de assistente. Doutorou-se depois na Universidade de Yale (E.U.A.), com uma tese sobre O Direito dos Oprimidos, baseada em trabalho de campo feito numa favela do Rio de Janeiro. Foi em Yale que se radicalizou e fez a sua formação marxista, no ambiente marcado pela luta pelos direitos cívicos e de contestação à Guerra do Vietname. Por essa altura, os seus universos intelectuais deixaram de se poder compatibilizar com o tradicionalismo da sua Alma Mater, onde a ideia de pluralismo jurídico não deixaria, certamente, de causar grande escândalo. Regressado a Coimbra em 1973, foi um dos fundadores da sua Faculdade de Economia, aí tendo ensinado Sociologia. Foi fundador da Revista Crítica de Ciências Sociais, do Centro de Estudos Sociais e do Observatório Permanente da Justiça. Paralelamente, prosseguiu uma outra carreira académica, como Distinguished Legal Scholar na Universidade de Madison, Wisconsin (E.U.A.). Criou um magistério muito peculiar que revelou um grande poder de atração sobre sucessivas gerações de estudantes, sem abdicar de tomar posições públicas, por vezes, de grande desassombro. Empenhou-se no processo do Forum Social Mundial. Intelectualmente, nunca deixou de se engajar pela libertação de todos os oprimidos, embora, para o nosso gosto, o tenha feito com recurso a tangências discutíveis com o pós-modernismo, o relativismo epistemológico, a decolonialidade e o ecletismo em geral. É, seguramente, o mais prestigiado intelectual público português da sua geração. Com as suas ideias e o dinamismo das suas iniciativas e projetos, colocou o país no mapa internacional das Ciências Sociais. Para além de ser, a nível internacional, um dos mais destacados pensadores contemporâneos do pós-imperialismo. É impossível fazer um apanhado bibliográfico seu que não seja uma escolha discutível. Destacaríamos, ainda assim, títulos como Um discurso sobre as ciências (1988); Estado e Sociedade em Portugal (1974-1988) (1990); Reinventar a democracia (1998); A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência (2000); A gramática do tempo. Para uma nova cultura política (2006); Para uma revolução democrática da justiça (2007); A Universidade no Século XXI. Para uma Universidade Nova (2009); Construindo as Epistemologias do Sul. Antologia. Vols. I e II (com Maria Paula Meneses) (2010); Portugal: Ensaio contra a autoflagelação (2011); Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade (2013); Se Deus fosse um activista dos Direitos Humanos (2013); A difícil democracia. Reinventar as esquerdas (2016); O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do sul (2018); Esquerdas do mundo, uni-vos! (2019); O futuro começa agora. Da pandemia à utopia (2020); Estado e Sociedade em Portugal (1974-2024) – nos cinquenta anos do 25 de Abril, Edições 70, Coimbra, 2024.
______________ NOTA:
(1) Conferência inaugural do novo programa de doutoramento em epistemologias do Sul na Universidade Cheikh Anta Diop de Dakar, Senegal, no dia 23 de Julho de 2025. A conferência foi antecedida do seguinte exórdio:
Estimadas autoridades universitárias
Caros e caras colegas
Senhoras e senhores estudantes
Ao ler o programa que vamos iniciar fico impressionado, ainda que não surpreendido, com toda a investigação que está a ser feita nesta universidade e com a diversidade dos temas que vamos tratar. Vou estar aqui convosco esta semana para aprender convosco. Digo muito sinceramente. Não é retórica. Para mim a investigação e a aprendizagem são processos colectivos e interactivos que exigem uma escuta profunda. A minha conferência pretende apenas manifestar o meu respeito e admiração por tudo o que está a ser feito nesta universidade para aprofundar as epistemologias do Sul e avançar no processo histórico de transição paradigmática que estamos a iniciar.
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