Geonomia, nacionalismo e comércio

 

 

Michael Roberts (*)

 

 

Geonomia é um novo termo para teorias e políticas económicas internacionais. Segundo Gillian Tett, do Financial Times, no passado, “presumia-se, em geral, que o interesse económico racional era o que prevalecia, e não a política desonesta. A política parecia ser derivada da economia - e não o contrário. Não é mais assim. A guerra comercial desencadeada pelo presidente dos E.U.A., Donald Trump, chocou muitos investidores, por parecer tão irracional para os padrões da economia neoliberal. Mas, «racional» ou não, ela reflete uma mudança para um mundo onde a economia ficou em segundo plano em relação aos jogos políticos, não apenas nos Estados Unidos da América, mas em muitos outros locais também”.

 

Lenine disse um dia que “a política é a expressão mais concentrada da economia”. Defendia que as políticas dos estados e a guerra (política por outros meios) eram motivadas, em última análise, por interesses económicos, ou seja, pelos interesses de classe do capital e pelas rivalidades entre "muitos capitais". Mas, aparentemente, a visão de Lenine foi agora virada de pernas para o ar por Donald Trump. Agora, a economia será governada por jogos políticos; os interesses de classe do capital foram substituídos pelos interesses políticos das cliques, separados daqueles. Portanto, aparentemente, precisamos de teorias económicas que possam modelar isto, ou seja, a geonomia.

 

Ora, aparentemente, a geonomia surgiu para tornar esta política hegemónica de poder respeitável e "realista". A democracia liberal e o "internacionalismo", juntamente com a economia liberal, ou seja, o comércio livre e os mercados livres, já não são relevantes para os economistas, antes treinados para promover um mundo económico de equilíbrio, igualdade, concorrência e "vantagens comparativas" para todos. Isso foi tudo atirado pela janela fora: agora a economia é sobre lutas de poder conduzidas pelos Estados em prol dos seus próprios interesses nacionais.

 

Um artigo recente defendeu que os economistas devem agora considerar que a política de poder prevalecerá sobre a vantagem económica (1); Em particular, uma potência hegemónica como os E.U.A. tentará melhorar a sua vantagem económica não através de um maior crescimento da produtividade ou do investimento interno, mas através da intimidação e da força sobre outros países: “Os países hegemónicos, no entanto, procuram frequentemente influenciar entidades estrangeiras sobre as quais não têm controlo direto. Fazem-no ameaçando com consequências negativas se o alvo não realizar as ações desejadas, reduzindo assim as opções externas da parte constrangida; ou prometendo benefícios positivos se o alvo realizar as ações desejadas.”

 

De acordo com estes autores do Banco Mundial, esta “economia de poder” pode, na verdade, ser benéfica tanto para o poder hegemónico como para o alvo das suas ameaças: “a hegemonia pode ser modelada de uma forma favorável à macroeconomia”. Realmente? Diga isso à China, que enfrenta o estrangulamento da sua economia por sanções, proibições, tarifas enormes sobre as suas exportações e o bloqueio dos seus investimentos e empresas a nível global - tudo iniciado pela atual potência hegemónica, os E.U.A., com medo de perder o seu estatuto e determinados a enfraquecer e paralisar qualquer oposição através da política e por quaisquer outros meios (incluindo a guerra). Diga isso aos países pobres do mundo que enfrentam tarifas significativas sobre as suas exportações para os E.U.A..

 

É claro que a cooperação internacional entre iguais para aumentar o comércio e alargar os mercados sempre foi uma ilusão. Nunca houve comércio entre iguais; nunca houve concorrência “justa” entre capitais de dimensão equiparável dentro das economias ou entre economias nacionais, na arena internacional. Os grandes e fortes sempre devoraram os fracos e os pequenos, sobretudo nas crises económicas. E o núcleo imperialista no Norte Global extraiu triliões de valor e recursos das economias periféricas ao longo de dois séculos (2).

 

No entanto, é certo que se verifica uma mudança de visão entre parte da elite sobre a política económica, principalmente desde a Crise Financeira Global de 2008 e a consequente Longa Depressão no crescimento económico, no investimento e na produtividade. No período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, foram formadas agências financeiras e de comércio internacional sob o controlo principalmente dos E.U.A.. A rentabilidade do capital nas principais economias era elevada e isso permitiu que o comércio internacional se expandisse a par do renascimento do poder industrial europeu e japonês. Este foi também o período em que dominou a economia keynesiana, i.e., o estado agia no sentido de “gerir” o ciclo económico e apoiar a indústria com incentivos e até alguma estratégia industrial.

 

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Esta “era dourada” chegou ao fim na década de 1970, quando a rentabilidade do capital caiu drasticamente (de acordo com a lei de Marx) e as principais economias sofreram a primeira recessão simultânea em 1974-75, seguida em 1980-2 por uma profunda recessão industrial. A economia keynesiana foi exposta como um fracasso e regressou-se à ideia neoclássica de mercado livre, livre fluxo de comércio e de capitais, desregulação da interferência e da propriedade estatal sobre a indústria e as finanças, bem como esmagamento das organizações laborais. A rentabilidade foi (modestamente) restaurada nas principais economias e a globalização tornou-se o mantra; na verdade, a expansão da exploração imperialista da periferia sob o disfarce do comércio internacional e dos fluxos de capitais.

 

Mas, mais uma vez, a lei da rentabilidade de Marx exerceu a sua atração gravitacional e, a partir da viragem do milénio, as principais economias conheceram uma quebra na lucratividade dos seus sectores produtivos. Só uma expansão impulsionada pelo crédito, nas finanças, no mercado imobiliário e noutros sectores improdutivos, conseguiu disfarçar esta crise subjacente de rentabilidade, durante algum tempo (a linha azul abaixo mostra a rentabilidade dos sectores produtivos dos E.U.A. e a linha vermelha, a rentabilidade global).

 

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Fonte: tabelas BEA NIPA, cálculo do autor

 

Mas isto acabou por culminar no colapso financeiro mundial, na crise da dívida do euro e na Longa Depressão; ainda mais reforçada pelo impacto da crise pandémica de 2020. O capital europeu ficou em frangalhos. E a hegemonia dos E.U.A. enfrentava agora um novo rival económico, a China, após a sua estupenda ascensão na manufatura, no comércio e, mais recentemente, na tecnologia, não afetada pelas crises económicas do Ocidente.

 

Assim, na década de 2020, como disse Gillian Tett: “o pêndulo intelectual está novamente a oscilar, em direção a um protecionismo mais nacionalista (com uma dose de keynesianismo militar), o que se enquadra num padrão histórico. Nos Estados Unidos da América, o trumpismo é uma forma extrema e instável de nacionalismo, agora aparentemente a ser estudada seriamente pela nova escola de ‘geonomia’. A intervenção/apoio governamental ao estilo keynesiano para proteger e revitalizar os sectores produtivos enfraquecidos dos Estados Unidos da América foi lançada por Biden com uma ‘estratégia industrial’ de incentivos e financiamento governamentais para os gigantes tecnológicos dos E.U.A., juntamente com tarifas e sanções a rivais, ou seja, a China. Trump agora redobrou a aposta nesta mesma ‘estratégia’.”

 

O protecionismo no comércio internacional está a ser combinado com a intervenção governamental doméstica para dizimar os serviços governamentais, acabar com as despesas de mitigação das alterações climáticas, desregular as finanças e o ambiente, bem como reforçar as forças militares e de segurança nacional (particularmente para aumentar as deportações e a intimidação).

 

Esta política hegemónica de poder nu e cru está agora a ser tornada lógica e até vantajosa para todos os norte-americanos pelos economistas de direita. Por exemplo, num novo livro chamado Industrial Policy for the United States (Política Industrial para os Estados Unidos da América), da autoria de Marc Fasteau e Ian Fletcher, dois economistas adorados pela claque do MAGA (Make America Great Again). Eles fazem parte do chamado Conselho para uma América Próspera, que é financiado por um grupo de pequenas empresas envolvidas sobretudo na produção e comércio nacionais. “Somos uma coligação incomparável de fabricantes, trabalhadores, agricultores e criadores de gado, trabalhando em conjunto para reconstruir a América para nós próprios, os nossos filhos e netos. Valorizamos empregos de qualidade, segurança nacional e autossuficiência doméstica em detrimento do consumo barato”. É um organismo baseado na unidade de classe entre o capital e o trabalho, com vista a "tornar a América grande outra vez".

 

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Fasteau e Fletcher (F&F) defendem que os Estados Unidos da América perderam a sua posição hegemónica na indústria e tecnologia globais devido à economia liberal neoclássica de mercado livre: “As ideias de laissez-faire falharam e uma política industrial robusta é a melhor forma de os Estados Unidos da América se manterem prósperos e seguros. Trump e Biden promulgaram alguns elementos, mas os Estados Unidos da América precisam agora de algo sistemático e abrangente, incluindo tarifas, uma taxa de câmbio competitiva e apoio federal para a comercialização - não apenas para a invenção - de novas tecnologias.”

 

A “política industrial” da F&F tem três “pilares”: reconstruir as principais indústrias nacionais; proteger estas indústrias da concorrência estrangeira através de tarifas de importação e sanções às economias estrangeiras onde o governo coloca obstáculos no caminho das exportações dos E.U.A.; e ‘gerir’ a taxa de câmbio do dólar até ao ponto em que o défice comercial dos E.U.A. desapareça, ou seja, proceder à desvalorização do dólar.

 

F&F rejeitam a teoria comercial ricardiana das vantagens comparativas, uma teoria que ainda constitui a base para que a ciência económica dominante argumente que o comércio internacional "livre" beneficiará todos os países, ceteris paribus. Consideram que o "comércio livre" pode, na realidade, reduzir a produção e o rendimento de um país como os E.U.A., devido às importações baratas de países com baixos salários, que destroem os produtores nacionais e enfraquecem a capacidade dos produtores nacionais de ganharem quota de mercado de exportação a nível global. Em vez disso, defendem que as políticas protecionistas de tarifas de importação podem aumentar a produtividade e os rendimentos na economia nacional. “A política de comércio livre dos Estados Unidos da América, forjada numa era de domínio económico global há muito desaparecida, falhou tanto na teoria como na prática. Modelações económicas inovadoras mostraram como tarifas bem elaboradas, para citar apenas um exemplo de política industrial, nos poderiam proporcionar melhores empregos, maiores rendimentos e crescimento do PIB”. Sim, de acordo com estes autores, as tarifas proporcionarão maiores rendimentos para todos.

 

F&F expressam os interesses do capital norte-americano sediado no país, que já não consegue competir em muitos mercados mundiais. Como Engels argumentou, no século XIX, o comércio livre é apoiado pela potência económica hegemónica, desde que esta domine os mercados internacionais com os seus produtos; mas quando perder o domínio, adotará políticas protecionistas (3). Foi o que aconteceu, no final do século XIX, com a política do Reino Unido. Agora é a vez dos E.U.A..

 

Ricardo (e os economistas neoclássicos de hoje) estão errados ao afirmar que todos os países ganham com o comércio internacional, se se especializarem na exportação de produtos onde têm "vantagem comparativa". O comércio livre e a especialização baseada nas vantagens comparativas não produzem uma tendência para o benefício mútuo. Criam, isso sim, sempre mais desequilíbrio e conflito. Tal acontece porque a natureza dos processos de produção capitalistas cria uma tendência para a crescente centralização e concentração da produção, o que leva ao desenvolvimento desigual e às crises.

 

Por outro lado, os protecionistas estão errados ao afirmar que as tarifas de importação e outras medidas irão restaurar a quota de mercado anterior de um país. Mas F&F não confiam apenas nas tarifas para a sua estratégia industrial. Definem a política industrial como “apoio governamental deliberado às indústrias, que se divide em duas categorias. A primeira são políticas amplas que beneficiam todas as indústrias, como a gestão da taxa de câmbio e os incentivos fiscais à I&D. A segunda são políticas que visam indústrias ou tecnologias específicas, como tarifas, subsídios, compras governamentais, controlos de exportação e investigação tecnológica realizada ou financiada pelo governo”.

 

A estratégia industrial de F&F não vai funcionar. Nas economias em geral, o crescimento da produtividade e a redução dos custos dependem do aumento do investimento em sectores que aumentam a produtividade. Mas nas economias capitalistas isso depende da disponibilidade das empresas orientadas para o lucro para investir mais. Se a rentabilidade for baixa e/ou estiver a cair, elas não o farão. Esta é a experiência das últimas duas décadas, em particular. F&F querem regressar às políticas do tempo da guerra e à estratégia da Guerra Fria para desenvolver a indústria nacional, a ciência e as forças militares. Mas isso só funcionaria se houvesse uma mudança maciça para o investimento público direto, através de empresas públicas, com um plano industrial nacional. F&F não querem isso e Trump também não.

 

F&F dizem que a sua política económica não é nem de esquerda nem de direita. E, em certo sentido, isso é verdade. A estratégia industrial é proclamada pelos keynesianos de esquerda na Grã-Bretanha, por Elizabeth Warren e Bernie Sanders nos Estados Unidos da América e até por Mario Draghi na Europa. E a “estratégia industrial” foi adotada como política económica na maioria das economias da Ásia Oriental, na segunda metade do século XX (embora cada vez mais já não o seja).

 

Mas é claro que a estratégia industrial aparentemente "neutra" de F&F não é nada disso, no que diz respeito à China, porque, como eles próprios afirmam, a China é "a primeira ameaça militar e económica combinada que a América enfrentou em mais de 200 anos". São diretos: "Um número crescente de indústrias chinesas está em forte rivalidade com indústrias norte-americanas de alto valor, e os ganhos da China são as nossas perdas. Os E.U.A. não podem continuar a ser uma superpotência militar sem serem uma superpotência industrial." Isto resume a motivação para o distanciamento do laissez faire neoclássico e da economia de comércio livre, que dominou as torres de marfim académicas dos departamentos económicos e das agências económicas internacionais até agora. O domínio económico dos Estados Unidos da América (e da Europa) foi enfraquecido a tal ponto que existe um risco significativo de a China governar o mundo no espaço de uma geração. Então, vamos tirar as luvas.

 

Acabar com o conceito de livre concorrência, mercados e comércio – que, de facto, nunca existiram. Instaurar o realismo de vencer a batalha pelo poder político e económico por todos os meios necessários. Esta é a natureza da nova geonomia, que provavelmente estará em breve nos departamentos de economia das universidades do Norte Global, apesar da oposição de retaguarda dos professores neoclássicos e neoliberais atualmente ainda dominantes.

 

 

 

 

 

(*) Michael Roberts é oriundo de uma família suburbana da classe média cultivada londrina, com algum fundo boémio e inconformista. Tornou-se marxista na sua juventude, fascinado pelo materialismo histórico. Licenciou-se em economia. Em vez de seguir uma carreira académica, trabalhou na City de Londres como economista, durante mais de quarenta anos. Observou de perto as maquinações do capitalismo global a partir do interior da toca do dragão. Teve também uma tarimba muito especial para apreciar ironicamente a teoria económica convencional e os relatórios apologéticos. Ao mesmo tempo, foi sempre um ativista político no movimento operário, desde os seus tempos de estudante. A partir da altura em que se reformou, tem escrito vários livros, como The Great Recession - a Marxist view (2009); The Long Depression: Marxism and the Global Crisis of Capitalism (2016); Marx 200 – a review of Marx’s economics 200 years after his birth (2018); Engels 200 – His contribution to political economy (2020) e, conjuntamente com Guglielmo Carchedi, como editores, World in Crisis. Marxist Perspectives on Crash & Crisis: A Global Analysis of Marx’s Law of Profitability (2018) e, como co-autores, Capitalism in the 21st Century: Through the Prism of Value (2020). Tem apresentado comunicações nas conferências anuais da American Economics Association, nas conferências da revista Historical Materialism e nas da International Initiative for the Promotion of Political Economy (IIPPE) e da Association of Heterodox Economists (AHE). Publicou numerosos artigos em várias revistas económicas académicas, bem como em publicações de esquerda. O presente artigo foi originalmente publicado no popular e muito influente blogue do autor The Next Recession. A tradução é da responsabilidade de Ângelo Novo.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Cf. Aaditya Mattoo, Michele Ruta e Robert W. Staiger, “Geopolitics and the World Trading System, Policy Research Working Paper 11009, World Bank Group, East Asia and the Pacific Region, Office of the Chief Economist, December 2024.

 

(2) V. Michel Roberts, “Further thoughts on the economics of imperialism”.

 

(3) V. Michel Roberts, Engels 200 – his contribution to political economy, pp. 125-127.