A Aliança Operário-Camponesa na transição ao socialismo hoje

 

Prabhat Patnaik e Utsa Patnaik (*)

 

 

 

O papel da aliança operário-camponesa na transformação revolucionária da sociedade, originalmente enfatizado por Friedrich Engels em A Guerra dos Camponeses na Alemanha, foi teoricamente desenvolvido por V. I. Lenine no seu panfleto Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática. Lenine descreveu duas etapas dentro de uma revolução ininterrupta liderada pelo proletariado. Na primeira etapa, a revolução democrática, “o proletariado alia-se à massa do campesinato para esmagar pela força a resistência da autocracia e paralisar a instabilidade da burguesia”. Na segunda etapa, a revolução socialista, “o proletariado alia-se à massa dos elementos semiproletários para esmagar a resistência da burguesia pela força e paralisar a instabilidade do campesinato e da pequena burguesia” (1). De acordo com esta perceção, a aliança operário-camponesa na revolução democrática incorpora a massa do campesinato; na revolução socialista, incorpora apenas os elementos semiproletários do campesinato. As análises marxistas subsequentes tomaram esta formulação de Lenine como ponto de partida, centrando-se na questão de saber quais são os grupos camponeses específicos de que o proletariado se deve desfazer, em qualquer contexto particular, da ampla aliança inicial, na transição da revolução democrática para a socialista.

 

Em Duas Táticas.., de Lenine, escrito no contexto russo, não se discute qualquer país hegemonizado pelo imperialismo. Mesmo quando se tem em conta a hegemonização pelo imperialismo, como nas análises marxistas posteriores relacionadas com sociedades coloniais e semicoloniais, tais a Índia e a China, a posição geral tem sido a de que a revolução democrática contra o imperialismo e o feudalismo (este último sustentado pelo imperialismo) exige uma aliança entre várias classes, incluindo os trabalhadores e a massa do campesinato. A transição revolucionária para o socialismo, que pode ocorrer quando os trabalhadores lideram esta aliança de classes original, exige, no entanto, que essa aliança se desfaça de alguns segmentos do campesinato, de entre os seus aliados da primeira fase (quando os trabalhadores não lideram a aliança, esta transição precisa de esperar até que assumam um papel de liderança). Mesmo no contexto da reafirmação da hegemonia do imperialismo, por outras palavras, a perspetiva alargada da análise de Lenine continuou a prevalecer, com a discussão centrada sobre que elementos de classe específicos deveriam ser rejeitados na segunda fase, a de transição, e como identificá-los.

 

Esta trajetória de análise marxista em relação às sociedades do Terceiro Mundo não tem devidamente em conta o facto de que a revolução democrática contra o imperialismo não é um ato consumado, uma insurreição definitiva assim que bem-sucedida. Durante algum tempo, após a descolonização, pode ter parecido que se tratava de um ato consumado, que, embora o imperialismo continuasse a ser um poderoso elemento de fundo, podia ser combatido pela existência da União Soviética, pelo que, nos países do Terceiro Mundo, uma versão ligeiramente modificada da perspetiva de Lenine ainda pudesse ser utilizada. Esta previa a continuação da revolução democrática contra os resíduos feudais no interior das sociedades descolonizadas, sob a liderança do proletariado, com o apoio da maioria do campesinato, e uma subsequente transição para o socialismo com o apoio apenas de certos segmentos do campesinato.

 

Por outras palavras, pode ter parecido que, onde a aliança de classes anti-imperialista era liderada pelo proletariado, o caminho subsequente de desenvolvimento poderia seguir, em termos gerais, o que Lenine tinha visualizado — mas onde não era liderada pelo proletariado, mas pela burguesia nacional, a tarefa era substituir os regimes dirigistas liderados pela burguesia, que surgiram após a descolonização, por regimes liderados pelo proletariado, que levaram a revolução democrática até à sua conclusão. Isto poderia ser conseguido derrubando o inevitável compromisso da burguesia com o feudalismo nas sociedades pós-coloniais e livrando os camponeses do jugo feudal, avançando depois para o socialismo, ao mesmo tempo que se expulsavam da aliança alguns segmentos do campesinato que tinham sido aliados do proletariado anteriormente (2).

 

Se, no entanto, a etapa de libertação do imperialismo não termina de uma vez por todas com a descolonização (isto é, se o imperialismo não permanece apenas uma mera presença de fundo após a descolonização), então a questão de nos livrarmos de segmentos do campesinato da aliança de classes precisa de ser repensada. De facto, sendo o imperialismo uma componente essencial do capitalismo metropolitano, enquanto este se mantivesse intacto, o imperialismo está condenado a tentar reafirmar a sua hegemonia, ainda que num cenário diferente. Foi exatamente isso que aconteceu. Surgiu um imperialismo remodelado que subverteu os regimes dirigistas pós-coloniais em todo o lado e os substituiu por regimes neoliberais. Este imperialismo remodelado rompeu a aliança de classes que estava subjacente à luta do Terceiro Mundo contra o colonialismo, integrando a grande burguesia nacional no corpo do capital financeiro internacional, conquistando mesmo o apoio de um segmento significativo das classes médias urbanas, com a promessa de emprego em atividades deslocalizadas da metrópole. Retomou substancialmente o controlo sobre os recursos naturais do Terceiro Mundo, efetuando a sua "desnacionalização", e atacou a classe operária em todo o lado — nos países avançados, através da relocalização ameaçada e efetiva das atividades para o Terceiro Mundo, e no Terceiro Mundo, através do aumento da dimensão relativa da mão-de-obra de reserva dentro da força de trabalho, tanto pela aceleração do ritmo da mudança tecnológica, através da imposição da liberalização comercial, como pela remoção da proteção que a agricultura camponesa e a pequena produção tinham obtido do regime dirigista pós-colonial. Isto levou ao empobrecimento dos que trabalhavam nesses setores e obrigou-os a procurar trabalho noutros locais. Todo este processo de reafirmação da hegemonia por um imperialismo remodelado foi, obviamente, facilitado pelo colapso da União Soviética, que retirou um importante baluarte contra tal hegemonia.

 

O regime neoliberal que surgiu sob a égide deste imperialismo remodelado aumentou consideravelmente as desigualdades de rendimento e de riqueza na sociedade. Em consequência disso, reduziu-se a relação entre o consumo total e o rendimento total, dado que, ao contrário dos pobres, que consomem grande parte do seu rendimento, os ricos não o fazem; e esta redução da procura de consumo, por sua vez, deu origem a uma crise de sobreprodução. Perante tal crise, os regimes neoliberais tenderam a aliar-se a elementos neofascistas para criar um discurso diversionista, como é evidente em muitos países nos últimos anos (incluindo países do Terceiro Mundo), de forma a dividir a população e a neutralizar e reprimir a resistência que poderia surgir, num período de crise, contra a hegemonia do grande capital, agora integrado no capital financeiro globalizado.

 

A questão da aliança operário-camponesa hoje, portanto, deve ser vista neste novo contexto, de um imperialismo remodelado sob a égide do capital financeiro internacional. A luta hoje deve ser contra a hegemonia do grande capital nacional no Terceiro Mundo, que mantém relações com os elementos feudais e está integrado no capital financeiro internacional. Dada a relativa pequenez da classe operária nas sociedades do Terceiro Mundo, o campesinato constitui a força mais significativa contra a hegemonia desta falange de forças. Esta falange conta com o apoio, não só dos Estados metropolitanos, mas também de Estados do Terceiro Mundo, que em muitos casos são neofascistas. Como o campesinato tem sido uma vítima evidente deste novo regime pós-dirigista, devido à retirada do apoio e da proteção estatal de que gozava sob o dirigismo, tal como tinha sido vítima na era colonial, ao ter de pagar pela "drenagem do excedente", desempenha um papel inequivocamente oposicionista em relação a este regime (3).

 

O sofrimento do campesinato sob a ordem neoliberal emerge claramente dos dados indianos. Na Índia rural, a percentagem da população sem acesso a 2.200 calorias por pessoa por dia (que era o parâmetro de pobreza rural originalmente adotado pela antiga Comissão de Planeamento do país) era de 58 em 1993-1994, ou seja, aproximadamente na altura em que o regime neoliberal foi introduzido (em 1991). Esta percentagem aumentou para 68 em 2011-2012. Em 2017-2018, a situação tinha-se agravado de tal forma que o governo retirou da esfera pública os dados do inquérito recolhidos nesse ano e até alterou o método de recolha de dados (o que torna os anos subsequentes não comparáveis com os anteriores). De acordo com qualquer informação que tenha estado brevemente disponível, no domínio público, antes da retirada dos dados, a percentagem abaixo norma calórica acima referida foi de 80,5% em 2017-2018 (4).

 

Esta descoberta está em conformidade com uma outra: entre 1991 e 2011, ambos anos em que foram realizados censos populacionais (não houve mais censos após 2011), o número de "cultivadores" diminuiu em quinze milhões; tornaram-se trabalhadores agrícolas ou migraram para as cidades em busca de emprego. Como a criação de novos empregos foi insignificante, estes migrantes teriam simplesmente aumentado o número de pessoas que partilham um determinado número de empregos e, por conseguinte, reduzem o rendimento médio de toda a população trabalhadora.

 

A força do campesinato na luta contra o imperialismo

 

Os camponeses, vítimas do neoliberalismo, possuem uma força única que é particularmente útil na luta contra ele. Karl Marx tinha visto na Grã-Bretanha o padrão clássico do surgimento do capitalismo, onde o campesinato tinha sido separado do seu acesso à terra através do movimento de vedação (“enclosure”), que constituía parte integrante do processo de acumulação primitiva de capital. Com o virtual desaparecimento do campesinato e a substituição da agricultura camponesa pela agricultura capitalista, foi também destruída a antiga comunidade que tinha sido a espinha dorsal da vida rural. Indivíduos desenraizados e atomizados, que não se conheciam, afluíam às cidades em busca de trabalho, onde aqueles que conseguiam emprego nas fábricas capitalistas emergentes formariam uma nova comunidade apenas com o tempo, através de "combinações" ou sindicatos. A visão de Marx era a de que esta nova comunidade, para a qual a teoria revolucionária deveria ser trazida de fora, derrubaria o sistema que tinha destruído a antiga comunidade.

 

No "novo mundo", que compreende as regiões temperadas para as quais os europeus migraram, os imigrantes que deslocaram os habitantes locais e se apropriaram das suas terras para praticar a agricultura, não constituíam uma "comunidade camponesa" em qualquer sentido significativo. Mas nas "colónias de conquista", principalmente nas regiões tropicais e semitropicais densamente povoadas do mundo — ao contrário das "colónias de povoamento" nas regiões temperadas — o antigo "campesinato" continuou como antes, com os governantes imperiais a registarem a sua presença através da imposição de uma drástica compressão dos seus rendimentos. Houve uma compressão direta do rendimento do campesinato, através do sistema fiscal colonial, levando a uma "drenagem de excedentes", isto é, a uma apropriação financiada pela receita fiscal e, portanto, gratuita, de uma larga gama de produtos primários necessários na metrópole, mas não produzidos aí (ou não produzidos durante todo o ano, ou em quantidades suficientes). Houve também uma compressão indireta do rendimento imposto à população agrícola, através da destruição do artesanato local pela importação obrigatória de manufaturas da metrópole, com os artesãos deslocados a concentrarem-se na agricultura. A área de terra não poderia expandir-se proporcionalmente, na ausência de investimento público adequado; assim, este processo elevou as rendas e reduziu os salários. Embora houvesse imenso sofrimento no campo, sendo as fomes periódicas que assolavam a Índia colonial o exemplo mais evidente, o campesinato e, por conseguinte, a antiga comunidade, mantiveram-se mais ou menos intactos.

 

Assim, nas colónias de conquista, isto é, nos países coloniais e semicoloniais, especialmente na Ásia, o campesinato enquanto comunidade manteve-se intacto, não só durante o período colonial, mas também depois, durante a era dirigista e mesmo na era neoliberal. Os proprietários de terras, sem dúvida, estavam frequentemente fora desta comunidade; como os governantes coloniais tinham transformado os títulos de propriedade de terras numa mercadoria vendável, os "forasteiros" com meios compravam frequentemente estes títulos de propriedade de terras. Mas estes proprietários, embora se sobrepusessem à sociedade rural, onde nem sequer residiam a maior parte do tempo, não negavam a continuidade da antiga comunidade constituída pelo campesinato. É claro que, num país como a Índia, onde o sistema de castas dividia a população rural, não existia uma, mas várias comunidades, cada uma composta por um grupo (ou grupos) de castas; contudo, dentro de cada uma destas comunidades, persistia um sentido de solidariedade, apesar do desenvolvimento do capitalismo na economia. Este sentido de comunidade preexistente torna-se uma mais-valia para o campesinato, em qualquer luta contra a ordem neoliberal e neofascista.

 

Isto tornou-se evidente recentemente na Índia, quando os agricultores travaram uma luta de um ano contra três leis agrícolas aprovadas como decretos pelo governo. Estas leis teriam removido a proteção residual que lhes restava, por exemplo, sob a forma de uma garantia de "preços mínimos de apoio" que ainda são oferecidos pelo Estado para a produção de cereais. Este apoio foi removido no caso da produção de culturas comerciais, dando origem a um grande número de suicídios de camponeses, induzidos pelas dívidas, causadas estas pela sua dependência em relação a vendas feitas a preços em queda. Estas leis agrícolas visavam também facilitar a agricultura sob contrato, sendo as empresas alimentares nacionais e estrangeiras autorizadas a contratar diretamente com os agricultores, medida à qual estes últimos se opunham. Os agricultores acabaram por ganhar, e o governo teve de revogar as leis agrícolas, embora não tenha desistido do seu projeto; mas a sua vitória só foi possível graças à forte solidariedade que receberam no seio da sua comunidade.

 

Conclui-se, portanto, que o campesinato constitui uma importante força de oposição, não só contra o feudalismo, mas também contra o imperialismo, força que tem a vantagem adicional de ainda reter em si laços comunitários que aumentam a sua força. O proletariado nas sociedades do Terceiro Mundo precisa, portanto, de ter uma aliança duradoura com a massa do campesinato, se quiser lutar contra a hegemonia imperialista. Isto tem muitas implicações importantes, para as quais nos voltamos agora.

 

A Possibilidade da restauração capitalista

 

Se a resistência da massa do campesinato desempenha um papel crucial na luta contra o imperialismo, e se esta luta não é um ato culminante, mas um processo longo e prolongado, que durará enquanto o capitalismo perdurar na metrópole, então seguem-se uma série de conclusões. Em primeiro lugar, o argumento para rejeitar o conceito de "acumulação socialista primitiva" que tinha sido apresentado por Yevgeny Preobrazhensky, no contexto do debate sobre a industrialização soviética dos anos 1920, torna-se irrefutável (5). Preobrazhensky, recorde-se, tinha defendido a imposição de uma compressão do rendimento do campesinato rico para angariar recursos para a industrialização socialista. Este conceito era teoricamente inaceitável, de qualquer forma, independentemente de quais fossem as compulsões conjunturais sobre o jovem Estado soviético após a revolução: a construção socialista não pode ser vista, em nenhum caso, como imitativa do desenvolvimento do capitalismo, pelo que o facto de o capitalismo ter tido um processo de acumulação primitiva não pode ser utilizado para argumentar que o socialismo também deveria ter um tal processo de acumulação primitiva (a reductio ad absurdum de tal argumento seria justificar o "imperialismo socialista" apenas porque o desenvolvimento capitalista requer imperialismo). A construção socialista deve, em vez disso, seguir o caminho do desenvolvimento da agricultura e da produção de cereais, para que os trabalhadores e os camponeses troquem o que produzem, em vez de um qualquer setor do campesinato ter de ser vitimizado para a construção socialista (6). Mas o facto de a aliança entre os trabalhadores e a massa do campesinato ter de ser mantida durante todo o curso da luta prolongada contra o imperialismo torna o abandono de qualquer processo de acumulação socialista primitiva absolutamente necessário, em termos práticos.

 

Em segundo lugar, a questão da dispensa de segmentos do campesinato na aliança operário-camponesa na transição para o socialismo simplesmente não pode ser levantada. Isto acontece, em primeiro lugar, porque se algum segmento dentro do campesinato, digamos, os camponeses ricos, sabe que, depois de participar na implementação da revolução democrática, será rejeitado quando a fase democrática terminar, então, para começar, nunca se juntará à revolução democrática liderada pelo proletariado. Qualquer revolução, em si mesma, se tornaria uma impossibilidade nestas circunstâncias. Em segundo lugar, quando a revolução democrática implica uma luta, não só contra os restos feudais, mas contra um imperialismo remodelado, a necessidade de assegurar a cada setor do campesinato que a revolução nunca se voltará contra ele, para que se mantenha firme no seu apoio à revolução, torna-se absolutamente primordial. A aliança de classes forjada contra o imperialismo, para derrubar o regime neoliberal e, ao fazê-lo, levar avante a revolução democrática, deve, por isso, manter-se intacta durante todo o processo de transição para o socialismo; e, para isso, quaisquer mudanças no sistema de propriedade que se tornem necessárias para a transição para o socialismo (por exemplo, a mudança da propriedade individual para formas cooperativas ou coletivas de propriedade) devem ser voluntariamente promovidas, através da demonstração de que as mudanças são benéficas para todos os envolvidos e que acelerariam o desenvolvimento das forças produtivas em benefício de todos.

 

Poder-se-á aqui argumentar que, uma vez que os camponeses ricos constituem uma classe protocapitalista, tê-los na aliança operário-camponesa durante a transição para o socialismo subverterá esta transição, dando origem a uma tendência para o desenvolvimento do capitalismo a partir de dentro, mesmo enquanto se combate o poder residual do grande capital e do imperialismo. Além disso, uma vez que, na transição, ocorreria assim a produção de mercadorias — caracterizada por uma tendência inerente à diferenciação entre produtores camponeses e para ao surgimento do capitalismo — a incorporação de camponeses ricos na aliança operário-camponesa, em vez de os excluir da mesma, criaria uma tendência aberta para o capitalismo, subvertendo a transição para o socialismo.

 

A falácia neste argumento surge no seu conceito erróneo de produção de mercadorias. Nem todo o tipo de produção para o mercado constitui produção de mercadorias e, por isso, nem todo ele se torna um progenitor do capitalismo. A produção para o mercado tem caracterizado o mundo dos pequenos produtores, em países como a Índia e a China, há milénios, muitas vezes até com o recurso a mão-de-obra contratada, sem com isso ter inaugurado o capitalismo; isto porque não se tratava de produção de mercadorias no sentido que Marx mencionou, ou seja, um sistema de produção que tem a tendência inerente de criar diferenciação entre produtores e inaugurar o capitalismo no seu verdadeiro sentido (7).

 

A produção de mercadorias implica que, embora o produto seja simultaneamente um valor de uso e um valor de troca para o comprador, é apenas um valor de troca, representando apenas uma quantia em dinheiro, para o vendedor. O pescador referido por Alfred Marshall, que vende peixe no mercado e consome aquele que não pode ser vendido, não é um produtor de mercadorias. Da mesma forma, os produtores de diferentes bens e serviços que trocam os seus produtos entre si, como acontece no sistema jajmani indiano, não constituem produtores de mercadorias, mesmo quando as suas transações são mediadas pela utilização de dinheiro. A produção de mercadorias, em suma, exige como condição necessária uma impessoalidade na relação entre o comprador e o vendedor, como acontece no comércio a longa distância, por exemplo. No entanto, mesmo este comércio que envolve a produção para um mercado desconhecido constitui apenas uma condição necessária, não suficiente, para que ocorra uma diferenciação entre produtores e o advento do capitalismo.

 

O que estamos a salientar, então, é que as ansiedades quanto ao regresso a um capitalismo emergente, a partir da transição para o socialismo, se o campesinato rico não for eliminado, são ansiedades baseadas numa compreensão errada de como o capitalismo surge e se desenvolve. O capitalismo é produto de circunstâncias complexas que geram não apenas uma luta darwiniana entre produtores, mas uma luta darwiniana em que não existe um estado de repouso, ao atingir o qual um produtor possa ter a certeza de sobrevivência. É uma luta darwiniana incessante que continua com base em escalas de produção cada vez mais elevadas. A produção de mercadorias que conduz a um tal sistema, isto é, ao capitalismo, não surge simplesmente através da produção para o mercado, mesmo quando tal produção utiliza mão-de-obra assalariada. Conclui-se, assim, que os receios de uma restauração do capitalismo que possa surgir quando a massa do campesinato — e não apenas os elementos semiproletários no seu interior — faz parte da aliança operário-camponesa, são grandemente exagerados.

 

Contradições na transição para o socialismo

 

Mas mesmo que não surja uma tendência capitalista na transição para o socialismo, apenas porque toda a massa do campesinato, e não apenas os elementos semiproletários dentro deste, faz parte da aliança operário-camponesa, haverão certamente sérias contradições dentro da aliança. Estas resultarão dos interesses divergentes dos diferentes segmentos dentro da mesma. Os camponeses ricos, por exemplo, gostariam de manter os salários dos trabalhadores agrícolas baixos, o que seria inaceitável para estes últimos e antitético ao projeto de construção do socialismo. O Estado que preside à transição terá de negociar estas contradições.

 

As negociações serão diretas em muitas questões, mas não noutras. Serão diretas em relação aos salários, estipulando os níveis salariais e os preços dos produtos agrícolas que serão recebidos pelos produtores, e também em relação às condições de trabalho. No que respeita à mecanização das atividades agrícolas, o Estado pode, por exemplo, fazer das cooperativas de trabalhadores agrícolas as únicas proprietárias de todas as máquinas que substituem o trabalho humano, de modo a que o que os trabalhadores perdem, em termos de rendimentos salariais, possa ser compensado com os lucros obtidos com a utilização de máquinas.

 

Para que tais negociações sejam realmente eficazes, contudo, devem ser cumpridas certas outras condições. Por exemplo, estipular os salários será ineficaz se o flagelo do desemprego não for removido. Se não for abertamente, então de forma secreta, os empregadores pagarão certamente menos do que os salários estipulados aos trabalhadores agrícolas. As regulamentações estatais que regem as relações empregador-trabalhador e outras relações contraditórias semelhantes devem, portanto, estar inseridas num universo onde possam ser eficazes. A melhor forma de criar um universo deste tipo é ter um conjunto de direitos económicos constitucionalmente garantidos, fundamentais, universais e justiçáveis, para além, claro está, dos habituais direitos sociais e políticos.

 

Isto pode parecer estranho à primeira vista, pois os direitos dizem respeito aos indivíduos, enquanto o objetivo do socialismo é criar uma nova comunidade no lugar daquela que o capitalismo destruiu. Conferir direitos aos indivíduos equivale ainda a tratá-los como "mónadas" (para usar o termo de Marx em Sobre a Questão Judaica); e apoteosar o indivíduo pode parecer frustrar o objetivo do socialismo.

 

A questão dos direitos de um indivíduo, no entanto, surge precisamente quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos é excluído da comunidade e está em condições de ser vitimizado por ela. Os direitos, por outras palavras, são uma forma de proteção contra a exclusão da comunidade e, uma vez que tal exclusão é necessariamente dirigida contra um indivíduo ou um grupo de indivíduos, os direitos individuais são precisamente o baluarte necessário contra a vitimização através da exclusão. Um regime de direitos económicos fundamentais para cada indivíduo, em suma, proporciona a proteção necessária com base na qual se pode criar uma comunidade. Não só a transição para o socialismo, mas a própria instituição do socialismo, deve ser construída sobre um conjunto de direitos económicos fundamentais para os indivíduos (para além dos direitos sociais e políticos que não precisamos de discutir aqui).

 

De facto, a instituição de tais direitos individuais é essencial para impedir o ressurgimento do capitalismo e a subversão histórica do processo de transição para o socialismo. Um desses direitos económicos fundamentais deve ser o direito ao emprego. Falhando este, a pessoa sem emprego deve receber um salário integral, distinto do subsídio de desemprego. O pleno emprego é incompatível com o capitalismo, que não pode funcionar sem a existência de um exército de reserva de mão-de-obra. Antigos países socialistas, como a União Soviética ou os seus vizinhos da Europa de Leste, caracterizavam-se não só pelo pleno emprego, mas também pela escassez de mão-de-obra, levando economistas como Janos Kornai a referir-se a eles como sistemas "com recursos limitados" (“ressource.constrained”), distintos do "sistema com procura limitada" (“demand-constrained”) do capitalismo (8). Um sintoma do desvio capitalista durante a transição para o socialismo seria a criação de desemprego, e a proteção contra o desemprego por meio da institucionalização de um direito universal ao emprego ipso facto previne uma recaída em direção ao capitalismo (embora, é claro, nenhuma garantia constitucional possa impedir inteiramente uma contrarrevolução).

 

Rumo à cooperativização voluntária

 

Até agora, defendemos que a base da luta contra o imperialismo, encorporado nos atuais regimes neoliberais, será constituída por uma aliança entre a classe operária e a massa do campesinato, e que esta aliança deverá manter-se intacta, sem que a classe operária perca quaisquer aliados entre o campesinato, durante toda a transição para o socialismo. Ou seja, todo o campesinato, incluindo o campesinato rico, é um aliado na luta contra o capitalismo neoliberal, marcado pela dominação do capital monopolista nacional integrado no capital financeiro globalizado. Além disso, continua a ser um aliado na transição para o socialismo.

 

Quanto aos receios de restauração capitalista que podem ser suscitados pela não eliminação de certos segmentos da aliança original, como o campesinato rico, o nosso argumento tem sido o de que tais receios são grandemente exagerados; e também que se pode erguer uma barreira contra esta restauração capitalista, instituindo um conjunto de direitos económicos fundamentais.

 

Mas, embora a massa do campesinato faça parte da aliança operário-camponesa na transição para o socialismo, a propriedade camponesa terá de ser voluntariamente substituída por formas cooperativas de propriedade, incluindo sobre a terra. Ao determinar a participação de qualquer camponês individual na cooperativa, o valor da sua terra pode ser considerado inicialmente como parte da contribuição, mas a importância relativa desta contribuição inicial diminuirá com o tempo, à medida que o tamanho da participação total na cooperativa aumenta e as contribuições subsequentes são feitas com base em prestações em trabalho.

 

A necessidade de cooperativas, incluindo para a agricultura cooperativa através da partilha de terras, surge por uma série de razões, que constituem também incentivos para que os camponeses se juntem a estas cooperativas de forma voluntária. Nas condições asiáticas, onde a escassez de terra é aguda, a chave para acelerar o crescimento agrícola – que, por sua vez, constitui a chave para o crescimento geral – reside no "aumento da terra", no sentido de aumentar a área de terra, na medida do possível, e a produtividade da terra, não só através do aumento da produtividade agrícola, mas também através de culturas múltiplas. A produção camponesa individual é inferior à produção cooperativa em termos de aumento da terra. Várias considerações fundamentam este ponto.

 

Em primeiro lugar, a terra atualmente desperdiçada pela delimitação de parcelas individuais é eliminada quando há cultivo em terras partilhadas, pelo que a área total aumenta, mesmo que marginalmente. Em segundo lugar, toda uma gama de projetos de capital que podem aumentar a produtividade da terra pode ser empreendida quando a terra e a mão-de-obra são partilhadas, mas não quando o cultivo ocorre em parcelas individuais de propriedade familiar. Os exemplos óbvios são a construção de diques e a recuperação de terras, projetos de irrigação, combate à erosão em geral e deslizamentos de terra em áreas montanhosas, reflorestação, construção de proteções contra animais selvagens em áreas florestais, e assim por diante. Este, de facto, foi um grande benefício das comunas chinesas: para além do investimento nestas comunas proveniente de fundos do plano central, houve investimento adicional realizado pelas próprias populações das comunas, com base nos seus próprios recursos, incluindo mão-de-obra (9). Em terceiro lugar, pode ser praticada a utilização de diferentes segmentos de terras partilhadas para diferentes fins, dependendo da adequação de cada segmento a um fim específico; isto não é possível no caso da agricultura individual. Em quarto lugar, algumas culturas podem exigir uma escala mínima de cultivo, que pode ser atingida no caso do cultivo coletivo, mas pode não ser possível quando existe agricultura individual. Em quinto lugar, referimos anteriormente que as máquinas que substituem o trabalho humano terão de ser propriedade de cooperativas de trabalhadores. No entanto, uma vez que surja a agricultura cooperativa, onde tanto os trabalhadores sem terra como os camponeses proprietários de terras são membros, a propriedade destas máquinas pode ser transferida para a exploração agrícola cooperativa como o único repositório de todos os meios de produção. Em sexto lugar, uma vez que o socialismo implicará uma economia descentralizada e uma tomada de decisões descentralizada na sociedade, a cooperativa pode ser o meio de organizar não só a vida económica, mas também a social, política e cultural. Em suma, pode tornar-se sinónimo de comuna e, com o tempo, passará a ser proprietária de indústrias e a promover outras atividades não agrícolas.

 

São estas atrações que persuadirão todos os camponeses, incluindo os ricos, a tornarem-se parte da cooperativa e, portanto, da comunidade local remodelada que crescerá à sua volta. É claro que o socialismo não significa construir uma sociedade com uma multiplicidade de comunidades locais. O socialismo não elimina as comunidades, mas fornece a estrutura através da qual se pode procurar transcender o seu potencial para gerar tensões paroquiais. A relação entre a comunidade local e a grande comunidade abrangente que compõe o país socialista no seu todo, terá de ser negociada e gerida de forma a que não haja uma ênfase exclusiva, seja na consciência da comunidade local, seja em qualquer consciência nacional dominante e abrangente. Em particular, deve haver um esforço consciente para manter a diferença económica entre as várias comunidades locais dentro de limites, tanto através de uma tributação diferenciada como através de uma alocação diferenciada dos investimentos centrais.

 

Estas observações foram feitas com o objetivo de sugerir direções gerais que uma transição para o socialismo deve tomar, mas, é claro, qualquer especificação mais detalhada dependerá das contingências que se desenvolverem quando tais direções gerais forem prosseguidas. O nosso objetivo aqui não é fornecer todos os detalhes de como se efetuaria a transição para o socialismo, nem como seria exatamente uma sociedade socialista. O próprio Marx, sabiamente, absteve-se de fornecer detalhes explícitos a este respeito. O ponto fundamental — apesar das modificações analíticas sugeridas neste artigo a Marx, Lenine e às doutrinas que lhes devemos — permanece na visão geral que eles articularam. Ou seja, uma visão de uma sociedade onde os indivíduos não são entidades atomizadas e alienadas; onde a distinção entre cidade e campo é substancialmente eliminada; onde o flagelo do desemprego não projeta a sua sombra sobre a vida das pessoas; onde a desigualdade de rendimentos entre indivíduos e localidades é controlada; onde um sentido de comunidade diferente daquele que o capitalismo tinha destruído — marcado pela desigualdade, opressão e estagnação — se desenvolve entre as pessoas; e onde vidas podem ser dedicadas à procura da criatividade. Tal visão está agora a entrar na agenda prática.

 

 

 

 

 

 

(*) Prabhat Patnaik (n. 1945) é um economista marxista e reputado comentarista político indiano. Natural do Estado de Odisha, o sistema de bolsas permitiu-lhe prosseguir estudos até ao doutoramento na Universidade de Oxford, tendo ensinado também em Cambridge. De regresso à Índia em 1974, foi professor na Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Delhi, até à sua recente jubilação. Especializou-se em Macroeconomia e Política Económica. De 2006 a 2011 serviu como vice-presidente do Comité de Planeamento do Estado de Kerala. É editor da revista Social Scientist, membro do grupo de estudos International Development Economics Associates (IDEAs)  e autor de numerosos livros, de entre os quais: Time, Inflation and Growth (1988), Economics and Egalitarianism (1990), Whatever Happened to Imperialism and Other Essays (1995), Accumulation and Stability Under Capitalism (1997), The Retreat to Unfreedom (2003), The Value of Money (2008), Re-envisioning Socialism (2011), Marx's Capital: An Introductory Reader (2011) e (com sua esposa Utsa Patnaik) A Theory of Imperialism (2016) e Capital and Imperialism. Theory, history and the present (2021). Para quem vive neste mundo de olhos bem abertos, é absolutamente imperdível a sua página de “Notas Económicas” no semanário do Partido Comunista da Índia (Marxista) Peoples’ Democracy.

Utsa Patnaik (n. 1945) é esposa do primeiro mas muito, muito mais do que isso. Obteve o seu doutorado em Economia pelo Somerville College, em Oxford, antes de regressar à Índia para ingressar na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Deli. Lecionou no Centro de Estudos Económicos e Planeamento da Faculdade de Ciências Sociais desta Universidade de 1973 até à sua aposentação em 2010. As suas principais áreas de interesse de investigação são os problemas da transição de sociedades predominantemente agrícolas e camponesas para uma sociedade industrial, tanto numa perspetiva histórica como no contexto presente da Índia, bem como questões relacionadas com a segurança alimentar e a pobreza, história económica e imperialismo. Estas e outras questões foram discutidas em mais de 110 artigos publicados em revistas ou como capítulos em livros. É autora exclusiva de vários livros, incluindo Peasant Class Differentiation – A Study in Method (1987); The Long Transition (1999) e The Republic of Hunger and Other Essays (2007) e Exploring the Poverty Question (2025). Também editou e coeditou vários volumes, incluindo Chains of Servitude – Bondage and Slavery in India (1985); Agrarian Relations and Accumulation – the Mode of Production Debate in India (1991); The Making of History – Essays presented to Irfan Habib (2000); The Agrarian Question in Marx and his Successors em dois volumes (2007, 2011); A Theory of Imperialism (2016) e Capital and Imperialism (2021), estes dois últimos em coautoria com Prabhat Patnaik.

O casal Patnaik é uma personalidade autoral com as suas caraterísticas próprias. Este ensaio foi publicado no Volume 77, N.º 3 (julho-agosto de 2025) da revista Monthly Review. Todos os direitos reservados. A tradução é da responsabilidade de Ângelo Novo.

 

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NOTAS:

 

(1) V. I. Lenin, “Two Tactics of Social Democracy” in Selected Works, vol. 1 (Moscow: Progress Publishers, 1977), p. 494.

 

(2) Esta era, por exemplo, a posição programática básica do Partido Comunista da Índia (Marxista), o maior partido comunista da Índia. A revolução democrática, que precisava de ser retomada e levada avante sob a liderança da classe operária, era designada por "revolução democrática popular".

 

(3) O termo “drenagem de excedentes” refere-se ao fluxo contínuo de excedentes das colónias conquistadas para a metrópole, imposto sem qualquer contrapartida pelas potências metropolitanas dominantes ao longo da era colonial. Para uma discussão sobre a “drenagem de excedentes” da Índia para a Grã-Bretanha durante o período colonial, consulte Utsa Patnaik e Prabhat Patnaik, Capital and Imperialism (New York: Monthly Review Press, 2021).

 

(4) Estes números foram retirados do livro ainda a ser publicado de Utsa Patnaik, Exploring the Poverty Question (New Delhi: Tulika Books, 2025).

 

(5) O conceito foi introduzido no livro de Y. Preobrazhensky, A Nova Economia, de 1926. Uma edição inglesa, traduzida por Brian Pearce, com introdução de Alec Nove, foi publicada pela Oxford University Press em 1965.

 

(6) A perspetiva de Michał Kalecki sobre o problema da mobilização de recursos numa economia mista subdesenvolvida, segundo a qual o problema financeiro da mobilização de recursos não é mais do que o verdadeiro problema do aumento da taxa de crescimento agrícola, deve ser também válida para uma economia do Terceiro Mundo, que tenta uma transição para o socialismo. Ver Michał Kalecki, “The Problem of Resource Mobilization in a Mixed Underdeveloped Economy”, in Selected Essays on the Economic Growth of the Socialist and the Mixed Economy (Cambridge: Cambridge University Press, 1972).

 

(7) Para uma elaboração deste argumento, ver P. Patnaik, “Defining The Concept of Commodity Production”, Studies in People’s History 2, n.º 1 (May 2015): pp. 117–25. O argumento deste artigo baseia-se em Karl Kautsky, The Economic Doctrines of Karl Marx (1903), Marxists Internet Archive, marxists.org.

 

(8) Janos Kornai, “Resource-Constrained versus Demand-Constrained Systems”, Econometrica 47, n.º 4 (July 1979): pp. 801–19. A dicotomia básica entre os dois sistemas, com o capitalismo a ser tipicamente limitado pela procura e o socialismo realmente existente (então) na Europa de Leste a ser limitado pelos recursos, foi originalmente notada por Kalecki, que também defendia que a teoria do crescimento neoclássica, tal como a de Robert Solow, era mais apropriada para o socialismo do que para o capitalismo.

 

(9) Utsa Patnaik, “Three Communes and a Production Brigade: The Contract Responsibility System in China,” in China: Issues in Development, ed. Ashok Mitra (New Delhi: Tulika Books, 1988).