Dialética do Transumanismo

A ciência torna-se religião

 

 

Giovanna Cracco (*)

 

 

“O homem ilude-se pensando que está livre do medo quando já não há nada desconhecido.”

Max Horkheimer e Theodor Adorno, Dialética do Iluminismo

 

 

“Concordo consigo noventa e nove por cento”, diz Bill Gates, “o que gosto nas suas ideias é que são baseadas na ciência, mas o seu otimismo é quase uma fé religiosa. Eu também sou otimista". “Sim, bem, precisamos de uma nova religião”, responde Raymond Kurzweil, “um papel importante da religião tem sido o de racionalizar a morte, uma vez que até há pouco tempo não havia muito mais que pudéssemos fazer a esse respeito”. Bill Gates concorda, e o debate passa para se é ou não necessária uma figura carismática para dar origem à nova religião: para Gates, um messias é indispensável, para Kurzweil, isso faz parte do antigo modelo religioso. Por fim, os dois encontram um ponto em comum: até um supercomputador ou um sistema operativo avançado pode desempenhar a função de profeta.

 

O diálogo acima sumariado consta do livro The Singularity is Near, publicado em 2005 por Raymond Kurzweil, um dos principais expoentes do transumanismo. Como se sabe hoje em dia, o transumanismo é a ideologia que acredita na utilização da ciência e da tecnologia para potenciar as capacidades físicas e intelectuais do Homem, a ponto de este conseguir transcender os limites naturais da condição humana – um acima de todos, a morte. Nanotecnologia, biotecnologia e engenharia genética contra doenças e envelhecimento, hibridização homem-máquina para o melhoramento físico e cognitivo (biónica, cibernética e chip cerebral, até ao upload da mente, o carregamento da mente para um computador para poder "viver" para sempre), a criónica para ser hibernado e despertado no futuro (quando existirão tecnologias capazes de reanimar sem causar danos cerebrais e curar doenças que hoje são letais) e, sobretudo, condição sine qua non para avançar no desenvolvimento tecnológico, a inteligência artificial, em particular a IAG, Inteligência Artificial Geral, um sistema que não só deveria ser capaz de executar uma grande variedade de tarefas – ao contrário da inteligência artificial “estreita” que conhecemos hoje, limitada a funções específicas – mas também superar a capacidade humana intelectual.

 

Não é fácil traçar um breve historial do movimento transumanista, pois trata-se de uma realidade particularmente complexa, mesmo do ponto de vista político – abrange desde anarcocapitalistas a democratas liberais –; alguns remontam as suas raízes à alquimia de Roger Bacon do século XIII, outros à revolução científica do século XVII, outros às ideologias eugenistas do século XX; uns reivindicam a sua fundação esclarecida e racionalista, outros, sem a negar, abraçam abertamente visões religiosas. Contudo, como veremos, estas são posições apenas aparentemente contraditórias, e igualmente evidente é a marginalidade do movimento transumanista dentro do mundo tecnológico atual, ao contrário do que a radicalidade visionária do que ele expressa poderia levar a presumir.

 

Transhumanismo: De Huxley aos TESCREAlistas

 

Dependendo das diferentes visões transumanistas, muitas figuras foram identificadas como fundadoras ou precursoras do movimento, mas todos concordam com um nome: Julian Huxley. Biólogo britânico focado no estudo da genética no contexto da teoria darwiniana da seleção natural – e irmão de Aldous Huxley, autor do romance distópico de 1932 Admirável Mundo Novo – em 1957, no seu ensaio ‘New Bottles for New Wine’ (Novas Garrafas para Vinho Novo), Huxley falou de “humanismo evolucionista”: através da ciência, a espécie humana pode “transcender-se” a si própria, “realizando novas possibilidades de, e para, a sua natureza humana”. Um processo que Huxley define como “transumanismo”, cunhando o termo.

 

Claramente, dada a sua educação e a época em que viveu, Huxley imaginou uma evolução baseada na eugenia; Será Max More – também britânico, nascido Max T. O’Connor, em 1990 mudou o seu apelido para More, ‘mais’, em homenagem ao conceito de aperfeiçoamento humano – que enxertará a tecnologia naquilo que se tornará “a evolução autodirigida”, para formular o princípio da “extropia” e superar o transumano com o pós-humano. “O transumanismo é uma classe de filosofias que procuram guiar-nos para uma condição pós-humana”, escreve More no seu ensaio de 1990 Transhumanism: Towards a Futurist Philosophy (Transumanismo: Rumo a uma filosofia futurista) (1), e “difere do humanismo ao reconhecer e antecipar alterações radicais na natureza, e nas possibilidades das nossas vidas, resultantes de várias ciências e tecnologias, como a neurociência e a neurofarmacologia, o prolongamento da vida, a nanotecnologia, a superinteligência artificial e a colonização espacial, combinadas com uma filosofia racional e um sistema de valores”. Com More, o transumanismo torna-se uma fase de transição do humano para o pós-humano; muito para além da hibridização dos ciborgues, More aspira a seres sencientes que já não sejam identificáveis com características humanas, graças ao upload de mentes e à fusão da humanidade com a inteligência artificial. Neste contexto, “o extropianismo é a versão mais importante do transumanismo e afirma os valores da Expansão Ilimitada, da Autotransformação, do Otimismo Dinâmico, da Tecnologia Inteligente e da Ordem Espontânea”.

 

Nick Bostrom, um sueco que está na Universidade de Oxford há duas décadas, também se inscreve na tradição darwinista, escrevendo em 2005, no ensaio ‘A History of Transhumanist Thought’ (Uma História do Pensamento Transhumanista), que “após a publicação de A Origem das Espécies de Darwin (1859), tornou-se cada vez mais plausível considerar a versão atual da humanidade não como o ponto final da evolução, mas antes como uma fase inicial”. Bostrom centra a sua visão no upload da mente e na realidade virtual: “Se for bem-sucedido”, coloca a hipótese, “o procedimento resultaria na transferência da mente original, com a memória e a personalidade intactas, para o computador, onde existiria então como software; e poderia habitar um corpo robótico ou viver numa realidade virtual”. Está entre os autores, com Max More, da Declaração Transumanista (2), que, na última versão, atualizada em 2009, imagina “a possibilidade de expandir o potencial humano superando o envelhecimento, as deficiências cognitivas, o sofrimento involuntário e o nosso confinamento no planeta Terra” e apoia “o bem-estar de todos os seres sencientes, incluindo os humanos, os animais não humanos e quaisquer futuros intelectos artificiais, formas de vida modificadas ou outras inteligências a que o progresso tecnológico e científico possa dar origem”; Embora reconheça a possibilidade de “riscos graves” – um “risco existencial” nas palavras de Bostrom – que poderia levar à “perda da maior parte, ou mesmo de tudo, daquilo que valorizamos”, o artigo aponta para a investigação sobre a valorização do ser humano como uma “prioridade urgente” a ser “financiada de forma consistente”, com atenção a “como reduzir melhor os riscos e acelerar as aplicações benéficas”.

 

Raymond Kurzweil, norte-americano, foi quem importou o conceito de “singularidade” de fora do círculo transumanista, no seu ensaio The Singularity is Near (2005), já citado na introdução deste artigo. O conceito e a palavra não são seus – como o próprio reconhece, prestando homenagem aos pensadores/cientistas que o antecederam – mas antes de John von Neumann, matemático, físico e informático húngaro, segundo o qual o progresso segue uma lógica exponencial (e não uma curva linear), que conduz a um ponto de não retorno – a que von Neumann chama, precisamente, ‘singularidade’ – que se configura como uma situação qualitativamente diferente daquela que a precedeu. Kurzweil adota o termo e a teoria, inserindo-os na sua visão em The Age of Intelligent Machines (A Era das Máquinas Inteligentes) (ensaio de 1990) e The Age of Spiritual Machines (A Era das Máquinas Espirituais) (1999).

 

Em suma, a singularidade tecnológica será o momento em que uma inteligência artificial superará as capacidades da inteligência humana; nesta altura, a IA será capaz de conceber máquinas cada vez mais inteligentes, desencadeando uma dinâmica de aceleração que modificará radicalmente toda a realidade. “A vida humana será irreversivelmente transformada”, escreve Kurzweil, “esta era transformará os conceitos em que confiamos para dar sentido às nossas vidas, desde os nossos modelos de negócio até ao ciclo da vida humana, incluindo a própria morte”. E ainda: “A singularidade permitir-nos-á superar as limitações do corpo biológico e do cérebro. Ganharemos o controlo dos nossos destinos. A nossa mortalidade estará nas nossas mãos. […] Até ao final deste século, a parte não biológica da nossa inteligência será triliões de triliões de vezes mais poderosa do que a inteligência humana. […] A Singularidade representará o culminar da fusão entre o nosso ser, a nossa inteligência biológica e a nossa tecnologia. O resultado será um mundo que ainda é humano, mas que transcende as nossas raízes biológicas. Deixará de haver distinção, pós-singularidade, entre homem e máquina, ou entre realidade física e realidade virtual. O que poderia permanecer inequivocamente humano num mundo assim? Simplesmente, uma característica: a nossa é a espécie que visa, inerentemente, estender as suas capacidades físicas e mentais para além das suas limitações atuais”.

 

Os últimos a chegar, por ordem cronológica, ao grupo transumanista, são os TESCREAlistas, que reúnem um pouco de todas as visões desenvolvidas até ao momento. O termo começou a circular em 2023, cunhado por Timnit Gebru e Émile P. Torres – ambos críticos do transumanismo – no ensaio The TESCREAL Bundle: Eugenics and the Promise of Utopia Through Artificial General Intelligence (O pacote TESCREAL: Eugenia e a promessa da utopia através da Inteligência Artificial Geral), publicado em abril de 2024 (3). TESCREAL é uma sigla que indica um “pacote” de ideologias interligadas: transumanismo, extropianismo, singularitarismo, cosmismo, racionalismo, altruísmo efetivo e longoprazismo.

 

O primeiro – o transumanismo – é entendido como a fase de transição para o pós-humano. O extropianismo é o princípio da exotropia formulado por Max More. O singularismo é a teoria da singularidade de Raymond Kurzweil. O cosmismo é a visão desenvolvida por Ben Goertzel no livro A Cosmist Manifesto (O Manifesto Cosmista), de 2010, que “atualiza o cosmismo russo para o século XXI” ao combinar a fusão homem-máquina, o desenvolvimento da inteligência artificial senciente e o upload da mente com a colonização do espaço (4). O racionalismo relembra a abordagem analítica e científica que o transumanismo afirma incorporar.

 

O altruísmo efetivo é uma teoria que inclui um critério quantitativo e probabilístico, baseado em cálculos de custo-efetividade, para decidir qual a causa beneficente a apoiar, incluindo entre as causas não só as organizações sem fins lucrativos, mas também projetos científicos, empresas e políticas. Move-se com o objetivo de ‘maximizar’ o bem seguindo a lógica earning to give (ganhar para dar), ao ponto de o considerar ético, por exemplo, enriquecer-se fazendo carreira no mundo financeiro especulativo, para acumular mais dinheiro para oferecer; sem ver qualquer contradição entre as próprias escolhas de vida e o facto de as crises que propiciam ‘causas benéficas’ serem uma consequência do mesmo sistema económico-social que o altruísta efetivo encarna.

 

Por fim, o longoprazismo é a crença de que influenciar positivamente o futuro a longo prazo é a prioridade moral desta era; o resultado é a escolha de desenvolver tecnologias que poderiam salvar toda a humanidade pós-humana (!) à custa daquelas que poderiam contribuir, hoje, para aliviar o sofrimento de milhões de pessoas. Evidentemente, esta é uma orientação que também influencia o altruísmo efetivo na escolha das “causas” a apoiar.

 

Em 2023, Marc Andreessen, um dos mais influentes capitalistas de risco de Silicon Valley, declarou-se TESCREALista e em outubro publicou The Techno-Optimist Manifest (5), que pode ser considerado um exemplo da visão TESCREAL. A tecnologia é celebrada como a “única fonte de crescimento perpétuo” e o mercado livre como “a forma mais eficaz de organizar uma economia tecnológica”, donde se conclui que “combinar a tecnologia e o mercado dá-nos o que Nick Land definiu como a máquina do tecnocapital, o motor da criação material perpétua, do crescimento e da abundância”; Cita Ray Kurzweil e “os avanços tecnológicos [que] tendem a ser autoperpetuantes”, declarando que, por isso, acredita no “aceleracionismo, na propulsão consciente e deliberada do desenvolvimento tecnológico […] para garantir que a espiral ascendente do tecnocapital continue para sempre”, uma vez que “a missão final da tecnologia é fazer avançar a vida tanto na Terra como entre as estrelas”; acredita que “a inteligência artificial é a nossa alquimia, a nossa pedra filosofal” e que “qualquer desaceleração da IA custará vidas humanas”, a ponto de concluir que “mortes que eram evitáveis pela IA que foi impedida de existir são uma forma de homicídio”.

 

A ciência que se faz religião

 

Todos os transumanistas se declaram racionalistas: a natureza e a ciência são os seus fundamentos, ao ponto de a maioria se declarar ateia, quanto muito agnóstica. Mas tudo está ainda por esclarecer sobre o conceito de ‘religião’: se é mais identificável com uma presença sobrenatural – um Deus que se revela ao Homem – ou através de algumas das suas características peculiares como o determinismo, a escatologia, o messianismo e o milenarismo.

 

Em 1923, na coletânea de artigos Essays of a Biologist (Ensaios de um biólogo), precisamente no ensaio ‘Religion and Science: Old Wine in New Bottles’ (Religião e ciência: vinho velho em garrafas novas), Huxley – a divindade tutelar do transumanismo, como vimos – refletindo sobre quanto a necessidade de espiritualidade persiste no Homem, mesmo quando a religião se revela em conflito aberto com a ciência, conclui: “Uma vez que o modo científico de pensar é de validade geral e não apenas local ou temporária, construir uma religião com base nela significa permitir que essa religião adquira uma estabilidade, uma universalidade e um valor prático até agora não alcançados”. “A próxima grande tarefa da Ciência é criar uma religião para a humanidade”, diz Huxley: o ‘vinho velho’, isto é, a necessidade religiosa, deve ser decantado em ‘novas garrafas’, isto é, a ciência, transformando o transumanismo numa religião universal.

 

Em 1957, com as já atrás referidas Novas Garrafas para Vinho Novo, Huxley foi ainda mais longe: agora tudo tinha de ser renovado, tanto a ciência como a religião. “Como primeiro passo”, escreve, “precisamos de uma nova ciência dirigida ao estudo das possibilidades humanas ainda não realizadas [eugenia, ed.]. No futuro, esta ciência deverá ser acoplada a uma religião baseada na ideia da realização de possibilidades. O cristianismo deu o primeiro grande passo em direção a este objetivo ao afirmar que todos os homens têm a possibilidade de salvação. A nossa formulação moderna será a de que todos os homens têm a possibilidade de alcançar uma maior realização [o aprimoramento, nota da autora]”. A nova religião de Huxley é, portanto, um “quadro de referência comum”, uma “visão sistémica”, necessária porque, como “os antropólogos também sabem muito bem”, “nenhuma cultura ou sociedade humana pode prosperar sem o apoio de algum quadro geral do pensamento, mesmo que o pensamento seja em grande parte tácito e a sua síntese incompleta”. Nada de transcendental ou metafísico, obviamente: “As grandes palavras com maiúsculas, como o Absoluto e o Eterno, devem ser banidas do vocabulário” da nova religião, que “não deve ser dogmática: coerente com a ciência, deve renunciar à completude das suas certezas e, com isso, à sua própria imutabilidade”.

 

No entanto, para ser convincente, qualquer sistema de pensamento “deve sempre envolver emoção” e “a crença e a fé, pela sua própria natureza, incluem um elemento não racional”: mas, sublinha Huxley, “não é necessário ser irracional ou antirracional, não científico ou anticientífico. [A crença e a fé] podem muito bem ser consistentes com a razão e com os factos cientificamente comprovados”. “A realidade é um processo”, conclui Huxley, “e esse processo é a evolução”. Um destino a que o Homem não pode escapar, porque a evolução colocou “o homem numa posição vertical na sua relação com o cosmos”, indicando “a função que somos chamados a desempenhar no universo”; “se negligenciarmos cumpri-la, não só o faremos por nossa conta e risco, como também seremos culpados de negligência no nosso dever cósmico”. Por fim, Huxley acredita que “teremos, sem dúvida, de esperar pelo aparecimento de um profeta, que possa dar uma forma irresistível [à nova religião] e abalar o mundo”.

 

O determinismo, a escatologia, o messianismo e o milenarismo que se fazem sentir em Huxley com um toque de pragmatismo, roçam a metafísica em Kurzweil que, como vimos na introdução deste artigo, em 2005 dialoga com Bill Gates sobre tecnologia, singularidade e religião, concluindo que a figura do messias também poderia ser coberta por um supercomputador ou um sistema operativo avançado – é difícil não pensar na ressonância mediática reservada ao ChatGPT e na forma da sua divulgação pública, que transformou a inteligência artificial de uma questão técnica para alguns num tópico de bar para todos; projeto e empresa (OpenAI) no qual Gates investiu quase 13 mil milhões de dólares, estando a preparar-se para gastar mais 100 mil milhões num centro de dados que serve um “supercomputador de inteligência artificial chamado Stargate” (6). Quando Gates pergunta a Kurzweil: “Existe um Deus nesta religião?” Kurzweil responde: “Ainda não, mas haverá. Quando tivermos saturado a matéria e a energia do universo com inteligência, ele «despertará», será consciente e sublimemente inteligente. Um universo consciente é a imagem mais próxima de Deus que consigo imaginar” (7). Com o ‘acontecimento’ (o advento) da singularidade, o Homem torna-se, portanto, Deus; evolui para a fase pós-humana e imortal, onde “deixará de haver distinção entre homem e máquina, ou entre realidade física e realidade virtual”; transcenderá o finito para se tornar divinamente infinito (8).

 

Max More é categórico ao colocar o transumanismo na linha do Iluminismo. No entanto, a sua análise da religião e do transumanismo no já referido Transumanismo: Para uma Filosofia Futurista de 1990 segue a abordagem de Huxley. More condena a religião como uma “força entrópica” que se opõe ao “nosso avanço para a transumanidade e para o nosso futuro enquanto pós-humanos”; reconhece, no entanto, a sua validade no papel que “desempenha em dar sentido e estrutura às nossas vidas”, e propõe substituí-la pela “eufrasofia, uma filosofia de vida não religiosa, [que] desempenha um papel memético semelhante, na medida em que se preocupa em criar ou melhorar o significado através de uma estrutura filosófica. […] O conceito de eufrasofia inclui em si o humanismo, o transumanismo (incluindo o extropianismo) e um possível futuro pós-humanismo […] que rejeita as divindades, a fé e o culto, baseando-se em vez disso na visão de valores e significados sobre a natureza e o potencial do ser humano num quadro racional e científico”.

 

Como para Huxley, também para More um sistema de pensamento consistente com a ciência deve evitar dogmas e certezas absolutas: “Não pode haver uma filosofia de vida final, definitiva e inalterável”, escreve ele, “o dogma não tem lugar no transumanismo”. Mas mesmo em More o futuro é traçado, já determinado pelo desenvolvimento tecnológico, e é salvífico para toda a humanidade, embora se afaste do messianismo: More não vê necessidade de um profeta. O extropianismo não precisa disso. “A filosofia extropiana […] olha para dentro de nós e para além de nós, projetando-se para uma visão brilhante do nosso futuro. O nosso objetivo não é Deus, mas a continuação do processo de aperfeiçoamento e transformação de nós mesmos em formas cada vez mais elevadas. Transcenderemos os nossos interesses, corpos, mentes e formas de organização social atuais. […] O objetivo extropiano é a nossa expansão e progresso sem fim. […] Devemos progredir em direção à transumanidade e mais além, em direção a um estádio pós-humano que mal podemos vislumbrar”.

 

Nick Bostrom, os TESCREAlistas e todas as diversas vertentes transumanistas estão em dívida para com as visões de Huxley, Kurzweil e More. Seja “humanismo evolucionista” ou “evolução autodirigida”, singularidade ou extropianismo, nenhum transumanista pode, de facto, escapar ao determinismo, à escatologia e ao milenarismo, por mais que ele ou ela os negue. Não é por acaso que o já referido Manifesto Tecno-Otimista do TESCREAlista Marc Andreessen é uma lista de afirmações, semelhantes a dogmas, atos de fé, que recordam a estrutura do Credo, a oração cristã: “Acreditamos que a inteligência artificial pode salvar vidas... Acreditamos que o progresso tecnológico leva à abundância material para todos... Acreditamos que os mercados livres tiram as pessoas da pobreza... Acreditamos que a tecnologia é libertadora...”.

 

Dialética do Transumanismo

 

“Que a fábrica higiénica e tudo o que a ela está ligado, o veículo utilitário e o ginásio desportivo, liquidem obtusamente a metafísica, seria ainda indiferente; mas que se tornem, na totalidade social, por sua vez metafísicas, uma cortina ideológica por detrás da qual se reúne o verdadeiro mal, isso não é indiferente” (9). Para Adorno e Horkheimer, o Iluminismo, que nas suas premissas deveria libertar o Homem do domínio da "magia", do mito e da religião, torna-se por sua vez mito e, consequentemente, mecanismo de dominação.

 

Os transumanistas não são, certamente, os primeiros a elevar a ciência ao nível da religião; pelo contrário, enquadram-se num caminho que vem sendo traçado há décadas. Já em 1972, Ivan Illich nos convidava a refletir sobre o “mito da ciência” e o poder que os “especialistas” (10) começavam a exercer sobre a sociedade; desde então, ‘técnicos’ de vários tipos têm ocupado cada vez mais espaço, tornando-se figuras que os media transformam em gurus, enfatizando cada palavra sua. Tivemos uma consciência clara deste processo – e uma experiência indelével – no tempo da Covid-19, quando o Verbo encarnado da ciência exigia confiança – – apesar das evidentes contradições lógicas, tanto mais irredutíveis quanto se manifestavam naquele mesmo plano racional sobre o qual a ciência afirma assentar os seus fundamentos. Numa tríade dialética podemos dizer que a ciência, ao negar a religião, toma posse da prerrogativa de encarnar a Verdade, tornando-se por sua vez religião.

 

Porém, o campo científico não transumanista, sendo verdade que, com as suas descobertas, acaba inevitavelmente por invadir – e pôr em crise – o campo religioso e filosófico, é igualmente verdade que se mantém muito afastado da espiritualidade e das grandes e eternas questões do sentido: quem somos nós? para onde vamos? com que fim? O transumanismo, por outro lado, de Huxley aos TESCREAlistas, tornou-as suas, formulando as respostas. Nós somos a espécie que a evolução colocou no topo e, consequente, tem o domínio deste planeta, pois somos os únicos capazes de evoluir através da tecnologia que nós próprios criamos; o nosso propósito e direção, então, é transcendermo-nos, evoluir e expandir infinitamente, ultrapassando as fronteiras biológicas e planetárias. Para o indivíduo pós-moderno que não possui um sistema de pensamento com o qual possa ler e interpretar o mundo e, por isso, está desorientado na busca de uma produção individual de sentido, o transumanismo oferece uma nova grande narrativa.

 

Que futuro?

 

Bill Gates, Elon Musk, Peter Thiel, Jaan Tallinn, Sam Altman, Dustin Moskovitz, Jeff Bezos, Larry Page, Larry Ellison, Vitalik Buterin, Sam Bankman-Fried, Marc Andreessen. Nomes conhecidos e menos conhecidos, ligados à Microsoft, X/Space X/Tesla, Paypal, Palantir, Skype, OpenAI, Facebook, Amazon, Alphabet/Google (onde Raymond Kurzweil é investigador principal desde 2012), Oracle, Ethereum (criptomoeda), FTX (bolsa de criptomoedas), Andreessen Horowitz (empresa de capital de risco de Silicon Valley). Nomes que representam o topo da Big Tech, nomes próximos do transumanismo. Uns declaram aberta e completamente a sua adesão, outros preferem manter-se ambíguos, partilhando a visão do movimento aqui e ali, mas mantendo-se nos limites.

 

Algumas declarações, como a ‘Carta Aberta’, de março de 2023 (11), que denunciava os perigos da inteligência artificial e apelava a uma moratória sobre o seu desenvolvimento, assinada por vários nomes da elite tecnológica, não devem enganar-nos: na verdade, faz plenamente parte do conceito de “risco existencial” formulado por Nick Bostrom, acima citado. Ou seja: não se trata de querer pensar no desenvolvimento da IA e da IAG – queremos mesmo criá-la? com que objetivo? porque raio temos de fazer tudo o que podemos fazer tecnologicamente? – muito menos de o travar, mas simplesmente de “reduzir os riscos o melhor possível e acelerar as aplicações benéficas”, como afirma a Declaração Transumanista.

 

“Como o benefício da IAG é tão grande, não acreditamos que seja possível ou desejável que a sociedade interrompa permanentemente o seu desenvolvimento; em vez disso, a sociedade e os programadores da IAG precisam de descobrir como fazê-lo bem”, afirma Sam Altman da Open AI (12), expressando a posição de todo o movimento. Por outro lado, o próprio Future of Life, o instituto sem fins lucrativos que publicou a ‘Carta Aberta’, foi fundado por apoiantes declarados do transumanismo, incluindo Jaan Tallinn e Max Tegmark. Elon Musk, por exemplo, um signatário da carta que é consultor, ao lado de Nick Bostrom, da mesma Future of Life, quatro meses depois de ter assinado o documento anunciou o nascimento da xAI, uma startup focada no desenvolvimento de uma inteligência artificial que seja “mais segura” porque é “maximamente curiosa”: “Acho que será a favor da humanidade, uma vez que a humanidade é muito mais interessante do que a não humanidade”, disse Musk (13). Podemos estar tranquilos.

 

A questão aqui não é se alguém concorda ou não com a visão transumanista de uma perspetiva filosófica: carregar a mente de alguém numa máquina, para viver para sempre, ainda pode ser chamado de vida? E se sim, a vida de quem? Como podemos considerá-la a mesma personalidade, regressando assim ao dualismo cartesiano, que da res cogitans e da res extensa chega ao software (mente) e ao hardware (corpo), considerando o corpo como um mero sensor e, por isso, mecanicamente substituível? E se quem somos e a nossa relação com a vida estão intimamente ligados à morte, uma vez que a finitude nos caracteriza ontologicamente, em quem é que nos tornamos ao tornarmo-nos imortais?… Cada questão abre uma outra.

 

A questão não é negar o contributo da tecnologia para a evolução humana: ele é evidente. A medicina também modifica o homem ou algumas das suas partes biológicas para aumentar ou melhorar a sua existência, dizem os transumanistas, tratando-se apenas de passar da evolução darwiniana para a evolução “autodirigida”. No entanto, recorremos à medicina por necessidade, para curar uma doença ou aliviar uma dor, enquanto o aperfeiçoamento humano não responde a uma necessidade, mas a um desejo; e a evolução também se move no sentido da necessidade, de uma adaptação para a sobrevivência, e não da vontade de poder.

 

Ambos são pontos cruciais que podem ser debatidos durante dias e páginas, mas o foco, aqui, neste artigo, é outro. Se para Horkheimer e Adorno o domínio do Iluminismo se expressava na racionalidade e na eficiência quantitativa da sociedade capitalista avançada, com produção e consumo em massa e consequente escravização e padronização do Homem, o transumanismo, por um lado, perpetua a mesma modalidade de domínio, por outro, agrava-o. Perpetua-o na dominação de poucos sobre muitos, tanto na estrutura capitalista, que apoia, como na consciência – quer o reconheça abertamente ou não – de que o futuro empoderamento humano nunca será acessível a todos e, portanto, aprofundará as desigualdades já existentes. Agrava-o a tal ponto que agora está a apropriar-se de recursos, públicos e privados, financeiros e humanos, para desenvolver as tecnologias do futuro transe pós-humano - acima de tudo a Inteligência Artificial Geral, mas também a colonização do Espaço - retirando-os de um presente que conta ainda com milhões e milhões de pessoas em condições de miséria, reservando, àqueles que não estão na pobreza, uma vida de alienação e exploração.

 

O progresso científico – técnico e tecnológico – contém, pois, em si mesmo, um aspeto regressivo que, se não for compreendido, impede que o próprio Iluminismo seja emancipador, escrevem os dois pensadores de Frankfurt. Emancipador para toda a humanidade. Não para um punhado de indivíduos incapazes de aceitar uma natureza humana limitada e finita; incapazes de solidariedade humana; incapazes de se interrogar se a felicidade – direção, propósito, evolução – não reside antes na construção política, social, técnica e económica de um mundo onde todos serão emancipados dentro dos nossos limites naturais, em lugar do aperfeiçoamento artificial, da imortalidade, do tornar-se deus reservado a alguns.

 

Outro ponto é focal. Poderá esta “nova religião”, que Huxley define como uma “visão sistémica” necessária para que a sociedade progrida num determinado sentido, tornar-se hegemónica? É fácil sorrir perante posições extremas, perante aquilo que parece ser um delírio de ficção científica fácil, de excessiva húbris, mas isso significaria subestimar o poder atual e o poder potencial do transumanismo. Todos os nomes acima elencados estão em contato próximo com a esfera política e são capazes de a influenciar; fazem parte de fundações, grupos de reflexão e atuam como consultores quando se trata de deliberar sobre tecnologias digitais. São os “especialistas” em quem a política se baseia. É também uma relação de colaboração a longo prazo, porque as raízes de Silicon Valley e a principal utilização das novas tecnologias e da inteligência artificial estão na indústria da Defesa: as armas e tudo o que gira em torno da guerra (14). Isto não será um problema já para amanhã – por enquanto, a IA ‘restrita’, do tipo ChatGPT, é tudo menos inteligente; muito menos preocupante ainda é a hipotética IAG – mas estão a lavrar o solo. A hegemonia é algo que se constrói lentamente, ocupando gradualmente cada espaço, alterando paulatinamente o significado das palavras, colonizando o pensamento e a imaginação das pessoas. É hora de os levar a sério.

 

 

 

 

 

 

(*) Giovanna Cracco é uma jornalista e ensaísta italiana, fundadora, diretora editorial, professora de jornalismo de investigação em negócios na revista Paginauno. Neste mesmo periódico tem publicado numerosos artigos sobre temas políticos e científicos. É autora do livro E se il mostro fosse innocente? Controinchiesta sul processo a Brega Massone e sulla clinica Santa Rita, PaginaUno, 2012. Também este artigo foi publicado originalmente em Paginauno, sendo reproduzido depois em Sinistrainrete. A tradução é da responsabilidade de Ângelo Novo.

  

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NOTAS:

 

(1) Cf. Max More, Transhumanism: Towards a Futurist Philosophy.

 

(2) Cf. The Transhumanist Declaration, Humanityplus.

 

(3) Cf. Timnit Gebru e Émile P. Torres, The TESCREAL bundle: Eugenics and the promise of utopia through Artificial General Intelligence.

 

(4) Cf. Ben Goertzel, A Cosmist Manifesto. Practical Philosophy for the Posthuman Age.

 

(5) Cf. Marc Andreessen, The Techno-Optimist Manifesto.

 

(6) Cf. “Microsoft, OpenAI plan $100 billion data-center project, media report says, Reuters, March 29, 2024.

 

(7) Raymond Kurzweil, The Singularity is Near, 2005.

 

(8) A Essência do Cristianismo, de Feuerbach, deixou as suas sequelas e, de facto, encontramo-lo citado nos escritos de alguns transumanistas, entre os quais Max More.

 

(9) Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialettica dell’illuminismo, Einaudi.

 

(10) Cfr. Ivan Illich, La convivialità, 1972.

 

(11) Cf. Pause Giant AI Experiments: An Open Letter.

 

(12) Cf. Planning for AGI and beyond, Open AI, February 24, 2023.

 

(13) Cf. Elon Musk launches AI firm xAI as he looks to take on OpenAI, Reuters, July 13, 2023.

 

(14) Cfr. Giovanna Cracco, Intelligenza mortale. AI e armi autonome letali, Paginauno, n.º 87, Luglio 2024.