Atualidade de Evald Ilyenkov

 

 

Carlo Di Mascio (*)

 

 

I.

No entanto - dizem-nos os nossos adversários - o trabalho de Lenine também envelheceu. Hoje, a ciência atingiu novos patamares e já não é possível abordar os problemas à maneira de Lenine. Não, de modo algum, “a questão continua a ser válida tal como Lenine a colocou em 1908” [Evald Ilyenkov, Dialética Leninista e a Metafísica do Positivismo. Reflexões sobre o livro de Lenine 'Materialismo e empiriocriticismo'].

 

Ilyenkov suicidou-se em 1979, cerca de doze anos antes da dissolução da U.R.S.S., dissolução que, na realidade, ele já tinha antecipado em grande parte com toda a sua variada produção filosófica. Os dirigentes académicos e institucionais, decididos a supervisionar dogmaticamente a ideologia oficial, acolheram a sua conceção marxista-leninista com singular hostilidade. Ilyenkov representava de facto um adversário muito perigoso, porque, ao contrário do que inicialmente se acreditava entre a intelectualidade ocidental, ele na verdade não pretendia de todo redimensionar o marxismo-leninismo, mas antes reativá-lo criticamente, mostrando precisamente, mediante uma leitura hegeliana rigorosa, como o “marxismo soviético oficial” tinha, em vez disso, se distanciado incrivelmente do autêntico legado de Marx, Engels e Lenine.

 

Ora, para Ilyenkov, este distanciamento devia ser atribuído, antes de mais, ao abandono de facto do materialismo dialético, que é “a consequência natural e necessária de todo o desenvolvimento mais recente da filosofia e da ciência social” (1) - isto é, abandono daquele método científico que não só tende a considerar uma sociedade historicamente determinada como um organismo vivo, e não como um simples mecanismo a ser gerido mecanicamente a partir de cima, mas sobretudo que se opõe a qualquer forma de idealismo subjetivista, sendo, como Lenine mais do que uma vez sublinhou, “um processo de história natural regido por leis que não só não dependem da vontade, da consciência e das intenções dos homens, mas que, pelo contrário, determinam a sua vontade, a sua consciência e as suas intenções” (2).

 

Toda a atenção que Ilyenkov, no seu livro Dialética Leninista e Metafísica do Positivismo, dedicado ao Materialismo e Empiriocriticismo de Lenine, é movida apenas no sentido de uma defesa vigorosa do materialismo dialético, considerado como uma plataforma filosófica indispensável para abordar as contradições da modernidade, enquanto, em vez disso, a interferência neopositivista tinha lançado inexoravelmente a filosofia soviética numa dramática dimensão pré-marxista e pré-leninista, completamente separada da experiência e da atividade científica concreta, de modo a contribuir para a formação de uma teoria que não visa superar e resolver as contradições materiais e sociais, mas apenas geri-las, subordinando assim toda a atividade política e científica ao mero subjetivismo voluntarista da ordem estabelecida. Como escreve Ilyenkov, “Lenine apresentou claramente a sua conceção dos problemas colocados à filosofia por acontecimentos grandiosos em todas as esferas da vida humana - da economia à política, da ciência à tecnologia e à arte - formulando clara e categoricamente os princípios fundamentais para resolver estes problemas, delineando a sua solução lógica" (3).

 

II.

Se em Materialismo e Empiriocriticismo Lenine ainda tinha a expetativa de que o materialismo poderia conduzir os cientistas conscienciosos ao materialismo dialético, quando afirmou, com otimismo, que “a física contemporânea está nas dores do parto. Dará à luz o materialismo dialético” (4), é numa obra posterior, de 1922, intitulada O sentido do materialismo militante, passando primeiro pelos Cadernos Filosóficos, que ele fará questão de assinalar que “na ausência de uma base filosófica sólida não há ciências naturais nem materialismo que possam resistir à intromissão das ideias burguesas e ao renascimento da conceção burguesa do mundo […] o praticante das ciências naturais deve ser um materialista moderno, um defensor consciente do materialismo representado por Marx, que o mesmo é dizer que deve ser um materialista dialético” (5).

 

É, portanto, o materialismo dialético, a lógica, o pensamento desenvolvido segundo critérios precisos, o sinal comum a salvaguardar e a opor ao reducionismo da filosofia machista (5.1) que, à semelhança do marxismo oficial soviético, legitimou, a um nível teórico geral, o isolamento do conhecimento científico das referidas “esferas da vida humana”, moldando-o inexoravelmente em termos de dominação e controlo. Na base persiste a crítica leninista à plena adoção do método positivista no marxismo, após a sua substituição da dialética, tendendo a secionar e destruir a imagem viva de uma sociedade vivente, resultando na separação dos indivíduos entre si, mas sobretudo, na separação do material do ideal, com o efeito de fazer com que este último surja como uma ilusão subjetiva, uma estranha aberração conceitual, na realidade geradora de uma ideologia atrás da qual se escondem apenas interesses de classe.

 

Para Ilyenkov, a sobrevivência de um pensamento autenticamente comunista e marxista-leninista deveria passar pelo abandono de códigos filosóficos inadequados, começando pelo cientificismo positivista, passando pelo empirismo até ao idealismo da práxis, considerando por isso crucial estabelecer pontos essenciais para reconstruir uma gramática capaz, antes de tudo, de trazer à luz a real especificidade do materialismo dialético, segundo o qual “as estruturas do pensamento são governadas por leis universais da natureza e da história refletidas pelo conhecimento científico - e verificadas por milhares de anos de prática humana. Este é o ponto, esta é a diferença fundamental entre a dialética marxista e a hegeliana ou qualquer outra dialética” (6). O materialismo dialético, por outras palavras, não permite qualquer cedência ao voluntarismo e/ou ao subjetivismo, assim como exclui qualquer possibilidade de absolutizar a realidade, adaptando o pensamento ao próprio tempo.

 

E sabemos que tais tendências absolutizantes e tais prefigurações subjetivistas podem ocorrer através de dispositivos de tipo teológico, derivando as regulações de uma vontade divina; de tipo naturalista, com que tudo se refere a uma natureza imutável; mas sobretudo de tipo empirista, em que todo o conhecimento é fornecido exclusivamente pela reprodução daquilo que é dado pela experiência sensível, pelo que a única verdade é apenas aquela que é imposta unilateralmente (7). Mas um materialismo dialético coerentemente marxista e leninista nunca pode partir do sujeito ou de uma entidade superior para construir o conhecimento, a realidade, uma vez que o conhecimento e a realidade correspondem sempre ao produto de um processo que é dialético e que, por isso, os impede de serem explicados recorrendo a sensações ou dados avaliados subjetivamente, mas apenas a partir das categorias lógicas em que se baseiam.

 

III.

A dialética, como Ilyenkov sempre insistiu, é uma lógica que explora o pensamento científico, enriquecendo-se com as suas conquistas, mas deve fazê-lo precisamente como lógica, permanecendo como tal, isto é, desenvolvendo as suas próprias categorias testadas com base nessas conquistas, sem as substituir por conceitos de outras ciências. As categorias da dialética, continua Ilyenkov, têm mais de dois mil anos de história, representando a quintessência de todas as experiências grandiosas, e também dramaticamente contraditórias, acumuladas pelos homens no processo de conhecimento e na sua atividade prática. Nelas encontraram expressão filosófica e lógica, não só os acertos, mas também os erros, dialeticamente ligados ao avanço do conhecimento. Portanto, “só a história do pensamento e da tecnologia, bem como da luta social, tomadas no seu conjunto e no seu pleno desenvolvimento, são capazes de demonstrar e também refutar a sua objetividade, isto é, o seu significado lógico-universal. Nenhum sucesso individual e pessoal, por mais brilhante que seja, da ciência natural moderna, pode servir como critério suficiente da «correção» das definições das categorias lógicas” (8).

 

Ora, estes pontos essenciais, que nunca poderiam ter permitido qualquer tipo de evasão “filosófica” por parte de qualquer nomenklatura académica ou partidária, senão negando-os claramente, são restaurados por Ilyenkov, precisamente à luz do que Lenine tinha feito com o Materialismo e Empiriocriticismo no início do séc. XX. As questões pareciam-lhe homogéneas e da mesma matriz, pois tal como Lenine teve de combater os ataques promovidos pelas teorias de Bogdanov, tendo abordado o empiriocriticismo de Mach, Avenarius e Berman, como o materialismo dogmático e reacionário, dirigido contra as ciências naturais, num renascimento ofensivo do idealismo, cujo objetivo, no domínio a longo prazo de toda a produção científica e filosófica, teria sido expropriar os indivíduos de uma relação cognitiva real com a natureza, impedindo-os assim de serem capazes de transformar cientificamente as condições materiais de existência, tudo através de supostas revisões e correções a fazer ao materialismo dialético (9) com base numa legitimação fornecida exclusivamente pela ciência positiva - assim Ilyenkov, da mesma forma, lutou contra a penetração do positivismo na política e na filosofia soviéticas, criticando a rejeição da dialética, funcional apenas para o projeto tecnocrata de construção do "socialismo" na era brejneviana, o herdeiro disfarçado daquele empiriocriticismo denunciado por Lenine como a conclusão metafísica natural da lógica do positivismo.

 

O extraordinário paradoxo levantado por Ilyenkov, de que ele próprio foi vítima, é que, em aproximadamente setenta anos, desde a publicação de Materialismo e Empiriocriticismo, praticamente nada mudou. Lenine criticou o positivismo de um ponto de vista marxista e, embora, formalmente, a sua posição tenha sido reconhecida como a base oficial da filosofia marxista soviética, foi, no entanto, efetivamente liquidada, pois o positivismo não só continuava a sobreviver desenvoltamente, mas até mesmo a prevalecer, na comunidade política e filosófica da União Soviética. Por outras palavras, o que amadurece clamorosamente em Ilyenkov, com A Dialética Leninista e a Metafísica do Positivismo, é a convicção latente de que, apesar de todas as celebrações de Lenine como o maior dirigente revolucionário do século XX, quem venceu historicamente não foi Lenine, mas Bogdanov, cujo herdeiro não é outro senão o estalinismo.

 

IV.

Uma vitória que, na realidade, continuará em todo o seu esplendor com o florescimento, a partir de Estaline, das chamadas teses à la Bogdanov, como “reservatório inesgotável - escreverá Dominique Lecourt – dos temas verbalmente «de esquerda» da propaganda estalinista, em que entraram a título de elementos constitutivos. Do humanismo voluntarista, cujo hino ao «homem novo» foi cantado até 1935, antes de se tornar, com o stakhanovismo, motivo central de uma grandiosa mitologia da classe operária e do progresso técnico, à teoria das «duas ciências» que se torna, em 1948, sob a pressão de Jdanov, um temível instrumento nas mãos do partido, para mais uma vez adstringir as fileiras dos intelectuais à sua volta num momento de crise [...] Todos estes temas [...] estão diretamente presentes na obra de Bogdanov, de que são descendentes inconfessados" (10).

 

E assim, o "gnoseologismo" positivista de Bogdanov, a orientação para o conhecimento das ciências naturais e para o controlo técnico-manipulativo da sociedade da cultura e das ciências proletárias, juntamente com as experiências organizadas da sociedade humana do trabalho, todas caracterizadas por uma engenharia rigorosa e espírito técnico-especialista, encontrará, a partir da década de 1960, uma correspondente materialização na centralidade da tecnociência, com a física quântica, a cibernética (progenitora da inteligência artificial), a lógica algorítmica, enfim, naquele neopositivismo agora capaz de dirigir e organizar inteiramente o corpo social, privando-o, no entanto, de qualquer suporte dialético-materialista capaz de veicular o “pensamento científico para uma análise concreta das contradições de classe” (11), com a consequente impossibilidade de compreensão real dos processos cognitivos e capitulação perante qualquer aventura da ciência.

 

Eis, pois, a indispensabilidade da dialética como ferramenta para a compreensão das contradições, da realidade e dos seus processos cognitivos. E é aqui que a análise de Ilyenkov continua a ser atual ainda hoje. Sentiu especificamente como o materialismo dialético, corretamente entendido, representava um baluarte necessário para a compreensão das práticas de dominação que tendem para a hegemonia, das mudanças tecnológicas do mundo moderno que procuram captar - no seu tempo com a cibernética e hoje com a inteligência artificial - a inteligência social incorporada nas relações humanas, e depois as conquistas da ciência, as guerras, as crises económicas, as manipulações culturais, etc., em particular na testagem da sua correspondência com certos interesses de classe, bem como com objetivos funcionais para o controlo e a exploração, cada vez mais sofisticados e não imediatamente percetíveis.

 

E a dialética, na esteira de Lenine, - enquanto método científico que exige um “exame concreto e omnilateral(12), distingue “motivos subjetivos de condições históricas objetivas” (13), e “estuda os pontos de viragem inevitáveis, demonstrando a sua inevitabilidade com a análise mais minuciosa do desenvolvimento em toda a sua concretude” (14) - ao criticar conceitos apresenta sempre a característica de ter que dobrá-los e quebrá-los no campo da prova empírica, explorando a sua inadequação, porque só assim o pensamento é capaz de confrontar a realidade. Cada conceito encontra-se numa determinada relação, numa ligação específica com todos os outros. A dependência de todos os conceitos é mútua e sem exceção. Só assim a dialética adquire consistência, como transição incessante de um conceito para outro, como relatividade e identidade de oposição. Através da afirmação do trabalho e da técnica cada indivíduo percorre o caminho do conhecimento, passando do conhecimento subjetivo ao conhecimento objetivo. Toda a realidade se torna assim racional, mas também tudo o que é racional se torna real, através do trabalho social, da tecnologia, da ciência.

 

V.

 É precisamente na recuperação da dialética leninista e da sua mensagem intrínseca que Ilyenkov se pergunta por que razão um pensamento como o machista, com os seus epígonos neopositivistas - decididamente funcional às novas necessidades do capitalismo moderno que, se por um lado visa uma expulsão do concreto pelo abstrato, por outro lado produz subjetividades desprovidas de profundidade, servis à sua dominação e como tal incapazes de oposição - começa a desprezar Hegel e o materialismo dialético marxista. Precisamos de insistir nisso novamente. O machismo passa a sustentar a ideia de uma relação entre o material e o espiritual, considerando o domínio da ciência, e correlativamente o da economia - no sentido de uma abordagem economicista, como culto imoderado de um desenvolvimento hipertrófico das forças produtivas - tanto mais verdadeira quanto mais em relação, como já se disse, com uma decadência qualitativa do real.

 

A realidade não é negada pelos machistas, diz-nos Ilyenkov, mas esvaziada de conteúdo em nome daquele desaparecimento da matéria de que falava Lenine e que, por isso, é de facto rejeitada. Daí decorre uma série de repercussões políticas que ocorreram sistematicamente não só na realidade soviética, uma vez que livrar-se do materialismo, ou seja, de uma abordagem que tende a identificar a realidade com a matéria, significa não apenas rejeitar interpretações estruturais, forçando a aceitação passiva de "abstrações" consideradas essenciais, como as de natureza étnica, nacional e espiritual (15), mas significa também colocar a questão económica como um momento a ser imediatamente subordinado ao político, em cujo aperfeiçoamento se exige, no entanto, um poder de gestão único e exclusivo, que não permita pausas ou desvios de qualquer tipo no desenvolvimento das forças produtivas.

 

Esta dimensão, analisada dialeticamente, permite-nos compreender como se tem mantido uma dupla construção ideológica, apenas aparentemente alternativa, pois que uma vez idealizados os processos de modernização, podem de tempos em tempos ser retardados ou encorajados nos seus possíveis excedentes ou deficiências, seja fazendo referência ao passado, através da recuperação das raízes e valores populares, seja ao futuro, através da divinização do progresso científico. E é precisamente o machismo, tal como a sua tradução neopositivista, que idealizou o moderno. Mas para chegar a este resultado foi necessário rejeitar a dialética, uma vez que, “em qualquer das suas versões, seja hegeliana ou marxista, ela é igualmente inaceitável para um neopositivista, porque a dialética em geral afirma conhecer exatamente aquelas formas e leis de desenvolvimento que permanecem as mesmas, quer estejamos a falar do desenvolvimento do mundo externo (isto é, da natureza e da sociedade) ou do desenvolvimento do pensamento (conhecimento deste mundo), isto é, as formas e as leis que, por si sós, ligam o mundo físico num todo com o mundo psíquico, sem ao mesmo tempo abolir a oposição epistemológica destes dois mundos(16).

 

Foi a rejeição da dialética que produziu aquele inexorável Janus bifronte, tão deplorado por Lenine, que teria conduzido indistintamente ao modernismo e ao antimodernismo, tanto à eficiência produtiva dos sistemas capitalistas de Estado como os sistemas destinados, se necessário, a reativar as estruturas identitárias recorrendo aos mitos do passado, tanto ao revolucionário como ao contrarrevolucionário, este último, à imagem daquele bogdanoviano Engenheiro Menni, muito semelhante, como escreve Ilyenkov, a um engenheiro com quem Lenine realmente teve de lidar “algum tempo antes das jornadas de Julho” e que “já foi um revolucionário, membro do Partido Social Democrata e até do Partido Bolchevique. Hoje está apenas assustado, enfurecido contra os trabalhadores insurgentes que é impossível conter”. “Se ao menos fossem trabalhadores como os trabalhadores alemães!, disse (É um homem educado, já esteve no estrangeiro)”. “Naturalmente que compreendo a inevitabilidade da revolução social, mas aqui, com a descida do nível dos trabalhadores provocada pela guerra... isto não é uma revolução. É um abismo”. “Estaria disposto a aceitar a revolução social, se a história a conduzisse de forma pacífica, calma, suave e pontual, como um expresso alemão a entrar na estação. O ferroviário, muito cortês, abre as portas e anuncia: «Estação da Revolução Social! Alle aussteigen! (Desçam todos!)»” (17).

 

VI.

Por outro lado, é em virtude deste aparato conceitual global que se desenvolveu a operação machista denunciada por Lenine no início do século XX, uma vez que, ao pretender racionalizar a especialização progressiva da investigação e o crescimento exponencial das descobertas e dos paradigmas científicos, bem como o processo de tradução tecnológica das ciências para o sistema da máquina, com a consequente subsunção das forças produtivas e da ciência ao capital, era necessário tornar indecifrável a relação dialética entre o que acontece a nível social e o desenvolvimento do pensamento, evitando assim apreender “os diferentes pontos, os diferentes lados da questão, em relação às características concretas destas ou daquelas condições políticas e económicas” (18), ou seja, “o processo em todos os seus aspetos, tendo em conta o passado e o futuro" (19). Por outras palavras, se trabalharmos para cancelar a categoria de totalidade social, não podemos de forma alguma pensar em ser capazes de compreender os efeitos da exploração ou falar em nome e por conta das suas vítimas, o que implica que não podemos conceber algo diferente disto.

 

Tratava-se, assim, de separar a racionalidade da sua aplicação prática, ou seja, de impossibilitar a unificação da história humana “também através da história da ciência” (20). A eliminação da dialética - num contexto em que a ciência burguesa não é mais do que ciência para recompensar o capital que a sustenta e financia - permitiu, assim, definir melhor a nova relação entre o capital e a perícia tecnocientífica e as formas de consciência em que se estabeleceu a visão apologética do cientismo tecnocrático, o que permitiu também ocultar habilmente todas as formas de arbitrariedade e subjetivismo por detrás da noção de “cientificidade”. Neste sentido, a proposta filosófica de Ilyenkov visava corajosamente travar tudo isto, com vista a quebrar uma circularidade que remete para uma objetivação definitiva, em que se percebe o domínio da ideologia capitalista-burguesa, isto é, em que se entende que ela não só corresponde a um sistema de relações de produção, como é também uma forma de pensar e de representar a realidade, sem, no entanto, possuir os instrumentos necessários para a contrastar.

 

Na sua polémica Carta ao PCUS, Ilyenkov alertava os dirigentes académicos e institucionais para os perigos de uma formação universitária desprovida de um quadro de referência unitário, que, na sua opinião, só poderia ser proporcionado por uma formação rigorosa no materialismo dialético, enquanto lógica e método de compreensão e transformação da realidade, pelo conhecimento da história da filosofia, partindo da Grécia antiga (21) e chegando a Marx, Engels e Lenine, passando em particular por Spinoza e Hegel. Em vez disso, nas faculdades universitárias, os jovens eram formados (como hoje) em conhecimentos teóricos e competências técnico-profissionais totalmente setoriais e específicos, dotando-os de uma preparação totalmente ignorante de qualquer consciência histórica e filosófica. O físico, o engenheiro, o médico, o operador jurídico, encontram-se assim a navegar no mundo sem conhecer a história que produziu o respetivo conhecimento, mas, sobretudo, sem poder relacionar a sua especialidade técnica com os acontecimentos sociais, económicos e institucionais com base numa efetiva autoconsciência crítica.

 

A atualidade de Ilyenkov - num sistema que precisa agora apenas de bons especialistas e não de indivíduos pensantes, e de apagar a razão para a substituir artificialmente - reside precisamente em recolocar no centro da reflexão o tema da relação entre a teoria do conhecimento, a dialética e a atividade prática, entre a produção e a evolução do pensamento, entre as conquistas da ciência e a sua utilização ideológica, e na tentativa de renovar a urgência de uma filosofia dialética a ser plenamente assimilada para permitir dominar conceitualmente a realidade e as suas contradições, sabendo bem que o conhecimento nunca é neutro, mas é de classe, e que só é sujeito deste mundo quem tiver a contradição de si em si mesmo e for capaz de a sustentar (22). E tudo isto com Hegel, com Marx, com Engels, com Lenine. E com Ilyenkov, cujo destino trágico foi, em muitos aspetos, marcado precisamente por essa consciência, toda ela materialista e dialética, de que não basta ter uma teoria correta se depois, na prática, se trai desenvoltamente o seu conteúdo.

 

 

 

 

 

 

(*) Carlo di Mascio é um filósofo e pesquisador independente italiano. É autor de Pasukanis e la critica marxista del diritto borghese (Phasar Edizioni, 2013), Stirner giuspositivista. Rileggendo l'unico e la sua proprietà (Phasar Edizioni, 2015), Lenin e i Quaderni sulla Scienza della logica di Hegel (Phasar Edizioni, 2017), Masoch sovversivo. Cinque studi su «Venus im pelz» (Phasar Edizioni, 2018), Note su «Hegel. Stato e diritto» di Evgeny Pashukanis (Phasar Edizioni, 2020), Ilyenkov e la filosofia marxista-leninista. Introduzione a dialettica leninista e metafisica del positivismo di Evald Ilyenkov (Phasar Edizioni, 2024). É, precisamente, desta última obra que foi retirado este excerto, publicado em Sinistrainrete. A tradução é da responsabilidade de Ângelo Novo. Seria, porventura, esperar demais que, em algum dia, as Edições Avante nos oferecessem uma edição em língua portuguesa de uma qualquer das obras fundamentais de Evald Ilyenkov. Por exemplo A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Marx (1960), Lógica Dialética. Ensaios sobre sua história e teoria (1974), A Dialética Leninista e a Metafísica do Positivismo (póstumo, 1980) ou O Materialismo Inteligente. A lógica marxista-leninista e Hegel (coletânia de ensaios que tem tido várias edições internacionais). Entretanto, contentemo-nos com o que é possível colher na secção de língua portuguesa de Marxists Internet Archive, que inclui uma tradução integral (a partir do inglês) da primeira destas obras, porventura a opus magnum deste autor.

 

 

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NOTAS:

 

(1) V. I. Lenin, Ancora sulla teoria della realizzazione, in Opere Complete, vol. 4 [1898-1901], Editori Riuniti, Roma, 1957, p. 82.

 

(2) V. I. Lenin, Che cosa sono «gli amici del popolo»?, in Opere Complete, vol. 1 [1893-1894], Editori Riuniti, Roma, 1955, p. 163.

 

(3) E. Ilyenkov, Dialettica leninista e metafisica del positivismo. Riflessioni sul libro di Lenin ‘Materialismo ed empiriocriticismo’, [Ленинская диалектика и метафизика позитивизма. (Размышления над книгой В.И. Ленина «Материализм и эмп ириокритицизм»)], Izdatel’stvo politicheskojj literatury, Politizdat, Mosca, 1980, pp. 7-8. Este texto é o último de Ilyenkov, escrito em 1979 e publicado um ano após a sua morte.

 

(4) V. I. Lenin, Materialismo ed empiriocriticismo, in Opere Complete, vol. 14 [1908], Editori Riuniti, Roma, 1963, p. 307.

 

(5) V.I. Lenin, Il significato del materialismo militante, Opere Complete, vol. 33 [agosto 1921 – marzo 1923], Editori Riuniti, Roma, 1967, p. 210.

 

(5.1) [NT] A “filosofia machista” refere-se ao pensamento do físico e filósofo das ciências austríaco Ernst Mach (1838-1916), que tinha aderentes no partido bolchevique, capitaneados por Bogdanov, motivo porque Lenine lhe moveu uma extensa polémica em Materialismo e Empiriocriticismo.

 

(6) in E. Ilyenkov, Dialettica e concezione del mondo. La dialettica materialista come logica e metodologia della conoscenza scientifica moderna. Alma-Ata, 1977, p. 178 [Э.В. Ильенков, Диалектика и мировоззрение «Материалистическая диалектика как логика и методология современного научного познания». Алма-Ата, 1977].

 

(7) Hegel já considerava a falha fundamental do empirismo a unilateralidade da análise. Ao afirmar a importância da análise como modo de transição “da imediaticidade da perceção para o pensamento, na medida em que as determinações que o objeto analisado contém unidas em si mesmas, estando separadas, adquirem a forma de universalidade”, Hegel advertiu contra a possibilidade de derivar um conhecimento exaustivo dos sujeitos a partir dos seus resultados e depois deter-se apenas neles. Mostrou como este ponto de vista conduzia a uma conceção deformada dos mesmos, comparando um leque de experiências a uma pessoa que retira camada após camada de túnicas de uma cebola, separando, desmembrando, analisando e destruindo assim a substância viva e internamente unificada do facto: “O empirismo, na medida em que analisa os objectos, erra se acredita que os deixa tal como são, quando na realidade transforma o concreto em abstrato... O vivo é morto, uma vez que o vivo é apenas o concreto, o uno”. [in G.W.F. Hegel, La scienza della Logica, a cura di V. Verra, Utet, Torino, 2004, § 38, p. 190]. Em vez disso, para o verdadeiro conhecimento dos objetos na sua realidade viva e concreta, é necessário elevar-se, tendo em conta os resultados da análise, a um ponto superior que coincide com a “unificação do diverso”. A indicação hegeliana centra-se assim na unidade da análise e da síntese no processo de conhecimento, clarificando assim a natureza do pensamento dialético. Lukács também menciona isto no seu ensaio intitulado “O que é o marxismo ortodoxo?” em História e Consciência de Classe: “o empirismo mais obtuso nega que os factos sejam em geral tais apenas no quadro de uma tal elaboração metodológica - que pode diferir de acordo com o objetivo perseguido no conhecimento. Acredita que pode encontrar um facto importante em cada dado, em cada estatística, em cada factum brutum da vida económica. E não se dá conta de que a mais simples enumeração, a mais escassa catalogação de “factos” é já uma “interpretação”, in G. Lukács, Storia e coscienza di classe, Sugarco edizioni, Milano, 1991, p. 7.

 

(8) in E. Ilyenkov - M. Rosenthal, Lenin e gli attuali problemi della logica dialettica, in Comunista, 12 (1969) [М.М. Розенталь Э.В. Ильенков, В.И. Ленин и актуальные проблемы диалектической логики «Коммунист», 12 (1969)], pp. 18-19.

 

(9) Cfr. V.I. Lenin, Materialismo ed empiriocriticismo, cit., p. 336 ss. Como observou Werner Krauss, “o perigo das tentações idealistas era maior na época de Lenine do que na época de Marx e Engels. Em particular, os fundadores do socialismo tiveram de afirmar o seu método dialético contra o materialismo vulgar predominante. Na época de Lenine, porém, a burguesia, tendo-se tornado reacionária, tinha-se reconetado amplamente com o idealismo pré-hegeliano numa frente mais vasta. Daí a necessidade expressa por Lenine de sublinhar o materialismo dialético, marcando ainda mais as suas diferenças", in W. Krauss, Das Ende der bürgerlichen Philosophie. In ders.: Literaturtheorie, Philosophie und Politik. M. Naumann (Hg.), Berlin u.a. 1984, p. 505 (Hervorhebungen: W. Krauss).

 

(10) D. Lecourt, Bogdanov: specchio dell’intellighenzia sovietica, in A. Bogdanov, La scienza, l’arte e la classe operaia, a cura di D. Lecourt e H. Deluy, pref. di S. Tagliagambe, Mazzotta, Milano, 1978, pp. 13-14.

 

(11) E. Ilyenkov, Dialettica leninista e metafisica del positivismo, cit., p. 52.

 

(12) V. I. Lenin, Un passo avanti e due indietro, Opere Complete, vol. 7 [settembre 1903 – dicembre 1904], Editori Riuniti, Roma, 1959, p. 362.

 

(13) V. I. Lenin, La dittatura democratica rivoluzionaria del proletariato e dei contadini, Opere Complete, vol. 8 [gennaio – luglio 1905], Editori Riuniti, Roma, 1961, p. 268.

 

(14) V. I. Lenin, Un passo avanti e due indietro, cit., p. 399.

 

(15) A partir de Estaline, pensa-se no regresso sistemático à tradição, na valorização das raízes russas, no amor às canções populares e folclóricas, no culto da técnica e do trabalho, com o consequente desprezo pelas ideias filosóficas clássicas em favor de uma deferência obtusamente sagrada às hierarquias, na perspetiva de uma revalorização igualmente obtusamente sagrada das tarefas organizacionais e administrativas.

 

(16) in E. Ilyenkov, Dialettica e concezione del mondo // Filosofia e cultura, (1979), p. 349-350 [Ильенков Э.В. Диалектика и мировоззрение // Ильенков Э.В. Философия и культура (1979) – М., 1991].

 

(17) in E. Ilyenkov, Dialettica leninista e metafisica del positivismo, cit., pp. 99-10. A citação está em V. I. Lenin, I bolscevichi conserveranno il potere statale? in Opere complete, vol. 26 [settembre 1917 – febbraio 1918], Editori Riuniti, Roma, 1966, pp. 104-105.

 

(18) V. I. Lenin, Prefazione all'edizione russa del «carteggio di J. Ph. Becker, J. Dietzgen, F. Engels, K. Marx e altri con F.A. Sorge e altri, in Opere Complete, vol. 12 [gennaio - giugno 1907], Editori Riuniti, Roma, 1965, p. 330.

 

(19) V. I. Lenin, Marx sulla «ripartizione nera» americana, in Opere complete, vol. 8, cit., p. 297.

 

(20) A. Gramsci, Quaderni del carcere, Einaudi, Torino, 1975, p. 1449.

 

(21) Tal como Lenine que, com formidável clarividência, apelou ao estudo e aprofundamento da “história da filosofia. A filosofia grega assinalou todos estes momentos: os domínios do saber em que deve consistir a teoria do conhecimento e a dialética”, incluindo “a psicologia, o estudo da linguagem, a história do conhecimento em geral e a evolução mental da criança”, em V. I. Lenin, Quaderni filosofici, Opere complete, vol. 38, [Quaderni filosofici] a cura di I. Ambrogio, Editori Riuniti, Roma, 1969, p. 355.

 

(22) G.W.F. Hegel, Filosofia della natura, a cura di Valerio Verra, Utet, Torino 2002, § 359, p. 480.