Trump ao leme da economia dos E.U.A.

 

 

Michael Hudson (*)

 

 

 

Trump tem promovido uma série de planos para tornar a América forte - à custa de outros países. Dado o seu lema “nós ganhamos; vocês perdem”, alguns dos seus planos produziriam o efeito oposto do que ele imagina.

 

Isso não seria uma grande mudança na política dos Estados Unidos da América. Mas sugiro que a Lei de Hudson pode estar a atingir o seu auge com Trump: Todas as ações dos E.U.A. que atacam outros países tendem a sair pela culatra e acabam por custar à política norte-americana pelo menos o dobro.

 

Vimos que se tornou normal que os países estrangeiros sejam os beneficiários da agressão política dos E.U.A.. Este é o caso mais óbvio das sanções comerciais dos Estados Unidos da América contra a Rússia. Se não forem os próprios E.U.A. a perder de imediato, serão os seus aliados a suportar os custos. Sucedeu isso mesmo no caso do corte do gasoduto Nord Stream, que levou ao aumento das exportações norte-americanas de gás liquefeito (GNL). O custo, neste caso, dentro de alguns anos, poderá ser o facto de os Estados Unidos da América terem perdido a Europa e a NATO, em resultado da pressão exercida pelos países europeus para declararem a sua independência em relação à política norte-americana.

 

Para acelerar a despedida do hóspede europeu, os líderes da NATO estão a exigir sanções contra a Rússia e a China, dizendo que “as importações são iguais à dependência”. O que se seguirá serão contra-sanções russas e chinesas que impedirão a venda de outras matérias-primas à U.E..

 

Em ocasiões anteriores, discutimos o plano de Trump de aumentar as tarifas dos E.U.A. e de as utilizar de forma muito semelhante à imposição contra países que procuram agir de formas que não se enquadram na política externa dos E.U.A.. Há muita resistência a esta proposta por parte dos interesses republicanos e, em última análise, é o Congresso que tem de aprovar as suas propostas. Por isso, Trump provavelmente ameaça demasiados interesses instalados para fazer disto uma grande luta no início da sua administração. Estará ocupado a lutar para limpar o FBI, a CIA e os militares que se têm oposto a ele desde 2016.

 

A tentativa de Trump usar o dólar como arma (weaponise) terá mais sucesso do que as sanções comerciais dos E.U.A.?

 

O verdadeiro curinga pode acabar sendo as ameaças de Trump de transformar o dólar numa arma. Pelo menos essa esfera da política externa está mais sob o controlo do seu Poder Executivo. Juntamente com a sua vontade de controlar o comércio mundial de petróleo e as principais plataformas de comunicação social, Trump quer poder prejudicar outros países. É essa a sua ideia de negociação e de ser transacional.

 

Numa edição de fim de semana do Financial Times, o artigo de Gillian Tett sobre a “Maganomics” proposta por Trump cita o professor de Stanford Matteo Maggiori, que salienta que o poder nacional “não toca apenas nos bens, mas também no dinheiro. Estimamos que o poder geoeconómico dos E.U.A. assenta nos serviços financeiros, enquanto o poder chinês assenta na indústria transformadora" (1).

 

Assim, para além de querer controlar o fornecimento mundial de petróleo e GNL, Trump quer basear o poder dos E.U.A. no seu sistema financeiro. Recentemente, ameaçou castigar os países do BRICS que procurassem uma alternativa ao dólar.

 

Esta estratégia baseia-se no facto de os países necessitarem de acesso aos dólares americanos e aos mercados financeiros, tal como necessitam de petróleo e de tecnologia da informação sob o controlo comercial dos E.U.A.. Os E.U.A. tentaram bloquear o acesso da Rússia e de outros países ao sistema de compensação bancária SWIFT, mas, como normalmente acontece com as sanções, a Rússia e a China criaram o seu próprio sistema de recurso, pelo que esse plano não funcionou.

 

Os Estados Unidos da América conseguiram que o Banco de Inglaterra confiscasse o ouro da Venezuela e o oferecesse à oposição de direita. Isso resultou. E a U.E. e os Estados Unidos da América, em conjunto, confiscaram os 300 mil milhões de dólares detidos pela Rússia no estrangeiro. Isso resultou, e a U.E. deu os juros (cerca de 50 mil milhões de dólares acumulados) à Ucrânia para a ajudar a combater a Rússia.

 

Mas, primeiro, os Estados Unidos da América confiscaram todas as reservas da Ucrânia para as guardar, aparentemente para a ajudar a pagar as dívidas que tem vindo a contrair. Não creio que este ouro venha a ser disponibilizado para a reconstrução da Ucrânia. Apenas reflete um padrão norte-americano de apropriação de ativos. Os militares norte-americanos apoderaram-se do ouro da Líbia quando Kadhafi tentou usá-lo para criar uma alternativa africana ao dólar, baseada no ouro, para os bancos centrais deterem. E os E.U.A. também se apoderaram das reservas de ouro da Síria quando saíram, deixando apenas as exportações de petróleo como troféu norte-americano da sua conquista (2). Fizeram o mesmo com as reservas de ouro do Afeganistão quando saíram do país. Portanto, é óbvio que os Estados Unidos da América prevêem que o ouro volte a desempenhar um papel importante no sistema monetário mundial. (Para acrescentar insulto à injúria, quando as autoridades norte-americanas finalmente devolveram ao Irão o dinheiro que tinham retirado das suas reservas, chamou a isso uma dádiva e o Congresso atacou o ato).

 

A grande questão é saber até que ponto a política financeira agressiva dos E.U.A. pode funcionar a longo prazo. Será que vai afastar outros países? Tornar-se-á tão autodestrutiva como outras jogadas internacionais dos E.U.A.? Falemos da forma como o sistema monetário mundial irá provavelmente evoluir em resposta à tentativa norte-americana de ganhar o controlo financeiro.

 

Para mim, qualquer tentativa desse género parece impossível de concretizar. Como podem os E.U.A. ou qualquer outra nação imaginar que pode basear o seu poder internacional apenas nas finanças? Todos os países podem criar finanças e dinheiro. Mas nem todos os países podem industrializar-se - ou, no caso dos Estados Unidos da América e da Alemanha, reindustrializar-se.

 

Os Estados Unidos da América desindustrializaram-se e as suas políticas de privatização neoliberais sobrecarregaram a economia com um enorme peso do serviço da dívida, dos custos dos seguros de saúde e dos custos imobiliários. O sector FIRE (Finanças, Seguros e Imobiliário) aumentou a sua parte no PIB declarado, mas o seu rendimento não corresponde, de facto, a um “produto”. É um pagamento de transferência da economia de produção e consumo para o setor rentista. Isso torna o PIB norte-americano muito mais “vazio” do que o da China e da sua economia de mercado socializada. Quando o custo do crédito e das rendas aumenta, o PIB também aumenta.

 

Atualmente, o dinheiro é criado no computador. Qualquer nação ou agrupamento regional forte e autossuficiente pode criar a sua própria moeda. Já não precisam de basear o seu dinheiro e a sua dívida em barras de prata e ouro.

 

Por isso, penso que Trump está a viver num mundo do passado - especialmente tendo em conta que a chusma republicana de direita monetarista anseia pelo velho padrão câmbio-ouro, insistindo que a criação de dinheiro pelo governo é inerentemente inflacionária (como se o crédito bancário não o fosse de todo). Acho que é isso que faz dele um génio: é capaz de ter dois pontos de vista opostos ao mesmo tempo, cada um com a sua própria lógica que contradiz a do outro.

 

Os Estados Unidos da América eram muito fortes no mundo passado, quando o ouro era o principal ativo dos bancos centrais. Na sequência da Segunda Guerra Mundial, o Tesouro norte-americano conseguiu monopolizar 80% do ouro monetário dos bancos centrais do mundo até 1950, quando rebentou a Guerra da Coreia. Após a Segunda Guerra Mundial, outros países precisaram de dólares para comprar as exportações norte-americanas e para pagar dívidas denominadas em dólares, tendo vendido o seu ouro para obter esses dólares.

 

Entretanto, por volta de 1971, as despesas militares dos E.U.A. no estrangeiro tinham já dissipado esse controlo. As estatísticas que compilei para a Arthur Andersen em 1967 mostravam que todo o défice da balança de pagamentos dos E.U.A. - o défice que estava a drenar o ouro dos E.U.A. - era a despesa militar norte-americana no estrangeiro. Assim, as reservas monetárias dos bancos centrais passaram a consistir principalmente em dívida do Tesouro dos E.U.A., com a qual gastaram o excesso de dólares. Esta foi a mudança que o meu livro Super Imperialism descreveu em 1972.

 

Mas as tentativas dos E.U.A. de transformar as finanças numa arma levaram os outros países não só a tentar evitar deter mais dólares, mas também a evitar deixar o seu ouro armazenado nos Estados Unidos da América ou na Grã-Bretanha. Até mesmo a Alemanha pediu que as suas reservas de ouro lhe fossem devolvidas pelo banco da Reserva Federal de Nova Iorque, onde grande parte das reservas de ouro dos bancos centrais europeus tem sido mantida, desde que, na década de 1930, se assistiu a uma hemorragia de capitais em fuga para os Estados Unidos da América, quando a Segunda Guerra Mundial se aproximava.

 

Tal como a moeda nacional, o dinheiro internacional é dívida, a menos que seja um ativo puro como o ouro. Os Estados Unidos da América puderam substituir o ouro por dívida pública e privada, em grande parte porque esta proporcionava uma plataforma para pagamentos internacionais. Isso parecia torná-la “tão boa como o ouro” para as reservas internacionais.

 

Não me parece que isto vá ser um estado permanente dos assuntos internacionais. Qualquer pessoa pode criar dinheiro. Mas como é que se consegue que seja aceite? É esse o problema que os Estados Unidos da América enfrentam atualmente. À medida que a dívida dos E.U.A. cresce, durante quanto tempo conseguirá que os dólares sejam aceites por outras economias, se não houver necessidade inerente de os outros países os utilizarem para efetuar pagamentos no seu próprio comércio externo, empréstimos e investimentos?

 

O dinheiro é dívida pública. Quer seja emitido em papel ou eletronicamente, preserva o seu valor, em última análise, ao ser aceite para ser pago em impostos. Mas Trump e os republicanos querem reduzir os impostos. Se não há necessidade de obter dólares para pagar impostos, porquê mantê-los?

 

O emaranhado da dívida externa

 

Uma das razões que sustentam o dólar é a necessidade de o Sul global e outras economias devedoras obterem dólares para pagar as dívidas externas que contraíram. Mas quanto tempo é que isso pode durar? O problema é o seguinte: se pagarem as dívidas externas que contraíram seguindo as políticas destrutivas do FMI, do Banco Mundial e de outras políticas do Consenso de Washington, não terão dinheiro para investir no seu próprio crescimento económico. Que interesses colocarão em primeiro lugar: os dos bancos ou outros detentores de obrigações norte-americanos ou os da sua própria economia?

 

Dito de outra forma: Durante quanto tempo concordarão os países devedores em permanecer num sistema que prometeu ajudá-los a crescer, quando tudo o que fez foi deixá-los ainda mais endividados e forçá-los a vender direitos mineiros, infraestruturas e empresas públicas para obter o dinheiro para pagar essas dívidas, a fim de manter as suas taxas de câmbio? O sistema está a ser manipulado contra eles.

 

Este problema está hoje a ser exacerbado pela subida da taxa de câmbio do dólar em relação a muitas outras moedas. As ideias de Trump são muito confusas na tentativa de enfrentar este problema. Por um lado, falou em querer uma taxa de câmbio mais baixa para o dólar. Acredita que uma desvalorização competitiva poderia, de alguma forma, tornar as exportações norte-americanas mais competitivas. Mas a economia dos E.U.A. já está demasiado desindustrializada sob o neoliberalismo para reconstruir o seu poder industrial num futuro previsível. Portanto, forçar o dólar a baixar é impraticável como meio de estimular as exportações norte-americanas.

 

Trump tem falado em reduzir as taxas de juro para ajudar a alimentar uma expansão no mercado de ações e obrigações. Para muitos países - como o Canadá - a redução das taxas de juro leva a uma saída de capital para países estrangeiros que pagam taxas mais elevadas. Mas a economia dos E.U.A. é diferente. A descida das taxas de juro do QE (3) atraiu efetivamente capital estrangeiro, aumentando assim a taxa de câmbio do dólar. A descida das taxas de juro norte-americanas, após o pico de 20% das taxas de juro de Paul Volcker em 1980, levou à maior recuperação do mercado obrigacionista da história, juntamente com um mercado bolsista em expansão que atraiu investidores internacionais.

 

Para começar, a antecipação das políticas de Trump tem estado a fazer subir o dólar. Desde outubro passado, a taxa de câmbio do dólar canadiano desvalorizou-se, de modo que o dólar norte-americano compra 1,44 dólares canadianos, contra 1,34 dólares canadianos anteriormente. O preço do euro face ao dólar norte-americano desceu de 1,12 para 1,03 dólares. Além disso, as moedas dos países do Sul global estão sob forte pressão, devido ao facto de tentarem manter em dia as suas obrigações em dólares e outros empréstimos denominados em dólares.

 

Portanto, para o bem e para o mal, parece que este ano vamos ter um dólar forte. E Trump deixou claro que quer manter o “privilégio exorbitante” norte-americano de poder simplesmente imprimir dinheiro, deixando que os outros países evitem que as suas moedas se valorizem, com prejuízo para as suas exportações, reciclando as suas entradas de dólares para continuar a comprar títulos do Tesouro dos E.U.A.. Mas estes “vales” estão a subir em flecha, à medida que o défice orçamental explode.

 

Um problema conexo é saber durante quanto tempo o crédito fácil da Reserva Federal pode continuar a inflacionar os preços das acções e das obrigações, dado o aumento dos pagamentos em atraso e dos incumprimentos. A maior ameaça é a do imobiliário comercial, cujos pagamentos de hipotecas programadas excedem o rendimento atual das rendas, uma vez que os edifícios mais antigos enfrentam taxas de desocupação crescentes. Veja-se o caso do imobiliário comercial. Taxas de ocupação de 40% em edifícios antigos. E não podem ser transformados em edifícios residenciais, porque não têm janelas abertas para o ar fresco, nem boas vistas - nem apoio da vizinhança. Tal como a zona financeira da cidade de Londres, Wall Street e outros centros financeiros dos E.U.A. estão instalados em edifícios altos de vidro, sem comodidades, vistas, bairros de utilização mista ou ar fresco a entrar pelas janelas.

 

No sector do consumo, os créditos automóveis, as dívidas dos cartões de crédito e os empréstimos estudantis estão a ficar cada vez mais atrasados. Algo vai ter de ceder. E isso afectará não só os mercados financeiros norte-americanos, mas também a balança de pagamentos, uma vez que o capital estrangeiro fuja para a segurança, abandonando os Estados Unidos da América. Seria a primeira vez, em mais de um século, que essa fuga para a segurança seria para fora dos Estados Unidos da América e não para eles.

 

A economia dos E.U.A. foi redesenhada para inflacionar os ganhos financeiros, ao mesmo tempo que se desindustrializava através da externalização da sua força de trabalho. Assim, o que parecia ser a industrialização dos E.U.A. foi substituído pela desindustrialização financeirizada.

 

Isso significa que o impulso dos BRICS para se defenderem coletivamente contra a hegemonia dos E.U.A. implica realmente uma ampla e fundamental cisão no entendimento do que é uma forma desejável de organizar as economias, opondo-se ao capitalismo financeiro como predatório. Mais ainda quando Trump está a tentar forcá-lo, impondo sanções contra países que se afastam dos dólares.

 

Caminho para o caos

 

A década de 1940 assistiu a uma série de filmes com Bing Crosby e Bob Hope, começando com Road to Singapore (Caminho para Singapura) em 1940. O enredo foi sempre semelhante. Bing e Bob, dois vigaristas de fala rápida ou parceiros de canto e dança, encontravam-se em apuros em algum país, e Bing saía disso vendendo Bob como escravo (Marrocos em 1942, com Bing a prometer comprá-lo de volta), ou entregando-o ao sacrifício em alguma cerimónia pagã, e assim por diante. Bob alinha sempre com o plano, e acaba sempre por haver um final feliz hollywoodiano, em que eles escapam juntos – com Bing a ficar sempre com a rapariga.

 

Nos últimos anos, temos assistido a uma série de encenações diplomáticas semelhantes com os Estados Unidos da América e a Alemanha (representando a Europa como um todo). Poderíamos chamar-lhe Road to Chaos (Caminho para o Caos). Os Estados Unidos da América traíram a Alemanha ao destruir o Nord Stream, com o chanceler alemão Olaf Scholtz (a infeliz personagem de Bob Hope) a acompanhá-lo, e com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a desempenhar o papel de Dorothy Lamour (a rapariga que é o prémio de Bing, nos filmes Hollywood da série Road) a exigir que toda a Europa aumente os seus gastos militares da NATO para além da exigência de Biden de 2%, que agora Trump escalou para 5%. Para agravar a situação, a Europa vai impor sanções ao comércio com a Rússia e a China, obrigando as suas principais indústrias a relocalizarem-se nos Estados Unidos da América.

 

Assim, ao contrário dos filmes, isto não terminará com os Estados Unidos da América a correr para salvar a ingénua Alemanha. Em vez disso, a Alemanha e a Europa como um todo tornar-se-ão ofertas de sacrifício no nosso esforço desesperado, mas inútil, para salvar o Império dos E.U.A.. Embora a Alemanha possa não acabar imediatamente com a sua população emigrante e em declínio, como a Ucrânia, a sua destruição industrial está bem encaminhada.

 

Trump disse ao Fórum Económico de Davos, a 23 de janeiro: “A minha mensagem para todas as empresas do mundo é muito simples: venham fabricar o vosso produto na América e nós dar-vos-emos um dos impostos mais baixos de qualquer nação do planeta”. Caso contrário, se continuarem a tentar produzir internamente ou noutros países, os seus produtos serão cobrados com tarifas de 20%, como ameaçado por Trump.

 

Para a Alemanha, isto significa (paráfrase minha): “Desculpem, os vossos preços da energia quadruplicaram. Venham para a América e comprem-na por um preço quase tão baixo como o que pagavam à Rússia antes de os vossos líderes eleitos nos deixarem cortar o Nord Stream”.

 

A grande questão é quantos outros países ficarão tão quietos como a Alemanha enquanto Trump muda as regras do jogo: a Ordem Baseada em Regras da América. Em que ponto será atingida uma massa crítica que altere a ordem mundial no seu todo?

 

Poderá haver um final hollywoodesco para o caos que se aproxima? A resposta é não, e a chave pode ser encontrada no efeito na balança de pagamentos das tarifas e das sanções comerciais ameaçadas por Trump. Nem Trump nem os seus conselheiros económicos compreendem os danos que a sua política ameaça causar, ao desequilibrar radicalmente a balança de pagamentos e as taxas de câmbio em todo o mundo, tornando inevitável uma rotura financeira.

 

Os constrangimentos de balança de pagamentos e de taxa de câmbio na agressão tarifária de Trump

 

Os dois primeiros países que Trump ameaçou foram os parceiros norte-americanos do NAFTA, o México e o Canadá. Contra ambos os países, Trump ameaçou aumentar as tarifas dos E.U.A. sobre as importações dos mesmos em 20%, se não obedecerem às suas exigências políticas.

 

Ameaçou o México de duas maneiras. Em primeiro lugar, está o seu programa de imigração, que consiste na exportação de imigrantes ilegais e na permissão de trabalho de curto prazo para mão-de-obra mexicana sazonal, para trabalhar na agricultura e em serviços domésticos. Sugeriu deportar toda a onda de imigração latino-americana para o México, alegando que a maioria veio para os E.U.A. através da fronteira mexicana ao longo do Rio Grande. Isto ameaça impor uma enorme sobrecarga de assistência social ao México, que não tem muro na sua fronteira sul.

 

Existe também um forte custo na balança de pagamentos para o México e, na verdade, para outros países cujos cidadãos procuraram trabalho nos Estados Unidos da América. Uma importante fonte de dólares para estes países tem sido o dinheiro remetido pelos trabalhadores que enviam o que podem para as suas famílias. Esta é uma importante fonte de dólares para as famílias da América Latina, Ásia e outros países. Deportar os imigrantes eliminará uma fonte substancial de receitas que sustentava as taxas de câmbio das suas moedas em relação ao dólar.

 

Impor uma tarifa de 20% ou outras barreiras comerciais ao México e a outros países seria um golpe fatal para as suas taxas de câmbio, reduzindo o comércio de exportação que a política dos E.U.A. promoveu, começando com o Presidente Carter que encorajou a externalização do emprego dos E.U.A., utilizando mão-de-obra mexicana para manter os salários do seu próprio país sob controlo. A criação do NAFTA sob Bill Clinton levou a uma longa linha de fábricas de montagem maquiladoras a sul da fronteira E.U.A./México, empregando mão-de-obra mexicana de baixos salários em linhas de montagem criadas por empresas norte-americanas para poupar custos laborais. As tarifas privariam abruptamente o México dos dólares recebidos para pagar em pesos a esta força de trabalho e também aumentariam os custos para as suas empresas-mãe nos E.U.A..

 

O resultado destas duas políticas de Trump seria uma queda na fonte de dólares do México. Isto obrigará o México a fazer uma escolha: se aceitar passivamente estes termos, a taxa de câmbio do peso irá desvalorizar. Isto tornará as importações (com preços em dólares a nível mundial) mais caras em termos de pesos, levando a um aumento substancial da inflação interna. Em alternativa, o México pode colocar a sua economia em primeiro lugar e dizer que a perturbação do comércio e dos pagamentos provocada pela ação tarifária de Trump o impede de pagar os encargos das suas dívidas em dólares aos detentores dessas obrigações.

 

Em 1982, o incumprimento do México nos seus títulos de dívida denominados em dólares desencadeou a bomba de incumprimentos da dívida da América Latina. Os atos de Trump parecem forçar uma repetição. Neste caso, a resposta compensatória do México seria suspender o pagamento dos seus títulos em dólares americanos.

 

Isto pode ter efeitos de longo alcance, porque muitos outros países da América Latina e do Sul global estão a atravessar uma crise semelhante na sua balança comercial e de pagamentos internacionais. A taxa de câmbio do dólar já tem vindo a subir em relação às suas moedas como resultado do aumento das taxas de juro por parte da Reserva Federal, atraindo fundos de investimento da Europa e de outros países. Um dólar em alta significa um aumento dos preços de importação do petróleo e das matérias-primas denominadas em dólares.

 

O Canadá enfrenta uma crise semelhante na sua balança de pagamentos. O seu equivalente das maquiladoras do México são as suas fábricas de peças automóveis em Windsor, do outro lado do rio em relação a Detroit. Na década de 1970, os dois países acordaram o Pacto Automóvel, definindo que fábricas de montagem trabalhariam na produção conjunta de automóveis e camiões dos E.U.A..

 

Bem, “acordaram” pode não ser o verbo adequado. Eu estava em Otava na altura, e as autoridades governamentais ficaram muito ressentidas por terem ficado com a parte mais prejudicada no negócio do automóvel. Mas continua a existir hoje, cinquenta anos depois, e continua a ser um dos principais contribuintes para a balança comercial do Canadá e, consequentemente, para a taxa de câmbio do seu dólar, que já tem vindo a cair face ao dos Estados Unidos da América.

 

É claro que o Canadá não é o México. A ideia de suspender o pagamento dos seus títulos em dólares é impensável num país gerido em grande parte pelos seus bancos e interesses financeiros. Mas as consequências políticas serão sentidas em todo o espetro político canadiano. Haverá um sentimento anti-americano (sempre a borbulhar sob a superfície no Canadá) que deverá acabar definitivamente com a fantasia de Trump de fazer do Canadá o 51.º estado da união.

 

Os fundamentos morais implícitos da ordem económica internacional

 

Há um princípio moral básico ilusório em ação nas ameaças comerciais e tarifárias de Trump. Ele fundamenta a ampla narrativa através da qual os Estados Unidos da América têm procurado racionalizar a sua dominação unipolar da economia mundial. Este princípio é a ilusão de reciprocidade a apoiar uma distribuição mútua de benefícios e crescimento – e no vocabulário norte-americano está envolto em valores democráticos e conversas padronizadas sobre mercados livres prometendo estabilizadores automáticos sob o sistema internacional patrocinado pelos E.U.A..

 

Os princípios da reciprocidade e da estabilidade foram centrais nos argumentos económicos de John Maynard Keynes durante o debate no final da década de 1920 sobre a insistência dos E.U.A. em que os seus aliados europeus de guerra pagassem pesadas dívidas por armas compradas aos Estados Unidos da América antes da sua entrada formal na guerra. Os Aliados concordaram em pagar, impondo reparações alemãs, para assim transferir o custo para o perdedor da guerra. Mas as exigências dos Estados Unidos da América aos seus aliados europeus, e, por sua vez, destes à Alemanha, estavam muito para além da capacidade de serem satisfeitas.

 

O problema fundamental, explicou Keynes, era que os Estados Unidos da América estavam a aumentar as suas tarifas contra a Alemanha em resposta à desvalorização da moeda desta e depois impuseram a tarifa Smoot-Hawley contra o resto do mundo. Isto impediu que a Alemanha ganhasse moeda forte para pagar aos aliados e que estes pagassem assim aos Estados Unidos da América.

 

Para que o sistema financeiro internacional de serviço da dívida funcione, Keynes salientou que um país credor tem a obrigação de proporcionar aos países devedores a oportunidade de angariar dinheiro para pagar através das exportações para o país credor. Caso contrário, haverá um colapso da moeda e uma austeridade paralisante para os devedores. Este princípio básico deve estar no centro de qualquer projeto de organização da economia internacional, com freios e contrapesos para evitar tal colapso.

 

Os opositores de Keynes – o monetarista francês anti-alemão Jacques Rueff e o defensor do comércio neoclássico Bertil Ohlin – repetiram o mesmo argumento que David Ricardo expôs no seu depoimento de 1809-1810 perante o Comité do Ouro da Grã-Bretanha. Alegou que o pagamento de dívidas externas cria automaticamente um equilíbrio nos pagamentos internacionais. Esta teoria económica ridícula (“junk”) forneceu uma lógica que continua a ser, hoje em dia, o modelo básico de austeridade do F.M.I..

 

De acordo com a fantasia desta teoria, quando o pagamento do serviço da dívida reduz os preços e os salários no país que paga a dívida, isso aumentará as suas exportações, tornando-as menos dispendiosas para os estrangeiros. E supostamente, o recebimento do serviço da dívida pelos países credores será monetizado para aumentar os seus próprios preços (a Teoria Quantitativa da Moeda), reduzindo as suas exportações. Esta alteração de preços deverá continuar até que o país devedor, que sofre uma saída monetária e de austeridade, consiga exportar o suficiente para pagar aos seus credores estrangeiros.

 

Mas os Estados Unidos da América não permitiram que as importações estrangeiras competissem com os seus próprios produtores. E para os devedores, o preço da austeridade monetária não foi uma produção de exportação mais competitiva, mas sim a perturbação económica e o caos. O modelo de Ricardo e a teoria neoclássica dos E.U.A. eram simplesmente uma desculpa para uma política de credores de linha dura. Os ajustamentos estruturais ou a austeridade têm sido devastadores para as economias e governos a quem foram impostos. A austeridade reduz a produtividade e a produção.

 

Em 1944, quando Keynes tentava resistir à exigência de subserviência por parte dos E.U.A., em comércio externo e política monetária, na conferência de Bretton Woods, propôs o bancor, um acordo intergovernamental de balança de pagamentos que exigia que as nações credoras crónicas (nomeadamente, os Estados Unidos da América) perdessem a sua acumulação de créditos financeiros sobre os países devedores (como viria a ser a Grã-Bretanha). Este seria o preço a pagar para evitar que a ordem financeira internacional polarizasse o mundo entre países credores e devedores. Os credores tinham de permitir que os devedores pagassem, ou perderiam os seus direitos financeiros ao pagamento.

 

Keynes, como já foi acima referido, também enfatizou que, se os credores quiserem ser pagos, teriam de importar dos países devedores para que estes tivessem capacidade de pagar. Esta era uma política profundamente moral e tinha o benefício adicional de fazer sentido económico. Isto permitiria que ambas as partes prosperassem, em vez de ter uma nação credora a prosperar enquanto os países devedores sucumbiam à austeridade, impedindo-os de investir na modernização e no desenvolvimento das suas economias através do aumento das despesas sociais e dos padrões de vida.

 

Sob a administração de Donald Trump, os Estados Unidos da América estão a violar este princípio. Não existe um acordo do tipo bancor keynesiano em vigor, mas existem as duras realidades da diplomacia unipolar que dá prioridade aos Estados Unidos da América. Se o México quiser salvar a sua economia de mergulhar na austeridade, na inflação dos preços, no desemprego e no caos social, terá de suspender os seus pagamentos de dívidas externas denominadas em dólares.

 

O mesmo princípio se aplica a outros países do Sul global. E se agirem em conjunto, terão uma posição moral para criar uma narrativa realista e até inevitável das pré-condições para que qualquer ordem económica internacional estável funcione. As circunstâncias estão a forçar o mundo a distanciar-se da ordem financeira centrada nos E.U.A.. A taxa de câmbio do dólar norte-americano vai disparar no curto prazo, como resultado do bloqueio das importações por Trump com tarifas e sanções comerciais. Esta alteração da taxa de câmbio irá pressionar os países estrangeiros que têm dívidas em dólares, da mesma forma que o México e o Canadá serão pressionados. Para se protegerem, devem suspender o serviço da dívida em dólares.

 

Esta resposta à sobrecarga da dívida atual não se baseia no conceito de Dívidas Odiosas. Vai para além da crítica de que muitas destas dívidas e dos seus termos de pagamento não eram do interesse dos países aos quais estas dívidas foram impostas em primeiro lugar. Vai para além da crítica de que os credores devem ter alguma responsabilidade ao julgar a capacidade dos seus devedores para pagar – ou sofrer perdas financeiras se não o fizerem.

 

O problema político do excesso de dívidas em dólares no mundo é que os Estados Unidos da América estão a agir de uma forma que impede os países devedores de ganhar dinheiro para pagar dívidas estrangeiras denominadas em dólares norte-americanos. A política dos E.U.A. representa, portanto, uma ameaça para todos os credores que denominam as suas dívidas em dólares, tornando estas dívidas praticamente impagáveis sem a destruição das suas próprias economias.

 

A suposição política dos E.U.A. de que outros países não responderão à sua agressão económica

 

Trump sabe realmente o que está a fazer? Ou a sua política descontrolada está simplesmente a causar danos colaterais a outros países? Creio que o que está em causa é uma contradição interna profunda e básica da política dos E.U.A., semelhante à da diplomacia norte-americana na década de 1920. Quando Trump prometeu aos seus eleitores que os Estados Unidos da América deveriam ser os “vencedores” em qualquer acordo comercial ou financeiro internacional, está a declarar guerra económica ao resto do mundo.

 

Trump está a dizer aos restantes países do mundo que devem ser uns falhados – e aceitar o facto graciosamente como pagamento pela proteção militar que ele proporciona ao mundo, para o caso de a Rússia invadir a Europa ou de a China enviar o seu exército para Taiwan, Japão ou outros países. A fantasia é que a Rússia teria algo a ganhar ao ter de sustentar uma economia europeia em colapso, ou que a China decidiria competir militarmente em vez de economicamente.

 

A húbris está presente nesta fantasia distópica. Enquanto potência hegemónica mundial, a diplomacia dos E.U.A. raramente tem em conta a forma como os países estrangeiros irão responder. A essência da sua arrogância é assumir de forma simplista que os países se submeterão passivamente às ações dos E.U.A. sem qualquer reação. Esta tem sido uma suposição realista para países como a Alemanha ou aqueles com políticos clientes dos E.U.A. no poder.

 

Mas o que está a acontecer hoje tem um carácter sistémico. Em 1931, foi finalmente declarada uma moratória sobre as dívidas inter-Aliados e sobre as reparações alemãs. Mas isto foi dois anos depois do desastre da bolsa de 1929 e das anteriores hiperinflações na Alemanha e em França. Seguindo uma linha semelhante, a década de 1980 viu as dívidas latino-americanas serem reduzidas pelos títulos Brady. Em ambos os casos, as finanças internacionais foram a chave para o colapso político e militar geral do sistema, porque a economia mundial se tornou autodestrutivamente financeirizada. Algo semelhante parece hoje inevitável. Qualquer alternativa viável passa pela criação de um novo sistema económico mundial.

 

 A política interna dos E.U.A. é igualmente instável. O teatro político America First de Trump, que lhe garantiu a eleição, pode vir a destituir o seu gangue, à medida que as contradições e consequências da sua filosofia operacional forem reconhecidas e substituídas. A sua política tarifária irá acelerar a inflação dos preços nos E.U.A. e, ainda mais fatalmente, causará o caos nos mercados financeiros norte-americanos e estrangeiros. As cadeias de abastecimento serão interrompidas, suspendendo as exportações norte-americanas de tudo, desde aeronaves a tecnologia da informação. E os outros países ver-se-ão obrigados a fazer com que as suas economias deixem de depender das exportações dos E.U.A. ou do crédito em dólares.

 

E talvez, a longo prazo, isso não seja algo mau. O problema reside no curto prazo, uma vez que as cadeias de abastecimento, os padrões comerciais e a dependência serão inevitavelmente substituídos, como parte da nova ordem económica geopolítica que a política dos E.U.A. está a forçar os outros países a desenvolver.

 

Trump baseia a sua tentativa de romper os laços existentes e a reciprocidade do comércio e das finanças internacionais no pressuposto de que, numa confusão caótica, os Estados Unidos da América sairão vitoriosos. Esta confiança fundamenta a sua vontade de retirar as atuais interligações geopolíticas. Pensa que a economia dos E.U.A. é como um buraco negro cósmico, ou seja, um centro de gravidade capaz de puxar para si todo o dinheiro e o excedente económico do mundo. Este é o objetivo explícito do America First. É isto que faz do programa de Trump uma declaração de guerra económica ao resto do mundo. Já não há sequer a promessa de que a ordem económica patrocinada pela diplomacia dos E.U.A. tornará outros países prósperos. Os ganhos do comércio e do investimento estrangeiro devem ser enviados e concentrados nos Estados Unidos da América.

 

O problema vai para além de Trump. Ele está simplesmente a seguir o que já estava implícito na política dos E.U.A. desde 1945. A autoimagem dos Estados Unidos da América é que eles são a única economia do mundo que pode ser completamente autossuficiente. Produz a sua própria energia e também os seus próprios alimentos, fornecendo essas necessidades básicas a outros países ou reservando para si a capacidade de fechar a torneira.

 

Mais importante ainda, os Estados Unidos da América são a única economia sem as restrições financeiras que limitam os outros países. A dívida dos E. U.A. está na sua própria moeda, e não há limites para a sua capacidade de gastar acima das suas possibilidades, inundando o mundo com dólares excedentários, que outros países aceitam como as suas reservas monetárias, como se o dólar ainda fosse tão bom como o ouro. E por baixo de tudo isto está a suposição de que, quase com um toque no interruptor, os Estados Unidos da América podem tornar-se tão autossuficientes industrialmente como eram em 1945. Os E.U.A. são, no mundo atual, a Blanche duBois de Um Elétrico Chamado Desejo, de Tennessee Williams, vivendo no passado.

 

A narrativa neoliberal egoísta do império norte-americano

 

Para obter a aquiescência estrangeira em aceitar um império e em viver pacificamente nele, é necessária uma narrativa suave que retrate o império como algo que puxa a todos para a frente. O objetivo é dissuadir os outros países da resistência a um sistema que é, na verdade, explorador. Primeiro a Grã-Bretanha e depois os Estados Unidos da América promoveram a ideologia do imperialismo de comércio livre, depois de as suas políticas mercantilistas e protecionistas lhes terem dado uma vantagem de custos sobre os outros países, transformando-os em satélites comerciais e financeiros.

 

Trump afastou por completo essa cortina ideológica. Em parte, isto deve-se simplesmente ao reconhecimento de que ela já não pode ser mantida, face à política externa efetiva dos E.U.A./NATO, à sua guerra militar e económica contra a Rússia, às sanções contra o comércio com a China, a Rússia, o Irão e outros membros dos BRICS. Seria uma loucura que outros países não rejeitassem este sistema, agora que a sua narrativa justificadora é patentemente falsa, para todos o verem.

 

A questão é: como conseguirão colocar-se em condições de criar uma ordem mundial alternativa? Qual é a trajetória provável?

 

Países como o México não têm realmente grande escolha a não ser seguir sozinhos. O Canadá pode sucumbir, deixando a sua taxa de câmbio descer e os seus preços internos subir, uma vez que as suas importações são denominadas em dólares de “moeda forte”. Mas muitos países do Sul global estão na mesma situação de aperto na balança de pagamentos que o México. E a menos que tenham elites clientes como a Argentina – que é a principal detentora de títulos em dólares da dívida do seu próprio país – os seus dirigentes políticos terão de parar os pagamentos da dívida ou sofrer a austeridade interna (deflação da economia local), juntamente com a inflação dos preços das importações, à medida que as taxas de câmbio das suas moedas cedem face às pressões impostas pela valorização do dólar norte-americano. Terão de suspender o serviço da dívida ou então serão afastados do cargo.

 

Poucos políticos importantes têm a liberdade que Annalena Baerbock, da Alemanha, tem de dizer que o seu Partido Verde não tem de ouvir o que os eleitores alemães dizem que querem. As oligarquias do Sul global podem contar com o apoio dos E.U.A., mas a Alemanha é certamente uma exceção quando se trata de estar disposta a cometer suicídio económico por lealdade à política externa dos E.U.A., sem limites.

 

Suspender o serviço da dívida é menos destrutivo do que continuar a sucumbir à ordem America First de Trump. O que bloqueia esta política é político, juntamente com o medo centrista de embarcar na grande mudança política necessária para evitar a polarização económica e a austeridade.

 

A Europa parece receosa de usar a opção de, pura e simplesmente, desafiar o blefe de Trump, não obstante este ser uma ameaça vazia, que seria bloqueada pelos próprios interesses adquiridos da classe dirigente norte-americana. Trump declarou que, se um país não aceitar gastar 5% do seu PIB em armamento militar (em grande parte dos Estados Unidos da América) e comprar mais energia de gás natural liquefeito (GNL) aos E.U.A., lhe irá impor tarifas de 20%. Mas se os dirigentes europeus não resistirem, o euro cairá talvez 10 ou 20 por cento. Os preços domésticos aumentarão, e os orçamentos nacionais terão de cortar nos programas de despesas sociais, como o apoio às famílias para comprarem gás ou eletricidade mais caros para aquecer e fornecer energia às suas casas.

 

Os dirigentes neoliberais norte-americanos congratulam-se com esta fase de guerra de classes das exigências dos E.U.A. aos governos estrangeiros. A diplomacia dos E.U.A. tem sido tão ativa no enfraquecimento da liderança política dos antigos partidos trabalhistas e sociais-democratas, na Europa e noutros países, que parece já não lhe importar o que os eleitores desejam. É para isso que serve o National Endowment for Democracy norte-americano, juntamente com domínio sobre os grandes meios de comunicação e a sua narrativa. Mas o que está a ser abalado não é apenas o domínio unipolar dos Estados Unidos da América sobre o Ocidente e a sua esfera de influência, mas a estrutura mundial do comércio e das relações financeiras internacionais – e, inevitavelmente, também, as relações e alianças militares.

 

 

 

 

 

 

 

(*) Michael Hudson (n. 1939) é um economista norte-americano, professor de Economia na Universidade do Missouri, em Kansas City, pesquisador do Levy Economics Institute do Bard College e Presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (ISLET). O ISLET dedica-se à investigação sobre finanças nacionais e internacionais, rendimentos nacionais e contabilidade de balanço no que diz respeito a bens imóveis. Envolve-se também na história económica do antigo Próximo Oriente. Estudou e meditou extensamente e em profundidade sobre história e teoria económica, nas suas diversas escolas, incluindo a fisiocrática, a economia política clássica, marxista, neoclássica, keynesiana, pós-keynesiana, a teoria monetária moderna, etc.. Dedicou particular atenção ao problema da dívida, pública e privada. Foi analista financeiro em Wall Street e conselheiro económico, sobre finanças e direito fiscal, de governos de todo o mundo, incluindo a Islândia, a Letónia e a China, para além de muitas organizações não-governamentais. É autor de numerosos livros, entre os quais The Myth of Aid – The Hidden Agenda of the Development Reports (1971), Global Fracture: The New International Economic Order (1977), Super-Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance (2003), Trade, Development and Foreign Debt – A history of theories of polarisation and convergence in the international economy (2009), The Bubble and Beyond (2012), Killing the Host - How Financial Parasites and Debt Destroy the Global Economy (2015), J is for Junk Economics: A Guide to Reality in an Age of Deception (2017), …and forgive them their debts – Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee year (2018), Cold War 2.0. The Geopolitical Economics of Finance Capitalism vs. Industrial Capitalism (2021) e The Destiny of Civilization: Finance Capitalism, Industrial Capitalismo or Socialism (2022), entre muitos outros. Apesar da sua já avançada idade, mantém uma presença constante, dinâmica, informadíssima e muito lúcida, como comentador económico e geopolítico, em diversos fora na internet.

Este texto aglomerou dois artigos publicados em janeiro de 2025, por alturas da tomada de posse de Donald Trump como presidente dos E.U.A.. São eles “Weaponizing the US Dollar e “Trump’s Balance-of-Payments War on Mexico, and the Whole World. A tradução é de Ângelo Novo.

 

 

 

 

 

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NOTAS:

 

(1) Gillian Tett, “That is Maganomics”, Financial Times, 4 de janeiro de 2025.

 

(2) [NT] Nesta frase há seguramente um lapso e Michael refere-se ao Iraque. Não está excluído, porém, que os E.U.A. venham ainda efetivamente a deitar a mão às reservas de ouro sírias, como já fazem com o seu petróleo há largos anos. Os E.U.A. roubam desavergonhadamente todo o ouro em que conseguem por as mãos, para reforçar as suas reservas, depauperadas por décadas de esforço para manter o seu preço estável e impor o seu dólar com o estatuto de “tão bom como ouro”. Sobre isso, ouça-se a esclarecedora entrevista do próprio Michel Hudson, “Why is the price of gold skyrocketing?, Geopolitical Economy Report, com Ben Norton.

 

(3) [NT] QE – Quantitative Easing, é uma política monetária expansionista em grande uso após 2007-2008, que consiste em os bancos centrais comprarem títulos de dívida pública e outros títulos financeiros para estimular a atividade económica.