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Velhas e novas andanças do imperialismo - III
Prabhat Patnaik (*)
A resistência da África Ocidental contra o imperialismo
A África Ocidental, que esteve em grande parte sob domínio colonial francês, nunca assistiu a uma descolonização, do tipo a que a Índia assistiu. Para começar, a moeda das antigas colónias francesas continuou a estar ligada ao franco francês a uma taxa de câmbio fixa, o que significava que não podiam prosseguir qualquer política orçamental e monetária da sua escolha (pois isso teria ameaçado a taxa de câmbio fixa). Não só as suas reservas cambiais eram mantidas pela França, como tinha sido o caso da Índia colonial, em que as suas reservas de ouro, adquiridas através de empréstimos forçados (uma vez que todos os seus excedentes anuais de exportação eram tomados pela Grã-Bretanha), eram mantidas em Londres; mas a França também controlou eficazmente a sua política orçamental e monetária, apesar da descolonização formal. O controlo sobre os seus recursos naturais permaneceu com as corporações metropolitanas. Além disso, as tropas francesas permaneceram nestes países apesar da descolonização, inicialmente com a desculpa de que eram obrigadas a proteger a propriedade francesa, posteriormente com o fundamento de que tinham de defender estes países contra os militantes islâmicos (que se tinham fortalecido com a desestabilização imperialista do regime de Khadafi na Líbia), mas na realidade para garantir que os governos recém-independentes continuassem a agir em conformidade com os ditames franceses. Qualquer esforço para se livrar destas tropas foi recebido com uma resposta francesa que poderia até incluir um golpe de Estado, como o episódio do Burkina Faso tinha mostrado anteriormente.
Thomas Sankara, o líder marxista revolucionário do Burkina Faso e um panafricanista convicto, que queria que as tropas francesas saíssem do seu país, foi assassinado num golpe de Estado encenado por pessoas pertencentes ao seu próprio partido, mas que geralmente se presume que tenham usufruído do apoio francês. Na maioria das vezes, porém, nem sequer os golpes eram necessários: a política eleitoral normal envolvendo partidos políticos com dirigentes treinados na metrópole, que mantinham a questão da presença contínua de tropas francesas fora das suas agendas políticas, foi o suficiente para manter o acordo.
No entanto, em vários países da África Ocidental, ultimamente, elementos revolucionários dentro do exército tomaram o poder destes governos eleitos, mas invertebrados, para construir uma onda de resistência anti-imperialista. Enquanto os países imperialistas retrataram tal tomada de poder como um golpe contra a democracia que deveria ser condenado e combatido, as massas destes países, ironicamente, tipicamente apoiaram estes novos regimes com entusiasmo, apesar de eles terem suplantado governos que eles próprios haviam elegido “democraticamente”.
De facto, estes países expõem uma falha crucial no funcionamento da democracia eleitoral existente. A imagem embelezada da democracia eleitoral, que normalmente nos é apresentada, finge que qualquer pessoa pode formar um partido político e levantar qualquer questão para entrar na arena eleitoral e que esta arena constitui um campo de jogo nivelado; por isso as preocupações genuínas do povo refletem-se invariavelmente nos resultados eleitorais. Na verdade, porém, existem aquilo a que os economistas chamam “barreiras à entrada” na arena eleitoral, decorrentes da insuficiência de recursos financeiros, o que garante que esta arena não é um campo de jogo nivelado. Portanto, é perfeitamente possível ter uma democracia eleitoral aparentemente a funcionar bem, mas que ao mesmo tempo não aborda as questões reais que agitam o povo.
É precisamente isto que está a acontecer com as democracias ocidentais atualmente, onde, apesar do aparente bom funcionamento do sistema eleitoral, o desejo avassalador de paz que existe entre as pessoas é totalmente ignorado nos resultados eleitorais; e é também isto que caracterizou as democracias da África Ocidental, onde o funcionamento do sistema eleitoral nunca trouxe à tona o desejo avassalador do povo de se libertar da presença de tropas estrangeiras.
Ultimamente, porém, o Níger, o Mali e o Burkina Faso, cada um deles governado por dirigentes militares que tomaram o poder recentemente, pediram às tropas francesas que se retirassem; e no que diz respeito à luta contra os militantes islâmicos, o Mali, pelo menos, está a confiar no grupo Wagner da Rússia, que agora foi mais ou menos assimilado ao Estado russo. Estes três países, Burkina Faso, Mali e Níger, também se uniram, em julho de 2024, para formar uma união chamada Aliança dos Estados do Sahel. Os três regimes estão comprometidos, tal como Thomas Sankara, com o panafricanismo e o anti-imperialismo.
Agora, o Burkina Faso levou o seu anti-imperialismo um passo mais em frente, nacionalizando duas das suas minas de ouro, que inicialmente pertenciam à empresa britânica Endeavour Mining. O Burkina Faso é, supostamente, o 13.º maior produtor de ouro do mundo, sendo a sua produção anual de 100 toneladas ou cerca de 6 mil milhões de dólares aos preços mundiais atuais. O ouro é produzido inteiramente através de empresas europeias ou norte-americanas, que o refinam fora do país e retêm grande parte do valor da produção; por isso, apesar de uma produção de ouro tão substancial, o seu atual Produto Nacional Bruto em 2022 era de apenas 19,37 mil milhões de dólares. O atual governo de Ibrahim Traore decidiu não só nacionalizar completamente a produção de ouro, mas também criar, pela primeira vez, uma refinaria de ouro local. Mesmo que apenas 2 mil milhões de dólares de valor adicional sejam retidos para a economia, este montante suplementar representa mais de 10% do PIB, que pode ser utilizado para financiar despesas públicas adicionais com a educação, os cuidados de saúde e outros serviços essenciais para a população.
De todos os diferentes tipos de investimento estrangeiro, o utilizado para extrair os recursos minerais de um país é de longe o pior, como Joan Robinson, a eminente economista, há muito sublinhara; ou, dito de outra forma, um país deve sempre desenvolver os seus recursos minerais através do seu próprio setor público e não através de empresas multinacionais. Isto porque os minerais constituem um recurso esgotável que dura apenas um curto período de tempo para cada país; e a menos que a maior parte do valor do recurso mineral regresse ao tesouro do país, com a ajuda do qual a sua economia possa, entretanto, ser adequadamente diversificada, o país ficará na miséria quando esse recurso se esgotar.
Isto aconteceu na nossa própria vizinhança. Tomemos como exemplo o Myanmar. Quando havia petróleo, houve um boom temporário associado à extração de petróleo naquele país, com as multinacionais petrolíferas a arrecadarem enormes lucros. Como estes lucros não foram utilizados para diversificar a economia (o que teria sido o caso se a exploração do petróleo tivesse sido feita pelo setor público), quando as reservas de petróleo do país se esgotaram, as multinacionais fizeram as malas e partiram e o Myanmar voltou à estaca zero; é hoje considerado um dos países menos desenvolvidos pelas Nações Unidas.
Um país deve, portanto, ter sempre propriedade e controlo sobre os seus recursos minerais e outros recursos esgotáveis, e também desenvolvê-los por si próprio, através do seu sector público; o reconhecimento deste princípio básico pelo Burkina Faso constitui um grande avanço. É claro que não se devem subestimar os imensos obstáculos que o imperialismo colocará contra a realização deste objetivo. Existe uma longa história de desestabilização imperialista de regimes do Terceiro Mundo que tentaram adquirir o controlo sobre os seus próprios recursos naturais, começando com a queda do governo de Mossadegh no Irão. E quando, apesar de toda esta trapaça, o controlo exclusivo sobre os recursos minerais do Terceiro Mundo ainda escapava ao imperialismo, este encurralou o Sul global num arranjo neoliberal, cujo objetivo principal era fazer recuar o setor público e readquirir para as corporações multinacionais ocidentais o controlo sobre os seus recursos naturais. O próprio facto, portanto, de a desonestidade do arranjo neoliberal estar a ser reconhecida na África Ocidental e, com ela, a necessidade de controlo nacional sobre os recursos naturais, é de grande importância.
Na Índia, após uma luta bem-sucedida para ganhar o controlo sobre os nossos recursos naturais, uma luta pela “descolonização económica” que foi talvez ainda mais árdua do que a luta pela descolonização política, luta essa que teve sucesso graças à ajuda da União Soviética, estamos mais uma vez a abdicar dos nossos ganhos através da adoção do neoliberalismo. O esforço da África Ocidental deve fazer com que o nosso governo repense seriamente a sua atual política de redução do setor público, inclusivamente na esfera dos recursos naturais.
A iniciativa privada nacional nesta esfera dificilmente é melhor do que as empresas multinacionais; sofre exatamente dos mesmos defeitos. Não há alternativa ao setor público para desenvolver tais recursos nacionais. É certo que, mesmo com um setor público, esta esfera pode não contribuir muito para o desenvolvimento nacional, se houver apropriação indevida ou ineficiência; mas o seu desenvolvimento no setor público constitui, ainda assim, uma condição necessária para o desenvolvimento nacional. Além disso, um regime comprometido com o setor público terá também a capacidade de retificar o seu funcionamento.
29 de setembro de 2024
A estagnação da economia mundial
O facto de a economia mundial ter abrandado desde a crise financeira de 2008 é indiscutível. Na verdade, até os economistas conservadores norte-americanos começaram a utilizar o termo “estagnação secular” para descrever a situação atual (embora tenham a sua própria definição peculiar para tal). O objetivo da presente nota é fornecer alguns números de taxa de crescimento para estabelecer este ponto específico.
Os cálculos do PIB, que são notoriamente pouco fiáveis para países específicos, são-no ainda mais para o mundo como um todo. Na Índia, muitos investigadores questionaram as estimativas oficiais da taxa de crescimento do PIB e sugeriram que esta taxa dificilmente poderá ultrapassar os 4-4,5 por cento ao ano nos últimos anos, em contraste com os cerca de 7 por cento apresentados pelas estatísticas oficiais. A exultação pela aceleração do crescimento do PIB no período neoliberal face ao período dirigista parece ser completamente descabida; e se a taxa de crescimento do PIB efetivamente aumentou, quase nada em relação ao período anterior, enquanto as desigualdades aumentaram significativamente, então a afirmação de que a condição dos trabalhadores se deteriorou no período neoliberal, como é claramente demonstrado por outros indicadores, como os dados sobre a nutrição, estará ainda mais firmemente estabelecida. Mas, apesar da fraca fiabildade dos dados do PIB, vamos examinar o que tem acontecido ao PIB mundial.
Para este efeito, utilizo dados do Banco Mundial, com o PIB “real” a ser estimado a preços de 2015, para cada país, e agregado para o mundo como um todo em termos de dólares às taxas de câmbio de 2015. A divisão de todo o período desde 1961 em subperíodos e a comparação entre estes subperíodos é bastante complicada. A tomada de taxas de crescimento decenais é problemática, pois, se o início da década for um mau ano, a taxa de crescimento da década será exagerada e, portanto, dará uma imagem distorcida. Na medida do possível, tomei anos de pico e calculei as taxas de crescimento de pico a pico da economia mundial, o que certamente fornece uma imagem mais fiável da mudança secular na taxa de crescimento. Os anos específicos são 1961, 1973, 1984, 1997, 2007 e 2018, que foi o último ano de pico antes do início da pandemia. As taxas de crescimento do PIB mundial durante os subperíodos definidos por estes anos são as seguintes:
Três conclusões se destacam destes números. Em primeiro lugar, a taxa de crescimento da economia mundial durante o período dirigista foi muito mais elevada do que durante o conjunto do período neoliberal. Este é um ponto frequentemente negligenciado na discussão corrente, onde a insistência no tema da “superioridade do mercado” dá a impressão de que a economia mundial deve ter crescido mais rapidamente na era neoliberal; esta impressão, no entanto, é completamente falsa. Na verdade, o que acontece é exatamente o contrário, ou seja, um abrandamento notável da economia mundial no período do neoliberalismo.
Em segundo lugar, entre o período dirigista e o período neoliberal houve um período intermédio em que se verificou uma desaceleração: a taxa de crescimento desceu de 5,4% para 2,9%. Esta desaceleração foi consequência da estratégia capitalista de combate ao surgimento da inflação, ocorrido no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, no mundo capitalista, que marcou o fim do período dirigista. Foi este período intermédio de desaceleração do crescimento do PIB mundial que criou o cenário para a introdução do regime neoliberal. O capital financeiro, que vinha aumentando de dimensão e se tornava cada vez mais internacional, pressionava por uma mudança para o neoliberalismo. Mas esta pressão deu finalmente frutos por causa da crise do dirigismo, que se manifestou primeiro num surto inflacionista e depois numa desaceleração do crescimento, à medida que a política oficial em todo o mundo capitalista procurava combater a inflação reduzindo as despesas do governo e criando desemprego em massa.
Em terceiro lugar, os números mostram que uma desaceleração prolongada sob o neoliberalismo se seguiu ao colapso da bolha imobiliária nos Estados Unidos da América. Este colapso precipitou uma crise financeira no mundo capitalista; mas enquanto o sistema financeiro foi resgatado pela intervenção do Estado (lá se foi a “eficiência do mercado”), a economia real não viu qualquer estímulo, quer sob a forma de uma maior despesa do Estado, quer de uma nova bolha comparável à da habitação, para reavivar a sua taxa de crescimento.
Tomamos deliberadamente 2018 como o nosso ano terminal, o que representa um ano de pico. O período após 2018 foi ainda mais negro para a economia mundial; na verdade, a taxa de crescimento do PIB entre 2018 e 2022, o último ano para o qual temos números, foi de apenas 2,1% ao ano. Os números da população mundial também não são muito fiáveis, não tendo a própria Índia realizado o seu censo decenal, nem em 2021, quando o deveria ter feito, nem mesmo posteriormente; mas a estimativa habitual é que tenha crescido a uma taxa pouco abaixo de 1% (estima-se que seja de 0,8% em 2022). O rendimento per capita mundial, como se pode constatar, está presentemente a crescer a pouco mais de 1% ao ano.
Dado o facto de a desigualdade de rendimentos no mundo ter vindo a aumentar, a esmagadora maioria da população mundial deve ter assistido a uma virtual estagnação nos seus rendimentos reais, em média. Um exemplo ilustrativo deixará este ponto claro. Estima-se que os 10 por cento mais ricos da população mundial recebam atualmente mais de metade do rendimento total mundial; daqui resulta que se o rendimento destes 10% mais ricos crescesse até 2% ao ano, então o rendimento dos restantes 90% permaneceria absolutamente estagnado em média. A conclusão é inescapável de que o sistema capitalista na sua última fase neoliberal levou a esmagadora massa da população mundial a um estado de estagnação do rendimento, em média, que faz lembrar os tempos coloniais; para um grande número de pessoas no mundo deve ter havido um declínio do rendimento real.
Além disso, este não é apenas um fenómeno transitório que desaparecerá com o tempo. É isto mesmo que o neoliberalismo tem em reserva para essa maioria mundial. Uma retoma do crescimento na conjuntura atual exigiria um aumento da procura agregada na economia mundial, o que por sua vez exigiria a intervenção do Estado; e o Estado só pode ter sucesso no aumento da procura se financiar as suas maiores despesas através de um maior défice orçamental ou através de maiores impostos sobre os capitalistas e, em geral, sobre os ricos. Mas ambas estas formas de financiar as grandes despesas do Estado são mal vistas pelo capital financeiro internacional; e como o Estado é um Estado-nação, enquanto as finanças são globalizadas e podem abandonar um país em massa num ápice, o Estado deve vergar-se aos ditames das finanças para evitar tal fuga de capitais. Por conseguinte, a intervenção estatal de qualquer Estado-nação em particular para impulsionar a procura agregada e, assim, aumentar a taxa de crescimento da sua economia está fora de questão. Um estímulo fiscal coordenado, em que vários Estados aumentam simultaneamente as despesas através de qualquer um dos meios acima referidos, o que poderia impedir as finanças de fugir a todo este grupo de países, não foi sequer equacionado; isto deixa a política monetária como o único meio de intervenção ao dispor do Estado.
Mesmo aqui, porém, a taxa de juro de um país não pode ser demasiado baixa em comparação com a que prevalece nos países avançados, especialmente nos E.U.A., pois então as finanças considerariam esse país "pouco atrativo" e abandoná-lo-iam em massa. Só os E.U.A. têm a capacidade de reduzir autonomamente as suas taxas de juro para o montante que considerem adequado para estimular a procura agregada (o que permitiria a outros países reduzir também as suas taxas de juro); mas as taxas de juro nos E.U.A. durante grande parte do período mais recente estiveram próximas de zero e, no entanto, não se verificou uma recuperação da economia mundial. Pelo contrário, taxas de juro tão baixas mantidas durante um longo período tiveram o efeito de encorajar as empresas desse país a aumentar as suas margens de lucro e dar assim origem a uma aceleração da inflação, como ocorreu recentemente.
O projeto de Keynes de estabilizar o capitalismo num elevado nível de atividade para que não seja ultrapassado por uma revolução socialista, revelou-se uma quimera. O estado atual do capitalismo neoliberal demonstra amplamente este facto.
6 de outubro de 2024
A ânsia do imperialismo por expansão
O “esforço inevitável do capital financeiro”, escreveu Lenine em O Imperialismo, (é) “ampliar as suas esferas de influência e até o seu território real”. Estava a escrever, claro, num mundo marcado pela rivalidade inter-imperialista, onde este esforço assumiu a forma de uma luta competitiva entre capitais financeiros rivais que rapidamente completaram a divisão do mundo entre si, não deixando quaisquer “espaços vazios”; só uma nova repartição do mundo foi possível a partir de então, através de guerras entre oligarquias financeiras rivais. No entanto, as guerras que foram realmente desencadeadas levaram ao enfraquecimento do imperialismo e à separação de partes do mundo da sua hegemonia, através das revoluções socialistas e do processo de descolonização que o socialismo ajudou a inaugurar.
A continuação do desenvolvimento da centralização do capital, que conduziu à sua consolidação, por um lado, silenciou a rivalidade inter-imperialista, uma vez que o capital quer agora o mundo inteiro, não dividido em esferas de influência de potências rivais, mas como domínio comum para o seu movimento sem restrições; por outro lado, levou também a uma tentativa por parte do imperialismo, agora unido, de reafirmar a sua hegemonia sobre os territórios que se tinham separado dele anteriormente. As duas armas que o imperialismo utiliza para este último objetivo são: a imposição de uma ordem neoliberal no mundo que nega essencialmente os efeitos da descolonização, e o desencadear de guerras onde a primeira arma por si só não é suficiente para o seu propósito.
O regime neoliberal significou um enfraquecimento da classe trabalhadora em todo o lado. Nos países avançados, os trabalhadores foram colocados perante a ameaça de deslocalização para países do Terceiro Mundo com salários mais baixos, sobrecarregados com vastas reservas de mão-de-obra, o que fez com que os seus salários estagnassem. Nos países do Terceiro Mundo, esta deslocalização não reduziu a dimensão relativa das reservas de mão-de-obra, o que fez com que os salários reais também aí estagnassem. Assim, enquanto o vetor dos salários reais estagnou em todo o mundo, a produtividade do trabalho aumentou em todo o lado (o que, afinal, é a razão para que o tamanho relativo das reservas de trabalho no Terceiro Mundo não ter diminuído), causando um aumento da quota do excedente económico alocada ao capital, tanto para a economia mundial como um todo, como em países individuais. Isto não só provocou um aumento acentuado da desigualdade económica (e, em grande parte do Terceiro Mundo, até mesmo um aumento da proporção da população que sofre de privação nutricional absoluta), mas precisamente por essa razão, uma tendência para a sobreprodução, dado que os trabalhadores consomem uma maior proporção do seu rendimento do que aqueles que vivem do excedente.
O remédio keynesiano padrão para a sobreprodução, a saber, maiores despesas governamentais, não funciona sob o regime neoliberal. As duas formas possíveis pelas quais tais despesas governamentais devem ser financiadas, de modo a impulsionar a procura agregada, um maior défice fiscal ou uma maior tributação dos ricos, são ambos descartados ao abrigo deste regime. Ambas são anátema para o capital financeiro e o Estado-nação, confrontado com o capital financeiro globalizado, que pode deixar as suas fronteiras num ápice, deve vergar-se aos seus caprichos.
Com esta tendência para a sobreprodução, imanente ao capitalismo neoliberal, empurrando a economia mundial para a estagnação, assistiu-se à ascenção do neofascismo, com o capital corporativo a tender a aliar-se a elementos neofascistas que proporcionam um discurso diversionista. Este discurso não se preocupa com as condições materiais de vida, mas sim com a geração de ódio contra alguma minoria religiosa ou étnica infeliz que é retratada como o “outro”. Os elementos neofascistas tomaram o poder em alguns países e estão à espreita noutros, embora o percurso desde a tomada do poder dentro de uma democracia liberal até à construção de um Estado fascista continue a ser mais ou menos prolongado. Mas mesmo a presença de elementos neofascistas no poder num país não supera esta tendência para a sobreprodução: como o Estado continua a ser um Estado-nação, que enfrenta finanças globalmente móveis, mantém-se como antes, mesmo sob um governo neofascista, a sua incapacidade de aumentar a procura agregada através de despesas governamentais financiadas por um maior défice fiscal ou por impostos sobre os ricos.
Poder-se-á perguntar: por que razão deve ser atribuída ao imperialismo a culpa desta incapacidade do Estado-nação para combater a tendência para a estagnação e, por conseguinte, a ascensão do neofascismo? A resposta simples é que qualquer tentativa por parte de qualquer nação de se desligar do vórtice das finanças globais e usar o Estado para impulsionar a procura seria recebida com a imposição de sanções económicas pela falange de estados imperiais, liderada pelos Estados Unidos da América. A primeira arma utilizada pelo imperialismo para reafirmar a sua hegemonia, em suma, conduz à miséria aguda para o povo em todo o mundo e a um desfecho neofascista.
A segunda forma de reafirmar a sua hegemonia sobre partes do mundo que se tinham separado, que é através de guerras, está agora a empurrar o mundo para uma catástrofe. Ambas as guerras que estão a acontecer atualmente são promovidas e sustentadas pelo imperialismo e têm o potencial de evoluir para confrontos nucleares. Vamos primeiro à Guerra da Ucrânia. Quando a União Soviética entrou em colapso, Mikhail Gorbachev recebeu a garantia de que não haveria expansão da NATO para leste. Mas a NATO expandiu-se para leste, até à Ucrânia. A própria Ucrânia não queria aderir à NATO; o seu presidente devidamente eleito, Viktor Yanukovich, que se opunha a qualquer ideia deste tipo, foi deposto num golpe engendrado sob a supervisão da agente norte-americana Victoria Nuland, que trouxe para o governo apoiantes de Stepan Bandera, que tinha colaborado com as tropas de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. O novo governo não só manifestou o desejo de se juntar à NATO, como também iniciou um conflito com a região russófona do Donbass, que custou milhares de vidas antes da intervenção da Rússia.
Coloquemos a questão que é um teste decisivo nestas matérias: quem defende um acordo de paz no conflito da Ucrânia e quem se opõe a ele? O acordo de Minsk, que tinha sido alcançado entre a Rússia e a Ucrânia, com a ajuda da França e da Alemanha, foi torpedeado pelos E.U.A. e pela Grã-Bretanha. Boris Johnson, o primeiro-ministro britânico, voou mesmo para Kiev para dissuadir a Ucrânia de aceitar outros acordos posteriores. E para que não se pense que diferentes potências imperialistas estavam a falar com vozes diferentes, Angela Merkel, a chanceler alemã da altura, admitiu agora que o Acordo de Minsk foi um estratagema destinado apenas a ganhar tempo para que a Ucrânia estivesse pronta para a guerra. O que se destaca, sem dúvida, é que a guerra na Ucrânia é basicamente um meio de colocar a Rússia sob a hegemonia do imperialismo, que tinha sido o projeto imperialista após o colapso da União Soviética, e que quase foi levado a cabo, sob a presidência de Boris Yeltsin.
Vejamos agora a outra guerra, desencadeada com uma brutalidade e uma crueldade impressionantes por Israel contra o povo palestiniano e agora contra o Líbano. O total apoio a Israel por parte do imperialismo norte-americano parece, à primeira vista, ser um reflexo da força do lobby sionista na política de Washington, e não de quaisquer planos imperialistas em si. Esta impressão, porém, é errónea. O imperialismo não é apenas cúmplice do “colonialismo de povoamento” israelita, por cuja promoção Israel está a levar a cabo um genocídio hoje e a preparar uma limpeza étnica em massa amanhã; o seu projeto é controlar toda a região através de Israel.
Aqui, mais uma vez, o teste decisivo é: quem está hoje no caminho da paz? Os E.U.A. formalmente aceitam uma solução de “dois Estados”, mas sempre que a proposta de aceitação da Palestina como o 194.º Estado-membro das Nações Unidas surgiu na Assembleia Geral, o que seria o primeiro passo para a implementação da “solução de dois Estados”, os E.U.A. votaram contra; vetariam, claramente, uma tal medida no Conselho de Segurança. O seu apoio a uma autêntica solução de “dois Estados” é, portanto, um embuste. Além disso, sempre que se atinge algum ponto crítico nas negociações de tréguas entre Israel e os seus opositores, seja Ismael Hanieh ou Hassan Nasrallah, estes dirigentes são assassinados por Israel. As negociações para uma trégua, em suma, são apenas uma farsa no que diz respeito a Israel; e o imperialismo dos E.U.A. é claramente cúmplice desta farsa. O próprio colonialismo de povoamento de Israel combina com o papel que lhe foi atribuído pelo imperialismo dos E.U.A., de ser o gendarme local do imperialismo. E com a escalada da guerra, o perigo de um confronto nuclear aumenta de dia para dia.
Referi que a imposição de uma ordem económica neoliberal e o envolvimento em guerras foram as duas armas utilizadas pelo imperialismo, agora unido, para reafirmar a sua hegemonia. Mas se um está a conduzir ao neofascismo, o outro está a empurrar a humanidade para uma catástrofe.
13 de outubro de 2024
Economia e ideologia
Aquilo a que se chama “economia convencional” é uma disciplina profundamente ideológica, cujo objetivo não é descobrir a verdade, mas sim camuflá-la. Karl Marx estava profundamente consciente do carácter ideológico que a economia pode ter e distinguiu entre economia política clássica e economia vulgar. Esta última não se concentrava na esfera da produção, mas exclusivamente na esfera da troca, onde todos os participantes individuais do mercado estavam em pé de igualdade, o que fazia com que o facto da exploração, que ocorria na esfera da produção, ficasse totalmente camuflado.
A discussão de Marx sobre o carácter ideológico da disciplina estava ligada à sua própria preocupação central, que tinha a ver com a origem da mais-valia no capitalismo. A ideologia, no entanto, também perpassa a disciplina a um outro nível, ao olhar para o sistema, como faz a economia convencional, exclusivamente de forma isolada, e não apenas ignorando, mas negando implícita e deliberadamente o fenómeno do imperialismo.
Enfatizar isto não significa sugerir que os numerosos praticantes de economia dentro da tradição dominante sejam deliberadamente desonestos e estejam conscientemente envolvidos em obscurecer a realidade. Isto está longe de ser verdade; eles estão antes sujeitos a uma “tirania da profissão”. Este é um fenómeno que precisa de ser estudado separadamente como parte da sociologia da vida académica; mas abrange a maioria dos profissionais: o seu reconhecimento pelos colegas, a sua carreira profissional, as suas promoções, as suas publicações e os prémios que recebem, tudo depende de se manterem dentro dos limites da área "permitida" de foco académico. Pagar-se-á um preço elevado por transgredir esses limites e falar de temas como o imperialismo; e a maioria dos praticantes da disciplina escolhe a opção fácil de se manter dentro destes limites. No processo, é construída toda uma narrativa que exclui qualquer papel do imperialismo, mesmo que nenhum praticante individual do assunto tenha sido deliberadamente desonesto.
Não vou abordar aqui o modus operandi desta sociologia da academia, mas apenas dar alguns exemplos, para mostrar como a economia convencional camufla o papel do imperialismo. O primeiro exemplo está relacionado com a teoria do crescimento, onde a visão dominante vê a taxa de crescimento económico de uma economia capitalista como estando ligada à taxa natural de crescimento da sua força de trabalho e, portanto, em última análise, à taxa natural de crescimento da sua população.
Esta visão ignora o papel da procura agregada, acreditando na chamada Lei de Say, que Marx tinha criticado duramente, que afirma que tudo o que é produzido no agregado é automaticamente procurado no mercado (só pode haver incompatibilidades a um nível micro, mas não há possibilidade de qualquer sobreprodução geral). Para além do mais, esta “lei” é desmentida por factos históricos óbvios.
Vinte milhões de escravos foram transportados de África para o “Novo Mundo” no período até ao início do século XIX, para satisfazer a necessidade do capitalismo de mão-de-obra para trabalhar nas minas e nas plantações. Da mesma forma, após o fim do tráfico de escravos, estima-se que cinquenta milhões de trabalhadores indianos e chineses tenham sido transportados no período até à Primeira Guerra Mundial, como mão-de-obra contratada ou coolie, para vários destinos tropicais ou semitropicais, para suprir a necessidade de mão-de-obra do capitalismo. (Este último movimento foi em acréscimo aos cinquenta milhões de europeus que migraram para o “Novo Mundo”, no mesmo período, por sua própria vontade, uma migração que levou à desapropriação dos habitantes locais das terras que ocuparam).
Quando se realizaram mudanças populacionais tão grandes, sob a égide do capitalismo, para satisfazer as suas necessidades de mão-de-obra, acreditar que o capitalismo se ajusta docilmente à taxa natural de crescimento populacional dentro das suas próprias fronteiras é simplesmente absurdo; e, no entanto, é isso que a economia convencional propaga.
É claro que se pode argumentar que esta teoria apenas mostra o que aconteceria na ausência do imperialismo e, portanto, sublinha a necessidade do imperialismo para superar a escassez de mão-de-obra enfrentada pelo capitalismo; aliás, Otto Bauer, o marxista austríaco, desenvolveu uma teoria do imperialismo nesse sentido. Mas não é esse o propósito da economia convencional; não há qualquer indício de reconhecimento dos movimentos populacionais massivos que ocorreram em todo o mundo para satisfazer as necessidades de mão-de-obra do capitalismo. Além disso, a teoria nem sequer seria logicamente viável se a força de trabalho, em qualquer período dado, ou ao longo de qualquer sequência de períodos, não tivesse uma determinada magnitude (uma vez que o pleno emprego de todos os “fatores de produção” cujos fornecimentos são dados, determina a distribuição do rendimento).
Para que não se pense que estou a bater num cavalo morto ao falar de uma teoria que já não tem crédito, devo dizer que Thomas Piketty, no seu influente livro O Capital no Século XXI, publicado em 2013, baseia todas as suas explicações para os movimentos observados na distribuição de rendimentos nesta mesma teoria, que ignora os movimentos históricos, muitos deles sob coação, de trabalho entre continentes.
O meu segundo exemplo está relacionado com a teoria do comércio. Aqui existe uma longa tradição de argumentação de que todos os países beneficiam através do comércio livre. Este argumento baseia-se na proposição de que, tanto antes como depois de um país se abrir ao comércio, ele experimenta a plena utilização de todos os seus “factores de produção”; mas a composição do que produz altera-se. E quando a composição da produção de todos os países muda, é como se o mundo como um todo utilizasse os seus recursos de forma ótima, o que produz um conjunto maior de bens totais, de modo que cada país se possa tornar mais rico. O comércio é visto, portanto, como algo que produz cooperação entre países, e não qualquer competição darwiniana.
Mas assumir que cada país utiliza plenamente os seus fatores de produção antes e depois do comércio equivale a assumir que não há deficiência de procura agregada, que a Lei de Say se mantém, o que é obviamente absurdo. Como a Lei de Say não se sustém, a produção mundial total depende do nível de procura mundial; produzir mais do que esta procura permite leva à produção não vendida e é contraproducente. Portanto, se um país produz mais, só poderá vender essa produção extra à custa de outro país. O comércio livre, longe de melhorar a situação de todos os países, só pode melhorar a vida de uns à custa de outros, o que, afinal, é o que está na base da luta pelos mercados entre países. Esta luta pelos mercados está na base do imperialismo; portanto, ignorar este facto e apresentar o comércio não como uma luta pelos mercados, mas como uma forma implícita de cooperação que torna cada país mais rico, é ignorar o imperialismo.
Curiosamente, até John Maynard Keynes, um defensor do capitalismo e um antissocialista convicto, reconheceu a importância da procura de mercados e, por conseguinte, do imperialismo, devido à sua rejeição da Lei de Say. Na sua obra-magna A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, escreveu: “…sob o sistema de laissez-faire doméstico e um padrão-ouro internacional, como era ortodoxo na segunda metade do século XIX, não havia meios abertos para um governo que visasse mitigar a angústia económica interna, exceto através da luta competitiva pelos mercados”. Keynes está aqui a sugerir que se a intervenção governamental pudesse ser utilizada para aliviar o desemprego, então não haveria necessidade de procurar mercados externos e, portanto, não haveria necessidade de guerras imperialistas. Mas, para que os gastos do governo alarguem o mercado interno aos produtores nacionais, é necessário que estes sejam protegidos contra os produtores estrangeiros; portanto, o comércio livre deixa de ser benéfico mesmo quando há intervenção governamental.
Todo o argumento do comércio livre, que é repetido ad nauseam até aos dias de hoje, assenta, portanto, em ignorar a possibilidade de uma deficiência da procura agregada e, portanto, o facto muito real de uma procura de mercados que constitui uma das causas por trás do imperialismo. O argumento do comércio livre camufla, portanto, um motivo para o imperialismo, ao fazer a suposição absurda da Lei de Say e, assim, retratar o comércio como benéfico para todos.
O que é particularmente impressionante é o facto de este argumento ter sido avançado e continuar em voga, embora a desindustrialização das economias coloniais através da dizimação da sua produção artesanal nacional pela importação de produtos manufaturados à máquina, provenientes da metrópole, seja um facto histórico bem conhecido. O esforço da economia convencional é passar em branco este facto, dissociar a pobreza em massa observada no Terceiro Mundo do seu comércio com a metrópole, apresentando o comércio livre como teoricamente benéfico para todos.
Existe, portanto, uma tentativa insidiosa na teoria económica dominante de ignorar tanto a necessidade como o papel do imperialismo. E este é um projeto ideológico.
3 de novembro de 2024
A Cimeira de Kazan dos BRICS
A cimeira de Kazan dos países BRICS foi histórica por várias razões: em primeiro lugar, criou uma nova categoria denominada “nações parceiras” como um passo em direção à plena adesão, e aceitou treze novos países “parceiros”, entre os quais se encontravam Cuba e Bolívia. Em segundo lugar, manifestou-se contra as sanções económicas unilaterais que as potências imperialistas, lideradas pelos E.U.A., têm vindo a impor aos países que ousam afirmar a sua independência da hegemonia imperialista. Em terceiro lugar, sugeriu um programa de reforma para o Sistema Monetário e Financeiro Internacional. A própria Declaração de Kazan foi breve ao delinear medidas para superar a hegemonia do dólar, ao mesmo tempo que enfatizava a sua necessidade; mas um documento de referência de organismos do governo russo forneceu mais detalhes.
Estes são desenvolvimentos importantes que devem ser saudados; no entanto, não se pode ficar alheio às limitações básicas da abordagem adotada pelos BRICS em relação aos problemas do Sul global. A essência desta abordagem reside em tornar as instituições existentes, como a O.M.C. e as gémeas de Bretton Woods, mais representativas, enquanto que os problemas do Sul global são muito mais profundos. É certo que os BRICS continuam a ser um bloco heterogéneo do qual não se pode esperar que adote uma agenda radical; o problema a que me refiro, no entanto, não é se é viável adotar uma agenda radical, mas sim o que é uma agenda radical.
A declaração dos BRICS pressupõe que as instituições internacionais no seu estado atual falham porque são dominadas por países imperialistas e não são suficientemente representativas; mas na verdade elas falham porque a sua própria essência é falhada, independentemente da forma como são governadas. Para usar uma analogia, a posição dos BRICS equivale a dizer que a exploração dos trabalhadores no sistema atual se deve aos cartéis e aos monopólios, e que desapareceria se a livre concorrência substituísse os monopólios.
Tomemos como exemplo a O.M.C.. A Declaração de Kazan fala sobre os países avançados praticarem o protecionismo afastando-se do espírito da O.M.C.; afirma que este afastamento é discriminatório para o Sul global e só pode ser corrigido através de uma melhor representação do Sul na administração da O.M.C.. Mas o problema é que o argumento do comércio livre em que a O.M.C. se baseia é ele próprio falhado. Assume a validade da Lei de Say (ver supra, ‘Economia e Ideologia’), que afirma que nunca há qualquer deficiência de procura agregada, pelo que nunca há qualquer luta pelos mercados: cada país tem pleno emprego de todos os seus recursos antes e depois do comércio; a única diferença é que os recursos são alocados de forma diferente após o comércio para produzir um conjunto diferente de bens.
No entanto, esta é uma afirmação absurda, muito distante da realidade do capitalismo, pelo que submeter os países do Sul global ao comércio livre ou mesmo ao comércio liberal equivale a empurrá-los para uma competição darwiniana entre si; em suma, isto equivale a uma subversão de qualquer forma de cooperação. A filosofia da O.M.C. na prática não garante a cooperação entre países, incluindo entre países do Sul global, mas uma competição feroz entre eles.
Do mesmo modo, a regra da O.M.C. de que um país não pode dar apoio aos preços dos agricultores desde que o subsídio que ofereça seja superior a 10 por cento do valor dessa produção específica (independentemente da questão de a Índia violar ou não esta regra), é profundamente falhada: a própria distinção entre subsídios “distorcedores do mercado” e “não distorcedores do mercado”, na qual esta regra se baseia, pressupõe a “eficiência” do mercado, um retrocesso à economia pré-keynesiana; não tem qualquer razão de ser fora do mundo imaginário criado pela O.M.C. através dos seus pressupostos absurdos.
O objetivo da Declaração dos BRICS é também remover a hegemonia do dólar norte-americano e ter mais comércio internacional em moedas nacionais com taxas de câmbio fixas entre si. Acabar com a hegemonia do dólar é, sem dúvida, um objetivo louvável; mas não é suficiente. O que também é necessário é a eliminação da hegemonia das finanças. E para isso são necessárias pelo menos três condições: em primeiro lugar, os ajustamentos para remover os desequilíbrios da balança corrente devem ser feitos pelos países com excedentes correntes, e não pelos países com défices correntes; em segundo lugar, até que os desequilíbrios sejam eliminados, os países superavitários devem estar dispostos a manter todos os títulos de dívida dos países deficitários que lhes sejam atribuídos; e terceiro, não deve haver transferências de ativos (“desnacionalização”) para liquidar dívidas pendentes.
É desejável que os países com excedentes façam ajustamentos em vez dos países com défice, não só para eliminar a dominância dos primeiros, mas também do ponto de vista da produção e do emprego mundiais e, portanto, do bem-estar dos trabalhadores do mundo. Se o país excedentário tiver de se ajustar, aumentará a sua absorção interna de bens e serviços, o que, como a sua própria produção estará próxima da capacidade máxima, reduzirá as suas exportações. O país deficitário, mesmo que mantenha o mesmo nível de absorção interna de antes, terá, uma vez que as suas importações caíram, maior produção e emprego. Assim sendo, considerando os dois países em conjunto, verificar-se-ia um aumento da procura agregada, resultando em maior produção e emprego. E se o aumento da absorção do país excedentário tomar a forma de maior consumo por parte dos seus trabalhadores, então o benefício dos trabalhadores nos dois países será ainda maior: no país excedentário através de maior consumo e no país deficitário através de maior emprego.
Em contraste com isto, se o país deficitário tiver de fazer o ajustamento, como é a prática atual, então terá de haver uma redução da sua absorção interna, o que criará uma recessão no seu seio. O nível geral da procura agregada mundial diminuirá à custa dos trabalhadores do mundo, especialmente dos países deficitários. Eliminar os desequilíbrios atuais fazendo com que os países deficitários se ajustem é, portanto, inferior a fazer com que os países superavitários se ajustem, embora, reconhecidamente, esta última abordagem seja mais difícil de impor.
Além disso, a eliminação da hegemonia do dólar sem um acordo para fazer com que os países superavitários se ajustem também dará origem à hegemonia de alguma outra moeda, e não à eliminação total da hegemonia. Suponhamos, por exemplo, que os países BRICS negoceiam apenas entre si e em moedas nacionais com taxas de câmbio fixas entre si (caso contrário, a especulação cambial desenfreada tornará qualquer acordo comercial insustentável). Se um país tem um défice persistente na balança corrente em relação a outro, então ou reduz a sua absorção interna para eliminar esse défice, que é a prática corrente, ou continua a fornecer títulos de dívida ao país excedentário até que a pressão sobre a sua moeda aumente e ele não possa mais manter uma taxa de câmbio fixa. Neste último caso, algumas moedas, nomeadamente as dos países excedentários, adquirirão hegemonia sobre as restantes; a substituição do dólar, sem dúvida altamente desejável, só levará à sua substituição por alguma outra moeda, não à eliminação da hegemonia cambial.
A Declaração de Kazan procura alterar o modo de governação dos gémeos de Bretton Woods (F.M.I. e Banco Mundial, NT), para os tornar mais representativos e, assim, disponibilizar financiamento aos países do Sul global de forma mais barata e com “condicionalidades” menos rigorosas; o banco dos BRICS deve também contribuir para este fim. Mas tudo isto, embora altamente louvável, não resolverá o problema dos países do Sul global. Mesmo que o financiamento esteja disponível de forma mais fácil e barata, isso só aumenta a corda disponível para estes países se enforcarem; isto não elimina o destino da forca, que só acontecerá se a necessidade das finanças desaparecer por completo.
Tal desaparecimento não é, de forma alguma, uma ideia utópica. Nos tempos da União Soviética, vários países, incluindo a Índia, firmaram acordos comerciais bilaterais com aquela, onde as taxas de câmbio eram fixas. Os excedentes e défices comerciais eram transferidos de um período para o outro e eram resolvidos através de trocas mutuamente acordadas de bens e serviços. Não se colocava qualquer questão da necessidade específica de “finanças”, de qualquer exercício de hegemonia, ou de ajustamento através da redução do nível de atividade do país deficitário pela imposição de “austeridade”. Sem dúvida, a União Soviética era uma economia planificada que poderia levar por diante um tal arranjo. Mas se os BRICS pretendem proporcionar uma rota de fuga genuína para o Sul global em relação à hegemonia imperialista, como auspiciado no discurso do presidente boliviano na cimeira, então devem elaborar esquemas que constituam adaptações de tais arranjos não opressivos.
De qualquer modo, não se deve perder de vista o perigo inerente a, pura e simplesmente, endossar as atuais instituições internacionais, concebidas pelo capitalismo mundial, depois de as tornar um pouco mais representativas.
10 de novembro de 2024
O neoliberalismo e antes
Karl Marx disse um dia que toda a crítica deve começar pela crítica da religião. Parafraseando Marx, pode dizer-se que, no atual contexto económico, toda a crítica deve começar pela crítica ao PIB. Esta medida conceptual e estatisticamente duvidosa não consegue reconhecer o fenómeno da exploração. Por exemplo, considera o rendimento do imperador mogol e da sua aristocracia como uma retribuição pelos serviços por eles prestados e acrescenta-o à produção total do país, num flagrante ato de dupla contagem; e, no entanto, é utilizado pelos defensores do neoliberalismo para pintar um quadro otimista desta fase. A sua alegação é que a taxa de crescimento do PIB sob o neoliberalismo tem sido muito maior do que antes, sob o regime dirigista; que, em comparação com as quatro décadas anteriores ao neoliberalismo, quando o desempenho económico da Índia independente era fraco, ele realmente arrancou sob o neoliberalismo.
Uma vez, estive numa conferência onde o então diretor-geral do F.M.I., criticando o artigo escrito em conjunto por mim e por um colega, fez a mesma afirmação, mas sem invocar o PIB. O seu argumento era que, nas décadas de 1960 e 1970, as pessoas eram expostas apenas à visão monótona e aborrecida dos carros Ambassador e Fiat nas estradas indianas, enquanto que, depois do neoliberalismo, as estradas ficaram cheias de carros elegantes! Apesar de ser um economista conhecido, não compreendia, obviamente, o que constitui o bem-estar social.
Mas os defensores do PIB precisam de ser levados mais a sério. A questão aqui não é apenas que o PIB não indica bem-estar social sem ter em conta a distribuição de rendimentos, e que sabemos, com certeza, que a distribuição se agravou muito sob o neoliberalismo; a questão é saber se a maior parte da população está, de alguma forma, numa situação absolutamente pior sob o neoliberalismo. O meu argumento é que sim.
Mesmo a aceleração do crescimento do PIB na era neoliberal é grandemente exagerada. Vários investigadores têm defendido que existe uma sobrestimação do PIB nos últimos anos, o que ipso facto sobrestima a taxa de crescimento. Arvind Subramanian, antigo conselheiro económico chefe do governo da Índia, defendeu que entre 2011-12 e 2016-17, a taxa de crescimento da Índia foi sobrestimada em até 2,5 por cento por ano. Uma vez que isto se deveu ao facto de o método de estimativa utilizado para a nova série do PIB introduzida em 2011-12 ser falho, isto implicaria uma sobrestimação persistente até agora, caso em que o aumento da taxa de crescimento do PIB na era neoliberal, em comparação com a era anterior, não seria mais de 1 a 1,5 por cento. Considerando o aumento indubitável da desigualdade de rendimentos no período neoliberal, isto significaria um aumento muito pequeno do rendimento das pessoas comuns. Portanto, mesmo em termos de PIB, o período neoliberal não foi um grande sucesso no que diz respeito às pessoas comuns, enquanto o aumento da desigualdade de rendimentos também minou as instituições democráticas e o ethos igualitário do país.
Além disso, porém, temos provas diretas de um agravamento absoluto na vida das pessoas. No início do século XX, a disponibilidade per capita de cereais na Índia Britânica era de cerca de 200 kg por ano. Este número desceu para cerca de 137 kg na altura da independência, uma queda de 31% em relação ao último meio século de domínio colonial. Após a independência, com o esforço determinado do governo durante o tão ridicularizado período dirigista, este peso foi elevado para 186,2 kg em 1991, um aumento substancial, mas ainda não igual ao nível do início do século. Após a introdução do neoliberalismo, verificou-se inicialmente uma queda prolongada da disponibilidade per capita até 2008 e depois um aumento para 183,14 kg em 2019-20; ultrapassou o nível atingido em 1991 apenas três décadas depois, em 2020-21, quando atingiu 186,77 kg e aumentou ainda mais numa pequena quantidade em 2021-22, para 187,83 kg. Por conseguinte, pode dizer-se que o período neoliberal, no seu todo, foi caracterizado pela estagnação absoluta de um importante índice de bem-estar. É verdade que em 2022-23 houve alguma melhoria na disponibilidade per capita, mas uma razão importante para isso foi a redução dos estoques do governo (talvez para fornecer os 5 kg de grãos gratuitos como alívio da Covid-19, embora quanto disso tenha realmente chegado ao povo comum permanece obscuro); isto, embora seja um alívio bem-vindo, não é o mesmo que um bom desempenho económico.
Até agora, analisámos o quadro médio da população no seu todo, sem nos preocuparmos com a questão da distribuição de cereais alimentares dentro da população. Com o agravamento da distribuição do rendimento, o consumo direto e indireto de cereais per capita deve estar a aumentar entre os grupos de rendimento mais elevado, em detrimento do segmento mais pobre da população, neste quadro global de estagnação da disponibilidade de cereais per capita para a população no seu conjunto, o que significa uma privação nutricional absoluta desta última.
Há provas que corroboram isso mesmo. Na década de 1970, a antiga Comissão de Planeamento estabeleceu 2.200 calorias por pessoa por dia para a Índia rural e 2.100 calorias por pessoa por dia para a Índia urbana, como referência para definir a pobreza. Consideremos a Índia rural: a percentagem abaixo da ingestão diária de 2.200 calorias foi de 56,4 em 1973-74 e de 58 em 1993-94. Como a viragem para o neoliberalismo começou em 1991, isto significa basicamente que as duas décadas pré-neoliberais viram constância na taxa de pobreza; isto não é nada de especial, mas pelo menos não significou agravamento da pobreza.
Em contrapartida, entre 1993-94 e 2017-18 (ambos anos de inquéritos de grande amostragem do National Sample Survey - NSS), a despesa real per capita em alimentos diminuiu e o consumo de menos de 2.200 calorias por dia na Índia rural aumentou de 58 para mais de 80 (utilizando uma aproximação fiável). A descoberta do inquérito de 2017-18 foi tão sombria que o governo não só retirou os dados da esfera pública, como também alterou o método de recolha de dados, o que torna as descobertas subsequentes do NSS não comparáveis com as de todos os pesquisas anteriores do NSS. Assim, o período neoliberal assistiu a um aumento da magnitude da pobreza rural absoluta, segundo a definição da antiga Comissão de Planeamento, em contraste com a alegação dos defensores do PIB.
Perante este argumento, os defensores neoliberais costumam chamar a atenção para o facto de cada vez mais os moradores rurais enviarem os seus filhos para a escola, acederem a instalações hospitalares modernas, utilizarem telemóveis, etc., o que demonstra que os seus “gostos” estão a mudar; já não se preocupam com os grãos, mas querem um estilo de vida “moderno”. Por conseguinte, a redução da ingestão energética sob a forma de calorias é uma decisão voluntária que não deve prejudicar a melhoria dos seus padrões de vida.
O que este argumento não considera é o seguinte. No cabaz de consumo das pessoas, existem geralmente alguns produtos cujo consumo não pode ser reduzido, enquanto existem outros cujo consumo pode ser reduzido sem quaisquer efeitos nocivos imediatos (embora a longo prazo isto seja prejudicial). Os alimentos pertencem à última categoria, enquanto uma cirurgia ou um tratamento oncológico pertencem à primeira. Além disso, os itens cujas despesas não podem ser reduzidas ou adiadas não são um conjunto definido, de uma vez por todas, mas continuam a mudar ao longo do tempo, à medida que novas mercadorias substituem as antigas, à medida que ocorrem avanços científicos, e assim por diante.
Portanto, uma pessoa não escolhe entre a medicina moderna e o antigo feiticeiro da aldeia. Sabe que em determinado momento deve recorrer à medicina moderna. Mas se isso implicar uma redução da ingestão de alimentos, então não se pode considerar que ele esteja em melhor situação; e as probabilidades de isso acontecer são maiores se o preço que ele tem de pagar pelo tratamento médico moderno aumentar. O seu acesso à medicina moderna pode ser considerado, por si só, uma melhoria das suas condições de vida; neste sentido, até uma pessoa pobre que tem acesso a antibióticos vive hoje melhor do que o rei Henrique VIII de Inglaterra, que morreu de sépsis devido a uma ferida ulcerada. Mas se a condição de vida de uma pessoa melhora no geral depende de se, ao continuar a usufruir do acesso a uma quantidade mínima necessária do conjunto mutável de bens irredutíveis, a pessoa é forçada a reduzir o consumo do que considera bens redutíveis, especialmente de cereais.
Os cereais constituem, portanto, um “bem marcador”, donde se conclui que qualquer redução na ingestão de cereais (aos níveis atuais de consumo alimentar) num país como a Índia deve implicar um aumento da privação nutricional e, portanto, uma não melhoria das condições de vida das pessoas comuns.
O período dirigista, em suma, testemunhou alguma melhoria nas condições de vida das pessoas comuns, quando estas passaram a usufruir de uma maior ingestão de alimentos (em relação aos baixos níveis existentes à altura da independência) e de condições de vida cada vez mais modernas. Esta melhoria poderia e deveria, sem dúvida, ter sido maior; mas o período neoliberal foi caracterizado pelo aumento da privação nutricional e, portanto, pela ausência de tal melhoria das condições de vida. Citar dados do PIB não pode ignorar este facto elementar.
8 de dezembro de 2024
A hegemonia do dólar
A opinião liberal sustenta que o sistema monetário e financeiro internacional é um dispositivo para promover os interesses de todos os países participantes, proporcionando um acordo de pagamentos conveniente dentro do qual o comércio pode ser realizado. A realidade, porém, é completamente diferente: o sistema internacional está fundado na hegemonia do imperialismo ocidental e, por sua vez, sustenta essa hegemonia. Sendo o dólar norte-americano o eixo central deste sistema internacional, pode dizer-se que a hegemonia do dólar na economia internacional é sustentada e, por sua vez, sustenta a hegemonia do imperialismo ocidental; e esta hegemonia até perturba o comércio mutuamente conveniente entre os países participantes.
Um exemplo deixará este ponto claro. Suponha que o país 1 necessita do bem x que o país 2 possui, e o país 2, por sua vez, necessita do bem y que o país 1 possui. No sistema atual, não trocam simplesmente estas duas mercadorias entre si. Cada um deles deve primeiro obter dólares antes de comprar a mercadoria ao outro. E a menos que cada um deles tenha reservas em dólares suficientes para começar, esta negociação simplesmente não ocorreria. Por outras palavras, sendo o dólar o meio de circulação nas transações internacionais, a escassez de dólares nas mãos de alguns países prejudicaria mesmo as suas transações mútuas. Isto é especialmente verdade no comércio entre países do Terceiro Mundo, que continua restrito porque cada um deles sofre de escassez de dólares. Poderiam expandir o seu comércio mútuo se pudessem negociar nas suas próprias moedas, ou seja, “desdolarizar”. O termo “desdolarização” refere-se à redução da dependência do dólar norte-americano como meio de circulação, unidade de conta ou forma de manutenção de reservas para transações internacionais.
A desdolarização, contudo, é naturalmente oposta pelos E.U.A., pois, sendo a sua moeda crucial na economia mundial e geralmente considerada “tão boa como o ouro”, isso lhes dá uma vantagem imensa, como se estivessem sentados numa mina de ouro gratuita e inesgotável. Podem comprar recursos a outros países, podem tomar as suas empresas, podem investir o quanto quiserem no estrangeiro e financiar os seus próprios défices da balança corrente; tudo isto pode ser feito simplesmente imprimindo mais dólares.
Mas para além destas vantagens evidentes, de ter acesso a quantidades ilimitadas de poder de compra internacional de valor assegurado, os E.U.A. podem também utilizar este papel do dólar para pressionar os países a aceitar a sua hegemonia. Pode disponibilizar dólares a um país que queira favorecer; em alternativa, pode confiscar as reservas em dólares de países específicos que pretende punir, uma vez que tais reservas são normalmente mantidas em bancos ocidentais. De facto, o país aplicou punições semelhantes a vários países, desde o Irão à Rússia. A tendência para a desdolarização, geralmente favorecida por países terceiros, que são normalmente prejudicados pela escassez de dólares, ganhou grande impulso ultimamente, devido à frequência deste tipo de confisco nos últimos anos.
Se nada menos que um terço dos países do mundo foram já sujeitos a sanções ocidentais unilaterais - isto é, sanções que não têm o apoio das Nações Unidas e, por isso, não são impostas em defesa de algum princípio, como foi o caso das sanções anti-apartheid contra a África do Sul - então é natural que exista um forte desejo de desdolarizar, entre os países do hemisfério sul e os países que foram alvos de sanções. Este desejo encontrou expressão recentemente na cimeira de Kazan dos países BRICS.
O papel das sanções ocidentais, lideradas pelos E.U.A., no reforço do desejo de desdolarização foi reconhecido pela própria administração norte-americana. A secretária do Tesouro dos E.U.A., Janet Yellen, falando com o Comité de Serviços Financeiros da Câmara dos Representantes, em Julho passado, disse que as sanções económicas dos E.U.A. levaram os BRICS a tentar embarcar na desdolarização. Ela admitiu: “Quantas mais sanções os E.U.A. impuserem, mais países (BRICS) procurarão métodos de transações financeiras que não envolvam o dólar norte-americano”. Implícita na observação de Yellen estava a admissão de que os E.U.A. usam a hegemonia do dólar para intimidar os países a seguirem a sua linha, e que o número de países assim intimidados tem aumentado.
Existe uma dialética específica de exercício de hegemonia através de sanções unilaterais. Se forem impostas sanções a um ou dois países recalcitrantes, estas poderão ser eficazes, sem representar qualquer ameaça para toda a estrutura; mas se forem impostas sanções a vários países, a própria estrutura ficará ameaçada. E dada a aflição a que os países são reduzidos sob o neoliberalismo, há uma tendência para o número de países recalcitrantes aumentar ao longo do tempo. Mas com o aumento do número de países sancionados, a tendência para a desdolarização continua necessariamente a fortalecer-se. E é também aqui que a pura coerção por detrás da hegemonia do dólar, o facto de esta hegemonia se basear na pressão imperialista, se torna claramente evidente, expondo a vacuidade da afirmação liberal de que o acordo do dólar é do interesse de todos os países.
Uma razão próxima muito importante, por detrás da hegemonia do dólar, que remonta à década de 1970, foi o acordo celebrado entre os E.U.A. e os países produtores de petróleo, alcançado através da mediação da Arábia Saudita, de que o dólar seria o meio através do qual os preços do petróleo seriam expressos e o comércio de petróleo realizado. Dada a importância do petróleo, isto deu um grande impulso ao dólar; aliás, mais recentemente, quando foram impostas sanções ocidentais à Rússia com o objetivo de dizimar o rublo, esta moeda foi salva, entre outras coisas, pela insistência da Rússia em que todos os pagamentos pelas suas exportações de petróleo e gás deveriam ser feitos em rublos.
Mas é evidente que um acordo com os exportadores de petróleo, como o que ocorreu na década de 1970, não é agora considerado suficiente para garantir a contínua hegemonia do dólar. Até Janet Yellen, que antes menosprezava toda a conversa sobre a desdolarização, a leva agora mais a sério. Não é de estranhar, neste contexto, que Donald Trump tenha mesmo ameaçado os países que procuram abandonar o dólar com a imposição de uma tarifa de 100% sobre as suas exportações para os E.U.A.. A ameaça de Trump deixa bem claro a todos que, por detrás da hegemonia do dólar, está a coerção exercida pelo imperialismo dos E.U.A..
Esta coerção pode ser eficaz porque qualquer desdolarização é um processo que leva tempo. Se as exportações para os E.U.A. dos países que estão a desdolarizar forem, entretanto, reduzidas, estes enfrentarão uma escassez aguda de dólares, que poderá tornar as suas vidas extremamente difíceis. Mesmo que consigam, de alguma forma, satisfazer as suas necessidades de importação através de pagamentos não monetários, se tiverem compromissos de dívida externa em dólares com o F.M.I., o Banco Mundial ou com instituições financeiras ocidentais, então o seu cumprimento torna-se impossível. A ameaça de Trump é, por isso, séria. Significativamente, ao fazer esta ameaça, Trump expõe descaradamente os mecanismos do imperialismo dos E.U.A. que são normalmente camuflados pela conversa liberal.
Ironicamente, porém, esta mesma ameaça, que poderá ser eficaz a curto prazo, fará com que cada vez mais países se consciencializem da necessidade de desdolarizar, do facto de que a hegemonia do dólar implicar a escravatura aos Estados Unidos da América. É claro que ainda há um longo caminho a percorrer até que ocorra qualquer desdolarização significativa, e a cimeira de Kazan estava bem ciente deste facto. Após a ameaça de Trump, vários países, incluindo a Índia, manifestaram a sua falta de interesse na desdolarização. Mas embora este possa ser um movimento imediato, para tentar permanecer nos bons livros da América, o facto de o imperialismo estar a enfrentar um sério desafio é inquestionável. Até a unidade entre as potências imperialistas, que é visível nas questões da Ucrânia e de Gaza, com a social-democracia em todos os países imperialistas a alinhar-se caracteristicamente com o imperialismo, atesta a seriedade do desafio ao imperialismo.
O tema da desdolarização faz parte desse desafio. No entanto, não existe uma ideia clara, mesmo entre os países BRICS, sobre a arquitetura financeira alternativa que deveria substituir a atual. A opinião progressista no mundo deve garantir que esta substituição, quando quer que ocorra, não substitua apenas a hegemonia do dólar pela hegemonia de alguma outra moeda, refletindo a hegemonia de algum outro país ou conjunto de países.
Para tal, é necessário que não se mantenham os mesmos arranjos quando o dólar for substituído por alguma outra moeda, seja alguma moeda existente ou alguma moeda alternativa dos BRICS; as próprias regras precisam de mudar, e uma mudança importante deve ser que o fardo do ajustamento para atingir o equilíbrio de pagamentos não recaia sobre os países deficitários, como era o caso no sistema de Bretton Woods e como é o caso agora, mas sim sobre os países excedentários.
15 de dezembro de 2024
O fortalecimento do dólar
Os jornais indianos têm estado cheios de histórias sobre a queda da rupia em relação ao dólar norte-americano nos últimos dias. Há pouco mais de um mês, no dia 27 de novembro, o valor do dólar era de 84.559 Rs; em 29 de Dezembro, tinha subido para Rs 85,5. E esta queda da rupia ocorreu apesar da redução das reservas cambiais pelo Banco de Reserva da Índia, para estabilizar a rupia: as reservas que ascendiam a 657,89 mil milhões de dólares a 22 de Novembro, desceram para 644,39 mil milhões de dólares a 20 de Dezembro, e, no entanto, a queda da rupia não pôde ser evitada; sem o dispêndio das reservas a quebra teria sido claramente ainda maior.
É evidente que a queda do valor da rupia face ao dólar tem sido um fenómeno persistente e de longo prazo. Durante muito tempo, durante o período dirigista, o preço da rupia em relação ao dólar foi fixo (com uma desvalorização ocasional determinada pelo governo) e foi sustentado pelo controlo cambial na economia; mas uma vez levantado tal controlo, a rupia caiu. Em 1991, imediatamente após o levantamento destes controlos, quando a rupia foi posta a flutuar pela primeira vez, a taxa de câmbio era de 22,74 Rs por dólar; em 2014, quando Narendra Modi chegou ao poder, a taxa tinha-se tornado de Rs 62,33 por dólar, e chegou agora a ultrapassar os Rs 85,5.
Este declínio persistente e de longo prazo da rupia não se deve ao facto de a taxa de inflação na Índia ser superior à dos E.U.A.; é certamente mais elevado, mas esta não é a causa principal da depreciação da rupia em relação ao dólar. Na verdade, pelo contrário, uma razão importante para a taxa de inflação na Índia ser persistentemente mais elevada do que nos Estados Unidos da América é a depreciação da própria rupia, o que aumenta os custos de importação de toda uma gama de insumos essenciais, como o petróleo, e estes custos mais elevados são repassados como preços mais altos para a economia como um todo. Claro que, qualquer que tenha sido a causa primária da depreciação da rupia, uma vez que a inflação é estimulada por ela, certamente reage de volta sobre a taxa de câmbio da rupia: os especuladores antecipam uma maior depreciação da taxa de câmbio por causa da inflação e, portanto, depreciam-na de facto ainda mais. Mas a principal causa da depreciação da rupia é a preferência dos ricos indianos por manter a sua riqueza sob a forma de dólares norte-americanos, em vez de rupias indianas. Isto dá origem a uma troca persistente de rupias por dólares, provocando a depreciação da rupia.
Este fenómeno de depreciação secular e persistente da taxa de câmbio face ao dólar não se limita apenas à Índia; caracteriza a maioria dos países do Terceiro Mundo. E é uma razão muito importante pela qual a taxa de câmbio da rupia nunca deve ser deixada flutuante, mas sim indexada ao dólar e sustentada por controlos de capital e controlos cambiais na medida necessária, como foi o caso durante o período dirigista.
Esta queda secular da rupia, no entanto, ocorre de forma desigual: ocorre através de quedas mais rápidas em alguns períodos e quedas menos rápidas noutros. E surge a questão: porque é que houve uma queda repentina no valor da rupia nas últimas semanas? Os jornais têm discutido longamente por que razão a rupia deveria estar a cair tão acentuadamente neste momento, com os comentadores a aduzirem fatores como a taxa de inflação atualmente mais rápida da Índia do que a dos E.U.A. e também o atual aumento do défice comercial da Índia; mas um fator que não tem recebido muita atenção é que o fortalecimento do dólar ultimamente não ocorre apenas em relação à rupia, mas em relação a quase todas as principais moedas do mundo. Por outras palavras, para além dos fatores específicos da Índia, existem certas razões básicas pelas quais o dólar está atualmente a fortalecer-se, não apenas em relação à rupia, mas em relação a quase todas as outras moedas importantes. Na verdade, o dólar nunca esteve tão forte como hoje em qualquer outro momento da última década: o Bloomberg Dollar Spot Index subiu 7 por cento este ano, o que o torna, em termos absolutos, mais alto do que em qualquer outro ano após 2015.
Este fortalecimento do dólar parece intrigante à primeira vista. O presidente eleito dos E.U.A., Donald Trump, acaba de anunciar um aumento das tarifas que se propõe introduzir naquele país assim que tiver tomado posse. Hoje em dia, ouvimos sermões quase todos os dias, de várias organizações internacionais, desde o F.M.I. ao Banco Mundial e à O.M.C., elogiando as virtudes do comércio livre, o que deveria, portanto, categorizar a política futura de Trump como retrógrada; e como o mercado supostamente “sabe o que é melhor”, ele deveria estar a perder alguma fé no futuro daquele país e, por consequência, deveríamos estar a assistir a alguma fuga de capitais de lá, diminuindo o valor do dólar. E, no entanto, o que descobrimos é exatamente o oposto. Além disso, a maioria dos observadores do mercado enumera a perspetiva de protecionismo dos E.U.A. como um fator subjacente ao fortalecimento do dólar. Como podemos explicar este fenómeno aparentemente intrigante?
A resposta simples a este aparente enigma é que os sermões sobre as virtudes do comércio livre ou liberal, destinados aos ouvidos dos políticos crédulos ou maleáveis do Terceiro Mundo, não são levados a sério pelo próprio mercado. É óbvio que o protecionismo nos E.U.A. aumentará a procura agregada nesse país e, por conseguinte, a produção e o emprego, ao excluir uma parcela das importações que tinham substituído a produção interna nesse país. Além disso, mesmo melhorando o emprego nos E.U.A. à custa do resto do mundo capitalista, também melhorará a balança comercial dos E.U.A.; na verdade, melhoraria a procura agregada nos E.U.A. precisamente ao melhorar a balança comercial desse país. Em suma, os E.U.A. melhorariam tanto a sua posição na balança de pagamentos como o seu emprego e produção, através das suas medidas protecionistas; e por causa disso a avaliação do mercado sobre a economia norte-americana melhorou em vez de piorar, o que é exatamente o oposto do que os defensores do comércio livre gostariam que acreditássemos. Esta avaliação melhorada traduz-se numa maior confiança no dólar, comparativamente a outras moedas importantes, e, consequentemente, numa valorização da sua taxa de câmbio face às restantes.
O protecionismo nos E.U.A. aumentaria, sem dúvida, a taxa de inflação até certo ponto; mas certamente aumentaria ainda mais a taxa de inflação no resto do mundo capitalista. Isto acontece porque os preços internacionais de diversos produtos básicos globais não industrializados (“commodities”), especialmente de insumos essenciais como o petróleo, estão fixados em dólares; uma valorização do dólar em termos de outras moedas, teria, portanto, o efeito de aumentar esses preços em termos dessas outras moedas e, assim, impulsionaria a inflação nessas outras economias.
Os trabalhadores destes outros países sofreriam, portanto, uma quebra nos seus níveis de vida por duas razões bem distintas: uma, uma quebra no emprego devido à perda do mercado norte-americano devido ao seu protecionismo; e, em segundo lugar, o aumento da taxa de inflação devido ao aumento dos custos provocado pela depreciação das suas moedas face ao dólar. E se os governos destes países tentarem controlar esta inflação de custos à custa dos trabalhadores, procurando medidas de “austeridade” que aumentem o desemprego e enfraqueçam o poder negocial dos trabalhadores, então este será mais um caminho para o empobrecimento dos trabalhadores.
No caso dos países do Terceiro Mundo endividados externamente, para além do desemprego e da inflação causados pelas vias acima referidas, existe uma forma adicional pela qual o fardo sobre os trabalhadores aumentará; e isto é conseguido através do aumento do valor, em moeda local, da sua dívida externa, que é normalmente contraída em dólares norte-americanos. O fardo do serviço da dívida aumentará, portanto, para eles, e esse fardo recairá necessariamente sobre os trabalhadores.
O que se passa na economia mundial é a expressão de uma irracionalidade fundamental do sistema capitalista, nomeadamente, que as condições de vida de milhões de pessoas tornam-se dependentes dos caprichos e das vontades de um bando de especuladores. O facto de a economia norte-americana poder sofrer um aumento da procura agregada e, por conseguinte, do emprego e da produção, é, naturalmente, um fator material de importância causado pelo protecionismo dos E.U.A.; mas o seu impacto nas taxas de câmbio noutros locais é o resultado das expectativas por parte dos operadores de mercado que são governadas pelo comportamento especulativo; e este comportamento é o que importa no capitalismo.
5 de janeiro de 2025
O nacionalismo do PIB
A opinião liberal é invariavelmente oposta ao “nacionalismo”. Trata o “nacionalismo” como um termo homogéneo que implica necessariamente uma atitude pouco amigável, não acomodatícia e rival em relação a outros países. Esta visão, porém, é completamente errónea; O nacionalismo anticolonial do Terceiro Mundo é totalmente diferente do nacionalismo que se desenvolveu na Europa no século XVII após os Tratados de Paz de Vestefália. Esta diferença surge de forma mais inconfundível na distinção entre o nacionalismo de um Hitler, que descende do nacionalismo europeu, e o de um Ho Chi Minh, que exemplifica o nacionalismo anticolonial.
Existem pelo menos três diferenças básicas entre o nacionalismo europeu, tal como se desenvolveu no século XVII, e o nacionalismo anticolonial do Terceiro Mundo do século XX: em primeiro lugar, o nacionalismo europeu identificava tipicamente um “inimigo interno” dentro da nação, como os católicos do norte da Europa, os protestantes no sul da Europa e os judeus em todo o lado; o nacionalismo do Terceiro Mundo, por outro lado, era inclusivo. Em segundo lugar, o nacionalismo europeu colocou a nação acima do povo, considerando-a uma entidade pela qual as pessoas deveriam apenas fazer sacrifícios; o nacionalismo do Terceiro Mundo, por outro lado, via toda a lógica da nação como consistindo em servir o povo que tinha sido oprimido por anos de colonialismo. Em terceiro lugar, o nacionalismo europeu foi imperialista desde o seu início; a conquista da Irlanda por Oliver Cromwell, poucos meses após os Tratados de Paz de Vestefália, foi o início de um projeto iniciado por todas as potências europeias, projeto esse que se sustentava naquele conceito particular de “nacionalismo”; em contraste, o nacionalismo anticolonial do Terceiro Mundo, embora territorial, não era imperialista e, pelo contrário, procurava desenvolver relações fraternais com outros países do terceiro-mundistas que estavam envolvidos em lutas anticoloniais semelhantes.
O nacionalismo europeu, em suma, foi marcado pela apoteose de uma entidade metafísica idealizada e abstrata chamada “nação” que estava acima do povo, enquanto o nacionalismo anticolonial do Terceiro Mundo era essencialmente não metafísico; era o que Marx teria chamado “partidário deste lado” e estava preocupado com o bem-estar do povo.
O Estado pós-colonial, independentemente de quais fossem as suas outras falhas, reiterou o seu compromisso com o conceito de nacionalismo anticolonial, no qual se basearam, por exemplo, as características básicas da Constituição indiana, captadas no seu Preâmbulo. A democracia, o secularismo e o socialismo estavam todos inseridos no compromisso da luta anticolonial com este conceito de nação; e do mesmo modo o controlo sobre o sector privado que se pretendia exercer através do sistema de licenciamento, a importância do sector público no quadro de uma economia mista e o compromisso geral com o igualitarismo, embora nenhum destes tenha necessariamente conduzido ao avanço de uma sociedade socialista. O dirigismo indiano, por outras palavras, baseava-se num compromisso declarado com o socialismo que, por sua vez, estava organicamente ligado ao conceito de nacionalismo anticolonial.
No entanto, uma mudança decisiva ocorreu no conceito de nacionalismo professado pelo Estado indiano com a introdução do regime neoliberal. A justificação para a introdução do neoliberalismo, que se supõe ter sido do interesse da “nação”, foi que este provocaria um crescimento mais rápido do Produto Interno Bruto, cujos benefícios se “repercutiriam” em todos, e que também fazem da Índia uma grande potência. O facto de um regime neoliberal aumentar a desigualdade económica nunca foi negado; na verdade, o contrário nunca foi afirmado em momento algum, nem mesmo pelos mais fervorosos apoiantes do neoliberalismo. Em suma, a introdução do neoliberalismo foi defendida, não com base no facto de ser um melhor meio de construir uma nação, conforme idealizado pela luta de libertação, mas com base no facto de que faria da nação indiana uma grande potência. Houve, portanto, uma mudança no conceito de nação, de uma entidade anti-imperialista que servia o povo de forma igualitária, para uma entidade que está envolvida numa corrida com outras nações para se tornar uma grande potência.
Implícita nesta mudança está o abandono da perspetiva “deste lado” do conceito de nação, de uma entidade real e concreta preocupada com as condições de vida das pessoas, por uma entidade abstrata e metafísica, de uma grande potência, que se situa acima do povo, pela qual as pessoas devem fazer sacrifícios. Este conceito alterado de nação faz lembrar o conceito europeu de nação, embora, como veremos, não lhe seja idêntico.
Em suma, não se esperava que o neoliberalismo alcançasse em maior medida aquilo que o dirigismo se tinha proposto alcançar. Ao mudar de um regime para outro, houve uma mudança no próprio desiderato; e associou-se a isso uma mudança no conceito de nação e de nacionalismo. Podemos chamar-lhe a mudança de um nacionalismo anti-imperialista para um “nacionalismo-PIB”. É certo que um tal “nacionalismo do PIB” não é per se imperialista, como o tinha sido o nacionalismo europeu, embora veja a nação como estando envolvida numa corrida competitiva contra outras nações; nem o “nacionalismo do PIB” invoca necessariamente um “inimigo interno”, como fez o nacionalismo europeu do século XVII. Os seus adeptos não são necessariamente pessoas que fazem concessões na questão do secularismo. Mas o “nacionalismo do PIB”, porque reintroduz um conceito metafísico de nação, funciona como uma ponte para as noções fascistas de nacionalismo.
Isto acontece por duas razões: em primeiro lugar, como vimos, o “nacionalismo-PIB” nega o desiderato de um avanço para uma sociedade igualitária marcada pela igualdade de direitos de cidadania e também por uma maior igualdade material; substitui em seu lugar uma sociedade desigualitária cujas desigualdades visam, supostamente, alcançar algum fim metafísico “superior”, como o estatuto de grande potência. E em segundo lugar, à medida que o regime neoliberal se atola numa crise, à medida que as esperanças até de um “gotejamento” desaparecem e a realidade da privação material afeta um número cada vez maior de pessoas, o ressentimento contra a ordem desigual que se desenrola aumenta; a aquisição do estatuto de grande potência já não é suficiente como antídoto para tal ressentimento; é quando o grande capital do país, que está integrado no capital financeiro internacional e sustenta a ordem neoliberal, faz uma aliança com elementos fascistas para criar uma nova metafísica, de um Hindu Rashtra que é uma camuflagem para um estado fascista.
Esta nova metafísica não substitui a antiga, mas complementa-a. É quando o nacionalismo do PIB, destinado a fornecer uma cobertura ideológica para um regime neoliberal, se instala no seio de um “nacionalismo” fascista.
É isso que vemos acontecer na Índia. Embora a introdução inicial do neoliberalismo tenha sido feita por elementos políticos que não se opunham ao secularismo, mas que justificaram o novo regime em nome da aceleração do crescimento do PIB e da transformação da Índia numa grande potência (a um ponto em que um dirigente sénior do Congresso chegou mesmo a dizer que a corrupção deve ser evitada porque impedia a Índia de se tornar uma grande potência(!)), o beco sem saída que o neoliberalismo alcança afasta ainda mais o país da ideia de nacionalismo anticolonial inclusivo. Não só traz uma aliança entre o grande capital e elementos fascistas, como também leva estes elementos fascistas ao poder juntamente com o seu “nacionalismo” fascista.
Enquanto o neoliberalismo cria as condições materiais para a dominação dos elementos fascistas, a ideologia subjacente à introdução do neoliberalismo, nomeadamente o “nacionalismo do PIB”, cria a base para a ascensão do “nacionalismo” fascista ao minar o nacionalismo anti-imperialista.
Superar a hegemonia dos elementos fascistas exige, portanto, não só transcender o neoliberalismo (caso contrário, os elementos fascistas, mesmo que afastados do poder, regressarão sempre, como fez Donald Trump nos E.U.A.), mas também um renascimento do nacionalismo anti-imperialista.
Há uma razão para enfatizar isso neste momento. O Dr. Manmohan Singh, antigo primeiro-ministro, que faleceu recentemente, era dotado de excelentes qualidades de cabeça e de coração e era uma pessoa completamente laica; mas foi também em grande parte responsável pela introdução das “reformas” neoliberais no país. Existe atualmente uma tendência percetível entre os defensores do regime neoliberal para fazerem uso dos atributos pessoais inquestionáveis do Dr. Singh para promover a aceitabilidade deste regime. Além disso, esta tendência terá provavelmente algum sucesso porque a ligação entre o neoliberalismo e a ascensão política dos elementos fascistas não é geralmente reconhecida. Tal ascendência é geralmente atribuída a fatores puramente políticos, desligados do contexto económico. Esta, porém, é uma perceção errónea que, se não for corrigida, apenas perpetuará a hegemonia dos elementos fascistas.
12 de janeiro de 2025
Resposta económica ao imperialismo norte-americano
Os países imperialistas liderados pelos E.U.A. têm vindo a impor sanções unilaterais, sem qualquer apoio das Nações Unidas, contra os países que ousam contestar os seus ditames. Segundo uma estimativa, quase um terço dos países do mundo já foram sujeitos a tais sanções em algum momento. Tais sanções incluem o congelamento dos ativos dos países sancionados que são mantidos em instituições financeiras ocidentais, como foi o caso do Irão, Cuba e Coreia do Norte, entre outros, e da Rússia mais recentemente. Embora este congelamento de bens seja flagrantemente contra as regras do jogo no capitalismo e equivalha a um ato de banditismo internacional, os países imperialistas não hesitaram em impô-lo. E para agravar a situação, os E.U.A. pagaram recentemente à própria Ucrânia, para financiar a guerra, o valor dos juros auferidos sobre os ativos russos congelados, devido à guerra promovida pela NATO.
Além disso, enquanto as políticas neoliberais estão a ser impostas ao hemisfério Sul, com base no argumento totalmente especioso, mas incessantemente repetido, de que são benéficas para o mesmo, os próprios E.U.A. têm vindo a adotar medidas protecionistas, basicamente para impulsionar o seu emprego interno e reduzir o seu défice comercial. Este protecionismo tem sido mais pronunciadamente dirigido contra a China; e agora Donald Trump anunciou que vai tornar a situação ainda mais rigorosa quando assumir o cargo de presidente. Propõe, por exemplo, impor uma tarifa adicional de 10% sobre todas as importações da China, sob a alegação de que continuam a ocorrer importações ilícitas de drogas indesejadas da China para os E.U.A., apesar da promessa da liderança chinesa de reduzir as suas exportações.
O imperialismo norte-americano, em suma, acredita que pode fazer o que quiser, que é uma lei por si só. Pouco importa se as suas ações violam as regras do jogo capitalista ou os princípios cuja sabedoria defende em todo o mundo. Mas a sua imposição unilateral de vontade a outros países está agora a ser seriamente desafiada. Na verdade, está a ser pago na sua própria moeda.
A sua proibição da exportação de tecnologia de semicondutores para a China provocou, em resposta, uma proibição por parte da China das exportações para os E.U.A. de antimónio, que é utilizado numa série de atividades relacionadas com a “segurança”; isso elevou bastante os preços do antimónio nos E.U.A.. Mais recentemente, a China desferiu um grande golpe nos E.U.A. ao anunciar que vai deixar por completo de comprar petróleo norte-americano. De qualquer forma, as importações chinesas de petróleo dos E.U.A. têm vindo a diminuir ultimamente. Em 2023, a China importou 150,6 milhões de barris de petróleo dos E.U.A., mas em 2024 estas importações caíram para 81,9 milhões de barris, ou seja, nada menos que 46%. A posição da China passou de segundo maior importador de petróleo norte-americano para o sexto maior; vai agora interromper completamente as importações de petróleo dos E.U.A..
O anúncio da China enfureceu Donald Trump, sob cuja presidência os E.U.A. se tornaram o maior produtor de petróleo e gás do mundo e também um exportador. Uma das razões prováveis para a explosão do gasoduto Nord Stream, em 2022, que o jornalista norte-americano Seymour Hersh acredita ter sido obra da CIA, foi eliminar a dependência da Europa em relação ao gás russo e torná-la antes mais dependente dos fornecimentos dos E.U.A.; é, de facto, exatamente o que aconteceu posteriormente. A ação chinesa de proibir a importação de petróleo norte-americano vai, portanto, contra a política dos E.U.A. de encontrar mercados de exportação para fontes de energia norte-americanas e de tornar os países dependentes das importações de energia dos E.U.A..
Na verdade, dispensa chinesa do petróleo norte-americano é tanto um ato de retaliação contra as restrições comerciais dos E.U.A. às exportações chinesas, como um meio de reduzir a dependência em relação aos E.U.A. para a provisão das suas necessidades energéticas, precisamente para eliminar qualquer vulnerabilidade à pressão norte-americana no futuro.
O que também é impressionante é a forma como a China se propõe compensar a falta de importações de petróleo dos E.U.A.. A perda das importações dos E.U.A. seria agora compensada por importações maiores da Rússia, Irão e Venezuela, os três países que estão entre os alvos mais importantes das sanções norte-americanas. Por causa destas sanções, o petróleo destes países está disponível barato neste momento. Para a China, por exemplo, o petróleo russo será mais barato do que o petróleo dos E.U.A., pelo que, mesmo livrando-se da dependência norte-americana, a China também obterá petróleo mais barato por meio dos novos acordos que celebrará. Em contrapartida, os E.U.A., que obtiveram uma grande “vitória” ao conquistar o mercado energético europeu, estariam a perder o mercado chinês e o ascendente face à China.
A raiva de Donald Trump, neste contexto, não é surpreendente. Trump acusa a China de estar a travar uma guerra comercial contra os E.U.A., mas a realidade é que a China está a tomar medidas para se defender da guerra comercial lançada pelos E.U.A. contra ela própria, há já algum tempo. As medidas unilaterais norte-americanas, que até agora serviam para intimidar os países indefesos a seguir a linha do imperialismo liderado pelos E.U.A., estão agora a dar origem a um novo conjunto de acordos internacionais que enfraqueceriam o domínio económico do imperialismo liderado pelos E.U.A.. Enquanto as ações norte-americanas fossem dirigidas apenas contra alguns pequenos países infelizes, que pudessem ser contados pelos dedos, tais ações poderiam ser eficazes e os países alvo coagidos a servir a hegemonia imperialista. Mas quando tais ações têm como alvo uma grande faixa de países, então começa a surgir um acordo alternativo; a hegemonia imperialista é abalada se for exercida abertamente contra tanto como um terço dos países do mundo.
Tudo isto tem uma influência importante no papel do dólar. A importação chinesa de energia da Rússia, Irão e Venezuela, os dois primeiros dos quais são membros dos BRICS e o terceiro espera ser um futuro membro, implica um aumento do comércio dentro dos BRICS. Este comércio não será necessariamente em dólares norte-americanos; o dólar não será o meio de circulação nas trocas entre os países BRICS. Embora a forma final do acordo monetário entre os países BRICS seja ainda uma questão em aberto, é claro o facto de o comércio entre eles não ser denominado em dólares; aliás, esta foi a mensagem da cimeira dos países BRICS em Kazan. A ação chinesa de cancelamento das importações de petróleo dos E.U.A. irá expandir o comércio não só dentro dos BRICS, como também reforçar um acordo monetário alternativo, que serviria para minar a posição hegemónica do dólar. O desalojamento do dólar não acontecerá certamente da noite para o dia; mas os movimentos para minar a sua hegemonia estão claramente em curso.
Este é um desenvolvimento potencialmente libertador. O regime neoliberal que mantém o Sul global sob o seu domínio chegou a um beco sem saída, acentuando enormemente a angústia das classes trabalhadoras metropolitanas. Embora não seja possível o fim da crise do neoliberalismo no seio do próprio neoliberalismo, a rotura com este arranjo acarreta uma substancial dor de transição, precisamente para aquelas pessoas cujos interesses exigem tal rotura. Esta dor deve-se tanto à operação espontânea do neoliberalismo como às sanções imperialistas que apoiam tais ações espontâneas. Por exemplo, qualquer país do Sul global que imponha controlos de capitais para reavivar a autonomia do seu Estado-nação, de modo a poder prosseguir uma agenda económica pró-povo sem receio de fuga de capitais, descobrirá que, a curto prazo, não poderá cobrir o seu défice comercial, pois o financiamento não fluirá para ele; isto exigiria também controlos comerciais, o que reduziria a disponibilidade de bens no mercado interno e, portanto, aumentaria ainda mais a compressão da procura dos trabalhadores no período de transição.
No entanto, ter um acordo comercial e monetário alternativo pode reduzir esta dor de transição, especialmente se esse acordo assumir a forma de acordos comerciais bilaterais que a União Soviética tinha no seu tempo com muitos países do Sul global. O potencial de rotura com o regime neoliberal está, por isso, a aumentar; e a opção chinesa por fazer acordos alternativos de importação de petróleo sublinha este potencial.
19 de janeiro de 2025
A desumanidade gerada pelo capitalismo
Georg Lukács, o conceituado filósofo marxista, observou um dia que “mesmo o pior socialismo era melhor do que o melhor capitalismo”. Esta observação feita em 1969 e repetida em 1971, sem dúvida com base na perceção que Lukács fez do socialismo realmente existente na União Soviética e na Europa de Leste, com o qual estava familiarizado, foi tratada com ceticismo mesmo nos círculos da esquerda ocidental da época. Mas todo o recente episódio de deportados dos Estados Unidos da América, incluindo mulheres e crianças, serem trazidos de volta para a Índia e outros países do Terceiro Mundo, algemados e agrilhoados em aeronaves militares, traz de volta esta observação à mente. Havia pelo menos duas evidentes características atrativas no socialismo realmente existente na União Soviética e na Europa de Leste que o diferenciavam de qualquer país capitalista.
Uma delas prende-se com o puro desprezo, na verdade, com o puro desprezo racial, subjacente a esta deportação por parte do principal país capitalista do mundo, do qual os países socialistas estavam absolutamente livres a nível oficial. É claro que se sabe que existiam preconceitos raciais entre as pessoas mesmo nos países socialistas daquela época, apesar de todas as posições governamentais em contrário, preconceitos que estão a vir ao de cima após o colapso do socialismo aí verificado; também se tem consciência dos imensos esforços que estão a ser feitos pelas forças progressistas nos países capitalistas avançados, nos últimos tempos, para produzir uma sociedade mais tolerante, incluindo racialmente tolerante. De facto, muitos atribuiriam a desumanidade da deportação não ao capitalismo em si, mas ao trumpismo, isto é, à total desumanidade da camarilha neofascista que detém atualmente o poder nos E.U.A..
Embora seja certamente verdade que o trumpismo não é idêntico ao capitalismo em si, seria um erro ver o trumpismo como um fenómeno completamente separado e estranho. O racismo nos tempos modernos é um produto do imperialismo, e o capitalismo como modo de produção é inconcebível sem o imperialismo. Mesmo as tendências progressistas no capitalismo não repudiam o imperialismo como um fenómeno explorador e repugnante pertencente ao passado; vêem-no mais como um fenómeno que trouxe progresso e “modernidade” a sociedades distantes. Implícita nesta visão que concebe tais sociedades como incapazes de alcançar o progresso e a “modernidade” por si só, que vê o imperialismo como uma entidade benigna, está uma crença na superioridade da raça envolvida no projeto imperialista. Por melhores que sejam as intenções da tendência progressista na metrópole contemporânea, enquanto não repudiar o imperialismo, não poderá libertar-se da mácula do racismo; e o facto de não repudiar o imperialismo é evidente até hoje no amplo apoio dispensado, até pelos elementos progressistas, às duas guerras recentes apoiadas por todas as potências metropolitanas, uma delas um genocídio contra um povo inteiro, e a outra um resultado da expansão imperial ocidental.
O racismo, por outras palavras, continua latente nos países metropolitanos, não apenas como um preconceito persistente, mas até mesmo dentro dos círculos dominantes, incluindo os elementos liberais dentro dos círculos dominantes. E em períodos de crise capitalista, adquire um novo ímpeto à medida que o capital monopolista o utiliza para “alterizar” alguns grupos de infelizes imigrantes, para reforçar a sua posição contra as ameaças à sua hegemonia e para dividir a classe trabalhadora. Em contraste, nos antigos países socialistas, a formação política dominante era totalmente oposta ao racismo e reprimia qualquer expressão deste na sociedade. Muitos argumentariam que se tratava de uma imposição. Mas a questão é: seja uma imposição ou não, não deixou espaço para a ascensão de uma posição trumpista.
Permitam-me agora abordar o segundo aspeto em que os antigos países socialistas demonstraram ser superiores, que é a obtenção do pleno emprego, que, aliás, também eliminou um importante fator material, o desemprego, que normalmente está por detrás da animosidade em relação aos imigrantes que se observa nos países capitalistas avançados.
A razão pela qual as pessoas de países do Terceiro Mundo desejam emigrar para países como os E.U.A. é o desemprego galopante nos seus países de origem. É certo que aqueles que emigram não são necessariamente aqueles que estão completamente destituídos; o facto de cada emigrante ter de desembolsar até 4,5 milhões de rupias a intermediários para organizar a sua entrada nos E.U.A. através da “rota do burro” mostra que tinha alguns meios à sua disposição. Mas certamente que o seu desejo de emigrar surge de dois fatores: a ausência de emprego suficientemente gratificante (o que é distinto de qualquer um); e a existência de uma enorme desigualdade na sociedade a que pertence, o que o torna insatisfeito com o seu estatuto material. E ambos estes fatores surgem por causa do projeto de construção do capitalismo no país. Não importa quão rápida seja a taxa de crescimento do PIB do país, não importa quantos milhares de biliões de dólares se torne a dimensão do seu PIB, estes fatores permanecerão sempre, assim como o desejo de emigrar por parte de uma parte da população.
É uma vergonha que, mais de 75 anos após a independência do país, ainda tenhamos uma sociedade da qual as pessoas desejam desesperadamente emigrar, mesmo quando o risco associado a essa emigração passa por serem tratadas como animais e enviadas de volta para casa, em estado enjaulado. Este é o resultado inevitável da construção de uma sociedade capitalista num país do Terceiro Mundo de hoje.
No outro extremo, a razão pela qual um Trump pode deportar tais imigrantes impunemente, embora a própria sociedade norte-americana tenha surgido através da imigração, com os imigrantes europeus a tomarem conta das terras pertencentes à população indígena, é a existência de desemprego em massa. A teoria económica burguesa faz a afirmação totalmente falsa de que o crescimento a longo prazo de uma economia capitalista depende da taxa de crescimento da sua força de trabalho. Se esta afirmação fosse verdadeira, então os imigrantes na América deveriam ter sido bem-vindos como meio de impulsionar a taxa de crescimento daquela economia; mas não é, e o flagelo do desemprego torna popular até a linha dura de Trump em relação à imigração. Na verdade, a ironia da situação é tal que o partido mais esquerdista da Alemanha, o partido Sahra Wagenknecht, que rompeu com o partido de esquerda Die Linke devido ao apoio tácito deste último às guerras conduzidas pela NATO, tem de tomar uma posição sobre a imigração não diferente da dos partidos alemães da direita tradicional. O flagelo do desemprego, tão generalizado, que aflige tanto os países de origem como os países de destino dos emigrantes, e que necessariamente acompanha o capitalismo ao longo da sua existência e assume uma forma virulenta num período de crise como o atual, está na base da desumanidade a que assistimos, uma desumanidade que trata as pessoas como gado e as deporta agrilhoadas.
Em contraste, as antigas sociedades socialistas estavam totalmente livres deste flagelo. Na verdade, não enfrentavam desemprego, mas sim escassez de mão-de-obra. Janos Kornai, o conhecido economista húngaro, que, aliás, não era socialista, seguiu o exemplo de Kalecki e fez uma distinção entre sistemas “constrangidos pela procura” e sistemas “constrangidos pelos recursos”; tinha salientado que, enquanto o capitalismo era um sistema com procura limitada, o socialismo era um sistema com recursos limitados. Uma implicação disto era que as antigas sociedades socialistas eram caracterizadas pela escassez, racionamento e filas de espera: com a utilização total dos recursos, a quantidade de bens que podiam produzir era inferior ao poder de compra nas mãos do povo aos preços vigentes; isto significou, no entanto, que os recursos, incluindo a força de trabalho disponível, foram plenamente utilizados. Na verdade, estas sociedades socialistas foram as únicas nos tempos modernos que experimentaram o pleno emprego, tanto que a força de trabalho teve de ser aumentada por uma elevação significativa da taxa de participação das mulheres no trabalho, o que por sua vez teve implicações sociais muito profundas. E, para além de ganharem o rendimento que o emprego proporcionava, os trabalhadores destas sociedades não tinham de sofrer a perda de autoestima que inevitavelmente acompanha o desemprego.
Muito se tem escrito contra estas sociedades socialistas realmente existentes, inclusive por escritores de esquerda; e com o colapso deste sistema, criou-se a impressão de que não há alternativa ao capitalismo em sociedades como a nossa. A verdade, porém, é que enquanto prosseguirmos com o capitalismo, embora possamos estar a produzir multimilionários, a ignomínia que estava associada a ser um indiano de “classe baixa” na era colonial nunca abandonará o nosso povo. Os trabalhadores comuns continuarão a ser tratados como gado; e quando deixarem as nossas costas em busca de uma vida melhor noutro lugar, como alguns deles inevitavelmente farão, serão empurrados de volta para o país algemados e acorrentados. Só uma sociedade socialista, que estamos em condições de construir melhor no nosso país, aprendendo com os erros do passado, pode superar o flagelo do desemprego e o destino do nosso povo ser tratado como animais enjaulados.
16 de fevereiro de 2025
Estratégia de reavivamento do imperialismo
A política externa de Donald Trump deixou os comentadores realmente nervosos. As suas posições marcadamente divergentes em relação à Ucrânia e a Gaza, no primeiro caso aparentemente procurando a paz, e no segundo apelando à limpeza étnica de uma população inteira, deixaram-nos a pensar se a sua influência nos assuntos mundiais é "positiva" ou não. A razão para tal perplexidade, no entanto, não está em algo que Trump tenha feito, mas em não reconhecer o fenómeno do imperialismo. Não há dúvidas de que o imperialismo ocidental liderado pelos E.U.A. se colocou numa situação difícil, onde a escolha era entre uma escalada desastrosa da guerra na Ucrânia, até ao ponto de um confronto nuclear, ou uma erosão gradual da hegemonia imperialista. Donald Trump está a tentar tirar o imperialismo de um acantonamento tão incrivelmente complicado. A questão não é se ele é “a favor da paz” ou “a favor da guerra” ou se está atento aos interesses europeus ou não; a questão é que ele está a procurar uma estratégia imperialista alternativa que resgate o imperialismo deste beco sem saída, e ele está em condições de o fazer porque não está contaminado pela política anterior que criou este beco sem saída em primeiro lugar.
O seu método para reafirmar a hegemonia imperialista, que estava a ser gradualmente erodida, é uma combinação de cenoura e pau. A suposição básica que subjaz à provocação que produziu a guerra na Ucrânia, ou seja, que a Rússia poderia ser levada a render-se aos ditames ocidentais em consequência dela, foi provada falsa. Não só é verdade que a Ucrânia tem vindo a perder terreno de forma constante durante a guerra, como as sanções económicas contra a Rússia, que deveriam “reduzir o rublo a escombros” (“reduce the rouble to rubble”), foram totalmente contraproducentes; o rublo, após uma breve queda temporária, recuperou para um nível em relação ao dólar que era ainda mais elevado do que antes das sanções e, além disso, estas sanções produziram uma reação em que um desafio à hegemonia do dólar entrou na agenda.
A cimeira de Kazan dos países BRICS apresentou a “desdolarização” como uma possibilidade séria. As sanções imperialistas unilaterais, desde que dirigidas a alguns países pequenos, podem ser bastante eficazes; mas quando têm como alvo um grande número de países, e também países tão grandes, tão desenvolvidos e tão ricos em recursos como a Rússia, não só perdem a sua eficácia enquanto sanções, como encorajam a formação de um bloco de países alinhados contra todo o arranjo imperial dominante, que passa por ser a ordem económica internacional, e esta alternativa tende a atrair para o seu seio até os países não sancionados.
É exatamente isso que tem vindo a acontecer e foi isso mesmo que Trump enfrentou quando assumiu o poder. O pau no seu método de cenoura-e-pau é bem conhecido. Ameaçou impor tarifas pesadas contra os países que adotassem a desdolarização, o que é um ato imperialista flagrante e contra todas as regras do jogo capitalista; afinal, qualquer país, de acordo com estas regras, tem a liberdade de negociar em qualquer moeda que desejar, desde que o seu parceiro comercial assim esteja disposto, e também a liberdade de manter a sua riqueza em qualquer moeda que desejar. Restringir esta liberdade, impondo tarifas elevadas contra um país deste tipo é uma pressão flagrante, que nenhuma ordem internacional pode explicitamente endossar; mas Trump, como imperialista aberto e implacável, não teve escrúpulos em exercer tal coerção económica de forma bastante explícita.
A sua tentativa de pôr fim à guerra na Ucrânia é a cenoura neste método de cenoura-e-pau. Em vez de ser formado um bloco de poder alternativo contra os E.U.A. e contra o imperialismo ocidental em geral, o fim desta guerra em termos que não sejam desfavoráveis à Rússia manterá a Rússia, fora de qualquer bloco alternativo. Isto prejudicará assim as tentativas em curso de desafiar a hegemonia imperialista.
É claro que qualquer fim para a guerra na Ucrânia com base em negociações deve ser bem recebido por todos, mas ver esse fim como o resultado de um desejo de paz, ou como a prossecução dos interesses dos E.U.A. em detrimento das "preocupações de segurança" europeias, é totalmente erróneo. Trump não está em missão de paz, caso contrário não teria feito comentários totalmente beligerantes sobre Gaza; na verdade, o capitalismo é, pela sua própria natureza, contra a paz: como observou o socialista francês Jean Jaurès, “o capitalismo transporta a guerra dentro de si, tal como as nuvens transportam a chuva”. É o desejo de colocar a hegemonia imperialista em melhores condições que motiva Trump, e não o desejo de paz. Da mesma forma, a questão da segurança europeia é uma completa distração: a segurança europeia nunca foi ameaçada pela Rússia, e toda a conversa sobre uma ameaça de "imperialismo russo" a invadir a Europa foi apenas uma desculpa para justificar o expansionismo da NATO. Portanto, não há qualquer questão de a segurança europeia ser prejudicada pela iniciativa de paz de Trump.
A divergência de Trump em relação às camarilhas dominantes europeias surge por conta de duas estratégias alternativas diferentes que o imperialismo pode adotar atualmente. Uma delas é a velha estratégia de Biden de agressão à Rússia, que chegou a um beco sem saída; e a outra é uma estratégia alternativa para pôr fim à guerra na Ucrânia e afastar a Rússia de um bloco de oposição à hegemonia do imperialismo ocidental. Os governantes europeus estão apegados à primeira, enquanto Trump tenta a segunda. É preciso ver a oposição da AfD neonazi na Alemanha à guerra na Ucrânia exatamente nos mesmos termos: a sua extrema agressividade em relação à Palestina, em contraste com o seu desejo de pôr fim à guerra na Ucrânia, não é sintomática nem de qualquer desejo geral de paz nem de uma despreocupação com a “segurança europeia”, mas de uma certa posição estratégica.
É claro que o projeto de Trump de tirar o imperialismo do beco para onde foi empurrado é, simultaneamente, um projeto de afirmação da hegemonia dos E.U.A. sobre o bloco imperialista no seu todo. O seu lema “Make America Great Again” é um projeto de recriação de um mundo dominado incondicionalmente pelo imperialismo ocidental, com os E.U.A. como o seu líder inquestionável. É uma continuação, nesse sentido, da estratégia de tornar a Europa dependente de fontes de energia norte-americanas, que foi representada pela explosão do gasoduto da Rússia para a Europa denominado Nord Stream II, alegadamente obra do “Estado Profundo” dos E.U.A..
Há, no entanto, uma grande contradição na estratégia de Trump. Há um preço a pagar pela “liderança” do mundo capitalista; e Trump quer um papel de “liderança” para os E.U.A. sem pagar esse preço. O preço é o seguinte: o “líder” deve tolerar os défices comerciais em relação a outras grandes potências capitalistas para acomodar as suas ambições e evitar que o mundo capitalista no seu todo mergulhe numa crise. Foi isso que a Grã-Bretanha fez durante os anos da sua “liderança” e é isso que os E.U.A. têm feito no período mais recente. O défice comercial da Grã-Bretanha em relação à Europa Continental e aos E.U.A., que eram as outras grandes potências naquela época, não a prejudicou. A razão para isso foi que ela equilibrou esse défice, entre outras coisas, reclamando um excedente de ganhos invisíveis sobre o seu império colonial, a maior parte do qual era um excedente nominal forjado, contra o qual extraía uma "drenagem" dessas colónias de conquista, com a qual liquidava o seu défice com outras grandes potências capitalistas.
No entanto, os E.U.A. do pós-II Guerra Mundial não estiveram numa posição “afortunada” semelhante; o facto de o país ter um défice comercial em relação a outras grandes potências fez com que se afundasse cada vez mais na dívida. A sua tentativa de evitar endividar-se ainda mais, que faz parte do projeto "Make America Great Again" de Trump, inclui a imposição de tarifas contra todos os seus parceiros comerciais, numa situação em que a procura geral na economia capitalista mundial não está a expandir-se, devido à pressão do capital financeiro globalizado em todo o lado para que sejam evitados défices fiscais e a tributação dos ricos com vista a aumentar as despesas do governo. Isto só irá acentuar a crise capitalista mundial, com um fardo particularmente pesado a cair sobre o mundo capitalista exterior aos E.U.A..
A estratégia de Trump para o renascimento do imperialismo equivale, portanto, a ter o bolo e comê-lo também. A sua tentativa de afirmar a liderança dos E.U.A. enquanto procura impor tarifas a outros equivale a uma política de “empobrece o teu vizinho” (“beggar-thy-neighbour”) em relação ao resto do mundo. Esta política de “empobrece o teu vizinho”, que equivale a garantir o crescimento para si próprio arrebatando mercados aos outros, é fundamentalmente inimiga do projeto de reafirmação da hegemonia imperialista. Se Biden empurrou o imperialismo para um beco, a sua retirada desse mesmo beco por Trump só levará a que ele seja empurrado para outro beco.
2 de março de 2025
(*) Prabhat Patnaik (n. 1945) é um economista marxista e reputado comentarista político indiano. Natural do Estado de Odisha, o sistema de bolsas permitiu-lhe prosseguir estudos até ao doutoramento na Universidade de Oxford, tendo ensinado também em Cambridge. De regresso à Índia em 1974, foi professor na Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Delhi, até à sua recente jubilação. Especializou-se em Macroeconomia e Política Económica. De 2006 a 2011 serviu como vice-presidente do Comité de Planeamento do Estado de Kerala. É editor da revista Social Scientist, membro do grupo de estudos International Development Economics Associates (IDEAs) e autor de numerosos livros, de entre os quais: Time, Inflation and Growth (1988), Economics and Egalitarianism (1990), Whatever Happened to Imperialism and Other Essays (1995), Accumulation and Stability Under Capitalism (1997), The Retreat to Unfreedom (2003), The Value of Money (2008), Re-envisioning Socialism (2011), Marx's Capital: An Introductory Reader (2011) e (com sua esposa Utsa Patnaik) A Theory of Imperialism (2016) e Capital and Imperialism. Theory, history and the present (2021). O presente texto foi composto, com consentimento genérico do autor, a partir de vários artigos seus publicados na revista semanal do Partido Comunista Indiano (Marxista) Peoples’ Democracy. São eles, sucessivamente, os artigos publicados na edição de 29 de setembro de 2025, na edição de 6 de outubro de 2024, na edição de 13 de outubro de 2024, na edição de 3 de novembro de 2024, na edição de 10 de novembro de 2024, na edição de 8 de dezembro de 2024, na edição de 15 de dezembro de 2024, na edição de 5 de janeiro de 2025, na edição de 12 de janeiro de 2025, na edição de 19 de janeiro de 2025, na edição de 16 de fevereiro de 2025 e na edição de 2 de março de 2025. A tradução é da responsabilidade de Ângelo Novo.
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