Notas sobre o marxismo sinizado

 

 

Carlo Formenti (*)

 

 

Como introdução

 

Nos meus últimos trabalhos - tanto em livros como em diversos artigos publicados nesta página (1) - despendi muita energia para contrariar o lugar comum - que une a direita e a "esquerda" ocidentais - segundo o qual a China seria um país capitalista, se não mesmo imperialista, cuja única razão de conflito com os Estados Unidos da América e a Europa é a competição pela dominação global.

 

No caso da direita, este juízo serve como argumento de propaganda, bom para desencorajar qualquer simpatia por uma possível alternativa a uma economia, a um sistema político, a uma cultura e a um modo de vida que setores cada vez mais vastos das populações ocidentais consideram intoleráveis, como demonstra o sucesso dos movimentos ditos "populistas" e as elevadíssimas percentagens de abstenção.

 

No caso da esquerda é necessário distinguir entre a ala neoliberal “progressista”, de facto alinhada com a direita (com exceção do compromisso com os direitos civis dos indivíduos e das minorias pertencentes às classes urbanas médias-altas), e a ala radical, que ainda dá alguma atenção aos interesses das classes trabalhadoras. A esquerda neoliberal tirou definitivamente a máscara ao votar no Parlamento Europeu a infame resolução que equipara o nazismo ao comunismo. A ala radical, agora desprovida de instrumentos teóricos para analisar a realidade (é desarmante o desconhecimento dos seus dirigentes em matéria de filosofia, história e economia, para não falar do esquecimento quase total da teoria marxista), limita-se a anunciar que “um outro mundo é possível” mas, não fazendo a mínima ideia do que fazer e como fazer para pôr em prática este slogan, despreza os projetos políticos que tentam avançar caminho.

 

Neste estado de coisas (Rebus sic stantibus), não me canso de insistir na necessidade de estudar a única experiência (na verdade não é a única, mas é de longe a mais significativa, quanto mais não seja pelas imensas dimensões geográficas e demográficas da nação que a está a implementar), que oferece um exemplo concreto de que a intimação de Thatcher (“não há alternativa”) é falsa. Um exemplo, não um modelo, porque são precisamente as características peculiares da experiência em causa que nos ajudam a compreender que não pode existir um modelo universalmente aplicável para a transição para uma formação social pós-capitalista.

 

A confirmar o carácter “local” e idiossincrático da experiência está a própria classe dominante da República Popular da China que, não por acaso, fala em “socialismo ao estilo chinês” e se declara inspirada no método, nos princípios e nos valores de um marxismo “sinizado”. Para explicar estas afirmações de uma forma compreensível para os nossos esquerdistas impregnados de preconceitos eurocêntricos, seguirei a lição de Cheng Enfu (2), um dos maiores economistas chineses, cruzando-a com as de Giovanni Arrighi (3) e da dupla Alberto Gabriele e Elias Jabbour (4). Em particular, tratarei: 1) como a China está a tentar “utilizar” alguns aspetos da civilização capitalista ocidental sem ser colonizada por ela; 2) quais os desafios e contradições que deve enfrentar para consolidar a atual fase inédita do seu desenvolvimento que define como a “nova normalidade”; 3) o que se entende por marxismo sinizado e que novos elementos apresenta em comparação com a teoria marxista “clássica”; 4) que fatores de inspiração a atual elite chinesa retira da tradição antiga e clássica da sua civilização milenar (Cheng Enfu escreve que a caixa de ferramentas do Partido Comunista Chinês é "uma síntese dialética dos materiais ideológicos fornecidos por três sistemas do conhecimento: conceitos marxistas, aprendizagem ocidental, aprendizagem tradicional chinesa”).

 

1. Utilizar o capital e as tecnologias ocidentais sem nos deixarmos colonizar

 

Em Adam Smith em Pequim, Arrighi contestou a tese segundo a qual a surpreendente descolagem da economia chinesa ocorreu graças à conversão do Partido Comunista Chinês ao neoliberalismo. Isso foi antes o que aconteceu na Rússia, após o colapso do socialismo, com os conhecidos efeitos ares (imiseração e desemprego em massa, apropriação de bens públicos por um punhado de oligarcas, desmembramento da unidade nacional, etc.). A liderança que substituiu Mao após a sua morte estava literalmente obcecada com o destino de uma Rússia que tinha adotado a terapia de choque, inspirada nos princípios do Consenso de Washington, tendo por isso Deng Xiaoping optado por reformar o sistema lenta e gradualmente.

 

A economia arrancou depois de as grandes empresas terem sido obrigadas a competir entre si e a competir tanto com as empresas estrangeiras estabelecidas nas Zonas Especiais como com as novas empresas com participação privada e comunitária. A decisão de permitir (a partir de 1983) aos agricultores a possibilidade de venderem os seus excedentes de produção, mesmo em mercados distantes, também contribuiu para o crescimento do imenso mercado interno chinês (uma disposição que evoca a decisão semelhante tomada meio século antes por Lenine, quando lançou a NEP (5)) Porque é que estas escolhas, ao contrário do que era previsto - e desejado - pelos "especialistas" ocidentais, não levaram à queda do socialismo e à plena integração da China no papel de membro subordinado do sistema capitalista mundial? É isso que Cheng Enfu tenta explicar no seu livro sobre a “dialética da economia chinesa”.

 

Nós, defende este autor, não seguimos nem o modelo liberal nem o modelo social-democrata, embora tenhamos desenvolvido alguns elementos seus. Em vez disso, aplicamos o conhecimento ocidental de forma discriminatória, descartando aspetos que poderiam ter posto em causa o controlo do Estado e do partido sobre o nosso sistema económico. Isto é demonstrado, entre outras coisas, pelo facto de que, embora o capitalismo ocidental continue a reduzir o bem-estar social, na China foram feitos investimentos maciços nos fundos educativos chineses, o salário mínimo foi aumentado e foram tomadas disposições para melhorar o seguro médico nas zonas urbanas e nas zonas rurais, bem como o tratamento dos idosos. Sem falar no facto - absolutamente inconcebível segundo os cânones da economia burguesa - de ter conseguido resgatar oitocentos milhões de cidadãos da pobreza absoluta num curto espaço de tempo. Mas acima de tudo - um mistério que obceca os economistas ocidentais - conseguiu passar de um país em desenvolvimento a uma potência económica capaz de competir com os Estados Unidos da América, em apenas algumas escassas décadas (o livro de Cheng Enfu oferece uma riqueza de dados que ilustram este impressionante processo evolutivo). Como é que isso foi feito?

 

Cheng Enfu explica o “milagre”, descrevendo as características de um dispositivo que se baseia em quatro sistemas coordenados e interligados: 1) um sistema de múltiplos direitos de propriedade, baseado na propriedade pública; 2) um sistema de distribuição multifatorial, baseado no trabalho; 3) um sistema de mercado multiestruturado liderado pelo Estado; 4) um sistema aberto multifacetado autossuficiente.

 

A ideia base que inspirou as reformas implementadas a partir do final da década de 1970 foi a de construir um modelo de “dupla força”, ou seja, agregar as vantagens geradas pela coexistência de um governo forte com um mercado forte, um paradoxo inconcebível para uma teoria económica que coloca os dois termos em oposição radical: se o mercado domina, o Estado recua e vice-versa. Obviamente, só a política tem o poder de criar as condições para que o Estado e o mercado possam coexistir sem se anularem. Em particular, no processo de abertura da economia chinesa ao capital internacional, isto significou não colocar ênfase exclusivamente na utilização ativa de capital estrangeiro (e nas contribuições de tecnologia e talento associadas a esta utilização), mas também e sobretudo nas medidas necessárias para garantir a independência e a autossuficiência da China, por exemplo, mantendo o controlo sobre as tecnologias básicas que são ferramentas indispensáveis para garantir a segurança do país, e limitando a participação do capital estrangeiro a formas de propriedade mista, para evitar que este crie os seus próprios monopólios financeiros no país.

 

Estas e outras medidas fizeram com que o rápido processo de crescimento das trocas produtivas, comerciais e financeiras entre a China e o resto do mundo, a par da sua entrada na O.M.C., pudesse ser descrito (não apenas por Arrighi, mas também por outros autores marxistas (6)) como um "aproveitamento da globalização" que permitiu à China integrar-se nas redes mundiais de comércio e finanças sem ceder às pressões - internas e não apenas internacionais (7) - dos fundamentalistas de mercado, o que só é possível graças ao controlo político absoluto sobre as finanças e à consequente manutenção da autonomia (relativa) face à hegemonia do dólar.

 

O facto de este rápido e tumultuoso processo de transformação socioeconómica não ter sido acompanhado por uma evolução liberal-democrática do sistema político, uma vez que o governo nunca deixou de manter o leme em direção ao objetivo de marchar para novas formas de democracia popular e para formas mais avançadas de transição para o socialismo, fizeram os Estados Unidos da América compreender que a globalização, que haviam concebido como a arma final para alargar o seu domínio sobre o mundo inteiro, se tinha transformado num bumerangue. É por isso que hoje assistimos tanto a uma estratégia de “dissociação” do Ocidente em relação ao mercado chinês e a formas de guerra comercial contra os produtos fabricados na China, como a uma “Terceira Guerra Mundial fragmentada”, como a definiu o Papa Francisco, preparatória para um conflito militar direto com a China.

 

2. Resolver as contradições que dificultam o caminho para uma “nova normalidade”

 

A análise de Cheng Enfu sobre o desenvolvimento chinês não é nem hagiográfica nem cega aos desafios e contradições gerados pela política de reforma e abertura inaugurada por Deng e continuada pelos seus sucessores. Ao afrouxar as rédeas sobre o mercado, os governos favoreceram um processo formidável de crescimento económico, mas, inevitavelmente, também permitiram que as falhas do mercado gerassem uma série de problemas sociais graves - problemas que Cheng Enfu analisa lucidamente através dos óculos da teoria marxista, em polémica com os economistas chineses que se converteram ao credo neoliberal.

 

O fosso entre ricos e pobres cresceu quase até aos níveis ocidentais, apesar de os rendimentos das classes trabalhadoras agrícolas e urbanas terem aumentado significativamente. E isto porque, argumenta Cheng Enfu, retomando um conceito que Thomas Piketty popularizou entre os leitores ocidentais (8), nas economias de mercado, a disparidade de rendimentos depende menos da disparidade dos rendimentos salariais do que da disparidade dos rendimentos de propriedade associada à distribuição desigual desta. Os problemas ambientais atingiram níveis alarmantes. A China conseguiu sair quase ilesa da catástrofe de 2008, mas o abrandamento do comércio mundial associado à crise provocou um forte abrandamento do crescimento e gerou problemas de sobreprodução em alguns sectores, como o siderúrgico e o imobiliário. As privatizações não só aumentaram as disparidades de rendimento, mas também as disparidades entre regiões e impediram o desenvolvimento proporcional entre os diferentes setores. Certos setores da burguesia nacional, mesmo após o fracasso da tentativa ocidental de desencadear a mudança de regime em 1989 (9), não pararam de lutar para transformar o seu poder económico em poder político, recorrendo à corrupção dos líderes do partido e dos executivos da administração regional.

 

Para enfrentar estes desafios, que sintetiza falando de uma contradição entre a crescente necessidade popular de uma vida melhor e um desenvolvimento desequilibrado e inadequado, Cheng Enfu propõe concentrar energias numa série de objetivos estratégicos: 1) proporcionar proteção jurídica aos direitos dos trabalhadores em empresas privadas, aos quais devem ser garantidos rendimentos razoáveis; 2) melhorar o sistema estatal de redistribuição da riqueza e melhorar a tributação para ajustar os fluxos de rendimento; 3) reduzir a dependência do capital e da tecnologia estrangeiros, promovendo a inovação independente; 4) limitar a dependência do comércio externo, aumentando o papel do consumo interno; 5) reduzir a dependência do dólar norte-americano, evitando dar espaço a processos de financeirização e incentivando a integração das finanças com a economia real; 6) acelerar a internacionalização do sistema financeiro RMB; 7) criar propriedade intelectual autónoma, intensificando o esforço de formação de pessoal científico (cultivando talentos para investigação básica de alto nível); 8) pôr finalmente fim ao excesso de capacidade de produção que a China herda das décadas em que se concentrou num modelo de desenvolvimento extensivo (produção em massa orientada para a exportação de bens baratos e de baixo custo).

 

O novo modelo económico, que o governo define como a “nova normalidade”, deverá favorecer a transição do desenvolvimento extensivo para o desenvolvimento intensivo (qualidade e eficiência). Para tal, é necessário transferir progressivamente o motor do desenvolvimento das exportações para o consumo interno, o que significa que a tendência para o aumento dos rendimentos das classes trabalhadoras continua e fortalece-se. Isto não significa renunciar ao seu papel de potência comercial mas, tendo em conta que a procura internacional tende a diminuir devido à crise, e que as nações ocidentais estão a adotar políticas protecionistas em relação aos produtos chineses, a China precisa de apostar na inovação para tornar-se líder em setores de tecnologia avançada, transformando-se de uma fábrica global especializada na montagem de tecnologias estrangeiras numa fábrica global de tecnologias de ponta desenvolvidas de forma independente.

 

Cheng Enfu cita muitos dados que atestam como este processo já está em curso, sublinhando em particular o facto de o valor acrescentado do sector terciário ter ultrapassado o do sector secundário. Hoje, observa, não sem orgulho, estamos posicionados quase numa posição intermédia entre o centro e a periferia do sistema mundial, como confirmam os enormes investimentos diretos chineses em África e na América Latina. E a este propósito acrescenta: os ocidentais, preocupados com a nossa capacidade competitiva nestas zonas do mundo, acusam-nos de desenvolver uma relação imperialista, entre centro e periferia, mas a verdade é que estamos a caminhar em direção ao centro de uma forma diferente: a China oferece a estes países um modelo superior de desenvolvimento e progresso, porque queremos liderar uma globalização económica justa. Por último, propõe medir o progresso rumo a esta nova fase através da adoção de um novo indicador de contabilidade económica, a que chama Produto Interno Bruto de Bem-Estar, que, ao contrário do PIB, inclui o valor total do bem-estar criado pelas atividades produtivas e comerciais de todas as unidades residentes num país. É um novo indicador social denominado índice de felicidade.

 

3. Sobre o marxismo “sinizado”

 

Antes de entrar nos méritos daquilo que considero serem os contributos mais inovadores da revolução chinesa para a teoria marxista, exponho uma premissa: não acredito, como parece pensar a maioria dos comunistas ocidentais, mesmo quando olham com simpatia para a experiência chinesa, que o conceito de sinização possa ser reduzido à fórmula que afirma que a teoria segue a práxis, dando a entender que estamos perante uma simples “adaptação” dos princípios do marxismo a uma situação concreta específica. Pessoalmente, embora reitere a ideia de que a China não pode nem deve ser tomada como modelo, estou convencido de que a sua história recente é um claro exemplo da necessidade de proceder, não a um "ajustamento" banal da teoria, mas a uma verdadeira mudança de paradigma.

 

Cheng Enfu resume icasticamente esta exigência quando afirma a necessidade de abandonar os dois “nuncas” que caracterizam o pensamento marxista tradicional, nomeadamente: uma formação social nunca perecerá até que todas as forças produtivas que pode acolher sejam postas em jogo; novas relações de produção nunca surgirão até que as condições da sua existência material amadureçam no ventre da velha sociedade (10). Como se sabe, este argumento foi explorado pelos teóricos da II Internacional (e mais tarde também por muitos críticos de esquerda do regime soviético, incluindo os trotskistas) para classificar a Revolução de 1917 como "prematura", um argumento reiterado pelos radicais de esquerda ocidentais contra a Revolução Chinesa, após o fracasso da Revolução Cultural e das reformas dos anos 1970. Esta tese já tinha sido refutada por Lenine com a sua teoria do elo fraco (11), mas a contribuição radicalmente inovadora de Lenine para a teoria marxista nunca foi digerida pelos marxistas ocidentais, razão pela qual eles são incapazes de explicar porque é que a revolução socialista triunfou em alguns países “atrasados” e não nos centros do capitalismo metropolitano.

 

Arrighi relançou o debate sobre este dilema teórico no já referido livro Adam Smith em Pequim, criticando a tese segundo a qual o mundo inteiro terá de passar pelo desafio do modo de produção capitalista antes de se poder libertar dele. É preciso notar, escreve Arrighi, que o achatamento “globalista” previsto por Marx não se concretizou, e sobretudo é preciso tomar nota da gigantesca inovação que a história nos dá: um país de 1,5 milhares de milhões de pessoas conseguiu realizar o milagre de hibridizar: 1) uma tradição histórica milenar capaz de gerar uma forma de riqueza baseada na estabilidade social e na atenção ao bem da comunidade; 2) o impulso inovador de uma revolução de libertação nacional orientada pela ideologia marxista-leninista; 3) uma utilização do mercado que é tão inescrupulosa quanto sujeita ao controlo férreo do partido-Estado. O resultado desta inovação é precisamente o socialismo com caraterísticas chinesas.

 

Vladimiro Giacché, por seu lado, aceitou o desafio de partir para uma reflexão sobre a viragem da política económica imposta por Lenine no início da década de 1920 (12). Até 1919/20, Lenine ainda estava convencido de que o monopólio estatal sobre o comércio deveria ser substituído pela distribuição organizada segundo um plano, mas nos anos imediatamente seguintes afastou-se da esquerda bolchevique que acreditava ser possível passar para o socialismo sem um período de transição, ponto de vista a que respondeu argumentando que esta fase de transição seria, não só inevitável, como prolongada e caracterizada pela persistência das relações mercantis e monetárias. Além disso, já em 1918, respondeu àqueles que afirmavam que a revolução bolchevique não tinha estabelecido o socialismo, mas uma forma de capitalismo de Estado, afirmando: “Estamos também longe do fim do período de transição do capitalismo para o socialismo (…). Sabemos o quão difícil é o caminho que leva do capitalismo ao socialismo, mas temos o dever de dizer que a nossa república soviética é socialista, porque nos lançámos neste caminho. Temos, portanto, razão ao dizer que o nosso Estado é uma república socialista soviética."

 

Assim é, comenta ele, pois, se o desaparecimento da produção de mercadorias for tomado como único parâmetro do carácter socialista de uma sociedade, nem a Rússia da década de 1920, nem a China de Mao poderiam ser consideradas socialistas, muito menos a China de Deng e seus sucessores seria assim considerada. Mas isto não retira aos comunistas chineses o direito de reivindicar, como fez Lenine, o carácter socialista da República Popular da China. Naturalmente, tanto as posições do Lenine da NEP, como as das reformas chinesas da década de 1970, são “heréticas” em comparação com a conceção de socialismo desenvolvida por Marx e Engels na segunda metade do século XIX e “canonizada” pela Segunda Internacional. Embora Marx e Engels considerassem o socialismo como uma curta fase de transição para o comunismo, esta nova visão representa-o como um modo de produção por si só, no qual as classes e os conflitos de classes permanecem, pelo que a sua chegada ao comunismo – a ser considerada como objetivo estratégico de muito longo prazo - não é um acontecimento “destinado”, mas uma possibilidade cuja realização depende do resultado dos conflitos sociais em questão (13).

 

Cheng Enfu descreve as três fases diferentes nas quais, em sua opinião, o processo de transição deve ser articulado: 1) uma fase primária do sistema económico socialista que prevê a propriedade pública como corpo principal (com a propriedade privada como corpo auxiliar), a distribuição, orientada pelo mercado, de acordo com o trabalho de cada um, como corpo principal (com distribuição de acordo com o capital como corpo auxiliar) e a economia de mercado orientada por planos nacionais; 2) um estádio intermédio caracterizado por diferentes tipos de propriedade pública e diferentes tipos de distribuição de bens de acordo com o trabalho e por uma economia planificada com o Estado como órgão principal (com um mercado regulado pelo Estado como órgão auxiliar); 3) finalmente, uma fase avançada caracterizada por uma propriedade pública única de todo o povo, pela distribuição dos produtos de acordo com as necessidades e por uma economia completamente planificada.

 

A viragem para uma economia de mercado socialista (que corresponde à primeira das três fases que acabámos de descrever), defende Cheng Enfu, não foi decidida devido ao fracasso da economia planificada socialista (em particular, ele critica os colegas que apenas falam dos erros passados e desta forma distorcem a relação entre o desenvolvimento antes e depois das reformas e da abertura, ignorando que sem as conquistas alcançadas sob a liderança de Mao não teriam existido as condições materiais para dar este salto evolutivo), mas sim depois de se terem analisado as fragilidades do modelo soviético, identificadas sobretudo com a rigidez do sistema (desde a excessiva centralização das decisões até uma distribuição inspirada numa aplicação demasiado severa do princípio igualitário (14)). Ao aceitar a existência de disparidades razoáveis de rendimentos baseadas numa remuneração competitiva, a China conseguiu, em vez disso, maximizar o potencial humano e otimizar a afetação de recursos laborais à escala de toda a sociedade.

 

Aos que sustentam que as reformas chinesas colocaram a lei da mais-valia e, portanto, a exploração da força de trabalho de volta ao comando, ele responde que numa economia socialista, definida como acima se expôs, a lei da mais-valia é encarnada pela lei da mais-valia pública. Obviamente, isto não se aplica à mais-valia criada pelos trabalhadores das empresas privadas, pelo que o progresso em direção às fases subsequentes do processo de transição para o socialismo terá de resolver as contradições implícitas nesta forma de economia mista. A este respeito, afirma, entre outras coisas, que se deve prestar cada vez mais atenção à poupança do tempo de trabalho e ao seu planeamento entre os diferentes setores produtivos, dois fatores que representam a lei económica primária numa empresa de produtores associados; além disso, deve ser respeitada a lei do desenvolvimento proporcional formulada por Marx, que afirma que as quantidades de produtos correspondentes a diferentes necessidades requerem quantidades diferentes e definidas de trabalho social global (na fase atual esta lei funciona de forma imperfeita porque não se baseia apenas no planeamento estatal, mas também na lei do valor regulada pelo mercado). Além disso, sublinha a indispensabilidade de prosseguir um desenvolvimento que garanta uma relação harmoniosa entre o homem e a natureza porque, escreve, o ser humano nasce da natureza, está subordinado a ela e dela depende, pelo que os recursos naturais podem ser considerados como o corpo inorgânico da humanidade (15). De um ponto de vista geral, a produção e o consumo coincidem, mas na reprodução social a produção é o verdadeiro ponto de partida de todo o processo e, portanto, é o fator dominante, pelo que é aqui principalmente que as coisas precisam de mudar para resolver os problemas ambientais.

 

Concluo este breve excurso sobre o marxismo sinizado com alguma referência ao trabalho de Gabriele e Jabbour sobre as características do socialismo do século XXI (ver nota 4). A categoria marxista de modo de produção, defendem os dois autores, é um modelo abstrato, ao qual as formações socioeconómicas concretas, histórica e geograficamente existentes, aderem em diferentes graus. Da mesma forma que Arrighi e ao contrário de Marx, que colocou a hipótese de que o modo de produção capitalista, já basicamente dominante na Europa no seu tempo, se espalharia pelo mundo a ponto de suplantar todos os outros (a menos que fosse derrubado por uma revolução socialista), Gabriele e Jabbour defendem que, mesmo no contexto atual do capitalismo tardio “globalizado”, a primazia de um modo de produção específico, nas realidades histórico-geográficas individuais, pode ser absoluta ou relativa. Por exemplo, nos Estados Unidos da América não há dúvida de que a supremacia do modo de produção capitalista é absoluta, mas noutras formações socioeconómicas dois ou mais modos de produção podem coexistir com relações mútuas de rivalidade e/ou simbiose, tal como pode haver situações de transição de um modo de produção para outro.

 

Este pluralismo de modos de produção - encontrado sobretudo no Sul do mundo, onde o capitalismo coexiste (e entra em conflito) tanto com formações socioeconómicas de "orientação socialista" (16) como com formas de produção e relações sociais pré-capitalistas - não nos impede de admitir que o capitalismo continua a ser o modo de produção dominante a nível mundial mas, ao mesmo tempo, não nos impede de afirmar que, onde coexiste com outros modos de produção, não se pode estabelecer a priori qual o modo de produção que prevalecerá a longo prazo - o que é especialmente válido nos casos em que está em curso um processo de transição (17). Para resumir as reflexões de Cheng Enfu e dos outros autores até agora discutidos, poderíamos concluir dizendo que o desafio do socialismo com características chinesas (mas isto também se aplica a outras economias de mercado socialistas asiáticas, como o Vietname e o Laos, bem como a alguns países da América Latina, a começar por Cuba) consiste em poder impor as razões da política às razões do mercado durante o tempo suficiente para que possam amadurecer as condições para passar à segunda e terceira fases do processo de transição.

 

4. De que forma a tradição confucionista influencia o modo de vida chinês?

 

Há quem defenda que a atitude de Mao relativamente à cultura tradicional chinesa era secular e esclarecida, isto é, crítica, se não liquidacionista. Cheng Enfu não é desta opinião e cita, de facto, uma declaração de Mao que nos convidou a fazer um balanço de todo o passado da China, de Confúcio a Sun Yat-Sen, para recolher esse precioso legado. Cheng Enfu afirma ainda que o marxismo é um sistema cultural-ideológico que enfatiza a fé e os valores, definindo a fé como a crença e o respeito por uma determinada doutrina, religião ou outros princípios que as pessoas adotam como seu código de conduta, citando como exemplos os "valores universais" ocidentais, os princípios neoliberais e os do marxismo e do comunismo (18).

 

Ainda que Cheng Enfu não dedique, pelo menos no livro que aqui abordo, espaço particular à relação entre a ética confucionista e os valores do socialismo de estilo chinês, não há dúvida de que nos documentos e discursos dos dirigentes do Partido Comunista Chinês, as referências à tradição confucionista intensificaram-se após a viragem reformista. Não sendo um especialista conhecedor do confucionismo, neste último parágrafo limitar-me-ei a sublinhar as indubitáveis consonâncias entre certas ideias recorrentes nos discursos da atual liderança chinesa e conceitos igualmente típicos da tradição confucionista (que derivo de um especialista como Maurizio Scarpari (19)).

 

A figura de Confúcio (Kongzi) está rodeada de uma aura mítica, até porque grande parte da informação que temos sobre ele está envolta em incerteza devido à distância temporal. Segundo a tradição, nasceu numa família aristocrática e morreu aos 72 anos em 479 a.C. (portanto, é contemporâneo dos clássicos da filosofia grega). Sabemos que pertencia à classe dos funcionários alfabetizados (obrigados ao cultivo das seis artes: ritos, música cerimonial, escrita, aritmética, tiro com arco, condução de carros). Viveu numa época de acesas disputas entre os diferentes reinos em que a China estava dividida na época, antes de se unificar num único império e, diz-se, viajou de corte em corte em busca de ambientes favoráveis à sua pregação (se é que pode ser definida desta forma a transmissão de um conjunto de valores morais, em vez de crenças religiosas).

 

O seu pensamento, mais que por fontes diretas, é-nos conhecido através dos textos de alguns dos seus discípulos pertencentes à casta ru (como eram designados os intelectuais confucionistas), que, em vez de membros de uma escola organizada, eram pensadores independentes unidos por uma cultura fundada nos valores e tradições de um passado idealizado, mas disposta a mediar e atenuar as suas diferenças com outras escolas de pensamento, como o taoísmo e o budismo, razão pela qual a cultura tradicional chinesa não tem o carácter de um bloco monolítico, mas sim o de um mosaico rico em nuances.

 

De qualquer modo, com o passar do tempo e com o crescimento da necessidade imperial de consolidar uma ideologia de Estado, foram canonizados os quatro livros considerados mais fiéis ao ensinamento original do mestre, após o que foram impostos (a partir de 1190) como textos obrigatórios. Mas vejamos que características do confucionismo podem ser comparadas aos princípios e valores do socialismo de estilo chinês (sem esquecer que as analogias entre ideias desenvolvidas em épocas separadas por milénios de história apresentam riscos inevitáveis de mal-entendidos).

 

Em primeiro lugar, o conceito de harmonia. Para o confucionismo, a harmonia é um fator essencial para a manutenção do equilíbrio do universo e de uma correta relação homem/natureza. A harmonia confucionista é a doutrina do equilíbrio perfeito e do meio certo, segundo a qual as diferenças não devem dividir, mas unir (o pensamento filosófico chinês visa a integração e não o contraste dos opostos). Para concretizar este ideal, baseado na unidade que liga o mundo humano ao mundo divino (concebido este mais como a totalidade do universo natural do que como uma entidade transcendente), é necessário levar uma vida exemplar, regulada por princípios éticos que dizem respeito tanto à esfera individual como às hierarquias sociais.

 

Traços evidentes desta visão podem ser encontrados na forma como os marxistas chineses (a partir do próprio Mao) introjetaram e aplicaram o método dialético, não considerando o antagonismo como um valor absoluto, mas sim como um simples momento, ligado a contingências históricas concretas, onde a consecução da harmonia entre as diferentes camadas da população desempenha o papel de um objetivo estratégico. Típicas, neste sentido, são: a afirmação de Cheng Enfu de que, na fase atual, a principal contradição não é aquela entre as classes sociais, mas aquela entre a procura popular do bem-estar e a insuficiência de meios para o concretizar; a sua exortação à superação dos excessos produtivistas que perturbaram a relação entre o homem e a natureza; enfim, a um nível mais geral, os contínuos apelos da liderança comunista ao objetivo de construir, em meados do século XXI, uma “China harmoniosa”.

 

Chegamos ao papel do sábio: o intelectual confucionista goza de uma margem discricionária que lhe permite interpretar de forma elástica os princípios ditados pela tradição, adaptando-os às circunstâncias, mas estas capacidades derivam da constância e do empenho com que são cultivadas as próprias qualidades morais e intelectuais, através do estudo assíduo (ver acima o que foi referido sobre os métodos de seleção dos funcionários imperiais).

 

A semelhança aqui parece-me clara com os critérios muito rigorosos de seleção dos quadros dirigentes do Partido e do Estado chineses, analisados pelo académico canadiano Daniel Bell, que vive e leciona na China há muitos anos (20). Bell utiliza o conceito (que nos parece um oxímoro) de “meritocracia democrática vertical” para descrever o sistema que seleciona a liderança política da China. À proverbial dureza e competitividade dos cursos universitários seguem-se os não menos exigentes exames de acesso ao emprego público, após os quais é possível assumir funções nos níveis mais baixos de governo, enquanto qualquer avanço posterior depende da qualidade dos desempenhos alcançados (21).

 

Do tema da formação das elites passamos ao da sua legitimação. O imperador reinou graças ao mandato do céu, mas este mandato não era um direito adquirido, por isso, se uma dinastia se mostrasse inepta e corrupta, o povo tinha o direito de a derrubar mesmo com violência (na história chinesa não faltam revoltas camponesas que depuseram algumas casas governantes). Além disso, a ética confucionista, ao mesmo tempo que prega o respeito pela ordem hierárquica, associa-a à obrigação do governante em garantir o bem-estar material e espiritual dos governados. Para o confucionismo, a autoridade e o carisma da elite – a boa governação – são a outra face da capacidade de cumprir esta obrigação e o povo aceita a autoridade não porque esta lhe seja imposta pela força, mas porque certos padrões de conduta lhes são inculcados pelo exemplo vindo de cima. Também neste caso é Daniel Bell quem destaca como o atual consenso massivo (muito superior ao dos povos ocidentais) dos cidadãos chineses em relação ao seu governo assenta num mecanismo em tudo semelhante (22).

 

Neste ponto, parecem-me claras as razões pelas quais não acredito que a revolução chinesa possa servir de modelo para aqueles que ainda acreditam na possibilidade de derrubar a sociedade capitalista. O marxismo sinizado não o pode ser precisamente porque é sinizado, isto é, porque é o produto irrepetível de um percurso histórico milenar, bem como das características socioculturais e económicas específicas que este percurso gerou.

 

Dito isto, devemos perguntar-nos: a revolução russa não foi o produto de um marxismo “russificado”, tanto é verdade que a heresia de Lenine (no que diz respeito aos cânones do marxismo da II Internacional) modificou a teoria a um tal ponto que impôs a sua renomeação com o termo marxismo-leninismo? E ainda: não serão os movimentos revolucionários latino-americanos inspirados num marxismo “cristianizado” pela teologia da libertação (23)? E será o marxismo revolucionário africano menos “contaminado” por fatores socioculturais e tradições históricas “locais” (24)?

 

Em vez disso, no Ocidente ainda estamos à espera de “traduções” das abstrações teóricas marxistas em projetos políticos adaptados às características concretas das nossas (diferentes nos vários contextos nacionais) tradições histórico-culturais, composições de classe, legados ideológicos, etc.. No que diz respeito à Itália, apenas Antonio Gramsci tentou enfrentar a tarefa, antes de ser assassinado pelo regime fascista, enquanto a “estrada italiana para o socialismo” de Togliatti esgotou a sua força motriz antes de conseguir produzir um projeto revolucionário concretamente praticável. Depois caiu - não só em Itália mas em toda a Europa - o grande silêncio, a morte de um marxismo ocidental (25) reduzido a fórmulas abstratas.

 

 

 

 

 

(*) Carlo Formenti (n. 1947) é um jornalista e escritor italiano de formação marxista. Licenciado em Ciências Políticas em Pádua, nos anos 1970 foi militante do Grupo Gramsci, nascido da dissolução do Pcd'I. De 1970 a 1974 trabalhou como militante sindical na Federação dos Metalúrgicos, como responsável provincial dos trabalhadores administrativos e técnicos. Após a dissolução do Grupo Gramsci, participa na fase inicial da experiência da Autonomia Operaia, da qual se afasta progressivamente na segunda metade dos anos setenta. De 1980 a 1989, foi chefe de redação do mensário cultural Alfabeta. Trabalhou depois na redação cultural do L'Europeo e na do Corriere della Sera. Em 2002, foi professor adjunto de Teoria e Técnica dos Novos Media na Universidade de Lecce. Desde 2006, é investigador e professor adjunto na mesma faculdade. Em 1980, publicou La fine del valore d'uso (Feltrinelli), dedicado às transformações da organização do trabalho induzidas pela tecnologia. Em 1991, publicou Piccole apocalissi (Raffaello Cortina Editore), sobre traços de divindade no ateísmo contemporâneo. Com o volume Incantati dalla Rete (Raffaello Cortina Editore, 2000), começou a sistematizar a sua análise da dinâmica das redes. No ensaio seguinte, Mercanti di futuro. Utopia e crisi della Net Economy (Einaudi, 2002), aborda a nova economia, a liberdade da rede e a relação com o capitalismo. Para encerrar a trilogia sobre as mutações económicas e antropológicas provocadas pela difusão da Internet, escreve Cybersoviet. Utopie postdemocratiche e nuovi media (Raffaello Cortina Editore, 2008). Com o livro Felici e sfruttati. Capitalismo digitale ed eclissi del lavoro (Egea, 2011) aborda a questão do trabalho cognitivo e da sua exploração. Escreveu numerosos outros livros, inclusive de ficção. Em maio de 2020, aderiu ao Partito Comunista, sendo a primeira vez que tira um cartão de membro de partido. O presente ensaio foi publicado, a 18 de dezembro de 2024, no portal Sinistrainrete. A tradução é de Ângelo Novo.

 

 

 

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NOTAS:

 

(1) Ver, em particular, C. Formenti, Guerra e rivoluzione, 2 vols., Meltemi, Milano 2023. Ver ainda “L’enigma del miracolo cinese e la necessità di ridefinire il concetto di socialismo.

 

(2) Cheng Enfu, Dialettica dell'economia cinese. L’aspirazione originale della riforma, Edizioni Marx 21, 2024.

 

(3) G. Arrighi, Adam Smith a Pechino, Feltrinelli, Milano, 2007.

 

(4) A. Gabriele, E. Jabbour, Socialist Economic Development in the 21st Century. A Century after the Bolshevik Revolution, Routlege, London-New York, 2022.

 

(5) V. I. Lenin, L'economia della rivoluzione (a cura di V. Giacché), il Saggiatore, Milano, 2017.

 

(6) Ver, entre outros, G. Gabellini, Krisis. Genesi, formazione e sgretolamento dell’ordine economico statunitense, Mimesis, Milano-Udine 2021; F. M. Parenti, La via cinese, Meltemi, Milano 2021; V. Giacché, “L’economia e la proprietà. Stato e mercato nella Cina contemporânea”, in AAVV, Più vicina. La Cina del XXI secolo, Roma 2020; D. A. Bertozzi, Cina popolare. Origini e percorsi del socialismo con caratteristiche cinesi, L’Antidiplomatico, 2021; R. Herrera, Z. Long, La Cina è capitalista?, Marx 21, Bari, 2012; A. Gabriele, Enterprises, Industry and Innovation in the People’s Republic of China, Springer, Berlin, 2020; Z. Boyng, Il socialismo con caratteristiche cinesi. Perché funziona?, Marx 21, Bari, 2019.

 

(7) O subtítulo do livro de Cheng Enfu (A aspiração original da reforma) explica-se pelo facto de uma grande parte do seu texto ser dedicada a refutar as teorias dos académicos chineses convertidos ao neoliberalismo, que interpretam a reforma desejada por Deng como uma luz verde para a liquidação da propriedade pública e a liberalização sem resíduos.

 

(8) Cfr. T. Piketty, Le capital au XXI siécle, Seuil, Paris, 2013.

 

(9) Sobre o envolvimento direto e pesado dos serviços norte-americanos e de outras potências ocidentais nos acontecimentos da Praça Tiananmen em 1989, cfr. D. Losurdo, “Tienanmen 1989: prova generale delle rivoluzioni colorate” in AAVV, Marx in Cina, Marx 21, Bari, 2015.

 

(10) No primeiro capítulo de Guerra e rivoluzione, op. cit., contextualizo, por sua vez, estes dois pilares do cânone dogmático marxista, que se reforçam mutuamente na credibilização da ideia de que as condições “objetivas” da transição para o socialismo amadurecem no seio das relações de produção capitalistas e coincidem com a obtenção de um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas.

 

(11) Segundo Lenine, a possibilidade de derrubar o regime capitalista está ligada ao fracasso da capacidade hegemónica das elites dirigentes e não a razões económicas (crise, etc.).

 

(12) Giacché recorda que, no Anti-Duhring, Engels afirmava que o socialismo, desde a sua primeira fase, se caracteriza, não só pela socialização dos meios de produção, mas também pelo fim da produção mercantil e das relações monetárias.

 

(13) Sobre a crítica à visão da história como um processo regido por necessidades imanentes comparáveis às leis que regem o mundo natural, cfr. G. Lukacs, Ontologia dell’essere sociale, 4 voll. Meltemi, Milano 2023; vedi anche C. Preve, La filosofia imperfetta, Franco Angeli, Milano 1984.

 

(14) Rita di Leo considera que a política salarial penalizadora para os técnicos, peritos e profissionais - política que gerou uma profunda hostilidade das classes médias em relação ao regime - é uma das causas que conduziram ao colapso da URSS: cf. L'esperimento profano, Futura, Roma, 2011.

 

(15) Esta descrição da relação do homem com a natureza recorda o conceito de trabalho como substituto natural elaborado por Marx no Livro I de O Capital. Conceito em que Lukács baseia a sua reflexão sobre o trabalho em Ontologia (op. cit.).

 

(16) Gabriele e Jabbour definem como “orientadas ao socialismo” (“socialist oriented”) as formações sociais que, embora não possam ser classificadas como socialistas de pleno direito, são credivelmente orientadas para a construção de uma sociedade socialista.

 

(17) Também aqui estamos em presença de uma visão “aberta” do processo histórico (isto é, que concebe o futuro em termos de possibilidade e não de necessidade) em sintonia com a de Lucáks (ver nota 13).

 

(18) Em Ontologia (op. cit.), Lukács não descreve a ideologia como uma falsa consciência, mas como um poder material, e afirma que se pode falar de ideologia quando estamos perante um sistema de princípios e valores que uma determinada classe dominante considera apropriado para toda a sociedade (e é capaz de fazer com que as outras classes partilhem esta crença). Esta parece-me uma definição próxima da que Cheng Enfu utiliza aqui para o conceito de fé.

 

(19) Cfr. M. Scarpari, Il confucianesimo. I fondamenti e i testi, Einaudi, Torino, 2010.

 

(20) Cfr. D. Bell, Il modello Cina. Meritocrazia politica e limiti della democrazia, Luiss, Roma, 2019.

 

(21) Segundo Bell (op. cit.), o modelo meritocrático chinês permite selecionar quadros de gestão de muito maior qualidade do que os líderes políticos ocidentais, que não passam a vida a adquirir méritos através da resolução de problemas, mas sim da obtenção de consensos eleitorais através da comunicação, nem têm a oportunidade de desenvolver planos a longo prazo, porque o timing da política ocidental exige que pensem e ajam a curto prazo.

 

(22) Os cidadãos chineses, ainda de acordo com Bell, avaliam as ações dos seus líderes políticos exclusivamente em termos dos benefícios que trazem para o seu próprio nível de vida e são, por isso, insensíveis às sirenes de uma democracia ocidental baseada em meras garantias processuais.

 

(23) Ver o que escrevi sobre isto numa postagem de 16 de fevereiro de 2023 nestas páginas (sinistrainrete, NT): 'Il Marx teologo di Enrique Dussel'  (publicado em língua portuguesa em O Comuneiro como “O Marx teológico de Enrique Dussel, NT); ver ainda E. Dussel, Le metafore teologiche di Marx, Shibboleth, Roma 2018; ver, por fim H. Assmann, Idolatria del mercato. Saggio su economia e teologia, Castelvecchi, Roma 2020.

 

(24) Sobre a relação entre o marxismo revolucionário e as culturas tradicionais africanas, cfr. A. Cabral, Return to the source, Monthly Review Press, New York 2022 (segunda edição).

 

(25) Cfr. D. Losurdo, Il marxismo occidentale. Come nacque, come morì, come può rinascere, Laterza, Roma-Bari, 2017.