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O século XX, o Sul global e a posição histórica da China
Wang Hui (*)
Introdução
O século XX já passou. Como entendemos o legado histórico da China do século XX e a sua posição na história mundial? O preâmbulo da Constituição da República Popular da China (1949) refere: “No século XX, ocorreram importantes mudanças históricas na China” (1). As guerras do imperialismo e a Guerra Fria moldaram profundamente a China, mas as revoluções desencadeadas pela guerra e pelas crises sociais, em especial a fundação da República Popular da China entre essas revoluções, tiveram um impacto indelével nas mudanças subsequentes na China e no mundo: não só a independência nacional e a industrialização foram concluídas durante as revoluções e os processos de construção, mas também as relações sociais, entre os humanos e a natureza, geopolíticas e outras sofreram transformações sem precedentes. Não há praticamente nenhuma área que não tenha sofrido profundas alterações, desde as línguas faladas e escritas aos sistemas políticos, desde as organizações sociais ao trabalho e ao género, das modas culturais à vida quotidiana, das relações cidade-campo às relações regionais, das crenças religiosas à ética social. O “curto século XX” foi moldado por um processo amplo, complexo, profundo e intenso, com uma densidade, profundidade e amplitude sem precedentes (2). Hoje em dia, é difícil para as pessoas imaginar uma vida diferente daquela que foi transformada pelo século XX. Sem as explorações, inovações e fracassos das revoluções, é impossível compreender o significado desta era.
O nascimento do século marca o surgimento da simultaneidade global na história chinesa e as lutas e explorações para transformar o desequilíbrio interno das relações simultâneas. Só a partir das duplas perspetivas do contexto histórico chinês e das convulsões históricas no mundo podemos compreender a posição da China no século XX.
Primeira Parte: O nascimento do século
Na viragem entre os séculos XIX e XX, no contexto de mudanças significativas, várias forças formaram as suas próprias avaliações da "propensão dos tempos" (时势), conduzindo a visões concorrentes sobre o próprio conceito de tempo. Por exemplo, o pensador político e reformador Kang Youwei propôs o "Calendário Confucianista" no Prefácio às Notas sobre o Capítulo Liyun do Livro dos Ritos (《禮運注》叙, publicado em 1901, mas escrito em 1884, de acordo com o seu próprio registo), enquanto o filósofo Liu Shipei apresentou o "Calendário do Imperador Amarelo" em 1903. Estas perspetivas sobre o tempo eram frequentemente opostas umas às outras, mas partilhavam uma nova consciência de progresso em relação à unificação da história e da linha do tempo histórico.
À meia-noite do dia 30 de janeiro de 1900 — o Ano de Gengzi (3) e também o 26.º ano do reinado do Imperador Guangxu da Dinastia Qing — Liang Qichao, um reformista, académico e jornalista chinês que vivia exilado no Havai, ficou comovido com os acontecimentos que se desenrolavam e escreveu ‘Uma Canção para o Oceano Pacífico no Século XX’ (《二十世紀太平洋歌》), na qual refletiu: “De repente, pergunto-me que noite é esta e que lugar é este, percebendo que é a fronteira entre dois séculos e o centro dos hemisférios oriental e ocidental”. Liang Qichao reuniu dois novos conceitos importantes: um representando o tempo — o século XX — e o outro representando o espaço — o Oceano Pacífico. Esta nova perspetiva espácio-temporal, muito diferente das expressões anteriores, tornou-se mais tarde bastante difundida, proporcionando um novo enquadramento para explorar a posição histórica da China no século XX. Vejamos primeiro o conceito de tempo. O calendário gregoriano foi estabelecido em 1582, inicialmente utilizado pelos territórios católicos ultramarinos de Espanha e depois adotado pela Grã-Bretanha em 1752, pelo Japão em 1873, pela China em 1912 e pela Rússia em 1918. Para Liang Qichao, um século não era apenas um método de numeração em anos, mas também uma forma de compreender e definir a propensão histórica dos tempos, de julgar as bases para a ação. Todos os entendimentos do passado, presente e futuro foram recombinados dentro desta intensa mudança na consciência histórica. Embora o conceito de século XX tenha surgido no contexto do envolvimento com narrativas confucionistas como a ‘Teoria das Três Eras de Gongyang’ (4), foi mais um produto do facto de estas narrativas tradicionais não terem conseguido lidar com a natureza das profundas mudanças da época.
A universalização do conceito de “século” é o resultado da nova propensão dos tempos. Numa perspetiva espacial, a era do Pacífico está intimamente relacionada com a ascensão dos Estados Unidos da América desde o final do século XIX. O centro capitalista global começou a deslocar-se do Atlântico para o Pacífico: neste vasto espaço, para além dos antigos impérios do século XIX, surgiram duas novas entidades político-económicas, ou nas palavras do político Yang Du, "nações de guerra económica", nomeadamente os Estados Unidos da América e o Japão, que alteraram drasticamente a situação mundial. A China do século XX e o seu destino estiveram intimamente ligados a esta transformação. Liang Qichao já tinha começado a utilizar o termo “imperialismo nacional” nos seus longos poemas e, em 1903, discutiu as características do século XX numa perspetiva económica. Nesse ano, durante uma digressão pelos Estados Unidos da América, Liang Qichao examinou atentamente esta "nação em guerra económica" e publicou o longo artigo "Trust, o gigante do século XX" (《二十世紀之巨靈托拉斯》), que analisou as novas características do capitalismo do século XX, como os monopólios económicos, a superprodução e o controlo do capital. Propunha que “o trust é o imperialismo do reino económico; a tendência inevitável do domínio político para o imperialismo e a tendência inevitável do domínio económico para o trust são ambas resultados inevitáveis da seleção natural” (5). Isto complementou a sua interpretação, em 'Uma Canção para o Oceano Pacífico no Século XX', da verdadeira força motriz por detrás da expansão dos E.U.A. no Pacífico após a Guerra Hispano-Americana (1898).
O século XX da China foi a primeira era na história do país a definir-se pelo conceito de "século", e os juízos sobre as características desta era estavam intimamente ligados às observações de todo o padrão mundial. ‘Uma Canção para o Oceano Pacífico no Século XX’ (1900) e ‘Trust, o Gigante do Século XX’ (1903), de Liang Qichao; O Monstro do Século XX: Imperialismo (1901) de Kōtoku Shūsui; O Imperialismo: Um estudo (1902) de J. A. Hobson; ‘O Trust Americano e o seu significado económico, social e político’ (1903) de Paul Lafargue; O Capital Financeiro (1910) de Rudolf Hilferding; A acumulação de Capital (1913), de Rosa Luxemburgo; O Ultra-imperialismo (1914) de Karl Kautsky; e Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo (1916), de Vladimir I. Lenine, fazem parte de uma longa sequência que contempla a natureza do século XX. O imperialismo não é apenas um sistema económico e militar expansivo, mas também um espectro ideológico e de valores, com este último a intervir em várias narrativas sobre os outros e sobre si próprio, através de um sistema de conhecimento expansivo. A consciência do “século” é tanto uma perceção como uma forte resistência a este processo.
O advento do “século” é um acontecimento: a adoção deste conceito de tempo foi precisamente destinada a pôr fim aos antigos conceitos de tempo, de modo que o século XX não pudesse derivar ou evoluir naturalmente a partir destes conceitos anteriores — nem das cronologias dinásticas, nem de ‘O calendário do Imperador Amarelo’, ou do calendário confucionista, nem poderia sequer ser compreendido através dos conceitos sequenciais do tempo dos séculos XVIII, XIX e XX. No entanto, todos os outros conceitos de tempo seriam reconstruídos como a pré-história do século XX. O conceito de “século” fornece um enquadramento epistemológico que integra diversos espaços e tempos numa história universal de simultaneidade, suscitando reflexões sobre os desequilíbrios internos, as contradições e os conflitos desta história universal. A distinção do século XX de todas as eras passadas não é apenas uma distinção temporal, mas uma compreensão da propensão dos tempos. Neste momento histórico único, para que o povo chinês pudesse criar a sua própria pré-história para a China moderna e distinguir a posição única da China no mundo, também teve de pensar sobre as questões na Europa e em todo o mundo, nos séculos XVIII e XIX e até mesmo em períodos anteriores.
Por isso, a narrativa histórica do século XX deve ser entendida de forma inversa: o século XX não é o resultado da sua pré-história, mas sim o seu criador.
Segunda Parte: Revoluções em áreas periféricas
A Europa do século XIX é o eixo central da narração histórica moderna. Muitas discussões históricas e teóricas, quer sobre a antiguidade clássica, a Idade Média, o período moderno inicial ou o século XX e as eras pós-modernas, são na sua maioria reconstruídas de acordo com a visão histórica e a consciência dos problemas do século XIX na Europa. O século XIX e o conceito de modernidade sobrepõem-se quase completamente: enraizados na dupla revolução (a Revolução Francesa e a Revolução Industrial Britânica) e na narrativa da modernidade capitalista, com as revoluções, o capital, os impérios (e suas flutuações) da Europa a formarem a história central. As mudanças noutras regiões do mundo estão subordinadas a esta história central.
Comparado com o "longo século XIX", o século XX continua a ser uma breve "era de extremos": a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, a limpeza étnica, a Guerra Fria, a tirania, etc., são todas experiências sociais que terminaram em fracasso (6). Eric Hobsbawm lamentou, em tempos, que o século XX esteja tão intimamente ligado ao destino de um único país: a União Soviética. Em tais narrativas, que posição ocupam a China e outros mundos não ocidentais?
A ascensão do imperialismo, o padrão das grandes potências a competir e a colaborar alternadamente para dividir os territórios coloniais e a mudança do centro do poder global para o Oceano Pacífico constituem as condições históricas necessárias para compreender as questões fundamentais do século XX. Na perspetiva da China, se falarmos apenas do fenómeno do imperialismo, é difícil traçar hoje uma fronteira tão clara como a que foi traçada por muitos escritores clássicos sobre o imperialismo entre 1840 e 1870.
A par da mudança do centro capitalista mundial, o nascimento do século XX foi acompanhado por uma série de revoluções em áreas periféricas. O imperialismo não é apenas um sistema internacional, mas também um sistema militar, económico, político, social e cultural que se infiltra internamente nas sociedades. O que distingue claramente o século XX do século XIX são as revoluções em áreas não ocidentais, que foram alimentadas pelas condições internas e externas da era imperialista. A novidade deste novo período não é definida apenas pela história desenvolvimentista de que o capitalismo se espalhou das áreas centrais para o cenário global. Em vez disso, foi também moldada, por um lado, pela resistência contínua das colónias e semicolónias contra a hegemonia imperialista do desenvolvimento económico, bem como pela sua luta pela independência política e pela sobrevivência cultural e, por outro lado, pelas transformações das relações sociais internas que obstruíam tanto os objetivos como a exploração de novas formas sociais, neste processo de resistência e transformação.
Concretizando, na era das guerras e das revoluções, para compreender as transformações da China no século XX através da própria guerra, é necessário perguntar quais eram as características da guerra desta época na China. A Expedição do Norte (1926-1928), a Guerra Revolucionária Agrária (1927-1937), a Guerra de Resistência Contra a Agressão Japonesa (1937-1945), a Guerra de Libertação (1946-1949) e as guerras anteriores ao séc. XX, tais como as Guerras do Ópio (1839-1842, 1856-1860), a Guerra Sino-Francesa (1884-1885) e a Guerra Sino-Japonesa (1894-1895), apresentam diferenças significativas: são, contudo, todos eles, conflitos de organizações revolucionárias mobilizadas na guerra, conflitos de revolução travados através da guerra, lutas para construir um país revolucionário durante a guerra, lutas para criar um novo sujeito político, o "povo", através da guerra, guerras que combinaram a guerra de libertação nacional com a guerra antifascista internacional e, por fim, guerras que alcançaram o objetivo de libertação nacional por meio de guerras revolucionárias domésticas e tiveram ressonância no movimento socialista internacional.
A China do século XX nasceu neste contexto. Por esta razão, o século XX não é, provavelmente, como sugeriu Eric Hobsbawm, definido apenas por um único país - a União Soviética -, mas, antes, está ligado a revoluções em áreas periféricas e às suas consequências sequenciais. Discutir os pontos de início e de fim do século XX é, portanto, explorar as múltiplas origens, os processos complicados e as formas de declínio das vagas revolucionárias desta era. Uma análise desta questão deve começar por uma análise da não uniformidade do sistema imperialista. Se a não uniformidade do sistema imperialista mundial cria o “elo fraco” deste sistema internacional, então as divisões internas causadas pela competição entre as grandes potências também fornecem o “elo fraco” para as revoluções domésticas.
Assim, na era do imperialismo, existem dois tipos de elos fracos. Um tipo de “elo fraco”, como disse Lenine, é o “desenvolvimento económico e político desigual” como “uma lei absoluta do capitalismo”, levando à conclusão de que “a vitória do socialismo é possível primeiro em vários ou mesmo num único país capitalista isolado”. Outro “elo fraco” surge do desenvolvimento político e económico desigual a nível interno, bem como das contradições entre os agentes imperialistas no seio das nações oprimidas. Este segundo “elo fraco” proporcionou as condições para que as forças revolucionárias chinesas sobrevivessem e se desenvolvessem nas vastas áreas rurais, ao longo das fronteiras provinciais e nas áreas periféricas (7).
Concebo o “curto século XX” como o século das revoluções. Este século revolucionário não teve origem no estabelecimento da hegemonia económica e militar na Europa ou nos Estados Unidos da América, mas sim na nova “não uniformidade” provocada pelo processo de estabelecimento dessa hegemonia — ou, mais precisamente, nas oportunidades revolucionárias criadas por essa "não uniformidade" — que consiste numa série de grandes acontecimentos interligados: revoluções nacionais, políticas e sociais. A Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) desencadeou diretamente a Revolução Russa de 1905, que inspirou a greve massiva do Partido Socialista Polaco e a insurreição de Lodz no mesmo ano, afetando a Revolução Constitucional Persa (1905-1911) e a Revolução Turca (1908-1909). Estas revoluções, juntamente com a Revolução Chinesa de 1911, formaram uma sequência revolucionária na Ásia (e na Europa de Leste) (8).
A Revolução de Outubro de 1917 na Rússia e a Revolução Nacionalista de 1924 na China sob a Primeira Frente Unida, que também podem ser colocados dentro desta sequência revolucionária, forneceram a premissa para o movimento de revolução agrária liderado pelos comunistas chineses. A Revolução de Outubro é geralmente entendida no contexto da guerra europeia, mas isto ignora a continuidade entre essa revolução e a sequência revolucionária asiática. Intimamente relacionados com esta sequência estão os movimentos de descolonização e de independência nacional que se desenvolveram de diferentes formas em diferentes países e regiões, como o movimento independentista da Índia.
Embora todas estas revoluções e movimentos tenham ocorrido em diferentes contextos históricos e culturais, constituindo diferentes caminhos modernos, as suas interligações e inspirações mútuas são evidentes. Anos mais tarde, estas revoluções e movimentos viriam a fazer parte da fundação histórica da Conferência de Bandung (1955) e do Movimento dos Países Não Alinhados (1961 até à atualidade). Por conseguinte, o nascimento do “curto século XX” teve de começar com uma exploração dos “elos fracos”, que só podem ser identificados por meio da procura de oportunidades de revolução e de mudança. Do ponto de vista da procura de oportunidades para a revolução e a mudança, não se trata da velha competição geopolítica euro-asiática, mas da situação revolucionária provocada pela nova estrutura na Ásia após a Guerra Sino-Japonesa e a Guerra Russo-Japonesa, não são as guerras imperialistas, mas o “despertar da Ásia” desencadeado por estas guerras e moldado pela série de revoluções acima referida, que marcou os múltiplos inícios do “curto século XX”.
Portanto, em termos temporais, o “curto século XX” não começou em 1914, mas sim entre 1905 e 1911; espacialmente, não começou num único ponto, mas num conjunto de começos; e em termos de oportunidade, não surgiu de guerras destrutivas, mas da dupla exploração que procurava romper o sistema imperialista e os antigos regimes. Geopoliticamente, o século XX não foi apenas uma era pós-colonial, mas também uma era pós-metropolitana (9), durante a qual as revoluções e reformas em áreas periféricas não só transformaram as suas próprias regiões, mas também as relações centro-periferia no mundo, afetando significativamente as regiões centrais e as transformações que estas vivenciaram. Só recentemente, numa altura em que os países do Sul global representam quase 60 por cento do PIB mundial e os países BRICS mais de 30 por cento, é que as pessoas começaram a compreender as características da "era pós-metropolitana", embora esta seja um processo prolongado (10).
O conceito transgeopolítico amplamente utilizado de "tricontinentalismo" (亚非拉), a onda de movimentos de independência nacional, o Movimento dos Países Não Alinhados e a emergência do Sul global, ao longo desta trajetória, todos derivam deste processo revolucionário sequencial. O que é o Sul global? O Sul não é apenas uma região ou meramente uma área “atrasada” ou empobrecida; na tradição da Conferência de Bandung, ressoa com o Oriente, formando unidade através das diferenças. A China e o Sul global já não são meras áreas periféricas totalmente dominadas pelas metrópoles coloniais da era colonial; são as forças epocais que impulsionaram a transição da era metropolitana para a era pós-metropolitana. Este processo iniciou-se há mais de um século e é uma das premissas para a compreensão do século XXI.
Terceira Parte: A política de deslocação e a criação de continuidade
O nascimento do século significa a transformação de múltiplos mundos, sob diferentes enquadramentos temporais, em desequilíbrios dentro de um único mundo de sincronicidade, criando assim uma necessidade absoluta de observar a história ao longo de um eixo horizontal. Esta transformação temporal é na realidade condicionada pela chamada “revolução espacial”. Sob a premissa da revolução espacial, as relações temporais assumem cada vez mais uma natureza lateral, e as mudanças contemporâneas — bem como os discursos que descrevem essas mudanças — não podem ser narradas ao longo de um eixo longitudinal de relações diacrónicas. Em vez disso, devem ser explicadas em vários enquadramentos temporais. Resumo este fenómeno como movimento conceptual lateral, cuja função é transformar conteúdos históricos de diferentes linhas temporais em realidades que podem ser expressas pelo mesmo conjunto de discursos, dentro de uma estrutura de sincronicidade.
Neste contexto, como acontece a política? Sem uma série de conceitos ou categorias inteiramente novos, a política do século XX e o seu significado histórico parecem impossíveis de representar; no entanto, ao mesmo tempo, se estes conceitos, que foram traduzidos ou transcriados, são utilizados como categorias fundamentais para construir e explicar cenários históricos, o desalinhamento entre os sistemas de discurso e as condições sociais é frequentemente bastante evidente. Nesta era, conceitos como indivíduo, cidadão, Estado, nação, classe, povo, partido político, soberania, cultura e sociedade tornam-se centrais na nova política; produção, os modos de produção, as formações sociais e os seus conceitos associados tornam-se categorias fundamentais para descrever as sociedades chinesas e outras; os conceitos de "elos fracos", relações amigo-inimigo, "zonas fronteiriças", "terreno intermédio", "Três Mundos", frente unida, e assim por diante, surgem todos de avaliações e de pensamento estratégico e tático sobre as realidades globais e nacionais em condições imperialistas.
Dipesh Chakrabarty, um importante académico indiano de estudos subalternos, descobriu que os esforços para procurar sujeitos revolucionários na Índia e noutros mundos não ocidentais produziram uma série de substitutos para a categoria ocidental de proletariado, como camponeses, massas, subalternos e assim por diante (11). No entanto, o fenómeno da repetição e da deslocação não se verifica apenas com categorias como o proletariado, mas também com quase todas as categorias acima referidas. Tanto a revolução como a contrarrevolução encarnam a lógica desta deslocação.
Estas categorias não podem ser explicadas simplesmente pela lógica do século XIX, nem pelas suas raízes clássicas. A maioria destes conceitos, categorias e proposições-chave (com exceção de alguns que surgiram de lutas específicas, como “zonas fronteiriças” e “terreno intermédio”) têm origem em traduções e apropriações de conceitos e proposições europeus do século XIX. No entanto, o conteúdo político destes termos ou conceitos — como Estado, soberania, povo, classe, cidadão, partido político, etc. — não pode ser definido apenas pelas suas origens europeias. Os revolucionários e reformadores do século XX rapidamente utilizaram estes conceitos, categorias e proposições para práticas políticas específicas, causando muita confusão aos historiadores da nova era. Por exemplo, se “feudal” era originalmente um termo mal utilizado, então que base existe para descrever as formas sociais anteriores e posteriores? Da mesma forma, à medida que o capitalismo e o colonialismo europeus se desenvolveram, no século XIX, os socialistas inventaram o conceito de “proletariado”, que era visto como o verdadeiro sujeito revolucionário orientado para o futuro. Na China do século XX, a procura do proletariado como sujeito revolucionário era um processo político em curso. No entanto, numa sociedade com uma industrialização tão fraca, existiam poucos grupos de trabalhadores em termos de número, escala e nível organizacional, sendo questionável que o grupo capitalista, como sua contraparte, constituísse uma classe. Implica isto que a própria Revolução Chinesa foi o produto de um “mal-entendido”?
Muitas categorias e temas da China do século XX são repetições da Europa do século XIX, mas cada repetição é também um deslocamento — não apenas um produto de contextos diferentes, mas também um deslocamento político. Por isso, é necessário indagar sobre a formação e o significado de categorias como Estado, nação, soberania, partido político, povo, classe, etc., em condições históricas específicas; indagar sobre a forma como as guerras populares transformaram e criaram novas organizações políticas (embora com os mesmos nomes) que eram diferentes dos partidos políticos anteriores, bem como novas formas de Estado (como o soviete); indagar como é que, através da organização e da mobilização, os camponeses se tornaram uma força motriz ou classe política na revolução; e indagar sobre como compreender a soberania e as disputas de soberania dentro da Sociedade das Nações e a guerra entre estas nações.
Para esse efeito, nenhuma destas categorias pode ser explicada simplesmente pela lógica do século XIX, nem podem ser baseadas nas raízes clássicas dos seus termos. Estes conceitos reorganizaram as narrativas históricas e quebraram o domínio das narrativas antigas, abrindo caminho para o surgimento de novas políticas. Isto não quer dizer que as práticas discursivas desta época não tenham envolvido o deslocamento de conceitos ou categorias, mas sim que, sem analisar o desenvolvimento político desses conceitos ou categorias, não podemos compreender o seu verdadeiro significado, força e limitações e, portanto, não podemos utilizá-los para compreender a singularidade da China do século XX. Quando estes conceitos desconhecidos foram utilizados em condições históricas muito diferentes daquelas que os originaram, não só promoveram novas consciências, valores e ações, como também produziram uma nova lógica política. Portanto, sem a perspetiva interna da Revolução Chinesa, é difícil explicar o significado da China do século XX.
Este deslocamento político fornece uma premissa metodológica para compreender dois aspetos únicos da China do século XX: não se tratou de um simples transplante, mas de um deslocamento sob condições históricas específicas e contextos tradicionais que estabeleceram uma relação dialética entre revolução e continuidade. Poderíamos reexaminar dois aspetos únicos da China do século XX a partir desta perspetiva.
O primeiro centra-se no início do “século curto”, especificamente na questão da continuidade entre a antiga dinastia e o novo Estado durante o processo revolucionário de construção do Estado. O século XX começou com as revoluções nacionais asiáticas e a democracia constitucional, e podemos considerar a Revolução Russa de 1905, a Revolução Constitucional Persa de 1905-1911, a Revolução Turca de 1908-1909 e a Revolução Chinesa de 1911 como os acontecimentos inaugurais do “Despertar da Ásia”. A Revolução de 1911 conduziu rapidamente à fundação da primeira república da Ásia, dotando a revolução do significado de um verdadeiro começo. Coloco também a Revolução Russa de 1905 na sequência das revoluções asiáticas, não só porque o seu gatilho direto foi a Guerra Russo-Japonesa e a derrota da Rússia no território da Dinastia Qing, mas também porque esta guerra e revolução catalisaram o processo da revolução nacional chinesa (Tongmenghui da China, ou Aliança Revolucionária da China, foi fundada no mesmo ano), desencadeando acesos debates entre republicanos e constitucionalistas, e inspirou as revoluções subsequentes no Irão e na Turquia.
Podemos associar o “Despertar da Ásia” à Primeira Guerra Mundial como uma era de colapso de impérios. Embora a Revolução Russa de 1905 tenha fracassado, revelou sintomas de decadência no enorme e multiétnico império russo, que acabou por colapsar no meio do fumo das revoluções e das guerras. A Revolução Russa e as forças nacionalistas marcharam juntas, e o princípio da autodeterminação nacional prevaleceu nas regiões fronteiriças russas, como a Polónia e a Ucrânia. Embora as nações fronteiriças se tenham posteriormente juntado à União Soviética como “repúblicas federadas”, a dissolução de 1991 revelou que a estrutura soviética estava profundamente ligada ao princípio nacional. Em 1918, o Império Austro-Húngaro, estabelecido em 1867, entrou em colapso, e a Áustria e a Hungria estabeleceram as suas próprias repúblicas, enquanto as nações mais pequenas que outrora faziam parte do império adquiriram o estatuto de nações independentes. O conceito nacionalista de revolução e reforma do Partido Social-Democrata da Áustria no seio do Império Austro-Húngaro — consistente com a teoria de Otto Bauer — resultou num fracasso total. O Império Otomano tinha um amplo território e uma grande população que abrangia a Europa e a Ásia; a sua ascensão foi um acontecimento histórico mundial de importância internacional, que deu início à era da exploração naval europeia. No fumo da Primeira Guerra Mundial, aquele império, sobrevivente de revoluções anteriores, caminhou para o colapso, e a recém-nascida Turquia abdicou do seu pluralismo institucional em troca de um território mais pequeno e de uma estrutura menos complexa. Nos sucessivos colapsos destes três grandes impérios, o nacionalismo, a reforma constitucional e a desagregação do complexo pluralismo institucional foram diferentes facetas do mesmo acontecimento. Em 1918, os “catorze pontos” de Woodrow Wilson colocavam o princípio nacional acima dos interesses imperiais em nome da autodeterminação nacional; nação, o nacionalismo e o Estado-nação como antíteses ao império dominaram a lógica política de todo o século XX.
A princípio, a Dinastia Qing parecia muito semelhante a outros impérios: uma revolta regional em 1911 desencadeou o colapso de todo o sistema imperial, e ventos de separatismo e independência espalharam-se por todo o império. A nível filosófico, o nacionalismo étnico teve repercussões em áreas com povos han, mongóis, tibetanos e uigures. Zhang Taiyan, um líder intelectual revolucionário, comparou os Qing aos impérios Austro-Húngaro e Otomano (12). Surpreendentemente, porém, apesar da turbulência violenta, da fragmentação e das invasões estrangeiras, a precária república conseguiu finalmente manter-se unificada, mantendo o território e a população do império anterior. Como podemos explicar a continuidade única entre o império multiétnico unificado e um Estado soberano multiétnico unificado?
A segunda característica única da China moderna é a continuidade entre os períodos revolucionário e pós-revolucionário no final do "curto século XX". No “curto século XX” na Ásia, a partir da Revolução Russa de 1917, os movimentos revolucionários nacionais já não estavam simplesmente aliados à democracia constitucional burguesa, mas também às revoluções sociais e a certos tipos de movimentos de construção do Estado com uma orientação socialista. A Revolução de Outubro na Rússia foi um produto das guerras europeias, mas ecoou o espírito das revoluções asiáticas porque continuou o caminho estabelecido pela Revolução Chinesa de 1911, que combinou a revolução nacional com um programa económico socialista e um projeto de construção do Estado (13). Por outro lado, era necessário estabelecer um Estado socialista e um programa de ação para desenvolver o capitalismo num país agrário atrasado (capitalismo sem burguesia) (14). A característica fundamental que distinguiu a Revolução Chinesa de 1911 da Revolução Russa de 1905, da Revolução Constitucional Persa de 1905-1911 e da Revolução Turca de 1908-1909, foi que ela ligou os movimentos nacionais aos movimentos socialistas de construção nacional e às revoluções internacionais.
Esta característica prenunciou a diferença radical entre as revoluções do século XX e as dos séculos XVIII e XIX, exemplificadas pelas Revoluções Americana e Francesa. Por conseguinte, a Revolução Chinesa de 1911 foi um ponto de viragem significativo para a sequência de revoluções após 1905; por outras palavras, foi a Revolução de 1911 — e não a Revolução Russa de 1905 — que marcou o verdadeiro início deste “século curto” (que remonta a um período anterior à “era dos extremos”). A breve Revolução de 1911 foi um claro apelo à longa Revolução Chinesa. A Revolução Chinesa de 1911, a Revolução Russa de 1917 e o estabelecimento do campo socialista global remodelaram o cenário global, que tinha sido dominado pela expansão unilateral do capitalismo desde o século XIX. Não podemos compreender a ordem mundial geral após o final do século XIX, portanto, sem a perspetiva da “revolução”.
Após o fim da Guerra Fria, a União Soviética e os países socialistas da Europa de Leste desintegraram-se um após outro, e o princípio nacional e o sistema capitalista de democracia de mercado obtiveram uma dupla vitória. No Ocidente, esta mudança foi comparada à desagregação dos impérios anteriores, sendo vista como um momento de libertação para as nações e povos do império soviético "despótico" e um passo em direção à democracia constitucional. Na União Soviética e na Europa de Leste, a rotura entre as eras da revolução e da pós-revolução era prontamente evidente. Mas desde o fim da "era dos extremos" descrita por Eric Hobsbawm, a própria China não só manteve a integridade da sua estrutura política, composição populacional e tamanho, como também completou, ou está a caminho de completar, uma transformação económica orientada pelo mercado dirigida pelo seu sistema estatal socialista. Porque é que isso é assim?
A primeira consideração a fazer para responder a esta questão tem a ver com as relações entre a Dinastia Qing e a nação chinesa moderna, por um lado, e entre os sistemas imperial e republicano, por outro. A segunda consideração tem a ver com as relações entre o socialismo e a economia de mercado. Depois de 1989, ninguém esperava que a China desenvolvesse a sua economia tão rapidamente e ainda assim mantivesse a sua estrutura política. Da mesma forma, nos anos turbulentos que se seguiram a 1911, ninguém fazia ideia de onde iria conduzir a agitação social da época. A estrutura política da China moderna é o produto da construção revolucionária da nação que começou em 1949; a sua dimensão e relações soberanas, no entanto, remontam à continuidade estabelecida entre a Dinastia Qing e a recém-nascida república após a Revolução de 1911. Por outras palavras, a criação da revolução, da transformação e da continuidade — inevitavelmente também expressas como roturas de continuidade — encerra os segredos cruciais do “curto século XX” da China. Se este processo político único for também visto através da lente da “continuidade da soberania”, torna-se evidente que o surgimento, a renovação e a conclusão da “continuidade soberana” no decurso do processo revolucionário e de construção do Estado chinês foi acompanhado pelo nascimento de um novo sujeito político e da sua cada vez maior capacidade de integração política.
Ao contrário das revoluções francesa e russa, a Revolução Chinesa não pode ser marcada por um único acontecimento; em vez disso, é um longo processo de mobilização e transformação da sociedade em todos os campos — político, económico, cultural, militar, etc. — um processo de criação de continuidade através da autotransformação contínua, até mesmo da autonegação, e um processo que não só estabeleceu a sua posição nas relações globais, como também alterou a desigualdade global. A revolução é moldada não só por personagens e acontecimentos tangíveis, mas também por forças invisíveis, como ideias, valores, costumes e tradições que fazem parte dos acontecimentos instigantes e se unem na sua erupção. A subjetividade política do “povo chinês” nasceu e fortaleceu-se através deste longo processo. A continuidade histórica da China moderna nasceu em acontecimentos históricos específicos, produzidos pelos seus participantes sob diversas forças históricas. A energia e a capacidade da China do século XX para criar a sua própria continuidade através da revolução e da transformação estabelecem a base para enfrentar os desafios contemporâneos e futuros.
Interpretar a história da China do século XX ou discutir a China contemporânea e o seu futuro depende da avaliação fundamental da questão da continuidade, que não pode ser vista nem como uma extensão natural da China tradicional e da sua civilização, nem como uma invenção a partir de revoluções e transformações modernas. A discussão sobre a continuidade não existiria sem as revoluções e transformações da China do século XX: tanto as experiências práticas da revolução e da reforma chinesas como a relação entre a China moderna e a civilização clássica devem ser entendidas dentro deste quadro.
Quarta Parte: Crise e oportunidade na era pós-metropolitana
Se uma das características globais do século XX foram as revoluções que surgiram nas regiões periféricas, fora do centro do capitalismo global, então esta série de revoluções significou também o aparecimento de novos sujeitos políticos nas relações globais, sucessivamente designados por nações oprimidas, o Movimento Não-Alinhado, o Terceiro Mundo e o Sul global, com base em diferentes condições históricas. As nações e os povos sob estas designações diferem tremendamente, em diversas condições históricas e origens culturais. Como declarou o Presidente indonésio Sukarno na cerimónia de abertura da Conferência de Bandung, em 1955, as nações participantes “não se reuniram num mundo de paz, unidade e cooperação. Grandes abismos se abrem entre nações e grupos de nações. O nosso mundo infeliz está dilacerado e torturado, e os povos de todos os países andam com medo de que, sem culpa sua, os cães da guerra sejam novamente soltos” (15). Décadas mais tarde, as contradições ainda abundam entre nações, religiões, grupos étnicos, classes, géneros e entre a humanidade e a natureza, formando uma cadeia de crises.
A base histórica da globalização neoliberal reside nos múltiplos monopólios formados durante a era do imperialismo e da Guerra Fria, incluindo as finanças, a tecnologia, os recursos naturais, as armas de destruição maciça e as comunicações. Das revoluções industrial e elétrica às revoluções biotecnológica e digital, esta ordem global e as suas desigualdades inerentes falham cada vez mais em satisfazer as necessidades de desenvolvimento da China e da região asiática, em fornecer apoio ao desenvolvimento futuro dos países africanos e latino-americanos ou em oferecer uma nova estrutura para um desenvolvimento global justo e a superação de crises ecológicas. Se as nações oprimidas, o Terceiro Mundo e o Movimento dos Países Não Alinhados foram respostas ao imperialismo e à política hegemónica, o Sul global deve hoje abordar a cadeia de crises provocada pela globalização neoliberal e defender novas relações políticas, económicas e culturais, uma nova ordem internacional que acomode a ascensão das regiões periféricas.
Comparando a conjuntura internacional durante a era de Bandung com a de hoje, a diferença ou desenvolvimento mais significativo é a ascensão da China e de outras regiões periféricas, que, através da revolução e da transformação, alterou parcialmente a estrutura hegemónica da ordem global. A partir da era de Bandung, a hegemonia persistiu, mas estava a enfraquecer de uma forma difícil de conter. Se as crises de guerra, na era colonial, tiveram origem em conflitos entre nações imperialistas que disputavam colónias, esferas de influência e o chamado equilíbrio de poder, as maiores ameaças atuais à paz surgem dos esforços para suprimir a ascensão de regiões periféricas à medida que estruturas hegemónicas começaram a afrouxar. Após a Segunda Guerra Mundial, os países do Sul global, incluindo o Leste, conquistaram as condições básicas para a modernização através da libertação nacional e dos movimentos socialistas. Com esta base, alguns países e regiões fizeram progressos significativos através do desenvolvimento independente e cooperativo e procuram continuamente uma ordem mais justa nos processos globais.
Acompanhados por crises internas e externas, os países do Norte global passaram da globalização neoliberal a uma fase de contenção e de monopolismo muito mais evidentes. As crises de guerra regionais têm o potencial de se transformarem em conflitos globais de maior escala. As restrições e sanções financeiras, comerciais e tecnológicas repetidamente impostas pelos Estados Unidos da América e pela União Europeia são manifestações de uma crise hegemónica. Os países do Norte global já não podem monopolizar os recursos naturais como na era colonial. Mesmo em termos de armas de destruição maciça e de meios de comunicação social, o monopólio das nações hegemónicas está em declínio. A questão da defesa da paz levantada na Conferência de Bandung apresenta uma nova urgência e implicações diferentes no contexto de uma nova era. Hoje, os conflitos contemporâneos mais intensos estão intimamente relacionados com as mudanças internas em cinco estruturas monopolistas: finanças, tecnologia, recursos naturais, armas de destruição maciça e comunicações.
Em primeiro lugar, olhemos para o sistema financeiro, onde a hegemonia ainda existe, mas começou claramente a afrouxar. A internacionalização do renminbi já está em curso, uma vez que a China utiliza a sua própria moeda em acordos comerciais com vários países. As sanções financeiras impostas pelos Estados Unidos da América e pela União Europeia durante a guerra entre a Rússia e a Ucrânia funcionaram como uma faca de dois gumes; ao mesmo tempo que prejudicam outros países, expõem também as evidentes fraquezas do sistema do dólar. O sistema de hegemonia financeira não terminou, mas a luta em seu redor está a tornar-se cada vez mais intensa.
Em segundo lugar, na situação atual, a crise nos monopólios tecnológicos é ainda mais grave do que a do sector financeiro. As leis norte-americanas da Ciência e da Criação de Incentivos Úteis para a Produção de Semicondutores (CHIPS), ambas de 2022, são exemplos típicos disso; assim que os países não ocidentais fazem avanços tecnológicos e reforçam a sua autonomia, os países do Norte global recorrem a todos os meios necessários para suprimir, sancionar, limitar ou dividir os países do Sul global. O processo de desordem imposto pela globalização neoliberal está a evoluir para um processo de conflitos intensos.
Em terceiro lugar, surgiu também uma crise no monopólio do Norte global sobre os recursos naturais, à medida que os países do Sul global ganham independência e aumentam a sua autonomia económica. A hostilidade e a resistência da Europa e dos E.U.A. à Iniciativa Faixa e Rota refletem os desafios sem precedentes que se levantam ao monopólio dos recursos desde a era colonial. Por conseguinte, a forma como a China desenvolve um modelo distinto da hegemonia europeia e articula claramente a sua estratégia de desenvolvimento à escala global é também uma questão crucial para os países do Sul global.
Em quarto lugar, quando se trata de armas de destruição maciça, ainda existe um monopólio, embora ele não seja totalmente abrangente. Isto levou a novos perigos de uma corrida ao armamento e de uma crise nuclear global. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o acordo trilateral entre a Austrália, o Reino Unido e os Estados Unidos da América (AUKUS) foram criados para manter o monopólio das armas de destruição maciça e estabelecer novas estruturas estratégicas globais que promovam este objetivo.
Em quinto lugar, o monopólio das comunicações continua forte. Após o colapso do sistema socialista, o monopólio dos grandes meios de comunicação ocidentais não só persiste como se tornou ainda mais forte. O surgimento de plataformas de redes sociais como o TikTok e as audições a seu propósito realizadas no Congresso dos E.U.A provam que estes e a Europa utilizarão todos os meios para suprimir qualquer tecnologia que possa quebrar parcialmente o monopólio dos media, seja um grande meio de comunicação nacional ou uma plataforma de media social. No entanto, as novas políticas digitais restritivas que estão a ser formadas e estabelecidas pelos E.U.A. e pela Europa revelam também a situação cada vez mais tensa destas regiões.
O que não parou, no meio destas mudanças, foi a contínua ascensão da posição da Ásia na economia global, as novas possibilidades de desenvolvimento económico nos países africanos, a tendência de longo prazo dos países da América Latina a procurarem cada vez mais o desenvolvimento independente e vagas de socialismo do século XXI. Há trinta anos, Samir Amin disse que a globalização não é ordem, mas desordem. Hoje em dia, esta desordem está a acelerar em conflitos, através de uma cadeia de múltiplas crises, representando uma ameaça significativa à paz e ao desenvolvimento globais. Como um amplo movimento global, o objetivo dos países do Sul não é meramente procurar o seu desenvolvimento unilateral, mas trabalhar em prol de uma ordem mundial mais justa, pacífica e amiga do ambiente. Para isso, é crucial desmantelar os monopólios sobre as finanças, a tecnologia, os media, os recursos naturais e as armas de destruição maciça, organizando o desarmamento global para defender a paz. Neste sentido, o movimento do Sul global não é simplesmente um movimento no Sul, mas um movimento global que promove a mudança nas relações globais e procura uma nova universalidade para a sobrevivência e o desenvolvimento da civilização humana.
(*) Wang Hui (n. 1959) é um teórico político, filósofo e historiador chinês, atualmente professor do departamento de Língua e Literatura Chinesa na Universidade Tsinghua, em Beijing. Natural de Yangzhou, no Jiangsu, trabalhou durante dois anos como operário fabril antes de entrar na faculdade. Concluiu os seus estudos de licenciatura na Universidade de Yangzhou e, em seguida, os seus estudos de pós-graduação na Universidade de Nanquim e na Academia Chinesa de Ciências Sociais, onde recebeu o seu doutoramento em 1988. Participou nos protestos da Praça Tiananmen em 1989. As suas pesquisas centravam-se então na literatura chinesa contemporânea (com destaque para Lu Xun) e na história intelectual. Foi o editor executivo (com Huang Ping) da influente revista Dushu de maio de 1996 a julho de 2007. Foi professor visitante em diversas universidades ocidentais, sendo provavelmente o intelectual chinês contemporâneo mais traduzido. Refiram-se China’s New Order: Society, Politics, and Economy in Transition, Harvard University Press, 2003; The End of the Revolution: China and the Limits of Modernity, Verso, 2010; The Politics of Imagining Asia, Harvard University Press, 2011; China's Twentieth Century: Revolution, Retreat and the Road to Equality, Verso, 2016; The Rise of Modern Chinese Thought (4 vols.). Harvard University Press, 2023. Mesmo em Portugal já chegou o seu China, século XX, Bertrand, Lisboa, 2017. É geralmente considerado o mais destacado representante da “nova esquerda” chinesa, embora ele recuse essa designação, considerando-a um exclusivo ocidental. No contexto chinês, esta discutível denominação serve para caraterizar um conjunto (ou, talvez melhor, uma inteira geração) de intelectuais marxistas, que, na década de 1990, se insurgiu contra os excessos do neoliberalismo, da polarização social em curso e da submissão à globalização de hegemonia ocidental, congraçando-se com os movimentos espontâneos de rebeldia social. Estes grupos nasceram contestatários, tendo muitos deles sofrido fortes perseguições. Desde a ascensão de Xi Jinping acederam a uma posição de diálogo com o poder, com exceção de algumas franjas mais radicais. Entre os seus expoentes mais destacados podem referir-se o economista social-democrata Cui Zhiyuan ou o expatriado neomaoista, analista de sistemas-mundo, Li Minqi (também ele, curiosamente, um veterano dos insensatos protestos de Tiananmen). Este artigo foi publicado, em outubro de 2024 (Dossier n.º 81), por Tricontinental: Institute for Social Research. A tradução do inglês para a língua portuguesa é de Ângelo Novo.
_______________ NOTAS:
(1) Constitution of the People’s Republic of China, preamble.
(2) ‘O século curto’ é um termo cunhado pelo historiador britânico Eric Hobsbawm referindo-se ao período desde o início da Primeira Guerra Mundial em 1914 até ao colapso da União Soviética em 1991. Leia-se Eric Hobsbawm, The Age of Extremes: The Short Twentieth Century, 1914-1991 (London: Abacus, 1995).
(3) O Ano de Gengzi (庚子年) refere-se a um ano no ciclo tradicional chinês de sessenta anos. 1900 foi o Ano mais conhecido do Gengzi por causa da Rebelião dos Boxers anticolonial e antiestrangeira, apoiada pela Dinastia Qing sob o Imperador Guangxu (光绪帝), e a subsequente invasão pela Aliança das Oito Nações, que incluiu forças do Japão, Rússia, Grã-Bretanha, França, Estados Unidos da América, Alemanha, Itália e Áustria-Hungria. Este ano representa a humilhação e a crise nacional da época.
(4) Atribuída ao estudioso confucionista Gongyang Gao durante o período dos Estados Combatentes (475-221 a.C.), a ‘Teoria das Três Eras de Gongyang’ (公羊三世说) apresenta uma visão confucionista do tempo em que a história progride através de ‘eras’ distintas, cada uma representando um diferente nível de desenvolvimento moral e político.
(5) Liang Qichao 梁启超, ‘Ershi shiji zhi juling tuolasi’ 二十世纪之巨灵托辣斯’ [Trust, O Gigante do Século XX], Xinmin Congbao 新民丛报 [Jornal do Novo Cidadão], n.º 40-43 (2 de Novembro a 4 de Dezembro de 1903).
(6) O "longo século XIX", tal como teorizado por Eric Hobsbawm, refere-se ao período histórico entre a Revolução Francesa em 1789 e o início da Primeira Guerra Mundial em 1914, um período caracterizado pela ascensão do capitalismo industrial, pela propagação do nacionalismo e pela expansão dos impérios europeus, entre outras mudanças significativas.
(7) V. I. Lenin, ‘On the Slogan for a United States of Europe’, Lenin Collected Works, vol. 2, p. 709.
(8) A Revolução Chinesa de 1911, também conhecida como Revolução Xinhai, pôs fim à última dinastia imperial da China, a Dinastia Qing, e levou ao estabelecimento da República da China.
(9) ‘Metropolitano’ refere-se às potências coloniais ocidentais representadas por metrópoles, como Londres e Nova Iorque, e à sua associada relação de dominação sobre colónias, semicolónias e pós-colónias. Portanto, a chamada “era pós-metropolitana” corresponde ao “pós-colonialismo”. Hoje, com a ascensão económica da China e do Leste Asiático e com as mudanças na ordem mundial, começou a era do “pós-centro (ocidental)”, um processo que começou com as revoluções e mudanças que ocorreram nas áreas periféricas no século XX. A influência destas áreas nas áreas centrais aumentou, de tal forma que a sociedade ocidental de hoje tem de enfrentar a sua própria realidade “pós-centro” ou “pós-metropolitana”.
(10) Tricontinental: Institute for Social Research, Hyper-Imperialism: A Dangerous Decadent New Stage, Studies on Contemporary Dilemmas n.º 4, 23 January 2024.
(11) Dipesh Chakrabarty, ‘Belatedness as Possibility: Subaltern Histories, Once Again’, The Indian Postcolonial: A Critical Reader, vol. 1, eds. Elleke Boehmer and Rosinka Chaudhuri (London: Routledge, 2011), pp. 163-76.
(12) Zhang Taiyan, ‘Zheng chou Man lun’ [Discurso correto sobre o ódio aos manchus), Xinhai geming qian shinianjian shilun xuanji [Ensaios selecionados dos dez anos que antecederam a Revolução de 1911], vol. 1, ed. Zhang Nan e Wang Renzhi (Beijing: Sanlian shudian, 1963), p. 98.
(13) Lenine notou pela primeira vez as características distintivas da Revolução Chinesa em 1912-1913. Em 1919, defendeu que a revolução socialista “será uma luta de todas as colónias e países oprimidos pelo imperialismo, de todos os países dependentes, contra o imperialismo internacional”. Ver Vladimir Lenine, Collected Works of Lenin,, vol. 30 (Pequim: People’s Publishing House, 1957), 137. Para a ‘descoberta’ por Lenine da Revolução de 1911, ver Wang Hui, ‘The Politics of Imagining Asia’, in Depoliticised Politics (Pequim: Joint Publishing, 2008).
(14) O aspeto socialista da Revolução Chinesa de 1911 foi materializado pelo facto de o programa de construção do Estado de Sun Yat-sen, o "pai da China moderna" e primeiro presidente da república, implicar não só uma revolução política nacional, mas também uma revolução social que visava superar a debilidade do capitalismo. As suas principais táticas para conseguir isto consistiam em equalizar a propriedade da terra e aumentar os impostos sobre o valor da terra, uma política influenciada pelas teorias de Henry George.
(15) Asian-African Conference Bandung, Indonesia 1955, Asia-Africa Speaks from Bandung (Jakarta: Ministry of Foreign Affairs Republic of Indonesia, 1955).
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