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Introdução
Prossegue a derrocada da Casa Grande do Ocidente. Batida na Ucrânia, cindiu-se a meio com a espinha dorsal quebrada. Os E. U. A. abandonam a ilusão de comandar uma ordem liberal universal neo-vestfaliana, procurando usar o que resta do seu poder de intimidação militar e financeira ao serviço de uma estratégia solitária e unilateral. A Europa mergulha na irrelevância, estremecida por uma risível febre de rearmamento, que só merece ser levada a sério enquanto prenúncio do descalabro final do seu Estado Social. Tudo isto é ainda apenas o início de um interminável pesadelo para os atuais senhores do mundo. O soçobro final vislumbra-se no Médio Oriente, com a expulsão dos norte-americanos da região e o desmantelamento de Israel (quintessência do ocidentalismo), o mais odioso projeto racista e supremacista desde o III Reich nazi, do qual é um transbordamento. O grande desafio da nossa época é completar este processo desmetropolizante, desarmadilhando cuidadosamente a ameaça de uma guerra e consequente inverno nuclear. Isso cumprido, deixaremos enfim de viver num mundo dividido entre nações senhoriais e servis, exploradoras e submetidas. Poderemos, então, remeter a luta anti-imperialista para o modo preventivo e reativar, agora globalmente, a palavra de ordem “Proletários de todos os países, uni-vos!”, ao serviço do desenvolvimento humano universal e do equilíbrio ecológico no planeta.
O Ocidente é um acidente. Um acidente infeliz, uma intumescência neoplásica ocorrida no processo de desenvolvimento histórico-material da humanidade. Há quem o pretenda essencializar e sacralizar, inventando para ele as mais absurdas e mí(s)ticas genealogias. Na verdade, esta ideia de Ocidente é uma invenção do século XIX, projetada retrospetivamente de forma eletiva e arbitrária. Como está bem estabelecido (recentemente, por Josephine Quinn, uma autora em nada subversiva nem marxizante), o atual Ocidente é resultado de um processo multimilenar de contínuas trocas, pastiches e reelaborações culturais, envolvendo, entre outros, levantinos, persas, chineses, indianos, árabes e africanos. Juntemos-lhes americanos e polinésios para termos praticamente a humanidade inteira. Com início no século XV (excluídos episódios precursores como Alexandre, Roma ou as Cruzadas), a violência e a coação entraram no quadro, desequilibrando as coisas a favor dos mais experientes guerreiros europeus. Foi do saque gargantuesco dos povos submetidos que se amassaram as riquezas que permitiriam a revolução industrial. O modo de produção capitalista é, ele próprio, dialeticamente, resultado e fator do processo expansionista que criou o Ocidente. É este o tumor que tem agora de ser extirpado, se a humanidade houver de ter uma oportunidade de sobreviver e progredir.
Nem tudo é mau na herança ocidental. Os subscritores destas linhas procurarão em vão cavar distância em relação a ela, porque se filiam numa das suas tradições intelectuais. A humanidade, no seu conjunto, aprendeu e amadureceu muito com a via ocidental, que agora se tornou obviamente inviável e catastrófica. Nos campos cultural, científico e político-económico. Neste último, aprendeu, entenda-se, não com as classes dominantes, com os possuídos pela sede de domínio e promotores do expansionismo desenfreado, mas precisamente com aqueles que procuraram estabelecer-lhes limites e regras, vislumbrando a superação da ordem vigente. Com aqueles que, em contracorrente e contrapoder, criaram civilização a partir dos destroços acumulados pelo “progresso”, amassados estes sempre sobre o sangue, os gritos aterrados, o suor e as lágrimas dos vencidos. O constitucionalismo, os direitos humanos, a democracia representativa, a liberdade de expressão e de associação, os direitos e garantias do trabalhador, o cuidado e solidariedade social, o planeamento participado, a igualdade entre homens e mulheres, a nada disto renunciamos, salvo em estado de emergência e necessidade. Mas estas conquistas não são exportáveis no seu exato molde ocidental. Têm de provar a sua verdadeira universalidade por meio da sua recriação ou transliteração no contexto local, crescendo naturalmente a partir de bases endógenas. Os tempos da expansão colonial e da assimilação hegemónica já passaram há muito. Enquanto decorreram, nunca os conquistadores mostraram qualquer predisposição para criar uma cidade mundial de acordo com estes seus tão virtuosos preceitos.
A República Popular da China completou três quartos de século de existência, com uma acumulação impressionante de sucessos e realizações. De forma audaciosa e abnegada, logo de entrada, os comunistas chineses impuseram ao imperialismo norte-americano um empate na Guerra da Coreia. Ali terminou efetivamente o século da humilhação. A partir daí foi sempre em crescendo. Como nos mostra detalhadamente Onurcan Ülker, foram as impressionantes realizações do socialismo chinês (que as suas catástrofes voluntaristas mal beliscaram) que colocaram as bases que iriam permitir o êxito na abertura controlada ao mercado mundial, a partir da década de 1980. O futuro está em aberto, permitindo todas as especulações teóricas e, mais importante do que isso, horizontes esperançosos de uma libertação da teia imperialista para os povos de todo o mundo.
Um dia, a história mundial será escrita por não-ocidentais, sem o viés próprio do expansionismo e assimilacionismo europeus. Esse dia foi preparado pelo Despertar da Ásia nos alvores do século XX, conforme nos conta Wang Hui. É a desocidentalização (ou provincialização do ocidente) e desmetropolização do mundo que nos vai permitir aceder a um verdadeiro universalismo cosmopolita, com reflexo em coisas tão elementares como a maneira como medimos o tempo histórico. Uma forma particular muito importante dessa miscigenação de universos intelectuais é a sinização do marxismo, de que nos fala Carlo Formenti. Trata-se da forma como uma particular tradição de pensamento emancipatório ocidental é adaptada, ou mesmo inteiramente recriada, dentro da corrente do desenvolvimento histórico chinês, mesclando-se com outras tradições autóctones e dando resposta bem calibrada aos seus particulares desafios práticos.
Prabhat Patnaik é um cronista incomparável do imperialismo capitalista. Trata-o com igual à vontade ao nível macro como micro histórico, com os mais apurados instrumentos teóricos. As suas peças de atualidade têm a agudeza, a lucidez e o rigor científico que, normalmente, só a distância temporal permitem alcançar. Boaventura de Sousa Santos analisa a emergência de Donald J. Trump como um fenómeno típico do mundo criado pela Europa à sua semelhança. Fá-lo aqui em escassas páginas, como que num pequeno resumo de todas as suas vastas décadas de investigação e saber acumulado de crítica ao eurocentrismo. Michael Hudson prossegue no tratamento do mesmo personagem, agora com enfoque especial nas suas fantasias económicas. O trumponomics é uma mescla de ilusões de grandeza imperial com ignorância jactanciosa, que, muito provavelmente, conduzirá ao caos e à aceleração do declínio norte-americano.
John Bellamy Foster analisa casuisticamente a derradeira vaga de negação do imperialismo por parte de intelectuais ditos marxistas ocidentalocêntricos. O fenómeno não é, de forma alguma, novo, pelo que se impõe um pouco de história sobre a teoria marxista do imperialismo. Os seus desenvolvimentos e avanços, ao longo do século XX, foram sempre sendo acompanhados à distância por detratores e escarnecedores, com as suas estratégias discursivas próprias. No ano de 1979, como prenúncio da catástrofe que se seguiria (ou estava já em curso), perdemos em combate dois pensadores muito importantes e dedicados. Não há exército digno desse nome que não honre os seus mortos. Falamos já de Nicos Poulantzas na edição de março de 2024. Cabe também uma palavra para Evald Ilyenkov, que no marasmo burocrático e tecnocrático do brejnevismo tentou, em vão, revitalizar a dialética marxista e o autêntico leninismo.
Domenico Losurdo foi um filósofo muito prático e direcionado, ao serviço permanente da emancipação humana. Com a sua lucidez intransigente, deixou-nos pistas indispensáveis para um possível itinerário da luta comunista mundial. Assim sucedeu numa entrevista dada nos seus derradeiros anos, de velhice inquieta e fecunda. Sobre o pano de fundo do genocídio em curso do resistente povo palestiniano, Ivonaldo Leite faz um breve historial da questão judaica, como analisada por alguns expoentes da tradição hebraica radical. Se tivesse que haver um futuro para a civilização ocidental capitalista (que não há!) ele residiria certamente no ecogenocídio, no transumanismo e no exoplanetarismo, bem reunidos, aliás, hoje em dia, na figura paradigmática de Elon Musk. Giovanna Cracco faz a genealogia da ideia transumanista, dando voz a alguns dos seus apologistas contemporâneos. A sua conclusão é que, da curiosidade irónica, devemos passar muito rapidamente ao alarme vigilante.
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Os Editores
Ângelo Novo
Ronaldo Fonseca
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