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O marxismo ecológico e o comunismo verde de Manuel Sacristán
Victor Rios (*)
Manuel Sacristán (1925-1985) é ainda hoje a referência mais sólida da cultura marxista no nosso país. Lê-lo em 2020, trinta e cinco anos após a sua morte, continua a proporcionar uma riqueza de conhecimentos e reflexões de grande interesse, tanto para pensar melhor sobre os problemas que enfrentamos hoje, como para substanciar com fundamentos o ideal comunista de emancipação da espécie humana.
Pensando nos mais jovens, nos que não o conheceram ou não tiveram a oportunidade de aceder aos seus Panfletos y Materiales, como ele quis chamar a quatro volumes que reuniam escritos seus - Sobre Marx y marxismo, Papeles de filosofía, Intervenciones políticas e Lecturas -, aos quais dois anos após a sua morte seria acrescentado outro, Pacifismo, ecología y política alternativa, com textos de 1979 a 1985, talvez não seja supérfluo dizer que a ligação que uniu a tríplice dimensão intelectual, moral e política de Manuel Sacristán foi o seu compromisso revolucionário. Um compromisso que uniu o seu trabalho e a sua conduta, corporizado na sua militância comunista no PCE-PSUC, nas Comisiones Obreras de la Enseñanza, no Comité Antinuclear da Catalunha, bem como nas suas aulas e nas suas muitas atividades políticas e culturais.
Manuel Sacristán foi um marxista singular, que cultivou o seu próprio pensamento original dentro da tradição marxista. Durante a sua estadia na Universidade de Münster, entre 1954 e 1956, começou a ler Marx e entrou em contacto com os comunistas alemães, ao mesmo tempo que se especializou em lógica formal. A sua formação lógica e metodológica, os seus conhecimentos científico-filosóficos, o seu estudo sistemático dos clássicos gregos e latinos e da literatura alemã deram-lhe uma cultura enciclopédica que contribuiu para o rigor e densidade do seu pensamento. O seu estudo consciencioso da vida e obra de Marx, Gramsci e das correntes marxistas desde o último terço do século XIX até aos anos oitenta do século passado foi acompanhado de uma constante reelaboração do seu projeto intelectual. Além disso, Sacristán incorporou no "seu" marxismo, os frutos da sua reflexão sobre outras culturas emancipatórias, tanto históricas como as mais recentes e ligadas aos movimentos sociais ecologista, feminista e pacifista. Com isto, juntamente com a sua atenção à análise concreta dos novos problemas e desafios colocados pela realidade contemporânea, estava a moldar um marxismo singular, numa hibridização inovadora com outras ideias de libertação; um marxismo caloroso e aberto, em constante diálogo com a ciência, mas longe de reduções cientificistas ou positivistas.
O marxismo ecológico de Manuel Sacristán
Uma primeira abordagem de Sacristán à importância e gravidade da crise ecológica encontra-se em algumas das suas reflexões do início dos anos 1970. Em 1966, um biólogo socialista norte-americano que desempenhou um papel relevante na formação da consciência popular sobre a crise ambiental, Barry Commoner, tinha escrito um livro pioneiro, Science and Survival (Ciência e Sobrevivência), seguido em 1971 por outro, The Closing Circle (O Círculo que se Encerra), que despertou grande interesse em Manuel Sacristán. Em 1972, publicou-se o relatório que o Clube de Roma encomendara ao Massachusetts Institute of Technology, The Limits to Growth, no qual colaboraram dezassete cientistas, liderados por Donella e Dennis Meadows, A leitura destes textos e a atenção prestada aos problemas ambientais referidos, deram à questão ecológica um lugar de crescente relevância na sua reflexão desses tempos.
Numa conversa interessante com o marxista alemão Wolfgang Harich, Sacristán perguntou-se até que ponto esta nova problemática poderia ser assimilada por uma análise marxista convencional e considerou que existiam duas formas de responder a esta pergunta. Uma, que ele chamou de culturalmente conservadora do ponto de vista da tradição do movimento e dos partidos dos trabalhadores, consiste em recorrer ao núcleo da tradição marxista clássica, o que lhe permitiria dizer que "na tradição marxista já existem as chaves para pensar corretamente sobre o novo". A outra forma implica dizer que é necessário rever a própria tradição em função da contribuição de outras e, sobretudo, da análise da realidade atual. Afirmou que preferia esta segunda, porque lhe parecia ser uma melhor política cultural para o movimento socialista, já que era mais superadora da tendência para uma consagração dogmática ou tradicionalista que reforçava a insensibilidade à novidade da problemática, alimentando os sectarismos, simplificando os problemas e escondendo de certa forma a escassa capacidade de elaboração das novas questões nas organizações de esquerda. ("Para compreender as coisas é preciso estudá-las, e acreditar-se de esquerda não confere automaticamente compreensão àqueles que não se preocupem em estudá-las" concluiu Sacristán numa entrevista que acabou por não ser publicada, datada de março de 1983).
De facto, relendo os seus escritos, penso que se pode afirmar que Manuel Sacristán tomou em consideração e cultivou ambas as abordagens à questão, dando valiosas contribuições nos dois planos: o de desempoeirar os conceitos já existentes, embora remetidos ao esquecimento na tradição marxista, a fim de orientar bem a consideração dos novos problemas e o de rever autocriticamente aquelas formulações da sua própria tradição que dificultavam a compreensão e a resposta político-programática à relevância e urgência dos novos desafios colocados pela crise ecológica.
Assim, em oposição à leitura do marxismo dominante na Segunda Internacional e na cultura política que mais tarde prevaleceu na União Soviética, Sacristán resgata e realça as observações de Marx sobre o papel igualmente destrutivo, sobre a natureza, do desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo. Na obra de Marx, especialmente a partir dos manuscritos de 1857-1858, há considerações bastante completas sobre a influência da ciência da natureza na mudança social moderna. No primeiro e terceiro livros de O Capital, Marx estuda e expõe os efeitos opressores e destrutivos do progresso técnico não só sobre a classe trabalhadora mas também sobre a natureza. Ao analisar a perda de nutrientes das terras agrícolas, fala da irracionalidade metabólica da existência de grandes cidades que importam muitos alimentos do campo, mas não devolvem os nutrientes ao solo, antes os evacuam para os rios, contaminando-os. Para Marx e Engels isto punha em causa tanto a viabilidade económica a longo prazo da agricultura capitalista como a viabilidade ecológica das grandes cidades. Eles tinham uma perceção muito clara de uma característica essencial do capitalismo: a rotura da circularidade das trocas entre os seres humanos e o ambiente natural, uma condição básica para a continuidade da vida humana na Terra. E também uma convicção: que esta fratura metabólica só poderia ser superada transcendendo o capitalismo, numa sociedade socialista. No seu texto Que Marx será lido no século XXI?, Sacristán sublinha que, tendo em conta o grau incipiente em que se encontrava então a tecnociência, na obra de Marx encontram-se, apesar de tudo, páginas de condenação profética do progresso capitalista.
Por outro lado, Sacristán levanta a necessidade de rever a própria tradição. Relativamente à questão da revolução e do progresso, também encontramos em Marx expressões confiantemente progressistas muito em consonância com o otimismo iluminado do século XVIII, que enfatizam o carácter benéfico do desenvolvimento expansivo e sem entraves das forças produtivas. No Outono de 1983, Manuel Sacristán encerrou uma interessante conferência em L'Hospitalet de Llobregat, Alguns vislumbres político-ecológicos de Marx, com estas palavras: "certamente que isto não explica tudo, mas é muito provável que na raiz do escasso eco que o vislumbre da ecologia política, presente na obra de Marx, teve na tradição marxista, esteja o elemento hegeliano da sua filosofia. Qualquer continuação útil da tradição de Marx tem de começar por abandonar o esquema dialético hegeliano da filosofia da história. O próprio Marx parece ter percebido isto, mais ou menos claramente, desde meados da década de 1870. Em 1877, por exemplo, escreveu uma carta, agora famosa, a um jornal russo, afirmando que o seu pensamento já não deveria ser entendido como uma filosofia da história. A mesma necessidade foi-lhe imposta em vários contextos diferentes. Cada um deles precisa do seu próprio estudo".
Esta forma de abordar a questão da crise ecológica, resgatando e ao mesmo tempo revendo de forma autocrítica a própria tradição de pensamento em que se insere, atendendo simultaneamente à análise dos problemas novos, abordando-os tanto no plano do conhecimento científico como no da sua dimensão ético-política, foram moldando aquilo a que podemos chamar o marxismo ecológico de Manuel Sacristán.
O comunismo verde de Manuel Sacristán
A identidade comunista de Manuel Sacristán sempre teve características muito claras: as de um comunismo crítico e autocrítico defensor, à maneira de Gramsci, de fazer da política comunista uma ética do coletivo. Para este projeto, eram – e são – imprescindíveis ingredientes como a coerência entre palavras e ações, convicções sólidas, a defesa da veracidade como qualidade revolucionária, e a capacidade de fundir a identidade comunista com a identidade ético-política emancipatória dos movimentos sociais transformadores dos nossos dias, sendo-se comunista "dentro" e "com" tais movimentos. Todos estes elementos estavam presentes em Sacristán e numa medida invulgar.
No seu prólogo ao livro de Wolfgang Harich Comunismo sem Crescimento?, Manuel Sacristán afirma-o rotundamente: "está fora de dúvidas que todo o comunista que vê no problema ecológico o dado básico da questão da revolução hoje em dia se vê forçado a rever a noção de comunismo”. Na verdade, a substituição da perspetiva de um comunismo de abundância por um comunismo sem crescimento, homeostático, em equilíbrio dinâmico, significou uma retificação de grande transcendência. Em Harich, esta retificação foi acompanhada pela obrigação de dispensar o elemento libertário, enfatizando a componente igualitária e aceitando a necessidade de um exercício autoritário do poder político. Pelo seu lado, Sacristán propôs a conveniência de ligar a perspetiva igualitária de um comunismo de escassez com a defesa de uma proposta de democracia radical direta articulada, dando peso às pequenas comunidades e à democracia dos produtores, no que poderia supor-se uma versão atualizada de um comunismo libertário, para além de igualitário.
Sacristán salientou que "o socialismo caminha para o desastre se não assimilar a motivação ecológico-revolucionária"; e considerou a luta contra a devastação ecológica como a condição de possibilidade da proposta de uma alternativa civilizatória socialista realizável. Contra uma esquerda que continuou a conceber a luta social como não afetada pelos problemas civilizatórios a que a ecologia responde, afirmou que "o futuro da espécie humana - que é a principal questão de qualquer pensamento revolucionário - depende fundamentalmente de como se resolvem estes problemas recentemente colocados". Além disso, considerou que "uma prática ecológica colide imediatamente com o atual modo de produção. A união destes dois aspetos deveria resolver facilmente a questão, mostrando aos grupos revolucionários que têm de ser ambientalistas, e aos ambientalistas que têm de ser socialmente revolucionários”.
De acordo com Sacristán, tudo isto teve uma outra implicação importante. Numa conferência de 1980 intitulada Por que faltam economistas no movimento ecologista? explicou que "o movimento ambiental tem de colocar o problema do poder... não para subestimar o tipo de atividade que o caracteriza hoje em dia, atividade sociocultural básica, uma vez que esta atividade está na raiz de tudo, inclusive da questão do poder [...]. Mas sabendo que a partir desse plano social básico que Gramsci chamava 'molecular', está a ser dirimida a questão do poder".
Nesta reformulação do ideário comunista - que também incluiu as contribuições do feminismo e do pacifismo - a favor de um comunismo radicalmente ecológico, um comunismo verde, as contribuições de Manuel Sacristán, naqueles anos, contra a maré e como minoria dentro da cultura tradicional marxista, foram tão marcantes como antecipatórias. O seu conhecimento hoje pode contribuir para fornecer mais e melhores razões de compromisso, resistência e esperança àqueles que trabalham para sair desta noite escura da crise de uma civilização que não acaba de morrer em direção a uma humanidade mais justa e livre numa Terra habitável.
(*) Víctor Ríos é um historiador catalão, pesquisador do Centro de Estudos sobre Movimentos Sociais da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Durante a ditadura de Franco pertenceu à Juventude Comunista e ao Partido Socialista Unificado da Catalunha (PSUC). Foi discípulo de Manuel Sacristán e Paco Fernández Buey, com quem fez parte da redação da revista mientras tanto. Fez parte da equipe de trabalho de Julio Anguita na Izquierda Unida, de 1994 a 2000. Participou da Frente Cívica “Somos Maioria” e de vários grupos antinucleares, pacifistas e de solidariedade com a América Latina. Este texto foi originalmente publicado em catalão no bloc de la Realitat e reproduzido em castelhano por El Viejo Topo. A tradução é de Ângelo Novo.
Bibliografia citada ou consultada
1. De Manuel Sacristán:
“¿Por qué faltan economistas en el movimiento ecologista?” Conferência organizada pelo C.A.N.C. na Faculdade de Económicas da Universidade de Barcelona, publicada em BIEN (Boletín de Información sobre Energía Nuclear editado pelo CANC) e reproduzida em Pacifismo, ecología y política alternativa, Editorial Icaria, 1987, págs. 123-129.
“¿Qué Marx se leerá en el siglo XXI?” Texto escrito em fevereiro de 1983, publicado em mientras tanto n.º 16-17, outubro de 1983, págs. 127-132 e reproduzido em Pacifismo, ecología y política alternativa, Editorial Icaria, 1987, págs. 123-129.
“Algunos atisbos político-ecológicos de Marx”. Conferência dada em L’Hospitalet de Llobregat, no outono de 1983, publicada em mientras tanto n.º 21, dezembro de 1984, págs. 39-49 e reproduzida em Pacifismo, ecología y política alternativa, Ed. Icaria, 1987, págs. 139-150.
Comunicação às Jornadas de Ecología y Política em Múrcia, 4-5-6 de maio de 1979. Publicado em mientras tanto n.º 1, novembro-dezembro de 1979, págs. 19-24 e reproduzido em Pacifismo, ecología y política alternativa, Ed. Icaria, 1987, págs. 9-17. “El trabajo científico de Marx y su noción de ciência”. Publicado em mientras tanto n.º 2, janeiro-fevereiro de 1980, págs. 61-96. Incluído em Sobre Marx y marxismo, Panfletos y Materiales I, págs.317-367, Ed. Icaria, 1983.
Entrevista com a revista mexicana Naturaleza, março de 1983. Incluída em Pacifismo, ecología y política alternativa, Ed. Icaria, 1987, págs. 130-138.
Karl Marx. Artigo da Enciclopedia Universitas, Ed. Salvat, 1974. Incluído em Sobre Marx y marxismo, Panfletos y Materiales I, págs.277-308, Ed. Icaria, 1983. Reproduzido também por Esquerra Unida i Alternativa em 2018, em edição comemorativa do 200.º aniversário de Marx.
Prólogo à edição castelhana do livro de Wolfgang Harich ¿Comunismo sin crecimiento? Babeuf y el Club de Roma, Editorial Materiales, 1978, págs. 9-28. Reproduzido também no n.º 12 da revista Materiales, novembro-dezembro de 1978, págs. 115-129.
“Tradición marxista y nuevos problemas”, conferência pronunciada a 3 de novembro de 1983. Recolhida, incluindo o esquema prévio e o colóquio, em Seis conferencias. Sobre la tradición marxista y los nuevos problemas, págs. 115-155. Ed. El Viejo Topo, 2005. Também em Manuel Sacristán-Francisco Fernández Buey. Barbarie y resistencias. Sobre movimientos sociales críticos y alternativos. págs. 133-180. Ed. El Viejo Topo 2019.
“Sobre los problemas presentemente percibidos en la relación entre la sociedad y la naturaleza y sus consecuencias en la filosofía de las ciencias sociales. Un esquema de discusión”. Comunicação apresentada ao Congresso Mexicano de Filosofia, 1981, incluída em Papeles de Filosofía, Panfletos y Materiales II, págs. 453-467, Ed. Icaria, 1984.
“Una conversación con Wolfgang Harich y Manuel Sacristán”, maio de 1979. Publicada no n.º 8 de la revista mientras tanto, 1981, págs. 33-52. Também incluída em López Arnal, Salvador; De La Fuente, Pere (eds.). Acerca de Manuel Sacristán, Barcelona, Destino, 1996, págs. 131-152.
2. Sobre Manuel Sacristán:
Capella, Juan Ramón. La práctica de Manuel Sacristán. Una biografía política. Ed. Trotta, 2005.
Fernández Buey, Francisco. Sobre Manuel Sacristán, Ed. El Viejo Topo, 2015.
Ríos, Víctor. El compromiso de Manuel Sacristán, en El legado de un maestro. Homenaje a Manuel Sacristán. Fundación de Investigaciones Marxistas, 2007.
3. Otros textos citados:
Commoner, Barry. Ciencia y supervivencia, 1966. Edición castellana de Plaza & Janés, 1970.
Commoner, Barry. El círculo que se cierra, 1971. Edición castellana de Plaza & Janés, 1978.
Meadows, Donella y Dennis. Los límites del crecimiento. Informe al Club de Roma sobre el Predicamento de la Humanidad. Primeira edição em inglês e castelhano, 1972. Fondo de Cultura Económica. |
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