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O desafio de uma economia democrática
José Brendan Macdonald (*)
A chamada democracia implantada nos séculos XVIII e XIX e referida como tal ainda hoje pára na porta da empresa. Desde os primórdios da formação social capitalista ela é questionada pelos trabalhadores que conquistaram o sufrágio universal mas que ainda precisam construir empresas que ultrapassem a dicotomia capital/trabalho. Em muitos casos o ideal da autogestão dos trabalhadores se traduz em prática mas em muitos outros, em razão da onipresença da cultura burguesa, ele é seriamente comprometido. Para que a autogestão prospere é preciso enfrentar as forças do mercado e do Estado. Embora seja impossível prever o desfecho dessa luta, a presença de empresas autogestionárias e a divulgação de sua necessidade e de suas vantagens é um forte indício a favor de um novo projeto civilizatório.
O liberalismo bissecular vigente
As principais idéias ainda vigentes sobre democracia e economia primeiro chegaram à tona no século XVIII, ainda referido por muitos como o século das luzes. Os économistes ou fisiocratas na França elaboraram o que hoje é tido por muitos como o início de uma ciência da economia. Divulgaram a doutrina do laissez faire ou Estado mínimo na economia já que o mercado, esse conjunto dos vaivéns das trocas de mercadorias, teria suas leis próprias que dispensariam a intromissão dos governos na economia. Os chamados economistas clássicos britânicos – Smith, Malthus, Ricardo e outros – também defenderam o mercado livre. Daí a expressão liberalismo aplicada a tal pensamento econômico. Mas não só econômico. Costuma-se falar em liberalismo político também. Diz-se que todos são iguais perante a lei, todos têm o direito de liberdade de culto, de assembléia, de reivindicar direitos perante as autoridades constituídas, etc. É no século XVIII que os enciclopedistas nos seus salões parisienses exaltam suas idéias sobre a liberdade. Carlyle os chama anglomaníacos, influenciados que eram pelas instituições britânicas, mais livres que as da França então. Toda essa democracia política nascente cria um impacto poderoso que dura até hoje. A grande maioria dos estados nacionais hoje têm constituições que exaltam esses valores liberais. O Estado de Direito, idéia lançada primeiro no século XIX , penetra em grau maior ou menor todos os continentes hoje.
Quando os enciclopedistas defendiam a tese de todos serem iguais perante a lei, de todos exercerem estes e aqueles direitos, o todos que tinham em mente incluía unicamente a classe proprietária – a nobreza e a ascendente classe dos remediados e ricos das cidades. Só a eles, a esses talvez um ou dois por cento da população, é que era reservado o direito de participar da vida política como eleitores e elegíveis. Era o chamado voto censitário, herança do burgo medieval e moderno. Só eles eram os letrados, os capazes de governar. À massa ignara a política era vedada.
Foi na década de 1840 na Inglaterra que a burguesia primeiro cedeu o direito de sufrágio universal à massa da população (isto é, aos não proprietários do sexo masculino). Assim caiu o voto censitário. Isso graças a uma dolorosa pressão popular. Como mostra Karl Polanyi, a burguesia britânica fez essa concessão só depois de se convencer que a nova situação não lhe tiraria os privilégios. Esta experiência histórica se fez moda mundo afora nas décadas seguintes.
O discurso do liberalismo – político e econômico - supõe uma igualdade de direitos que não existe. Por um lado se fala na igualdade de todos – igualdade entre capitalista e trabalhador quando os dois assinam um contrato de trabalho, igualdade no direito à voz que teriam tanto o pobre como o rico, inviolabilidade da propriedade tanto do pobre como do rico e assim por diante. No papel um país capitalista é uma república de pessoas livres e iguais. Daí se entende que o mercado é livre para todos também, que a concorrência entre capitalistas parte do direito de todos a concorrer. Chegou-se até a criar a já secular teoria da concorrência perfeita: nenhum agente econômico – seja do lado da demanda, seja do da oferta – tem sozinho poder ou influência suficiente para ditar preços a seu bel prazer. Há quem defenda esta teoria para os casos que desconhecem a presença de monopólios, oligopólios, monopsônios ou oligopsônios. Quem ganha na luta da concorrência é exaltado no pensamento da elite econômica e dos formadores de opinião como herói nacional a ser emulado. Quem perde é dito menos genial, pouco dado à disciplina e à criatividade.
Por um lado há o discurso do saber econômico que se diz de cunho científico: a concorrência é livre, o comércio há de ser livre, as decisões de capitalistas e trabalhadores são livres. E, embora não como tese publicamente defendida, ainda há empresários que até vêem qualquer legislação sobre salário mínimo um cerceamento a sua liberdade.
Livre também seria o ambiente político: livre é o direito à informação embora uma parte enorme desta seja manipulada pelas elites através da grande mídia e outros meios, livre é a escolha dos representantes do povo embora eles não tenham que prometer, e muito menos realizar, soluções que levem em conta as necessidades de todos os cidadãos. Livre é a imprensa embora os donos de seus órgãos disseminem notícias com táticas goebbelsianas.
Surge o ideal igualitário e solidário
Não se negue que a democracia burguesa – que se autodenomina liberal – tem elementos emancipatórios em potencial. Sem dúvida, o direito à liberdade de consciência em questões religiosas e outras, eleições periódicas, direito à voz e à responsável liberdade de expressão e outros direitos do ideário liberal dos séculos XVIII e XIX não hão de ser desprezados em si. Mas dificilmente funcionam plenamente já que uma suposta liberdade e igualdade políticas em último caso são refém da desigualdade econômica que hoje chega a proporções de uma assimetria abissal. Ao expressar o que ela tem de potencialmente melhor, a democracia liberal burguesa se apega a formalismos. Como observou aguda e ironicamente um crítico há cerca de um século: “É proibido tanto ao banqueiro como ao mendigo dormir debaixo da ponte.”
Há dois séculos nasce, primeiro na Inglaterra, logo em seguida em outros países, surge a classe operária – os assalariados (e desempregados que amiúde são assalariados em potencial) em larga escala – como contrapartida à ascendente burguesia. Foi ela, como já dissemos, que quebrou o voto censitário. Já que o discurso burguês fala em liberdade e igualdade como se fossem universais ou absolutas, as melhores lideranças operárias se aproveitam de muito daquilo que o liberalismo político promete. E conseguem que não raro por motivos vários a elite burguesa lhes faça concessões. Desenvolvem várias formas de defesa de sua classe: sociedades beneficentes, sindicatos trabalhistas, cooperativas. Estas últimas vêm a aquilo que nos interessa aqui. Pois a cooperativa em princípio, ao contrário da empresa capitalista (e da empresa estatal também) é uma empresa democrática ou, pelo menos em princípio, pretende ser.
A cooperativa foi uma invenção de pessoas comuns, da classe operária portanto. Costuma-se referir a um grupo de 28 alfaiates, os chamados Pioneiros de Rochdale, Inglaterra em 1844 como o início do movimento cooperativista. De fato o movimento ganha novo fôlego com isso. Mas Birchall (1997:4) nos lembra que há noticias já da década de 1760 sobre portuários ingleses que começaram a se dedicar à panificação para não mais se sujeitar ao preço alto e má qualidade do pão nos seus locais. Esse desdobramento e outros no restante do século XVIII e mais ainda no século seguinte na Inglaterra refletiram as primeiras tentativas dos trabalhadores de organizar sua própria produção e consumo. Assim, surgem as primeiras cooperativas na Inglaterra e na primeira metade do século XIX na França também. Pode-se falar num movimento cooperativista nesses dois países e logo em seguida em não poucos outros, movimento esse às vezes apoiado no século XIX por filantrópicos aristocratas e burgueses que compreendiam e se compadeciam das necessidades da maioria da população.
Hoje há numerosas cooperativas com variados graus de êxito em todos os continentes. Já ao longo do século XIX se tornaram presentes mundo afora. Toda cooperativa por definição é uma empresa. Mas em princípio sua vocação não é a da empresa capitalista. Nesta o lucro, estimulado por uma interminável concorrência, é um fim em si. Na realidade é o único fim da empresa capitalista (1). Na cooperativa o lucro há de ser visto como um meio: um meio para melhorar a qualidade de trabalho e vida dos sócios da cooperativa e de ser um dos fatores da melhoria da qualidade de vida dos consumidores, sejam estes sócios ou não.
Há vários tipos de cooperativa: cooperativas de produção, de consumo, de crédito e outros, cooperativas participantes da indústria, da agricultura, da mineração, da energia elétrica, dos serviços, etc..
Foi na década de 1840 na Grã Bretanha que trabalhadores organizados primeiro formularam os valores ou princípios cooperativistas. E em fins do século XIX foi fundada a Aliança Cooperativa Internacional. Os princípios cooperativistas primeiro formulados na Grã Bretanha passaram por alguma evolução ao longo de um século e meio. No congresso que celebrou o centenário da ACI em 1995 eles foram formulados como se segue em sete: 1) associação voluntária (espontânea) e aberta; 2) controle através de um processo democrático, inclusive com a prática de só um voto para cada sócio; 3) participação econômica de todos; 4) autonomia e independência inclusive em questões econômico-financeiras para que a cooperativa não fique refém de bancos ou outras entidades externas; 5) constante educação, capacitação ou formação de seus sócios; 6) cooperação entre cooperativas e 7) dedicação a questões do entorno ou comunidade em que se localiza a cooperativa. (Birchall, 1997:65) (2).
Hoje as várias formas de organização econômica alternativas ao capitalismo expressam valores ou princípios semelhantes. O segundo princípio cooperativista equivale ao da autogestão, o qual é cultivado pela economia solidária, pela parecon ou economia participativa e pelos seguidores de P. R. Sarkar, isto é, o movimento prout. (Todas estas três formas de pensamento e ação são apresentadas em vários capítulos deste livro). Também todas estas três formas de pensar e agir valorizam a maior solidariedade possível, o que é um aspecto que permeia todo o discurso da ACI além do seu sétimo princípio em particular. Graças ao perigoso esgotamento do meio ambiente e dos recursos da Terra, o cooperativismo e os três movimentos citados enfatizam a importância de respeitar a Natureza, de não agredi-la. Além do mais a cooperativa é a forma jurídica atual mais presente no mundo que se afina com os anseios que historicamente motivaram a formulação de ideários e atuações alternativos ao capitalismo.
A origem de muitos dos valores como esses nos remetem a atitudes antiqüíssimas que são opostas ao mamonismo (3). O camponês, essa milenar figura humana que tem tido que resistir à agressividade de aristocratas e depois burgueses, vê a terra e os bens materiais acima de tudo como meios de reproduzir ou fazer continuar a vida. Para ele a terra e suas riquezas deveriam pertencer a quem deles tira seu sustento, o que, como se sabe, não costuma ocorrer nas sociedades onde ele está presente. Pois o camponês é aquele que numa sociedade de classes explora a terra justamente para isso, sua sobrevivência, além de ter que ceder uma parte do produto de seu trabalho a um proprietário que colhe onde não semeou. Como mecanismo de defesa o camponês europeu medieval teve acesso às terras comunais, não raro de qualidade inferior às terras privadas de seu senhor, as quais pertenciam à comunidade camponesa local como um todo.
Até os dias de hoje, onde ainda restam camponeses e povos originários, essas pessoas simples têm uma visão de mundo ou uma ética social bem diferente da ética que é a força mobilizadora do capitalismo. Ao invés do ideal do “cada um por si” prevalece o ideal do “um por todos e todos por um.” Essa pessoa simples vê no outro a sua própria imagem e a imagem de Deus ou dos deuses ao passo que o burguês exalta o individualismo como a garantia do progresso.
Assim, valores como autogestão, solidariedade, a visão do lucro como meio e não como fim e outros incorporados pelo movimento cooperativista, pelos três movimentos citados acima e ainda outras alternativas aos ideais e práticas capitalistas, que vêm aflorando a partir da defesa dos interesses populares no século XIX têm, embora não de forma elaborada, raízes milenares.
Há mais de dois séculos a burguesia exalta a democracia e a liberdade. Mas a democracia e a liberdade liberais se referem por excelência à própria burguesia e não necessariamente a outros setores da população. Por formalismo, em razão de pressões históricas, elas podem se estender a quase toda a população adulta. O atendimento ou não disso é uma questão de uma correlação de forças. Há conquistas e há retrocessos para a realização do bem comum.
Nosso próprio conceito de liberdade não está no plano do liberalismo. Para nós “[o] homem é livre quando não cede a pressões que o impeçam de desenvolver plenamente suas capacidades e de atender plenamente suas necessidades.” (Macdonald, 1987:5) A possibilidade de conseguir isso é reservada à elite ou classe dominante. Então temos o que poderíamos chamar de liberdade individualista, aquela que não é para todos. Também podemos pensar numa liberdade universalista, onde todos gozam de liberdade pois não há segmentos que impeçam que ela aflore. Mas ela realmente existe? Hoje ela não existe. Tal sociedade só se viu quando não havia classes sociais, ou seja, na Idade da Pedra. Não é impossível que ela volte a existir numa futura sociedade sem classes. Ela terá que ser inventada, pois evidentemente não estamos recomendando uma volta à Idade da Pedra.
Na sociedade liberal a democracia pára na porta da empresa. O liberal insiste em que o direito de tomar decisões e dar ordens numa empresa compete unicamente ao dono da mesma. E armará todo um discurso para justificar isso. Falar em empresa democrática para ele é uma contradição de termos, é como falar na gravidez de um macho.
Então o trabalhador assalariado não pode se sentir livre como tal. Ele corre o risco de perder seu emprego. A determinação de suas condições de trabalho não depende dele. Centenas de milhões ou até bilhões de pessoas mundo afora têm que se submeter a um trabalho monótono e enfadonho. Sorte semelhante sujeita também legiões de trabalhadores terceirizados e precarizados. E mesmo no caso de assalariados qualificados cujo trabalho pode ser mais estimulante e edificante a obrigação de seguir ordens lhes lembra o quanto não são livres enquanto trabalhadores.
Historicamente as cooperativas começaram quando o modo de produção capitalista começava a se tornar hegemônico, ou seja, quando, provocada pela Primeira Revolução Industrial e o emprego irreversível da máquina a vapor em escala crescente a partir da década de 1800 na Inglaterra primeiro, surge a tendência de universalizar a contratação de mão-de-obra assalariada por interesses particulares. Como já dissemos, elas foram uma das formas de defesa da nova classe operária. Numa linguagem popular podemos dizer que a cooperativa é em principio uma empresa sem patrão e portanto é uma empresa democrática, onde o lucro é tido como meio e não fim em si. Mas tanto nos seus primórdios como nos dias que correm, a cooperativa está imersa em um vigoroso mar capitalista. A concorrência dificilmente oferece trégua. Há uma formidável concentração e centralização de capital que pode ter efeitos perversos sobre as cooperativas.
A luta das ideologias (4)
As cooperativas não podem deixar de sentir os ventos do capitalismo. Além do mais, não estão totalmente alheias à ideologia burguesa. Entre o ideal da empresa democrática e solidária e a sedução burguesa do lucro apregoado como garantia de um progresso grandioso a distância pode não ser grande. Mámon é capaz de corromper até aqueles que começaram dizendo não lhe prestar culto.
Assim, essas duas influências – a concorrência capitalista e a sedução burguesa – não raro mostram sua cara.
A concorrência é ditada por um mercado impessoal que exige um alerta constante a todo empresário para tomar medidas que visem a minimização dos custos e a maximização dos lucros. Ela pode exigir o afastamento de trabalhadores, a intensificação do trabalho mesmo quando isso prejudica a saúde do trabalhador, a propaganda enganosa, o aumento da burocratização, etc.. Uma autogestão que recorra a assembléias verticalmente dirigidas por sócios tecnocratas para encenar um ritual tido como democrático pode tomar conta de muitas cooperativas. Assim uma cooperativa pode enfrentar a concorrência capitalista com mais eficácia.
Eis um exemplo deste fenômeno: o caso de muitas cooperativas de crédito nos países ditos desenvolvidos:
“[O] [cooperativismo] de crédito enfrenta nos países desenvolvidos a concorrência de intermediários financeiros privados e públicos, de grande dimensão e de capacidade de desenvolver e aplicar tecnologias avançadas de informática. Para enfrentar tal concorrência, o movimento de cooperativismo de crédito tende a se centralizar e burocratizar, buscando ganhos de escala e atendimento em massa, com o que abre mão da autogestão e caráter comunitário da cooperativa de crédito. Mesmo atendendo as formalidades do cooperativismo, o funcionamento concreto passa a se assemelhar cada vez mais ao dos intermediários convencionais.” (Singer, 2002, 73).
Também não é de estranhar certo grau de sedução pela hegemônica ideologia liberal burguesa sobre muitas cooperativas. Esta ideologia está onipresente hoje e começa a invadir a pessoa mesmo antes de ela aprender a caminhar. Muitos sócios de cooperativas não têm um grau de consciência solidária e democrática adequada. Podem encarar seu trabalho como um emprego, como a ocupação de uma vaga onde ganham uma renda como ganhariam em uma empresa capitalista. Não raro o interesse em participar está amortecido. E dois grupos podem através de um sistema de rodízio conseguir ser eleitos e reeleitos ao longo dos anos.
Assim, muitas cooperativas, comprometendo boa parte de seus valores, se mantêm vivas ao resistirem a concorrência e deixam enfraquecer seu feitio ideológico que historicamente provocou o início do cooperativismo.
Dissemos uma vez que o empresário capitalista é prisioneiro da concorrência (Macdonald, 1995, 26). Mas o empresário cooperativo também tem que levar em conta a existência da concorrência. Há cooperativas com alto grau de consciência democrática e solidária. A Mondragón Corporación Cooperativa (MCC) da Espanha é talvez o exemplo mais ilustre disso. Durante o alastramento dramático do desemprego na Espanha nos anos 1980 a MCC conseguiu heroicamente manter seus sócios nos seus postos. Mas por motivos de concorrência a partir de outro momento ela teve que se estabelecer abrindo fábricas em outros países também, onde, em razão de condições locais diversas em matéria de legislação, ela não pôde fazer jus cabalmente a certos princípios cooperativistas (Azevedo e Gitahy: 2010).
Não raro são fundadas cooperativas por pessoas que assim fazem por motivos de conveniência alheios ao espírito cooperativista. Assim, temos notícias, por exemplo, de um grupo de pecuaristas no Brasil que fundaram a sua porque pela legislação do país as cooperativas não pagam imposto de renda. Também no Brasil há uma grande e próspera rede de cooperativas de saúde que investe também em seguros de automóveis. Assim evidentemente na ordem real o lucro já não é um meio mas sim um fim como no capitalismo.
A legislação cooperativista mundo afora permite que uma cooperativa empregue também mão-de-obra assalariada. A correlação de forças no mercado hoje ainda não permite a eliminação disso. Uma cooperativa pode ser obrigada a contratar certos técnicos como empregados com salários ditados pelo mercado de trabalho capitalista, assim ferindo um pouco a escala de salários idealizada pelos sócios, naturalmente com o consentimento destes (5). Em cada época histórica aqueles que desejam mudanças institucionais só podem consegui-las na medida em que a reação a elas perde força.
O desafio da democratização da economia é uma proposta revolucionária. E como todo ser humano, conscientemente ou não, abriga notórias inclinações para o comodismo, ergue-se a força de um conservadorismo que ao longo dos milênios pesa sobre o espírito humano. Não deve nos surpreender portanto que aparecem dificuldades que fazem demorar qualquer marcha rumo a esta utopia de liberdade universalista, igualdade e solidariedade. Quanto a este último componente ideológico, o exacerbado culto burguês ao individualismo em nome de um suposto progresso ainda permeia a cabeça do mais de um bilhão de cidadãos das chamadas classes médias e solapa em não pequena medida a auto-estima da maioria dos cinco bilhões de pobres do mundo. Seja por comodismo, falta de auto-estima ou medo (ou um misto de duas ou todas as três destas forças da nossa psique) a pessoa comum – isto é, os homens e mulheres das chamadas classes médias e pobres, enfim a quase totalidade da população do planeta – terá que construir seu meio de vida coletivo nestas bases pretensamente revolucionárias com muita garra e espírito de luta.
Valerá ponderarmos alguns aspectos da implementação de mudanças necessárias para a democratização da economia. Vamos referir-nos ao que percebemos como desafios para a consecução das mudanças desejadas, primeiro ao que chamaremos de desafios de origem endógena e em seguida aos desafios de origem exógena.
Já falamos um pouco sobre o espírito comodista abrigado na nossa psique. Acrescentemos que nos trabalhos de órgãos governamentais e não governamentais dedicados a assessoria para a geração de renda com práticas autogestionárias se constata freqüentemente entre os pobres um certo imediatismo na tarefa de conquistar nichos de mercado já que a preocupação com a sobrevivência é premente, o que pode levar muitas pessoas a prestar menos atenção aos valores da democracia e solidariedade e mais ao simples ganho de uma renda. A necessidade desta é urgente, pois se trata de ganhar renda ou passar privações de necessidades básicas.
Outro desafio – para a construção de novas formas de produção coletiva - são os novos conhecimentos que precisam ser assimilados pelos trabalhadores envolvidos em tal construção. Além do aproveitamento e reelaboração de valores ancestrais desejáveis para os dias de hoje, existe por outro lado a necessidade de assimilar e desenvolver novos conhecimentos sobre tecnologias e sobre a organização da produção. Há seis mil anos o homem comum tem que trabalhar subordinado a ordens que vêm de fora, ou, para sermos exatos, de cima. Em qualquer sociedade dividida entre classe dominante e a massa de dominados (escravos, servos da gleba, assalariados do capital ou do Estado, etc.) o homem e a mulher comuns têm que trabalhar seguindo ordens. Mas numa empresa autogestionária surge o desafio à pessoa comum de administrar seus próprios negócios. Isso destoa do modo de produção hegemônico hoje que é o capitalismo. A pessoa comum tem novidades a aprender: lidar com esse fenômeno impessoal chamado mercado que exige uma capacidade afinada de acompanhar os seus rumos; organizar-se com seus pares como trabalhador inclusive não raro em escala maior, isto é, com o envolvimento de maior número de trabalhadores do que no passado (6); planejar periodicamente a produção e fazer as pertinentes avaliações do plano findo o prazo. Tem que dominar novas artes como noções de contabilidade, finanças, leiaute arquitetônico e de engenharia e, acima de tudo, o planejamento participativo e a participação em assembléias. Desde a imposição da construção das pirâmides no Egito o seguimento de ordens ao invés da tomada de iniciativas e planejamento coletivo em matéria de produção é o que é exigido da pessoa comum. O desafio novo (em termos de tempo histórico) agora é a autoadministração, isto é, a autogestão da economia pela pessoa comum, enfim seu protagonismo. Não é de estranhar que ainda ocorrem tropeços em tais tentativas como a história pretérita e atual do cooperativismo nos ensina. Todo começo é difícil.
Nesta labuta da produção e comercialização por grupos econômicos solidários valerá ponderar o enfrentamento dela pelas camadas médias e inferiores da população. As primeiras têm a vantagem comparativa de ter maior acesso às novas artes indicadas no parágrafo anterior já que sua situação de renda mais afortunada lhes proporcionou um maior domínio delas garantido por uma educação formal maior e daí maior domínio dos conhecimentos gerais que a cultura propicia. Também elas têm em geral um grau de auto-estima maior que as camadas mais pobres e se sentem mais confiantes ao pleitearem crédito junto a bancos, interagirem com a burocracia de agências governamentais e não governamentais com as quais têm que lidar. Mesmo assim, o trabalho nosso e o de outros junto às chamadas classes carentes revelam casos bem sucedidos entre empresas autogestionárias pequenas conseguidos com muita persistência.
Pode existir uma autogestão formal mas onde há um governo informal dos tecnocratas. Há vários registros disto em estudos de caso em alguns países. Quem colocou a questão em termos genéricos há mais de três décadas foi Harry Braverman (1974: 445) quando disse:
“O conceito de uma democracia na oficina baseada simplesmente na imposição de uma estrutura formal de parlamentarismo – eleição de diretores, votação sobre decisões referentes à produção, etc. – de acordo com a organização existente é decepcionante. Sem o retorno do necessário conhecimento técnico para a massa dos trabalhadores e a reformulação da organização do trabalho – sem, em uma palavra, um novo e verdadeiramente coletivo modo de produção – eleições dentro das fábricas e dos escritórios não alteram o fato de que os trabalhadores continuam tão dependentes quanto antes dos ‘peritos’ e só podem escolher entre eles ou votar em alternativas apresentadas por eles.”
Embora ainda se encontrem estudos empíricos confirmando isso na década de 2000, somos um tanto mais otimistas hoje, três a quatro décadas depois do livro clássico de Braverman, já que em várias empresas autogestionárias muitos trabalhadores têm ganho mais experiência e melhor convivência com seus colaboradores tecnocratas. Em muitas fábricas autogestionárias – notoriamente na MCC na Espanha mas também no Brasil, na Venezuela e outros países – muitos dos trabalhadores diretos estão fazendo cursos superiores em outros expedientes e isto com a aprovação e encorajamento de suas empresas que percebem o valor disso tanto para o desenvolvimento pessoal do trabalhador como para o desenvolvimento coletivo da empresa.
Em síntese, há casos onde a tecnocracia – numa fábrica de porte médio, por exemplo - , não obstante a formal aprovação de uma assembléia, consegue ela própria determinar importantes decisões a serem tomadas; todavia há também registros de uma democracia real e não apenas formal em empresas autogestionárias. Qualquer contradição que ainda persiste será eliminada só quando o domínio de toda a tecnologia necessária for compartilhado por todos, quando enfim a dicotomia trabalho intelectual/trabalho braçal for eliminada.
Quanto aos desafios de origem exógena ou externa para a empresa autogestionária, eles se encontram basicamente em duas áreas: o quase onipresente mercado capitalista e o Estado liberal burguês.
Quanto ao mercado, ele é pelo menos tão antigo quanto as primeiras sociedades de classes. O mercado mundial, isto é, a presença de um comércio intercontinental e acumulação de capital ininterruptos, remonta ao século XV com as incursões dos portugueses ao longo de toda a costa ocidental da África, assim iniciando a expansão marítima da Europa. E hoje com a acumulação flexível, sua presença é globalitária para usarmos um neologismo feliz para retratar um panorama não propriamente feliz.
Como deve – como pode – a empresa autogestionária reagir ao ingente fenômeno que é o mercado de tal maneira que ela consiga não só se manter mas também consiga que surjam outras empresas democráticas? A resposta é difícil.
Comecemos com algumas evidências de êxito de tentativas em prol de tais objetivos.
Já há meio século se iniciou um movimento internacional chamado comércio justo. Ele é caracterizado pelo encorajamento da compra em países do Norte rico, onde ele começou, de alguns gêneros alimentícios e artesanatos de pequenos produtores de países do Sul pobre (América Latina, África e Ásia). Em 1964 foi lançado o lema trade, not aid (comércio e não assistência), assim deixando bem clara a intenção progressista e anti-paternalista do movimento. Só na Europa há milhares de lojas de comércio justo. Existe também a Fair Trade Labeling Organisations International, que, como diz no início de seu saite, é composta de “24 organizações trabalhando para garantir negócios melhores para os produtores. Somos donos da Marca Comércio Justo – o rótulo para produtos que dá o selo dos padrões do comércio justo”. O comércio justo tem crescido muitíssimo nos últimos anos e em 2008 envolveu 7,5 milhões de pequenos produtores com suas famílias com um total de vendas no valor de US$4,08 bilhoes. O artigo Fair trade da Wikipedia exalta esses êxitos sem negar-lhes as dificuldades (7) .
Essas cifras não são grandes em relação às cifras da totalidade do comércio mundial e dos trabalhadores do mundo todo. Mas convém lembrar que toda grande mudança parte de minorias.
No início de interessante artigo o economista brasileiro Henrique Tahan Novaes coloca como epígrafe uma frase de Marx: “A tirania da circulação não é menos perversa que a tirania da produção “ (Novaes, 2008). Novaes critica vários teóricos da economia solidária no Brasil por acharem que a economia solidária ou o trabalho associado dos autogestores tem que tolerar sua dependência do mercado capitalista, onde as empresas capitalistas são fornecedores seus e/ou clientes seus. Pior, as empresas autogestionárias teriam que concorrer entre si também em razão da impossibilidade de se livrar das garras do mercado capitalista. Novaes também adverte:
“[O] capital transnacional domina praticamente todas as etapas da cadeia produtiva. Quando se tenta integrar ou fechar relações entre as cooperativas, logo se verifica que os empreendimentos são na verdade concorrentes por um mesmo mercado ou tem um baixo grau de complementaridade.”
Ele ainda frisa com razão a importância de um planejamento coletivo dos trabalhadores associados mas tem restrições sobre tentativas para a formação de uma economia paralela. Finaliza seu artigo dizendo:
“Para que o cooperativismo e o associativismo de trabalhadores possam florescer, eles devem se inserir numa proposta de construção de uma sociedade «para além do capital» e para isso, faz-se necessário retomar o debate sobre a coordenação da produção pelos produtores associados.”
Concordamos com essa conclusão. Porém resta a questão sobre o que fazer enquanto o modo de produção capitalista não entrar em claro declínio.
É inevitável que uma certa sujeição ao mercado capitalista pela empresa autogestionãria persista neste momento histórico. Mas quanto mais depressa tais empresas se desvincularem de tal interdependência – que para elas é, acima de tudo, uma dependência já que elas são o elo mais fraco da cadeia produtiva – melhor será. Senão, persistirá o perigo de a empresa autogestionária sofrer preços abusivos ditados por fornecedores e/ou lucros insuficientes ou até mesmo prejuízos causados por empresas compradoras. Já existem muitos casos assim. Quando se trata de vendas no comércio varejista porém as condições são favoráveis.
Para evitar esse socialismo de mercado, já estão sendo criados nichos. Porém na medida que o critério da troca não é a lei da procura e oferta, podemos dizer que não são nichos de mercado. É o caso, por exemplo, do comércio justo internacional referido acima. Também é o caso dos clubes de troca na Argentina e outros países, onde são usadas as moedas sociais (Primavera, 2010). A preocupacão com o iustum pretium ou justo preço, banida há séculos como doutrina e prática - ou então uma variante dele – está de volta através do comércio justo e iniciativas semelhantes. É algo prezado por uma minoria ainda pouco visível. Mas, repetimos, toda mudança parte de minorias.
Quanto ao Estado, há dois séculos ele começou a se transformar claramente em um Estado liberal, o que foi provocado pela ascensão da burguesia ao ápice do poder à custa das antigas aristocracias. Houve o intervalo em muitos países durante boa parte do século XX de experiências do tipo soviético, é verdade, mas o processo do triunfo do Estado liberal finalmente se consolidou em fins do século XX com a substituição da nomenklatura na Europa oriental e União Soviética por uma nova burguesia consentida e encorajada pelo Estado e pelo não categórico mas real abandono do estatismo (8) na China um pouco antes.
Sendo liberal, o Estado moderno tem como função primeira defender os interesses da burguesia. Ele não atende demandas populares sem pressão popular. Esta em muitos países conseguiu conquistas se bem que com o fim do Estado de bem-estar em fins dos anos 1970 ressurgiu com nova força o liberalismo econômico e daí seu nome neoliberalismo. Então foram montados mundo afora maciços programas de privatizações e avançou uma legislação a favor de um desmonte de boa parte da proteção social, tudo como resposta à necessidade da megaburguesia de “enxugar” as empresas de uma mão-de-obra que se tornava supérflua.
Na medida em que o cooperativismo e outras formas de uma economia solidária e participativa não contrariem os interesses burgueses, eles são tolerados. Mas, claro, não costumam ser aceitas com entusiasmo pelo Estado burguês. Isso fica evidente no caso da legislação, a qual depende de parlamentos dominados por partidos burgueses mundo afora. O caso do Brasil é ilustrativo. Uma nova lei das cooperativas entrou em vigor em 1971, na época de uma ditadura ferrenha. Na sua essência ela vigora hoje. No Congresso Nacional há mais três projetos de lei, pouco ousados mas prometendo avanços populares, dormitando já há alguns anos. A lei ainda em vigor brinda um cooperativismo meramente formal. Ela exige um número mínimo de 20 sócios para que uma cooperativa se inicie, o que dificulta sobremaneira a legalização. Por outro lado, não há nenhum limite sobre o número de sócios, o que pode dificultar a democracia direta. Não se explicita nenhuma norma sobre a proporção entre sócios e empregados da cooperativa, o que significa que uma cooperativa pode ter mais empregados do que sócios. O capital máximo que um sócio pode ter é um terço de todas as cotas-partes. Uma empresa capitalista do mesmo ramo pode ser sócia da cooperativa. Estas duas últimas disposições podem permitir, a nível informal, porém bastante eficaz, um controle sobre os rumos da cooperativa por interesses escusos. Finalmente, para se registrar toda cooperativa brasileira tem que passar pelo crivo da Organização Brasileira de Cooperativas, a qual está muito bem comprometida com grandes interesses empresariais capitalistas e é hostil a avanços na legislação cooperativista tidos como contrários a esses interesses.
As taxas cobradas para o registro de uma nova cooperativa são proibitivas para grupos populares. Também o são os impostos, que giram em torno de 17%. Para cooperativas de origem remediada ou burguesa, isso evidentemente não causa dificuldades. Enfim esse esquema estabelece tratamento igual para grupos evidentemente desiguais.
Se nos concentramos sobre a legislação cooperativista brasileira, foi porque a conhecemos mais do que a de outros países. Sem dúvida porém vários dos ditames legais anti-populares mencionados existem em não poucos outros países também. Afinal de contas o Estado liberal burguês é onipresente. Mesmo nos pouquíssimos países que com muitas dificuldades estão tentando bem ou mal promover uma sociedade popular não capitalista, geralmente rotulada de sociedade rumo ao socialismo do século XXI ou simplesmente socialismo (Venezuela, Bolívia e Ecuador) a legislação ainda tolera dispositivos favoráveis às burguesias nacionais e estrangeiras. E não poderia ser muito diferente com a atual correlação de forças que existe.
Também nos países periféricos as políticas públicas sobre cooperativas e economia participativa e solidária são esporádicas e não raro sujeitas a descontinuidades quando um grupo mais conservador assume o governo, seja na área nacional, regional ou local.
Outro problema para as empresas autogestionárias é o acesso ao crédito para a obtenção de um capital de giro. Os bancos comerciais não têm a mesma abertura para tais empresas que têm para empresas tradicionais. Mesmo assim, o crédito de tais fontes às vezes se consegue. Também existem algumas cooperativas de crédito se bem que com freqüência menor do que a desejável nos países pobres. Nas suas etapas iniciais tais empresas não raro ganham doações de ONGs nacionais e estrangeiras como também de sindicatos trabalhistas.
Vejamos agora um fenômeno que a nível mundial não está muito visível mas que em certos países, notoriamente Argentina e Brasil, é notável. Referimo-nos a aquilo que alguns chamam de fábricas recuperadas mas que outros, com mais cuidado de registrar o total alcance do fenômeno, chamam de empresas recuperadas pois o fenômeno é conhecido não só em fábricas mas em outros tipos de empresas capitalistas também tomadas e ocupadas pelos trabalhadores. Na Argentina e no Brasil o fenômeno vem ocorrendo desde a década de 1990. Foi então que as importações foram incentivadas por políticas governamentais inspiradas na cartilha neoliberal, o que quebrou várias empresas nacionais, especialmente indústrias de porte médio. Na Argentina alguns empresários preferiram abandonar suas fábricas perante o desastre iminente, até tirando ou mesmo destruindo equipamentos seus, assim provocando uma espécie de luditismo ao avesso (9). Quanto ao número de empresas recuperadas, o professor Peter Ranis, citando cinco fontes argentinas entre 2003 e 2004 relata que há estimativas que variam de 98 empresas com cerca de 8 mil trabalhadores a até 200 com cerca de 15 mil trabalhadores, as divergências se devendo a critérios variáveis sobre o conceito de recuperação – se, acima de tudo, uma empresa está já cabalmente estabelecida como propriedade legal dos trabalhadores ou ainda em fase de contestação com a empresa total ou parcialmente ocupada por eles, além de outros fatores (Ranis, 2006, 17-18).
Como não tivemos acesso a dados quantitativos sobre empresas recuperadas no Brasil, podemos valer-nos de alguns dados da ANTEAG – Associação Nacional de Trabalhadores de Empresas de Autogestão. Segundo informações disponíveis no seu saite acessado em abril de 2010 sabemos que nos últimos 15 anos sua assessoria gerou 32 mil postos de trabalho. Isso tem ocorrido em várias áreas da industria mas também na agricultura, extrativismo e serviços. Historicamente especializada em empresas em recuperação, ela também forma empresas autogestionárias começando da estaca zero.
Vale notar que já estão registrados vários casos de satisfação e esperança de trabalhadores autogestores de seus negócios em empresas recuperadas na Argentina, no Brasil e alhures. A literatura sobre esse fenômeno, especialmente como vem ocorrendo na Argentina, está crescendo (10). Em alguns países isso suscita uma organização da sociedade civil como meio de os trabalhadores se organizarem em defesa de seu direito de gerar seus próprios negócios nos casos onde os proprietários capitalistas por incompetência, má fé ou as agruras de uma crise econômica não tocam suas empresas para cumprir sua função social de produzir para a sociedade. Já vimos o caso da Associação Nacional de Trabalhadores de Empresas de Autogestão. Na Argentina existem duas entidades similares, a saber, o Movimento Nacional de Empresas Recuperadas e o Movimento Nacional de Fábricas Recuperadas pelos Trabalhadores. Assim os trabalhadores se organizam em termos de solidariedade entre as empresas que se encontram ou se encontraram envolvidas na tentativa de assumir a posse e a propriedade das mesmas que foram fundadas por capitalistas. A nível local e provincial há uma aquiescência relativa das autoridades cuja simpatia e colaboração ganham em certa medida. Já a nível federal a hostilidade do judiciário é maior. No Brasil, graças em larga medida aos esforços da ANTEAG, muitos trabalhadores conquistam a legalização da posse e propriedade das empresas em termos de autogestão. Mas no caso de ambos países a luta é longa e árdua.
Neste exato momento histórico, o ano 2010, não temos noticias de empresas tomadas e recuperadas, assim provocando controvérsias jurídicas nos países ditos desenvolvidos (11). Mas com a crise sistêmica que veio à tona em agosto de 2008 e o dramático desemprego que ela está provocando nos Estados Unidos e outros países de industrialização já antiga, a hipótese de tais desdobramentos não há de ser descartada.
Pontos de partida, de passagem e de chegada da nossa utopia popular solidária
O colapso da economia virtual em 2008, que foi uma crise anunciada alguns anos antes por vários economistas independentes, provavelmente seja a crise letal do capitalismo. Há décadas não há como contornar a queda da taxa de lucro. O erário dos Estados Unidos está quebrado. A doutrina econômica liberal está desmoralizada. O longo domínio do governo por um partido conservador no Japão teve que parar para que o outro grande partido conservador do país assumisse o poder. Pois o governo demissionário era incapaz de resolver a crise. Mas os novos ocupantes do poder não resolverão a crise já que não têm a imaginação e a coragem de adotar métodos de política econômica nada tradicionais.
Abre-se um novo capítulo na historia da humanidade. Estamos saindo da bissecular era liberal. A humanidade está caminhando para o que muitos chamam de socialismo? Disso não podemos ter certeza. A única certeza a esse respeito é a de que estamos próximos do fim da era liberal.
Mas simplesmente imaginemos que a chegada do socialismo esteja sim historicamente muito próxima. Não obstante a infelicidade do termo socialismo em razão de sua ambivalência, ou melhor, trivalência, o definiremos aqui como um ideal e uma prática coletiva ou sistema social em que haja uma distribuição de renda, de saber e de articulação política de acordo com as capacidades e necessidades de cada individuo de tal maneira que os interesses de uns não sejam garantidos pelo sacrifício dos interesses de outros. Tudo isso suporia mecanismos instituídos que o garantissem e a vigência de uma sociedade mundial sem classes sociais. No tocante a seus aspectos econômicos tal sociedade evidentemente poderia funcionar somente se a articulação da produção e do consumo fosse feita por e para todos e todas (12).
Em trecho instigante Paul Singer propõe uma diferenciação entre revolução social e revolução política. Ele define a primeira como “processo multissecular de passagem de uma formação social a outra” e a segunda como “episódio de transformação institucional das relações de poder.” (Singer, 1998, 11) Assim, como modo de produção o capitalismo ou o que era então o emprego de mão-de-obra assalariada pelo sistema de manufaturas domésticas persistiu pelo menos durante três séculos na Europa ocidental até que o surto do industrialismo na Inglaterra no século XIX transferiu a indústria para as novas fábricas. Ainda se travou no século XIX uma luta entre as antigas aristocracias e a burguesia ascendente. A burguesia ganhou essa luta, conseguindo impor uma nova legislação favorável aos seus interesses. Nos séculos XVI, XVII e XVIII a Europa ocidental passava por uma revolução social capitalista. É só no século XIX que lá se consolida uma revolução política capitalista. De modo semelhante a multiplicação, embora lenta, de empresas autogestionárias em todos os continentes poderá ser vista como uma revolução social de outro tipo, do tipo que poderá desembocar numa economia democrática e solidária desde que surjam instituições que garantam seu eficaz funcionamento.
Singer vê o sufrágio universal, as leis trabalhistas, a seguridade social e o cooperativismo, que são conquistas da classe trabalhadora, como “instituições que contradizem a lógica intrínseca ao capitalismo” (idem, 12). Todas estas conquistas populares – inclusive o sufrágio universal que derrotou o voto censitário – foram frutos de pressão. Mas nas últimas décadas, via de regra, os sindicatos foram domesticados para os interesses do capital e a proteção social vem sendo desmontada mundo afora. Quanto às cooperativas, é só uma minoria delas – de fato uma minoria de importância bastante significativa – que cultiva plenamente o espírito democrático e solidário, isto é, o espírito cooperativista.
Para Singer e para nós também já começou uma revolução social socialista mundo afora. A classe operária surgiu como contrapartida da burguesia. Assim, existe uma luta de classes, ora latente, ora aberta. Essa luta se dá nas greves, nas ocupações de empresas ainda raras em termos mundiais, nos tribunais trabalhistas e nos parlamentos. Que dizer das cooperativas e outras possíveis formas de empresas autogestionárias em tempos históricos recentes e nos dias que correm, sejam do tipo das que foram fundadas como tais da estaca zero ou das que foram fruto de empresas capitalistas tomadas pelos trabalhadores aos seus donos originais mas finalmente reconhecidas por um estatuto legal e onde ainda fica acesa a chama da democracia e solidariedade empresarial? Elas também estão envolvidas na luta de classes pois percebem que a coesão da classe é do seu próprio interesse e crêem que os interesses de seus pares são em princípio os interesses de toda a classe trabalhadora (assalariados, desempregados e autogestores).
Uma passagem para o socialismo já está então potencialmente em andamento há dois séculos a partir da formação da classe operária e seus esforços de autodefesa via cooperativismo, sindicalismo, etc..
O ponto de partida então para esta utopia de uma sociedade de democracia cabal a partir da inclusão da economia no conceito político de democracia é, logo em seguida ao surgimento da classe operária, há pouco mais de dois séculos, o lançamento do movimentocooperativista por lideranças dessa mesma classe operária. O ponto de passagem são todos esses dois séculos – e ainda mais um certo tempo histórico por vir - de luta da classe operária. O ponto de chegada ainda é objeto de contemplação mas ainda não de realização pois ainda não chegou o momento propício para ele.
Em pelo menos três países hoje – Venezuela, Bolívia e Ecuador - existem nos albores deste milênio desdobramentos políticos que, se não abortados, poderão marcar revoluções políticas socialistas. Em todos os três foi conquistado o poder político pela via eleitoral tradicional não obstante os poderosíssimos obstáculos enfrentados desde seus primeiros certames eleitorais até os dias que correm. É claro que se não houver desdobramentos semelhantes mundo afora, essas revoluções dificilmente poderão aprimorar-se e sobreviver.
Se de fato já entramos na crise letal do capitalismo, então uma série de revoluções políticas socialistas será possível. A persistência dos oligopólios transnacionais é tal que se tornam ainda problemáticas a sobrevivência de muitas das empresas autogestionárias e sua multiplicação como já vimos.
Para que o novo tipo de empresa aqui advogada possa sobreviver e generalizar-se cada vez mais um dos requisitos será que ela não seja muito grande, isto é, não inclua muitos trabalhadores. Em uma empresa grande é difícil, senão impossível, praticar a democracia direta. Seu ambiente será um tanto impessoal e daí menos dado à solidariedade. Convirá instituir um limite ao número de sócios e à abrangência geográfica ou territorial da empresa que se queira autogestionária. Somente naquelas situações onde a natureza do ramo de atividades assim exigir é que se deve permitir empresas excepcionalmente maiores. Por exemplo, imaginemos que a Air France, que por sua própria natureza tem que ter funcionários dentro de uma órbita geográfica abrangente, seja autogestionária. Ou então que o seja uma mina de cobre grande que, para funcionar precise de alguns milhares de trabalhadores. Em tais casos seria preciso organizar tais empresas em núcleos para que neste nível todos os trabalhadores se conheceriam habitualmente de vista. Com a nova tecnologia da vídeo-conferência e outros mecanismos mais seria possível que tais casos excepcionais praticassem uma democracia representativa confiável.
Enfim, tudo que promova a democracia direta tem que ser promovida em qualquer projeto de empresa autogestionária. No tocante à economia poderá funcionar o socialismo se prevalecer uma miríade de pequenas empresas. A tendência terá que ser justamente o contrário da tendência histórica do capitalismo, onde durante um século e meio as gigantescas corporations têm jogado as cartas para a economia – e a sociedade – mundial.
Quando o modo de produção capitalista estiver em claro declínio, se revoluções políticas socialistas estiverem em andamento em não poucos países e se também em países não revolucionários a classe operária conquistar uma nova legislação e novas políticas públicas que pelo menos em parte facilitem uma certa multiplicação e fortalecimento de empresas autogestionárias, não há a menor dúvida de que legiões do crescente exército de desempregados serão mais atraídas para fundar suas próprias empresas. Em tal ambiente, para qualquer pessoa, trabalhar sem patrão, trabalhar sem medo de ser demitido, trabalhar sem ter que obedecer políticas com cuja criação sequer colaborou será muito mais atraente do que trabalhar como mero executor de ordens do gerente de uma empresa capitalista ou estatal. Na empresa democrática há muito lugar para a criatividade do trabalhador. Não se obedece a ordens. Apenas se evita a violação das regras constituídas e das decisões estabelecidas nas assembléias. A empresa autogestionária é do trabalhador. A sua existência e o seu andamento pede a colaboração e a criatividade do trabalhador. A empresa heterogestionária não é do trabalhador. Hoje de modo mais visível do que poucas décadas atrás a empresa heterogestionária não depende deste ou daquele trabalhador e quase se diria que não depende dos trabalhadores em geral. Há vinte anos atrás foi dito que o capitalista já não precisa dos trabalhadores. A rigor então não era e nem hoje é verdade. Mas este exagero se deve à realidade da crise aguda do desemprego. E no lugar deste triste quadro de desemprego e pobreza só falta uma forte e incansável pressão popular para dar vez à figura do trabalhador sem patrão. É uma luta ingente e terrível, uma luta que exige a superação da alienação e sonolência política das massas.
Ao contrário do que provavelmente pense a maior parte da opinião pública mundo afora, as experiências de trabalhadores que começam da estaca zero suas próprias empresas autogestionárias e as de outros que tomam empresas para eles próprios aprenderem a governá-las não obstante empecilhos nada desprezíveis como batalhas no judiciário e as dificuldades de conseguir financiamento evidenciam o prazer do crescimento da sua autoestima. Como disse um dos 60 e tantos autogestores que tomaram a fábrica de vestuário Brukman de Buenos Aires: “Já sabemos quanto custa um terno, quanto custam as matérias primas. Talvez seja por isso que querem nos expulsar, porque sabemos gerenciar uma fábrica e sabemos que, se os trabalhadores sabem dirigir uma fábrica eles também podem dirigir um país, e os donos dos negócios temem isso,” (Ranis, 2006:15) Ou então há o testimônio de um dos sócios fundadores da pequena fábrica autogestionária de 19 trabalhadores (inclusive três contratados temporários e um contratado permanente), a Bruscor Indústria e Comércio de Cordas e Cadarços Ltda. no interior de Santa Catarina: “Democracia [na empresa] é sinônimo de eficiência, traz criatividade, elimina custos, faz a empresa funcionar melhor e ainda nos realiza pessoalmente” (ANTEAG, 2000:48).
Do outro lado do mundo, em Bangkok, capital da Tailândia, podemos ver o caso da antiga empresa de vestuário Fábrica Cama & Banho, que a partir de 2003 é legalmente governada por seus cerca de 30 trabalhadores sob o nome Regressa A Dignidade. Em razão de sua própria má gerencia seus donos tiveram que fechar a fábrica no dia 7 de outubro de 2002 sem aviso prévio e sem indenização ou qualquer outro tipo de pagamento. Quatrocentos dos 800 trabalhadores originais acamparam no andar térreo do Edifício do Ministério do Trabalho e três meses depois seu direito legal à fábrica abandonada foi reconhecido. A celeridade desse processo evidentemente foi atípica. Em seguida durante alguns anos os cerca de 30 que ficaram trabalharam ganhando retiradas iguais, extremamente baixas até faturar a um nível que permitiu a recuperação dos negócios e remunerações dignas. Tiveram algum apoio, inclusive da Áustria e da Austrália. Resolveram estabelecer o lema Regressa A Dignidade, usando essa expressão também como sua nova razão social. Os negócios começaram a funcionar bem e não é à toa que usam ditos como “neste lugar não há patrão para nos gritar ou se aproveitar de nós. Não há ameaças e insultos. Acima de tudo, isso aqui é nossa fábrica...”, “uma marca pelos trabalhadores não é impossível”, “vamos mostrar aos capitalistas que uma solidariedade global dos trabalhadores é real”, e “se nós podemos fazer isso, outros trabalhadores podem fazer também.” Assim se vêem alguns dos sentimentos de trabalhadores que antes trabalhavam por salários de fome todos os dias da semana em condições subumanas, o que é típico desse ramo na periferia do mundo hoje (Yimprasert 2006; Templer 2007).
Esses três exemplos tirados de casos na Argentina, Brasil e Tailândia nos mostram como muito se pode aprender com casos bem-sucedidos de autogestão. Logo se vê a enérgica e entusiasmada auto-estima de trabalhadores que se sentem donos de seu nariz e realizados e estimulados para a criatividade. Sabem e dizem que se eles podem governar suas empresas, outros também podem ter a mesma capacidade. No caso do depoimento do trabalhador da Bruscor, novo fato é evocado: a economia ou a eliminação de custos. Pois uma empresa capitalista gasta muito com relações públicas e propaganda e se é muito grande com salários muito elevados com funcionários de alto escalão e até mesmo com lobbies, campanhas político-partidárias etc. Quando se trata de empresas recuperadas a alegria pela percepção da criatividade e auto-estima em comparação com a situação anterior é especialmente forte.
Nesta época de economia deprimida dois fatores poderão ocorrer: a multiplicação da tomada de empresas pelos trabalhadores e muita pressão popular para mudanças na legislação de muitos países mais favoráveis aos direitos dos trabalhadores à custa de alguns interesses da classe dominante. Contra o desemprego e pobreza crescentes seria ilusório imaginar que nenhuma medida de defesa popular ocorra.
Nos próximos anos, como já nas últimas décadas, será fundamental que o que há de melhor no movimento cooperativista, que os avanços na teoria e na prática da economia solidária, economia participativa, prout e similares amadureçam e se divulguem cada vez mais. Deve-se evitar o dogmatismo e o sectarismo. Deverão colaborar pessoas de persuasões diferentes como marxistas e anarquistas, pessoas religiosas e não religiosas, etc. Quando vários grupos e pessoas têm peculiaridades que não coincidem totalmente mas que têm em comum a valorização de um sempre crescente grau de igualdade social e justiça social no tocante à propriedade e à distribuição da riqueza e do saber com mecanismos de participação política também igualitária, então se pode dizer que um caminho rumo a uma sociedade não só pós-capitalista mas também pós-classe continua sendo tentado. Pode até não existir – e de fato ainda não existe plenamente – da parte de muitos dos militantes de tal movimento uma consciência clara da necessidade de uma sociedade sem classes como meta eventual. Frequentemente a prática antecipa a teoria não obstante os erros no percurso.
A tolerância das diferenças no interior de um só grande ideal será reflexo da unidade na diversidade.
Com o desaparecimento do capitalismo tal sociedade preencherá o vácuo? Ora, mais de um desdobramento é possível. Na Rússia e na Europa oriental muitos são os novos ricos egressos da alta cúpula dos antigos partidos comunistas. Uma nova sociedade pós-capitalista e baseada em outro sistema de classes poderia surgir e conhecer semelhantes oportunismos quiçá. Mas é nossa convicção que quanto mais se divulgar ao longo dos próximos tempos uma experimentação com a propriedade e administração de empresas pelos trabalhadores e mais ninguém e com mecanismos de fiscalização pelos consumidores, maior será a possibilidade da ocupação de um novo espaço por uma sociedade plenamente democrática em razão da democratização de sua economia.
(*) José Brendan Macdonald, sociólogo e também doutor em história, é professor emérito da Universidade Federal da Paraíba, onde faz trabalho voluntário na INCUBES (Incubadora de Empreendimentos Solidários), trabalho comunitário sobre geração de ocupação e renda. É pesquisador principalmente no campo de economia solidária. E-mail: jobremac@gmail.com.
Bibliografia (até Braverman está no estilo do inglês ou quase)
ANTEAG, Associação Nacional de Trabalhadores e Empresas de Autogestão, 2000, Autogestão: construindo uma nova cultura nas relações de trabalho, São Paulo.
Azevedo, Alessandra and Gitahy, Leda, 2010. Cooperativismo, autogestão e Competitividade: O caso da Mondragón Corporación Cooperativa.
BIRCHALL, Johnston. 1997. The international co-operative movement, Manchester University Press: Manchester/Nova York, 1997.
BRAVERMAN, Harry. 1974. Labor and monopoly capital. Nova York e Londres: Monthly Review Press. Há também uma edição brasileira.
CARLYLE, Thomas, [1837] História da Revolução Francesa, Edições Melhoramentos, São Paulo, 3ª edição, s/d.
DANGL, Benjamin, “Workers Occupy Chicago Factory: Echoes of Argentina's 2001 Worker Uprising”, Common Dreams, 9/12/2008.
HUSSAIN, Rummana, “Former Republic Windows & Doors CEO held on $10M bail” , Chicago Sun-Times, 10/9/2010.
MACDONALD, José Brendan, “Da liberdade e da servidão”, p. 5 a 29, Revista de Cultura Vozes, ano 81, no. 1, janeiro/fevereiro, 1987.
MACDONALD, José Brendan, Economia e ideologia no capitalismo, no socialismo e no estatismo, Editora Universitária da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 1995.
MACDONALD, José Brendan, “Reflexões em torno do mamonismo”, Temas em Educação, no. 9, p. 107-134, 2000.
NOVAES, Henrique Tahan, “Qual autogestão?”, Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, vol. 18, p. 70-95, 2008.
POLANYI, Karl, [1944] The great transformation, Beacon Press, Boston, s/d.
PRIMAVERA, Heloisa, “Moedas sociais e economia solidária: um matrimônio indissolúvel com comunhão de bens”.
RANIS, Peter, “Factories Without Bosses – Argentina’s Experience with Worker-Occupied Enterprises”, Labor: Studies in Working Class History of the Americas, Volume 3, Issue 1, 2005.
SINGER, Paul, Uma utopia militante – Repensando o socialismo, Editora Vozes, Petrópolis, 1998.
SINGER, Paul, Introdução à economia solidária, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2002.
TEMPLER, Bill, “Dignity returns”, 16/01/2007.
YIMPRASERT, Junya, “Dignity returns – A workers’ brand is possible”, Thai Labour Campaign, 19 October 2006, disponível na internet.
_____________ NOTAS:
(1) Com certeza o lucro mais rápido possível é a única meta das grandes corporations desde a formação das primeiras faz cerca de um século e meio. É claro que essa não é a impressão que podem e querem dar os departamentos de relações públicas e propaganda das mesmas. Quanto a empresas capitalistas de porte médio e pequeno, seus donos podem ter ou não ter uma sensibilidade que foge em certa medida da ética individualista burguesa. Mas mesmo eles, enquanto joguetes da onipresente concorrência , não podem deixar de ficar ciosos da sua sobrevivência no mercado.
(2) Estes princípios estão disponíveis também, em inglês, no saite da International Cooperative Alliance, como também em português aqui.
(3) Já caracterizamos o mamonismo como “a atitude e o comportamento humanos pelos quais a posse permanente de um conjunto de bens materiais superior a aquele possuído por outros sujeitos sociais é tido como o sinal ou símbolo cabal do prestigio humano.” (Macdonald, 2000, 108) Mámon é um termo aramaico que para alguns estudiosos indicava uma espécie de divindade do dinheiro mas para outros teria sido simplesmente uma supervalorização dos bens materiais. O termo foi incorporado à versão grega do Evangelho segundo Mateus (“não podeis servir a Deus e a mámon”, capítulo 6, versículo 24), documento cuja versão original em aramaico se perdeu.
(4) Não empregamos o termo ideologia aqui no sentido que Marx costuma lhe atribuir – o de falsa consciência. Ou melhor, não o empregamos necessariamente nesse sentido. Ideologia para nós será um conjunto de crenças e valores compartilhado por várias – até muitas – pessoas. Assim, considerações sobre o que é desejável ou indesejável, possível ou impossível, real ou irreal, etc. são próprias de uma ideologia.
(5) Pode ser o caso, por exemplo, da contratação de médicos por uma cooperativa de porte mediano da área metalúrgica. Não se deve confundir isso porém com a contratação de alguém para fazer serviços pontuais. Aí se trata de uma prestação de serviços, como, por exemplo, a de um contador que gasta apenas quatro a seis horas por mês em uma pequena cooperativa de serviços médicos.
(6) Há uma forma antiqüíssima de já fazer isto que ocorre já na Idade da Pedra e passando por todas as sociedades camponesas. Trata-se do mutirão, tão referido na literatura antropológica. Mas o mutirão não costuma ser usado nas atividades produtivas propriamente, senão para a construção ou conserto de um prédio ou de benfeitorias.
(7) Também há o verbete Comércio justo na Wikipedia em português. Mas o verbete em inglês contém mais informações.
(8) Por motivo que não cabe expor aqui não vemos os modelos soviético e similares do século XX como socialismo. Isso não obstante o uso do termo constantemente tanto por seus partidários como por seus inimigos. Vemo-los como um estatismo produtivista ou, se se quiser, simplesmente como estatismo. A nova burguesia, especialmente na Europa oriental e antiga União Soviética, é composta por muitas pessoas bem situadas nos antigos partidos comunistas daqueles países, o que por si é um dos indícios do caráter pouco socialista do que agora podemos chamar de antigos regimes.
(9) O economista Henrique Tahan Novaes nos facilitou em 2005 um trabalho seu até então inédito intitulado “Notas sobre fábricas recuperadas na Argentina e no Uruguai” no qual fala em certos empresários que se desfaziam de suas fábricas como “ludditas às avessas.” Os luditas foram operários ingleses que na década de 1810 destruíam máquinas nas fábricas para demonstrar sua revolta contra as fábricas capitalistas já que estas eliminavam a sobrevivência dos artesãos.
(10) Ao procurarmos na Internet referências a fábricas e empresas tomadas ou recuperadas mundo afora não só em espanhol, mas também em inglês e francês, notamos que são freqüentes, acima de tudo, referências à Argentina.
(11) Não consideramos o caso da fábrica Republic Windows and Doors de Chicago que foi ocupada em dezembro de 2009 nesta categoria pois havia várias irregularidades e até um gesto de fraude da parte do dono que armaria uma suposta falência dessa sua empresa, o que levou a uma prisão sob a carregada fiança de 10 milhões de dólares. Assim o próprio presidente eleito Barack Obama dos Estados Unidos pôde declarar publicamente e sem causar polemica na mídia sua simpatia com a causa dos trabalhadores da Republic. Em fevereiro ela foi comprada por outra empresa que recontratou trabalhadores seus. Ver Benjamin Dangl, 2008 e Rummana Hussain, 2009. Mas o paralelo traçado por Dangl com fábricas recuperadas na Argentina tem alguma procedência. Embora a ocupação da Republic, ao contrário de semelhantes casos ocorridos na Argentina, não se transformou numa situação permanente, o espírito de revolta de muitos de seus trabalhadores não era fundamentalmente diferente do de seus colegas argentinos. E nem poderia ser.
(12) Os dois outros significados da trivalência do termo socialismo como usado ainda hoje são 1) o que chamamos de estatismo ou estatismo produtivista como referido na nota 8 acima e 2) o que muitos chamam de social democracia, o qual pede um capitalismo menos liberal, com maior direito de interferência do Estado na educação, na saúde e uma certa regulação da economia pelo Estado sem porém questionar um extenso controle – certamente de longe a maior parte do controle – da economia por interesses privados. Ainda será necessário, nos parece, que venha a fazer escola algum termo em vez de socialismo, de comunismo e de democracia – termos desgastados e ambíguos – que essencialmente caracterize o que acabamos de propor no texto acima com o nome socialismo. |
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