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Abordagem ao realismo de experiência portuguesa
Óscar Lopes (*)
A gente fala para entender-se. E isso tem a estranha consequência de que a gente também, por vezes, fala para se desentender. É que, não falando já dos conflitos de interesses e motivações fundamentais, há ainda uma certa inércia mental que converte grande parte do que se diz em apologia de posições adquiridas ou em simples senha de identificação de grupo. Claro que os interesses e posições não se equivalem em progressividade. Todavia nada se faz sem uma conjunção e, portanto, sem um diálogo entre grupos ou correntes. Ora, como os horizontes rasgados pelas condições históricas nem sempre podem ser imediatamente compreendidos por aquelas maiorias que deles mais beneficiariam, mas por intelectuais ou mentores de extracção muitas vezes bem diferente, estes intelectuais ou mentores deixam-se fàcilmente limitar por uma apressada ânsia de identificação com o seu público presumivelmente imediato e já feito, em vez de procurarem entender-se com o mais largo público conscientificável e dinâmico de cada conjuntura ou ensejo. De tudo isto resultam diálogos de surdos, empertigamentos doutrinários: perde-se de vista o interlocutor aliás suposto, perde-se de vista o melhor reajustamento comum possível, e o que se procura é proclamar um bem-pensar encartado.
No nosso país este mal apresenta aspectos particularmente agudos, devido, entre outras coisas, às dificuldades de ver a especificidade, aliás tão vincada, dos problemas nacionais na generalidade do tempo europeu ou internacional em que eles se inscrevem. Por exemplo: já hoje nos apercebemos bem de como Antero, Oliveira Martins e Eça estavam em 1871 mal ajustados às condições portuguesas, quando as queriam encarar dentro de uma dada conjuntura instável (derrota do Segundo Império, Comuna de Paris, crise dinástica espanhola) e dentro de certas perspectivas proudhonianas; mas, ao criticar os manifestos de «socialismo» e de realismo literário proudhoniano desses homens, esquecemo-nos com certa ligeireza de que nós, os neo-realistas da ficção ou ensaio de 1938 ou 1965, somos, quase todos, como eles, pequenos burgueses de formação universitária, embora animadíssimos da melhor boa vontade. E o nosso espontâneo exibicionismo de progressividade leva-nos a exagerar a crítica a esses nossos tão evidentes precursores. Opomos-lhes, por exemplo, a exemplaridade dos revolucionários (ah! esses, sim, revolucionários) burgueses de 1820, ou a primeira imprensa e associativismo operários de 1852, minimizando alguns factos importantes e, de resto, muito conhecidos: primeiro facto, o de que a revolução liberal vintista era, precisa e contraditóriamente, antiliberal no que respeita à independência do Brasil, ao passo que, com todas as suas limitações e superficialidades, Antero continua na sua conferência democrática de 71 sobre as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares a apologia de uma política de fomento e democratização internas (oposta à da expansão absolutista) que ele recebeu, em linha directa, de Herculano, um liberal cartista, mas modelo de inconformismo; segundo facto, o de que, apesar das utopias proudhonianas, e, nomeadamente, do ar polémico in abstracto, que elas imprimem ao manifesto do realismo em arte de Eça, proferido em conferência do Casino Lisbonense - Antero, Oliveira Martins e Eça de Queirós são as personalidades que problemática e estèticamente mais interessaram à história do realismo em Portugal no séc. XIX (1).
Outro desajuste da literatura portuguesa às condições nacionais de base verifica-se ainda com clareza pela simples curva geral de evolução dos principais ficcionistas do neo-realismo. Como se sabe, entre o tempo da Guerra de Espanha e a fase em que, por início, digamos, do decénio de 1950, se consolidam na Europa as posições políticas adquiridas na Segunda Guerra Mundial, desenvolveu-se na literatura portuguesa um combativo esforço no sentido de ganharmos consciência das tensões que, efectivamente, interessam à maioria populacional. E, de facto, o leitor comum foi-se pouco a pouco familiarizando com a diversificação concreta dessas tensões, quer os seus protagonistas fossem ganhões e malteses do Alentejo, gaibéus ou avieiros ribatejanos, moços trabalhadores nos telhais e novas unidades fabris da cinta industrial de Lisboa, gente mineira, gandaresa, ribeirinha ou serrana. Entretanto, dá-se um (relativamente) rápido alastramento das manchas industriais do País; e é quando o fato de ganga e a boina já quase cobrem um terço da população portuguesa activa que a ficção e a poesia neo-realistas tendem a implantar-se na experiência mais directamente pessoal dos seus autores, isto é em ambiente da pequena burguesia. Posto demogràficamente em maioria, o assalariado deixa de interessar ao novelista ou poeta. Porquê? Talvez isso constitua um índice de certa imaturidade mental do salariato português: ele não chegou ainda, de certo, a interessar-se pela literatura, e em especial pelo neo-realismo, a ponto de constituir um determinante estímulo público. Mas a recíproca não deixa de ser também verdadeira e muito importante; a ficção neo-realista hesita ainda quanto ao seu público potencial, imediato ou mediato, e quanto às formas e tensões da vida social portuguesa onde cada autor melhor apreenderá as perspectivas, ou os valores, mais originais, mais consistentes, mais progressivos.
Eis porque me parece necessário dialogar um pouco sem gíria de escola nem o medo de pecar. A experiência histórica portuguesa apresenta muitas peculiaridades que exigem, mais do que nunca, o diálogo, polémico sim, mas sem desconversar, em termos que não fechem logo o jogo do dominó. Nem é de excluir a hipótese de que, para os problemas do realismo, tais como histórica e internacionalmente estão a definir-se, venham a ter alguma importância as reflexões sinceras que se façam a partir das condições históricas portuguesas. A universalidade ou internacionalidade é muito difícil de atingir, deveras, muito mais difícil do que dantes se pensava, e, como todas as coisas humanas, não pode contar demais com impulsos espontâneos. De qualquer modo, o caminho para um autêntico humanismo passa pela formulação e resolução de problemas precisos, passa por um senso activo e imediato do real. É preciso pensar sem autoridades nem citações, como quem pensa para si mesmo, embora em voz alta, para que a presença alheia nos continue imanente (2).
A palavra realismo pouco mais viveu do que um século, mas a história do correspondente conceito conta hoje mais de dois milénios. Ele já se esboça na teoria aristotélica da arte como mímesis, ou imitação. Imitação de quê? Eis logo o grande problema, que Aristóteles bem sentiu. Por isso contrapôs o verosímil poético à simples verdade histórica factual. Dentro do espírito do sistema, a imitação aristotélica não pode, evidentemente, ser a dessa coisa vaga a que o classicismo europeu chamou natureza (outro conceito de intrincada história (3) ), mas uma imitação das formas, isto é das tendências reais concretamente consumadas. A Poética do Aristóteles tem especialmente em vista as formas do convivência humana, os costumes, hoje diríamos a ética, a norma civil e política de comportamento e seus problemas (4). De qualquer modo, pode sustentar-se que o realismo em arte foi o tema central de todos os teorizadores e preceptistas clássicos, desde Horácio a Boileau ou Pope Não vamos estudar ou lembrar tal história. O que por agora me seduz é sugerir a plausibilidade de uma tese: a de que todos os realismos avant ou après-la-lettre supõem sempre uma concepção científica (ou, durante séculos, pré-científica, se se prefere) de realidade. As formas aristotélicas como modelos estéticos definem-se segundo leis tendenciais da matéria, entre as quais se contam as da própria lógica aristotélica, protótipo, embora unilateral como se sabe, de toda a axiomática, de toda a dedução científica que se baseia no princípio de identidade e não-contradição. São bem conhecidas as relações que existem entre o (pré-)realismo burguês do séc. XVIII e o empirismo sensualista sugerido pela mecânica newtoniana; e as que existem entre o realismo-naturalismo de fins do séc. XIX e o determinismo sugerido pelo surto contemporâneo das ciências biológicas e sociais (5).
Permito-me insinuar duas coisas a partir desta constatação. A primeira é que o realismo em arte tem muito, em retrospecção histórica, que ver com a mentalidade científica sua contemporânea. A segunda coisa é que a nossa experiência histórica nos mostra a relativa razão que, todavia, assistiu sempre a correntes estéticas concebidas em oposição à (pretensa) ciência sua contemporânea. Há, por exemplo, um certo irracionalismo, sentimentalismo, intuicionismo maneirista, rococó, romântico ou decadentista-simbolista a que não podemos deixar de reagir de modo favorável na medida em que, antitèticamente, suprem ou rectificam as insuficiências da tradição racionalista.
Já veremos até que ponto isso nos obriga a rever as relações entre um realismo moderno, a ciência (ou melhor: as ciências), e o materialismo como filosofia científica. A palavra matéria (como a palavra grega hyle sobre a qual se moldou como termo filosófico) designa, originàriamente, madeira, essência florestal destinada a uma indústria ainda essencialmente de carpinteiros, material de trabalho. Chamarei, portanto, materialista àquela tradição filosófica segundo a qual tudo, no mundo, será, uma vez conhecido, material disponível de trabalho humano. Aristóteles não foi, talvez, o mais importante precursor helénico do materialismo moderno, mas ao seu sistema dá-se o nome de hilemorfismo, o que sublinha um dos seus aspectos visivelmente materialistas: aquele em que a realidade se encara como um progresso para formas cada vez mais consumadas, a partir de outras formas, inferiores, que lhe servem de matéria. A filosofia materialista foi sempre, e quase por definição, uma filosofia do progresso, mesmo quando, no séc. XVIII, por exemplo, se articulava em termos de ciência mecânica, pretendendo reduzir as estruturas superiores (vida, espírito) às inferiores (massa e força mecânicas, depois moléculas químicas), antes de conceber as estruturas e formas superiores como resultantes genéticas de estruturas inferiores em conflito dinâmico.
De qualquer modo, impõe-se desde já uma radical diferença entre o realismo estético que hoje nos pode interessar e os seus precursores: é que o espírito científico moderno se concebe como dialéctico, em todos os principais sentidos da palavra. Antes de mais nada, a unidade da ciência (como a unidade do Homem, ou mesmo, a de uma doutrina, a de uma nação ou de um grupo social internacionalmente considerado) não constitui mero dado imediato, mas em grande parte um projecto ou programa sempre a refazer-se e a escalonar-se. E, além disso, estamos já desenganados quanto a todos aqueles conceitos de matéria que ignoravam a história das ciências: matéria como simples massa, molécula química, corpúsculo atómico, campo electromagnético ou gravitacional... A matéria tornou-se um conceito-limite perspectivado pela história do pensamento científico: é tudo o que determina ou condiciona a nossa consciência até mesmo no momento em que, concebido e disponível, se lhe converte em material de realização superior.
O realismo em arte deixou, portanto, de simplesmente identificar-se com o espírito científico. A verdade estética não pode ser nenhuma das verdades históricas ou especiais das ciências. Nem também a verdade ideológica, no sentido estrito da palavra, quer dizer, a daquela síntese provisória que, para orientação de grupos humanos mais ou menos largos (ou, preferentemente, e tanto quanto possível, para a sua auto-orientação) se desenha em função das realidades científicas e das realidades socialmente realizáveis sob dadas condições. Uma obra de arte só pode considerar-se realista se não for dialècticamente inferior às verdades científicas e ideológicas do seu condicionamento, e na medida em que sintamos a sua tensão ou contradição criadora em face do seu (e ainda do nosso) condicionamento. Adiante recordaremos de que modo uma obra de ficção mítica milenar ainda hoje nos toca, se efectivamente a compreendermos na sua linguagem própria, e portanto no seu condicionamento histórico mais preciso. E isto não equivale a postular para a arte uma perduração maior ou essencialmente diversa da das verdades científicas, técnicas ou filosóficas: as fórmulas da mecânica newtonianas, as reflexões da ética espinosiana e as grandes obras da polifonia barroca mantêm-se igualmente vivas e exactas, dentro da perspectiva em que a razão, a prática e a sensibilidade cultas actuais as situam e conjugam (6).
Esta concepção de arte realista como sendo dialècticamente não inferior às verdades científicas do seu condicionamento histórico levanta muitos problemas, e ainda bem, como veremos. Assim, há n'Os Lusíadas, n'O Firmamento de Soares de Passos e na Tabacaria de Pessoa uma mesma contradição fundamental, entre o espectáculo da insignificância do destino humano material, tal como as respectivas cosmologias o vêem, por um lado, e a grandeza das aspirações humanas incontíveis, por outro lado, tais como os poetas as sentem recortadas contra esse fundo pessimista. Impossível sentir estes poemas fora da concepção do mundo a que reagem. Impossível sentir o lirismo camoniano sem discutir aquilo que, no seu neoplatonismo agostiniano, ainda hoje permanece vivo, como expressão tensa daquilo que, num desejo humano (nomeadamente, o desejo erótico), há necessàriamente de objecto imediato e de objecto mediato, de finito e de infinito. Qualquer obra de arte, incluindo a do nosso tempo, fala-nos como uma dramatis persona: só a sentimos autênticamente se a entendermos na distância objectiva das suas próprias condições, a fim de, em verdade, a podermos compreender por dentro (na acepção do Verstehen de Dilthey e Max Weber), a partir das condições do nosso próprio mundo, sempre inevitàvelmente outro a cada fase.
Mas aprofundemos um pouco mais estes problemas do realismo. Lembremo-nos, por exemplo, de que o senso vivo do real encerra ainda mais contradições do que aquelas que são inerentes à especialização das ciências e à chamada complementaridade de certas hipóteses, como as hipóteses ondulatória e corpuscular da microfísica actual. No mero decurso de um dia, cada um de nós passa por diversos sensos de realidade, mais ou menos descontínuos entre si: a resolução de dificuldades domésticas, de dificuldades profissionais, a interpretação do noticiário jornalístico, a reacção a um filme ou novela - requerem aptidões e sugerem atitudes que se não conjugam de modo inteiramente coeso. Mais ainda: em estado de sonho atravessamos várias zonas estruralmente descontínuas (por isso se adormece e acorda) de convicção quanto à realidade e seus valores. Ora não é preciso aderir a nenhuma escola psicanalítica para reconhecermos que, de qualquer modo, o sonho de dormir deve ser tomado a sério: constitui uma representação adequada a determinado nível de dinâmica subconsciente, que a vigília não consegue reduzir inteiramente aos seus termos (7).
Na verdade, nenhum dos planos de realidade que nos representamos se pode cabalmente reduzir a outro plano: a ciência não esgota (não reduz) a evidência da simples percepção sensorial das coisas; uma onda ou maré que seguimos não constitui um simples caso da mecânica gravitacional já formulada por Newton; um gosto ou sabor não se explica de todo por uma fórmula química nem por quaisquer circuitos de reflexologia nervosa, salvo em relação a determinados problemas práticos. Ignorar o conflito permanente entre os planos de representação e práxis humana conduz àquele paradoxo idealista de uma pessoa que crê sentar-se, não numa cadeira, mas sobre um campo de forças ou um sistema de equações. Ora um quadro ou uma música não pertencem ao domínio de realidade do senso prático comum, nem ao de qualquer ciência especial, nem ao dos sonhos. Nós estamos, de facto, sempre a contas com conflitos entre diversas intuições de realidade e valor, e a nossa responsabilidade de cada passo reside em encontrar a solução mais adequada. Ignoremos (como certos teóricos românticos, simbolistas, surrealistas pretenderam ignorar) a verdade científica do nosso tempo, e, é certinho, retrocedemos à verdade protocientífica e já morta de uma literalidade bíblica, helenística ou renascentista, por exemplo. As verdades estéticas podem, e devem, estar em conflito com verdades científicas; o que não podem é ser-lhes dialéctica, històricamente inferiores.
A solução teorética mais simples consiste, claramente, em recusar a evidência de tão sérios conflitos de senso de realidade. E, pelo que respeita a arte, essa recusa pode assumir a seguinte feição: a recusa de que a estética (ou, pelo menos, a estética de tais ou tais artes) tenha alguma coisa que ver com o senso do real. Mas eu suponho que o postulado fundamental de urna concepção realista de arte é, precisamente, a aceitação franca (e tão fecunda) de tais conflitos, e ainda de outros nestes implicados. Isto não quer dizer, é claro, que a arte reproduza ou espelhe passivamente um dado plano do real, como pretendem as caricaturas vulgares da teoria aristotélica da imitação, ou da teoria naturalista da impassibilidade, ou da discutida e ainda mais recente teoria do reflexo (ou da reflexão), embora qualquer dessas teorias, e sobretudo a última, tenha muitíssimo mais que se lhes diga (8). A arte, mais do que reprodutora, é (em alta medida) produtora do real. Uma obra de arte cria sempre, em certa medida, o seu objecto, e por outro lado insinua uma certa convicção de realidade, não directamente, mas sim através de uma certa evidência de valores, de uma certa atitude judicativa ou prática a que nos afaz.
Que as coisas assim se passam é o que, de um modo particularmente óbvio, se verifica nas artes aplicadas, na estética industrial, na cerâmica ou arquitectura. Por exemplo, o gosto de um dado mobiliário doméstico, de um dado desenho de talheres ou de um edifício público afere-se, não segundo a funcionalidade de obras análogas preexistentes, mas perante todo um jogo de funções sociais humanas, umas já criadas e outras a criar ou refazer: um arquitecto arquitecta mais do que um edifício, arquitecta toda uma forma complexa de vida e convivência humana (9).
O problema mais grave de uma tal concepção realista como a que partilho ergue-se a propósito da música e das artes que tendem para o tipo da arte musical, nomeadamente as artes não-figurativas. Quanto a estas últimas, seria errada (além de insincera e até ridícula) uma sua simples inadmissão: não está provada a impossibilidade de obter com meios plásticos (ou outros) uma como que música de cores, desenhos, volumes e qualidades tácteis aparentes, e as artes cinéticas, incluindo o cinema de animação, encerram um mundo de possibilidades a explorar em tal sentido. O problema efectivamente importante consiste no seguinte: se as artes plásticas deixassem completamente de aludir a realidades humanas, a objectos de algum modo sensíveis ou perceptíveis na experiência comum, atrofiar-se-ia uma capitalíssima função estética, função que, precisamente, consiste em contestar as evidências quotidianas tais como elas espontâneamente se apresentam, a função que consiste em as refazer ou readequar através de uma recriação da nossa própria atitude interpretativa e judicativa perante elas.
Quanto à música, assumirei as pesadas dificuldades de a conceber como representação e produção de um dado real, ou melhor, de uma dada abertura, de uma dada plenitude exigível relativamente à experiência comum. Antes de mais nada, notemos que nenhum estado (ou melhor: processo) emocional atinge a máxima plenitude humanamente possível sem que o liguemos a uma convicção de realidade mais real: quem ama aquilo que, todavia, sabe não passar de um sonho está, com certeza, muito menos empenhado nesse amor do que quem ama uma realidade já real ou realizável. Por outro lado, embora nós não saibamos traduzir em palavras o que a música nos diz (que é o que de resto acontece com um quadro ou escultura), a verdade é sentirmos que ela nos diz qualquer coisa. E, numa época em que qualquer filme vulgar, qualquer noticiário radiofónico, qualquer propaganda comercial ou ideológica utiliza a música como factor sugestivo, negar, o significado realista dessa arte equivale a desarmar as suas manifestações superiores perante aquilo mesmo que tende a degradá-las a simples utensílios de uma funcionalidade alienada (10).
E eis-nos perante outro problema crucial do realismo em arte: o da interpretação necessária. Se a arte é (entre outras coisas) uma actividade parcialmente desvendadora e parcialmente produtora do real, a sua consumação tanto supõe a dinâmica do artista principaI como a dos intérpretes, ou melhor, a de um conjunto de intérpretes em reacção recíproca: o executante, o realizador, encenador, o actor; o crítico e as várias fracções mais ou menos selectivas do público. A vida da arte, mesmo no espírito dos artistas mais criadores, palpita de uma vibração que vai para, e vem de, todos os circuitos sociais de que apenas atrás se deram exemplos (11). É que o problema estético fundamental talvez consista mesmo em refazer toda a vida, nomeadamente toda a convivência humana, de modo a erguê-la aos mais altos padrões de plenitude afectiva. Nada na vida é estèticamente neutro, porque nada é afectivamente neutro. As formas estéticas nascem espontâneamente nos mais simples gestos, atitudes, entoações ou actos de convivência. Mas tais formas incipientes são matéria da grande arte dos artistas. Uma teoria realista da arte postula que nenhuma estrutura superior de sensibilidade, de razão, de técnica, de prática social e individual nasceu de geração espontânea: não podemos ignorar os constantes conflitos do sentir, do pensar ou agir, e o salto a formas superiores de vida passa pela abertura a essa tensão entre formas opostas de relativa plenitude estética, de coerência pensante e de eficácia actuante. Há maneiras contraditórias de se gostar da Odisseia, de dado quarteto de Beethoven, de um quadro de Miró, ou da Metamorfose de Kafka; o que em cada um de nós se intensifica ou inibe, se aviva ou embala sob acção de qualquer destas obras é tanto mais variado quanto mais larga a sua consagração social. O significado superior ou, se quiserem, mais autêntico de uma obra de arte perseguimo-lo nós num inquieto reajustamento constante, tal como um olhar que interpreta a paisagem desde um veículo em movimento.
Ora, se muitos artistas são capazes de criar obras-primas sem se preocuparem muito, em teoria, com uma concepção realista de arte; se (devemos admiti-lo) isso pode ter vantagens em relação a abstractismos mal entendidos, e, em certos momentos, para maior concentração nos materiais e formas imediatas da criação (anàlogamente a um cientista, a um técnico, a um prático, que em certos momentos também precisam de abstrair de tudo o que transcenda a sua especialidade, aliás por eles mesmo definida na terra-de-ninguém das especializações preexistentes) - lá vem sempre o momento da reflexão crítica, individual ou pública, em que o status de realidade da obra criada se nos impõe como problema, até mesmo porque abala, problematiza outros nossos status no senso de realidade e valor. A música, o simples fenómeno musical, genèricamente considerado, diz-nos que há mais coisas no céu e na terra do que sonha qualquer vã filosofia; pois ela não é a partitura, nem o simples fenómeno acústico, nem um exercício inconsciente de cálculo, nem um simples estado emocional, nem o desfilar de imagens visuais ou motoras por ela evocadas em dadas pessoas, nem, com certeza, uma essência metafísica. A incontestável realidade da música é a de uma estrutura e processo que constantemente nos lança um repto àquilo que concebemos como sendo o mundo real. Ou seria por acaso que Pessoa, o maior dialecta dos nossos poetas (ao lado de Camões) tantos e tão perturbantes poemas dedica precisamente a sondar a realidade específica da música? Os músicos (como aliás os outros artistas) criam objectos que têm o condão de nos refazer como sujeitos, pois quem somos (ou o que em nós sente) não acaba nunca de definir-se, e justamente em função de tudo aquilo de que nos vamos claramente apercebendo como sendo realidades (12).
A concepção realista de arte aqui proposta não resolve só por si os problemas concretos de juízo crítico; é deles que parte, mas, pelo menos a mim, ajuda-me a orientá-los mais à vontade. Tudo, em nós, tende a realizar, pelo trabalho social, um real realizável a partir das disponibilidades do real realizado e suas leis. Tudo (penso) é material, tudo acaba por se nos tornar disponível dentro das suas próprias leis, condições ou linhas prováveis de desenvolvimento mais ou menos espontâneo, apenas sob reserva, dramàticamente expressa por Kosík (13), de que isso não quer dizer que o homem seja, sem degradação, manipulável. A consciência é, na fórmula admirável de A Ideologia Alemã (14) «o ser consciente (das bewusste Sein)», um ser especial, o ser humano social que, pelo trabalho, esse também especial metabolismo físico e psíquico entre ele e o meio, cria todos os valores, um ser que só se transforma para melhor transformando o seu mundo e relações, e não administrando-se como se administram as coisas. Por isso o diálogo de um tal realismo com aqueles que professam qualquer religião ou metafísica não desempenha o simples papel táctico de quem já tem toda a verdade essencial no papo e se arvora em guia ou pedagogo. Eu aceito todos os mitos históricos como momentos de uma plenitude adequada a um dado grau ou qualidade de experiência. A candidatura de Adão ou da estátua de Prometeu à divindade, a descida de Orfeu aos Infernos, a ânsia de uma longevidade à Matusalém, de uma Parúsia ou Advento do Reino, de um Juízo Final, de uma qualquer Ressurreição da carne, de uma Comunhão, de uma Bem-Aventurança eterna - nenhum espírito vivamente religioso as sente, decerto, senão como metáfora de uma esperança que, no fundo, continua à procura de nome, imagem e ensejo. E eu só sei se essa esperança á aquela que em mim também se procura pelo modo como ela actua na sensibilidade e comportamento concretos de cada seu pretenso crente. E, quando, opostamente, um materialista se diz ateu, está a usar um juízo apenas polèmicamente definido em relação a dados conceitos do divino, e sobretudo em relação ao equívoco que entre eles se estabelece. Negar a divindade de Constantino, garantidora de uma ética bem acomodável à escravatura, à servidão ou ao salariato, não é o mesmo que negar um divino demiurgo ou criador do mundo (e o que significa esta metáfora de uma criação ou factura divina), nem isto é o mesmo que negar uma finalidade cósmica, uma escatologia, aspecto que aliás assumem certas formas de militância materialista. A própria divindade pessoal põe os problemas da inevitável metáfora; eu não concebo, mas compreendo se conceba, o valor supremo imaginável por metáfora de pessoa humana, que constitui o tipo da mais elevada síntese de valores realizados (15).
Não é, pois, da parte de uma estética neo-realista de condições portuguesas actuais, e tais como as vejo, que qualquer diálogo se fecha, na interpretação de uma obra cujo mérito seja de evidência imediata O critério realista de interpretação e juízo obedece a uma metodologia, portanto a uma teoria, mas não a uma dogmática. Pelo menos, tal como o venho praticando. Há já bastantes anos, e quando me criticavam pela atenção concedida a místicos e decadentes, fiz, e discuti em vários colóquios, uma conferência ainda inédita onde tento caracterizar o progresso do realismo no romance português actual pela tangência de muitas contribuições literàriamente valiosas, incluindo algumas que doutrinàriamente se opunham ao neo-realismo. Não vejo fundamentos novos para mudar de opinião. Os problemas do realismo são muitíssimos complexos, e não devem dispensar os contributos de um efectivo diálogo. A crítica realista, tal como a vejo, não pode transigir com a dupla verdade nem com a dupla sensibilidade - a verdade para os eleitos entre si, ou para os teólogos em privado, e a verdade dos eleitos para as massas (16); a sensibilidade dos momentos raros e paroxísticos, e a verdade quotidianamente praticada; a verdade inteligível, e a sensível; a verdade teórica, e a verdade prática. Tudo nos é dado no mundo como ondeante e diverso, e isso obriga-nos à responsabilidade de optar e assumir a melhor parte irredutível, sempre que a totalização só assim, e posteriormente, venha a tornar-se possível; mas a síntese deve sempre que possível preferir-se à simples opção exclusiva.
Este livro representa um conjunto de tentativas no sentido da síntese agora possível, por parte, não de um investigador ou crítico literário profissional (há anos que nem sequer ensino literatura no Liceu), mas de um simples leitor que vai lendo e pensando, e depois continua pensando, sobre o que lê e é, a ponderar intuições, informações (aquelas que lhe chegam), estéticas, morais, práticas, científicas, políticas, umas com outras, e umas contra outras mesmo sem sair de cada um dos domínios do ser e do valer. A edição em volume destes dispersos e inéditos foi arrancada por amigos, e nem sei bem se à minha consciência das inerentes fraquezas, se a urna pretensiosa ilusão perfeccionista segundo a qual, com mais tempo e ensejo, se poderia fazer muito melhor do que isto. Não se incluem ensaios sobre poetas ou ficcionistas portugueses vivos, que encheriam só por si vários volumes como este. Deste modo, certas reflexões aqui esboçadas, e nomeadamente aquelas que importam a um realismo mais directamente militante, não se desenvolvem através da importante problemática imposta por alguns autores que, por vários motivos, mais tenho estudado, como Régio, Miguéis, Nemésio, Redol, Namora, Vergílio Ferreira, Sena, Sophia, Eugénio de Andrade, Bessa Luís, Urbano, Santareno, Abelaira, Judite de Carvalho, Egito Gonçalves e Herberto Hélder.
Em compensação, podem aqui surpreender-se algumas tonalidades de experiência geral e literária, algumas formas de abordagem reflexiva que não caberiam na crítica a autores portugueses actuais; como não cabem na História da Literatura Portuguesa de co-autoria com António José Saraiva, produto de uma constante e honesta discussão entre dois temperamentos, no fundo duas concepções de vida, que se estimam na sua própria irredutibilidade marginal; como ainda não cabem nos fascículos de Época Contemporânea (História Ilustrada das Grandes Literaturas, tomo referente à Literatura Portuguesa), que venho orientando e em grande parte escrevendo, num avanço que precisou de umas quinhentas páginas grandes e maciças para chegar de 1890 à Presença, através de uma trabalhosa e, apesar disso, ainda lacunar, montagem de dezenas e dezenas de fichas por página. É certo que de tudo o que subscrevo ressalta, certamente, o esforço de uma mesma prática teórica (para usar a fórmula tão feliz de Althusser). Esse esforço obedece a uma convicção: a de que não há outro modo de ser-se fiel à fenomenologia literária que não seja a de problematizar tudo o que venha a seu propósito, e antes de mais nada um dado sentido da história social humana.
O manual de história literária feito, e já cinco vezes refeito, de colaboração com António José Saraiva foi, com todos os seus defeitos óbvios, o primeiro em que se praticou entre nós um acesso simultâneamente explicativo, no sentido histórico-social e histórico-cultural, e compreensivo, no sentido de uma intuição de intencionalidades estilisticamente, formalmente, objectiváveis. Essa convergência metodológica é ainda mais evidente nas minhas monografias, já de maior fôlego individualizante, sobre autores portugueses contemporâneos, quero dizer, posteriores ao Naturalismo, as quais equivalem, no conjunto, a meia-dúzia de volumes corno este. Mas neste livro presente encontrar-se-me-á mais cara a cara, e em certo sentido, mais desarmado, com disponibilidades que alhures se eliminaram. Há aqui, por exemplo, um ensaio sobre Gil Vicente, e logo uma reconsideração metodológica por ele provocada; há críticas em aproximações sucessivas sobre Raul Brandão, António Sérgio, Pessoa, em que se abandonam certas pistas para, com vantagens mas também com alguns sacrifícios, se seguirem outras até mais longe; há alocuções sintéticas e emotivas sobre Aquilino, logo a seguir a uma crítica panorâmica; há textos em que a vivência literàriamente intersubjectiva e a meditação de experiência pessoal se cruzam, como os últimos textos das séries dedicadas a Pessoa e a Guimarães Rosa, e até um capítulo dedicado à metáfora «mundo interior» onde a filosofia e a mitopoética conscientemente se ligam e cuja publicidade seria um acto de impudor mental, se não fosse antes um gesto familiar de certo descrente a outros descrentes ou crentes, sobre coisas que muito importam mas em geral se não dizem.
Faz por agora uns dez anos que um colega da minha melhor estima e camaradagem me prestou o serviço de uma crítica desfavorável, montada sobre uma breve, e nem sempre correcta, antologia dos meus erros. Ler e Depois, cujo âmbito de redacção abrange todo o último vinténio, apresenta, certamente, erros não menos clamorosos, e ainda por cima bem à vista no contexto. Mas tem, ao que suponho, uma qualidade: não ilude nenhuma das dificuldades capitais com que deverá haver-se uma teoria do realismo de experiência literária portuguesa. É esta, pelo menos, uma homenagem que eu não queria ficar a dever, tanto aos que pensam e sentem como eu, como aos que pensam e sentem de modo diferente.
(*) Óscar Luso de Freitas Lopes (n. 1917) nasceu em Leça da Palmeira, Matosinhos, filho do folclorista Armando Leça e da violoncelista Irene Freitas. Licenciou-se em Filologia Cássica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e em Ciências Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo cursado também no Conservatório de Música do Porto. Foi professor efectivo do Liceu Nacional de Vila Real e dos liceus Alexandre Herculano e Rodrigues de Freitas, do Porto. Em 1975 ingressou, como professor catedrático, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde se jubilou. Detacou-se como investigador de linguística e como crítico literário, atividade que praticou durante décadas em periódicos como Seara Nova, Vértice, Mundo Literário, Colóquio/Letras e o suplemento literário de O Comércio do Porto (sob o pseudónimo de Luso do Carmo). Sobre a obra e o método de Óscar Lopes como crítico literário leia-se, de Isabel Pires de Lima e Rosa Maria Martelo, Óscar Lopes em «A crítica do livro» - duas leituras. Foi presidente da delegação Norte da Sociedade Portuguesa de Escritores e do conselho literário da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. É de há muito militante do Partido Comunista Português, tendo feito parte do seu comité central. De entre as suas obras merecem destaque: Gramática simbólica do português,Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2.ª ed., corrigida, 1972; Entre a palavra e o discurso: Estudos de Linguística (1977-1993), Porto, Campo das Letras, 2005; História da Literatura Portuguesa (com António José Saraiva); Antero de Quental: Vida e Legado de Uma Utopia. Lisboa, Editorial Caminho, 1983; Os Sinais e os Sentidos: Literatura Portuguesa do Século XX, Lisboa, Editorial Caminho, 1986; Entre Fialho e Nemésio: Estudos de Literatura Portuguesa Contemporânea, 2 vols., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987. O presente texto foi publicado originalmente na revista ‘O Tempo e o Modo’ nº 40, Julho-Agosto de 1966, mas aqui utilizamos a versão revista e aumentada publicada pelo autor no volume ‘Ler e depois. Crítica e interpretação literária 1’, Editorial Inova, Porto, 1969.
____________ NOTAS:
(1) A posição da exemplaridade realista revolucionária dos Vintistas às limitações da «Geração de 70» é feita já por Joaquim de Carvalho, nomeadamente na monografia dedicada a Teófilo Braga e inserta em Perspectiva de Literatura Portuguesa do Século XIX, ed. Ática, Lisboa, 1948, vol. II, pág. 44. Augusto da Costa Dias retoma-a nos seus trabalhos sobre Garrett. A valorização dos socialistas de 1852 deve-se a Vítor de Sá. As teses de um e outro serão discutidas noutro volume de Crítica e Interpretação Literária.
(2) O último livro de Ernst Fischer, Kunst und Koexistenz, Rowohlt, 1966, trad. inglesa Art Against Ideology, 1969, critica essencialmente, em teoria e crítica de arte como no resto, a concepção segundo a qual um pensamento é a mais curta distância entre duas citações.
(3) Robert Lenoble, Histoire de l'Idée de Nature, col. L'Évolution de l'Humanité, 1969.
(4) Aristote, Poétique, ed. Hachette, 1923; refiro-me especialmente aos caps. II, VI, IX e XV, nas referências deste parágrafo. Worner Jaeger, in Aristotle, Fundamentals of the History of His Development, ed. Oxford Paperbacks, 1962, págs. 90-91, faz uma observação que aqui muito nos importa: o conceito de mímesis ou imitação é de origem platónica; para Platão as coisas visíveis são imitações dos arquétipos, ideias ou formas transcendentes (mas que Aristóteles considerará imanentes) aos seres concretos.
(5) Já no classicismo seiscentista francês e inglês é sensível a influência do racionalismo matemático cartesiano, pelo que respeita ao primado realista da razão sobre a imitação dos Antigos. René Wellek, Historia de Ia Crítica Moderna (1750-1950), ed. Gredos, vol. 1, pág. 24, e J. W. H. Atkins, English Literary Criticism, 17th and 18th Centuries, University Paperbacks, 1966, pág. 72, citam um texto capital de Thomas Rymer, séc. XVII, em que se pretende que na preceptística literária as razões sejam «claras e convincentes como qualquer demonstração matemática». A influência das ciências naturais na evolução estética do séc. XVIII constitui um dos temas de Paul Hazard, La Pensée Européenne au XVIII siècle de Montesquieu à Lessing, 2 vols. Paris, 1946; e os seus reflexos entre os iluministas e arcádicos portugueses são conhecidos (ver, por ex., História da Literatura Portuguesa, A. J. Saraiva e O. Lopes, Porto Editora, 6.a ed., capítulo O Século das Luzes). Quanto ao cientismo naturalista, ver Arnold Hauser, História Social da Arte e Cultura, trad. port. Jornal do Foro, 1955, págs. 320 e segs.; Martino, Le Naturalisme Français (1870-75), col. Armand Colin, passim.
(6) Galvano della Volpe, especialista há pouco falecido da tradição estética aristotélica, sobretudo em Poetica dei Cinquecento, Bari, 1954, expõe em Critica del Gusto, 2.ª ed. rev. e aum. 1964, com numerosos exemplos concretos de Píndaro a T. S. Eliot, a teoria de uma «contextualidade orgânica» da poesia que, todavia, e ao contrário do sustentado pela estética de Kant, pelas de Colerige, de George Moore, Yeats, N. Hartmann, do New Criticism (nomeadamente, Cleanthe Brooks e G. Penn Warren), etc., exige um acesso conceptual, historiante, exige a sua intérmina «paráfrase dialéctica» a partir da linguagem comum e da científica. O livro termina por uma extensão do princípio da «contextualidade orgânica» e do método da «paráfrase dialéctica» às artes plásticas e rítmicas. Isso permite formular, enfim, um complicado, mas inevitável, problema, que é o de determinar aquilo que, em dada obra de arte, possa haver de ideológico ou superestrutural. Embora eu dê à palavra «conceito» uma acepção menos aristotélica e mais linguística e logística, isto é, eu aceite que um conceito se possa definir, não apenas por compreensão, mas também por extensão e pelas suas funções operatórias, penso, como Volpe, que o conceito, a conceptualização, é inseparável da criação artística, como aliás de qualquer comportamento humano. Não pode saber-se o que nos diz uma dada peça da Arte da Fuga ou um dado pequeno quadro de Klee; mas fruí-los é saber, cada vez melhor, o que eles não nos dizem, é eliminar sucessivas e incontáveis paráfrases ideológicas. Eis porque me oponho à concepção do realismo como categoria artística de Stefan Morawski, perfilhada entre nós por Alexandre Pinheiro Torres. Em cada simples juízo de gosto, como Volpe abundantemente explica, há uma decisão ideológica; e o que em cada obra, não apenas artística mas também científica, subsistirá de estruturalmente humano ou de transcendente a determinações superestruturais datadas - constitui uma questão sempre em aberto. Volpe polemiza com Lukacs, que em dados textos e aspectos se aproxima da Crítica do Juízo kantiana (Prolegomeni a un'estetica marxista, ed. Riuniti, Roma, 1957, que opõe a particularidade da intuição sensível artística à conceptualização do pensamento científico). A posição lukacsiana tornou-se, contudo, mais complexa na Estética monumental que tem entre mãos. Ver, nomeadamente, Problemas de la Mímesis, vol. II, 1966, da trad. castelhana, Grijalbo, Barcelona.
(7) Grandes progressos recentes sobre a fisiologia e bioquímica do sono e do sonho revelam que a fracção do sono com sonho, que é de cerca de um quarto do tempo da dormida no adulto, atinge por vezes valores circulatórios e electrencefalográficos superiores aos da vigília. Ver artigo de Michel Jouvel in Science, Janeiro de 1969.
(8) Sobre a teoria do relevo ver, sob o ponto de vista psicológico, S. L. Rubinstein, El Ser y Ia Conciencia, trad. castelhana, Montevideo, 1960, págs. 239 e segs., onde se discutem os limites da reflexologia pavloviana e a especificidade do fenómeno psíquico; sob o ponto de vista gnoseológico, ver bibliografia em V. de Magalhães Vllhena, António Sérgio, o Idealismo Crítico e a Crise da Ideologia Burguesa, Seara Nova, 1964, págs. 26 e segs.; em arte, ver a Estética da Lukacs, especialmente, vols. 1 e 3, 1966-67 da trad. castelhana; em linguística, Adam Schaff, Langage et Connaissance, trad. franc., ed. Anthropos, 1969, págs. 157-175 e passim.
(9) Acerca do carácter inseparàvelmente «especulativo e operacional» da arte, ver Pierre Francastel, Art et Technique, col. Médiations, sobretudo págs. 109-132, 253-263. Tem bibliografia.
(10) Corro, conscientemente, os riscos de irracionalismo inerentes a uma concepção e a um critério realistas quando se referem à música e às artes não-figurativas ou simplesmente não-verbais. Heidegger, no 1.º ensaio incluído em Holzwege (trad. castelhana, Sendas Perdidas, Losada, Buenos Aires, 1960), bem como nos seus outros estudos sobre Hölderlin e Trakl, vê a arte e sobretudo a poesia como instituidoras da verdade, na acepção heideggeriana de verdade, em grego alêtheia, como desvendamento ou desocultação do ser, como instauração, por uma figura, de uma clareira ou iluminação entre os entes banaIizados, a qual os desvenda como tais. A forma artística e, eminentemente, a palavra poética instaurariam um mundo, o horizonte histórico de um povo, no diálogo em que, desde sempre, consistiria o existir humano, sem todavia anular a consciência de luta permanente entre o oculto e o desvendado, entre a terra e o mundo. Toda a história da metafísica pós-platónica e da ciência e tecnologia modernas resultaria da instauração de um mundo de entes concebidos (inclusivamente os entes ou existentes humanos) como instrumentos de domínio, restrição unilateral e degradante de outras possibilidades de verdade, ou alêtheia, hoje representadas pela poesia, pela arte, pela angústia existencial ou por qualquer modo ou disposição (Stimmung) de sentir que não seja conceptual, que não limite o Logos primordial do existir autêntico à lógica do domínio metafísico-tecnológico. Não cabe aqui discutir esta ontologia e estética heideggerianas. Aceito que a evidência imediata de uma obra de arte, ou até de um estilo em geral, seja a de uma Stimmung, uma tonalidade afectiva, um modo correlativo a uma Weltanschauung, ou visão do mundo, isto é a uma verdade. Quem lê uma tragédia, um poema épico ou um historiador clássicos sente bem até que ponto o autor se esmera em acarear a eloquência de certas personagens, que servem de simples máscaras a atitudes afectivas irredutíveis. À codificação sofística dessa retórica reagiu a dialéctica platónica e, depois, a lógica aristotélica, no início do mundo histórico da metafísica e da ciência que Heidegger critica. Este continua aliás a sociologia de Pareto, Max Weber e Mannheim, que tanto sublinharam a relatividade histórica do senso de verdade ao senso dos valores. Todavia não há hoje convicção autêntica de verdade que não conte com os dados científicos; eles participam, e cada vez mais evidentemente, das forças de produção económica, que em última instância determinam os modos de produção e o surto ou interpretação dos próprios valores. É preciso estar-se, quanto possível, em dia com os dados e a disciplina mental das ciências e com as perspectivas que elas abrem, no plano político, ao futuro humano - não para saber o que as obras de arte nos dizem, mas para saber o que elas não nos dizem. O principal papel da crítica e da paráfrase verbal prosaica à obra de arte é o de eliminar todas as sucessivas, erradas e inevitáveis formas de pseudocompreensão. Anàlogamente, aceito como irredutíveis e importantes desvendamentos do real certas vivências valorizadas pela literatura de tradição existencial, desde o pascaliano «je m'effraie et je m'étonne de me voir ici plutôt que là» até à angústia de Heidegger, ao «alarme» ou «aparição de mim a mim próprio», tema central dos últimos romances de Vergílio Ferreira; apenas me recuso a tematizá-los em qualquer teoria, inevitàvelmente metafísica, de esperança ou desespero humano que não tenha em conta as evidências intrínsecas à actual práxis científica.
(11) Em Opera Aperta, Bompiani, Milão, 1962, de Umberto Eco, trad. franc. Éditions du Seuil, 1965, de que existe um trecho antológico em tradução portuguesa (Páginas de Estética Contemporânea, selec., trad., pref. e nota de Arnaldo Saraiva, Editorial Presença, Lisboa, 1966), faz-se a história da progressiva abertura da arte à participação do público ou do executante. Isto é completado por urna teoria informática do progresso em arte, como surto de ordens sempre mais complexas de probabilidades, que descarta, quer a previsibilidade minimizante da informação, quer a equiprobabilidade do ruído, ou acaso puro. Eco relaciona tudo com uma monografia sobre a génese da estética de James Joyce e com a gnoseologia actual das ciências. Tem importantes referências bibliográficas no fim de cada capítulo.
(12) Ernst Fischer em Von der Notwendigkeit der Kunst, 1959, trad. inglesa em Penguin Books, 1963, págs. 180-196 (há trad. portuguesa) insiste no papel produtivo, mais do que expressivo de sentimentos que a música desempenha, sobretudo em sociedades não-burguesas, - de acordo aliás com a ênfase que põe nas origens e resíduos mágicos da arte. Umberto Eco, op. cit., também sublinha a função produtiva da arte, que implica, sim, um conhecimento, mas não por discurso lógico nem por inspiração órfica - apenas por metáfora epistemológica. Francastel, quer em op. cit., quer no seu capítulo sobre Sociologia da Arte no Traité de Sociologie de Gurvitch, 1963, t. II, págs. 278 e segs., põe em relevo a obra de arte como objecto de civilização, intencional, significativo e (louvando-se de uma fina observação de Marcel Mauss) mostra como o acabamento especificamente estético de uma obra é indissociável da sua função social: forma de conhecimento ou sabedoria, adequação prática, convicção mágica ou religiosa, etc.. Max Bense, convicto de que a própria filosofia moderna se converteu, com Heidegger, numa «comunicação de existência» mais do que na de conceitos, sustenta que a arte responde à «questão de ser» com um «fazer», e não com um conhecimento (Estética, 1954, trad. castelhana Nueva Visión, Buenos Aires, 1960; o texto que mais nos interessa está incluído em Páginas de Estética Contemporânea, selec. e trad. Arnaldo Saraiva, Edições Presença, Lisboa, 1966).
É já clássico, a propósito da dialéctica sujeito-objecto da produção, o nomeadamente da arte, este texto: «O objecto de arte - como qualquer outro produto - cria um público sensível à arte, capaz de fruir a beleza. A produção não se limita a criar um objecto para o sujeito: cria também um sujeito para o objecto». (Introdução Geral à Crítica da Economia Política, in Karl Marx, Oeuvres, I, Bibliothèque de Ia Pléiade, pág. 245).
(13) La Nostra Crisi Attuale, trad. italiana, Editori Riuniti, 1968.
(14) Trad. castelhana, Ediciones Pueblos Unidos, Montevideo, 1959, pág. 25.
(15) A forma predilecta de escatologia nos meios burgueses cultos é, talvez, o teilhardismo, que eu consideraria uma versão baptizada e cientificamente actualizada (em 1950) da Dialéctica da Natureza de Engels, se o seu materialismo latente não assumisse um aspecto de metafísica biologista, em vez de uma dialéctica informada, como já a de Engeis, por conceitos sociológicos precisos: noosfera, cerebralização colectiva, energia interior humana, moléculas humanas demogràficamente saturadas, onda de hominização, ultra-humanização, unanimização, ponto Ómega, ou final, de interiorização psíquica por concentração e complexicação, para só colher alguns excertos de La Place de l'Homme dans Ia Nature, col. 10/18, 1964 - tudo em Teilhard de Chardin sugere uma teologia de metáfora paleontológica-biológica. Uma boa discussão de escatologias antigas e modernas, que por sinal não inclui o teilhardismo, refutando a inclusão do marxismo entre elas: Carlos Estrada, El Marxismo y Ias Escatologias, Ediciones Procyon, Buenos Aires, 1957.
(16) António Gramsci, nos seus Cadernos do Cárcere, que, entre outras coisas, contêm fecundíssimas sugestões heurísticas para a história dos intelctuais como grupo social, particularmente aproveitáveis para os países latinos do sul, foca o importante fenómeno da pluralidade de concepções e práticas, umas folclóricas e outras letradas, a que certas correntes religiosas, e a bem do status quo, històricamente se têm ajustado, o que em especial se verifica na China, na Índia e nos países católicos latinos. Ver Los Intelectuales y Ia Organización de Ia Cultura, Lautaro, Buenos Aires, 1960, págs. 27-28.
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