O fim da civilização ocidental

Porque carece de resiliência e o que irá tomar o seu lugar

 

 

Michael Hudson (*)

 

 

 

O colapso da civilização moderna e o futuro da humanidade

 

O maior desafio enfrentado pelas sociedades sempre foi o de como conduzir o comércio e o crédito sem deixar que os comerciantes e credores ganhem dinheiro explorando os seus clientes e devedores. Toda a Antiguidade reconheceu que o impulso para adquirir dinheiro é viciante e, na verdade, tende a ser explorador e, portanto, socialmente prejudicial. Os valores morais da maioria das sociedades opuseram-se ao egoísmo, sobretudo sob a forma de avareza e vício de riqueza, a que os gregos chamaram philarguria - amor ao dinheiro, prata-mania. Os indivíduos e as famílias que se entregaram ao consumo conspícuo tenderam a ser ostracizados, porque se reconheceu que a riqueza era frequentemente obtida à custa dos outros, em especial dos fracos.

 

O conceito grego de hubris envolvia um comportamento egoísta causando danos a outros. A avareza e a ganância deviam ser punidas pela deusa da justiça Nemesis, que tinha muitos antecedentes do Próximo Oriente, como Nanshe de Lagash, na Suméria, protegendo os fracos contra os poderosos, o devedor contra o credor.

 

Essa proteção era o que se esperava que os governantes proporcionassem ao serviço dos deuses. É por isso que os governantes estavam imbuídos de poder suficiente para proteger a população de ser reduzida à dependência da dívida e ao clientelismo. Chefes, reis e templos estavam encarregados de atribuir crédito e terras de cultivo para permitir aos pequenos proprietários servir no exército e fornecer mão-de-obra de corveia. Os governantes que se comportavam de forma egoísta corriam o risco de serem depostos ou de verem os seus súbditos fugir, apoiar dirigentes rebeldes ou atacantes estrangeiros, que prometessem cancelar dívidas e redistribuir as terras de forma mais equitativa.

 

A função mais básica da realeza do Próximo Oriente era proclamar a "ordem económica", o misharum e o andurarum, cancelamentos de dívidas, ecoados no Ano Jubilar do Judaísmo. Não havia "democracia", no sentido de os cidadãos elegerem os seus dirigentes e administradores, mas a "realeza divina" era obrigada a alcançar o objetivo económico implícito da democracia: "proteger os fracos dos poderosos".

 

O poder real era apoiado por templos e sistemas éticos ou religiosos. As principais religiões que surgiram em meados do primeiro milénio a.C., as de Buda, Lao-Tzu e Zoroastro, sustentavam que os impulsos pessoais deveriam estar subordinados à promoção do bem-estar geral e da ajuda mútua.

 

O que não parecia provável há 2500 anos atrás era que uma aristocracia guerreira conquistaria o mundo ocidental. Ao criar o que se tornou o Império Romano, uma oligarquia tomou o controlo da terra e, a seu tempo, do sistema político. Aboliu a autoridade real ou cívica, deslocou a carga fiscal para as classes mais baixas e conduziu a população e a indústria para a dívida.

 

Isto foi feito numa base puramente oportunista. Não houve qualquer tentativa de defender esta opção ideologicamente. Não houve qualquer sugestão de um arcaico Milton Friedman, emergindo para popularizar uma radical nova ordem moral, celebrando a avareza, afirmando que a ganância é o que impulsiona as economias para a frente, e não para trás, convencendo a sociedade a deixar a distribuição das terras e do dinheiro para "o mercado", controlado por corporações privadas e prestamistas de dinheiro, em vez de ser objeto de regulamentação comunalista pelos governantes dos palácios e dos templos - ou, por extensão, pelo socialismo de hoje. Os palácios, templos e governos cívicos eram credores. Não eram obrigados a pedir empréstimos para funcionar, e por isso não estavam sujeitos às exigências políticas de uma classe credora privada.

 

Mas colocar a população, a indústria e mesmo os governos em dívida para com uma elite oligárquica é precisamente o que aconteceu no Ocidente, que está agora a tentar impor a variante moderna deste regime económico baseado na dívida - o capitalismo financeiro neoliberal centrado nos E.U.A. - a todo o mundo. É sobre isso que se trava hoje a Nova Guerra Fria.

 

Pela moralidade tradicional das sociedades primordiais, o Ocidente - começando na Grécia clássica e na Itália por volta do século VIII a.C. - era bárbaro. O Ocidente estava, de facto, na periferia do mundo antigo, quando comerciantes sírios e fenícios trouxeram a ideia de dívidas remuneradas do Próximo Oriente para sociedades que não tinham uma tradição real de cancelamentos periódicos de dívidas. A ausência de um forte poder palaciano e de uma forte administração do templo permitiu o surgimento de oligarquias credoras em todo o mundo mediterrânico.

 

A Grécia acabou por ser conquistada, primeiro pela Esparta oligárquica, depois pela Macedónia e finalmente por Roma. Foi o sistema jurídico avaro e pró-credor desta última que moldou a subsequente civilização ocidental. Hoje, um sistema de controlo oligárquico financeiramente equilibrado, cujas raízes conduzem de volta a Roma, está a ser apoiado e imposto pela diplomacia da Nova Guerra Fria dos E.U.A., força militar e sanções económicas a países que procuram resistir-lhe.

 

A tomada de controlo oligárquico da Antiguidade clássica

 

A fim de compreender como a civilização ocidental se desenvolveu de uma forma que continha as sementes fatais da sua própria polarização económica, declínio e queda, é necessário reconhecer que quando a Grécia e Roma clássicas aparecem no registo histórico, uma Idade das Trevas tinha perturbado a vida económica do Próximo Oriente ao Mediterrâneo oriental, de 1200 a cerca de 750 a.C.. Alterações climáticas, aparentemente, causaram um grave despovoamento, acabando com as economias palacianas Linear B, da Grécia, tendo a vida regressado ao nível local durante este período.

 

Algumas famílias criaram autocracias do tipo mafioso, monopolizando a terra e vinculando a ela o trabalho por várias formas de clientela coerciva e dívidas. Acima de tudo, era o problema da dívida remunerada que os comerciantes do Próximo Oriente tinham trazido para as terras do Egeu e do Mediterrâneo - sem a correspondente compensação dos cancelamentos reais de dívidas.

 

Desta situação, surgiram os "tiranos" reformadores gregos, nos séculos VII e VI a.C., de Esparta a Corinto, Atenas e ilhas gregas. A dinastia Cypselid em Corinto e novos dirigentes semelhantes, noutras cidades, terão cancelado as dívidas que mantinham os clientes em servidão nas terras, redistribuíram estas terras aos cidadãos e empreenderam gastos em infraestruturas públicas para construir o comércio, abrindo o caminho para o desenvolvimento cívico e os rudimentos da democracia. Esparta decretou austeras reformas "Licurgoenses" contra o consumo conspícuo e o luxo. A poesia de Arquíloco, na ilha de Paros, e Sólon de Atenas, denunciaram o impulso para a riqueza pessoal como viciante, levando à hubris que fere os outros – tudo a ser punido pela deusa da justiça Némesis. O espírito era semelhante nos babilónico, judaicos e noutras religiões morais.

 

Roma teve uns lendários sete reis (753-509 a.C.), que se diz terem atraído imigrantes e impedido uma oligarquia de os explorar. Mas as famílias ricas derrubaram o último rei. Não havia um dirigente religioso para verificar o seu poder, uma vez que as principais famílias aristocráticas controlavam o sacerdócio. Não havia dirigentes que combinassem a reforma económica doméstica com uma escola religiosa, e não havia uma tradição ocidental de cancelamento de dívidas, como Jesus defenderia, ao tentar restaurar o Ano Jubilar na prática judaica. Havia muitos filósofos estoicos, e sítios religiosos anfictiónicos, como Delfos e Delos, que expressavam uma religião de moralidade pessoal para evitar a hubris.

 

Os aristocratas de Roma criaram uma constituição e um Senado antidemocráticos, bem como leis que tornaram a servidão por dívidas - e a consequente perda de terras - irreversível. Embora a ética "politicamente correta" fosse evitar o comércio e o empréstimo de dinheiro, esta ética não impediu uma oligarquia de emergir, para tomar posse da terra e reduzir grande parte da população à servidão. No século II a.C., Roma conquistou toda a região mediterrânica e a Ásia Menor, sendo que as maiores corporações eram os cobradores de impostos públicos, que são referenciados como tendo saqueado as províncias de Roma.

 

Sempre houve formas de os ricos agirem de forma santimoniosa e em harmonia com a ética altruísta, evitando a ganância comercial e enriquecendo-se a si próprios, ainda assim. Os ricos da Antiguidade ocidental foram capazes de aceitar tal ética, evitando empréstimos diretos e trocas comerciais, atribuindo este "trabalho sujo" aos seus escravos ou libertos, e gastando as receitas de tais atividades numa filantropia conspícua (que se tornou um espetáculo esperado nas campanhas eleitorais de Roma). E depois do cristianismo se ter tornado a religião romana, no século IV d.C., o dinheiro foi capaz de comprar absolvição através de doações à Igreja convenientemente generosas.

 

O legado de Roma e o imperialismo financeiro do Ocidente

 

O que distingue as economias ocidentais das anteriores sociedades do Próximo Oriente e da maioria das sociedades asiáticas é a ausência de eventos de alívio da dívida para restabelecimento do equilíbrio de toda a economia. Todas as nações ocidentais herdaram de Roma a santidade dos princípios da dívida pró-credor, que dão prioridade às reclamações dos credores e legitimam a transferência permanente para os credores da propriedade dos devedores faltosos. De Roma antiga à Espanha de Habsburgo, Grã-Bretanha imperial e Estados Unidos da América, as oligarquias ocidentais apropriaram-se do rendimento e da terra dos devedores, ao mesmo tempo que transferiram os impostos de si próprias para o trabalho e a indústria. Isto causou austeridade doméstica e levou as oligarquias a procurar a prosperidade através da conquista externa, a ganhar dos estrangeiros o que não está a ser produzido pelas economias domésticas, levadas ao endividamento e sujeitas a princípios legais pró-credor, transferindo terras e outras propriedades para uma classe rentista.

 

A Espanha no século XVI saqueou vastos carregamentos de prata e ouro do Novo Mundo, mas esta riqueza fluiu através das suas mãos, dissipando-se na guerra em vez de ser investida na indústria nacional. Deixados com uma economia fortemente desigual e polarizada, profundamente endividada, os Habsburgos perderam a sua antiga posse, a República Holandesa, que prosperou como a sociedade menos oligárquica e que derivava mais poder como credora do que como devedora.

 

A Grã-Bretanha seguiu uma ascensão e uma queda semelhantes. A Primeira Guerra Mundial deixou-a com pesadas dívidas de armamentos à sua própria ex-colónia, os Estados Unidos da América. Impondo em casa uma austeridade anti-laboral, na tentativa de pagar estas dívidas, a área britânica da libra esterlina tornou-se subsequentemente um satélite do dólar norte-americano nos termos do American Lend-Lease, na Segunda Guerra Mundial, e do British Loan de 1946. As políticas neoliberais de Margaret Thatcher e Tony Blair aumentaram acentuadamente o custo de vida através da privatização e monopolização da habitação pública e das infraestruturas, acabando com a antiga competitividade industrial da Grã-Bretanha através do aumento do custo de vida e, consequentemente, dos níveis salariais.

 

Os Estados Unidos da América seguiram uma trajetória semelhante de sobre-extensão imperial à custa da sua economia interna. As suas despesas militares ultramarinas a partir de 1950 forçaram o dólar a sair do ouro em 1971. Essa mudança teve o benefício imprevisto de introduzir um "padrão dólar" que permitiu à economia dos E.U.A. e à sua diplomacia militar obter uma boleia gratuita do resto do mundo, ao conduzir a dívida em dólares para a titularidade dos bancos centrais de outras nações, sem qualquer constrangimento prático.

 

A colonização financeira da União pós-soviética nos anos 1990 pela "terapia de choque" das privatizações, seguida pela admissão da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001 - com a expetativa de que a China, tal como a Rússia de Ieltsin, se tornasse uma colónia financeira norte-americana - levou a economia estadunidense a desindustrializar-se, transferindo o emprego para a Ásia. A tentativa de forçar a submissão ao controlo dos E.U.A., inaugurando hoje a Nova Guerra Fria, levou a Rússia, a China e outros países a separarem-se do sistema de comércio e investimento dolarizado, deixando os Estados Unidos da América e a Europa da NATO a sofrerem a austeridade e o aprofundando da desigualdade de riqueza, uma vez que os rácios de endividamento estão a aumentar para indivíduos, empresas e organismos governamentais.

 

Foi apenas há uma década atrás que o Senador John McCain e o Presidente Barack Obama caracterizaram a Rússia como uma mera estação de serviço com bombas atómicas. O mesmo se pode dizer agora dos Estados Unidos da América, que baseia o seu poder económico mundial no controlo do comércio petrolífero do Ocidente, enquanto os seus principais excedentes de exportação são as culturas agrícolas e as armas. A combinação de alavancagem da dívida financeira e privatização fez dos E.U.A. uma economia de alto custo, perdendo a sua antiga liderança industrial, tal como sucedeu à Grã-Bretanha. Os Estados Unidos da América estão agora a tentar viver principalmente de ganhos financeiros (juros, lucros sobre o investimento estrangeiro e criação de crédito do banco central para inflar ganhos de capital) em vez de criar riqueza através do seu próprio trabalho e indústria. Os seus aliados ocidentais procuram fazer o mesmo. Eles eufemizam este sistema dominado pelos E.U.A. como "globalização", mas é simplesmente uma forma financeira de colonialismo - apoiada pelas habituais ameaças de emprego da força militar ou de "mudança de regime" encoberta, para impedir que os países se retirem do sistema.

 

Este sistema imperial baseado nos E.U.A. e na NATO procura endividar os países mais fracos e forçá-los a entregar o controlo das suas políticas ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial. Obedecer ao "conselho" anti-laboral neoliberal destas instituições leva a uma crise de dívida, que força o país devedor a desvalorizar a taxa de câmbio estrangeira. O F.M.I. "salva-os" então da insolvência, com base na "condicionalidade" de que vendam o seu domínio público e transfiram os impostos dos ricos (em especial dos investidores estrangeiros) para o trabalho.

 

A oligarquia e a dívida são as características que definem as economias ocidentais. As despesas militares estrangeiras dos E.U.A. e as guerras quase constantes deixaram o seu próprio Tesouro profundamente endividado aos governos estrangeiros e aos seus bancos centrais. Os Estados Unidos da América estão assim a seguir o mesmo caminho pelo qual o imperialismo espanhol deixou a dinastia dos Habsburgos em dívida para com os banqueiros europeus, e pelo qual a participação da Grã-Bretanha em duas guerras mundiais, na esperança de manter a sua posição dominante no mundo, a deixou em dívida, acabando com a sua antiga vantagem industrial. A crescente dívida externa norte-americana tem sido sustentada pelo seu privilégio de "moeda chave", que lhe permite emitir a sua própria dívida em dólares, sob o "padrão do dólar", sem que os outros países tenham qualquer expectativa razoável de alguma vez serem pagos - exceto em ainda mais "dólares de papel".

 

Esta afluência monetária permitiu à elite dirigente de Wall Street aumentar a sobredespesa rentista dos E.U.A. através da financeirização e da privatização, aumentando o custo de vida e o de fazer negócios, tal como aconteceu na Grã-Bretanha, sob as políticas neoliberais de Margaret Thatcher e Tony Blair. As empresas industriais responderam, transferindo as suas fábricas para economias de baixos salários para maximizar os lucros. Mas à medida que os E.U.A. se desindustrializam, com a sua crescente dependência das importações da Ásia, a diplomacia norte-americana está a prosseguir uma Nova Guerra Fria, que está a levar as economias mais produtivas do mundo a desligarem-se da órbita económica dos E.U.A..

 

A dívida crescente destrói as economias quando não está a ser utilizada para financiar novos investimentos de capital em meios de produção. A maior parte do crédito ocidental é hoje criado para inflacionar os preços de ações, obrigações e imóveis, não para restaurar a capacidade industrial. Em resultado desta abordagem do tipo dívida-sem produção, a economia interna dos E.U.A. tem sido esmagada pela dívida à sua própria oligarquia financeira. Apesar do almoço gratuito de que beneficia a economia norte-americana, sob a forma de um contínuo aumento da sua dívida oficial aos bancos centrais estrangeiros - sem perspetivas visíveis de pagamento, quer da sua dívida internacional, quer da interna - a sua dívida continua a expandir-se e a economia tornou-se ainda mais endividada. Os E.U.A. polarizaram-se, com a extrema riqueza concentrada no topo, enquanto a maior parte da economia está profundamente endividada.

 

O fracasso das democracias oligárquicas em proteger a população endividada em geral

 

O que tornou as economias ocidentais oligárquicas é o seu fracasso em proteger os cidadãos de serem levados à dependência de credores da classe detentora de propriedade. Estas economias mantiveram as leis da dívida de Roma, favorecedoras do credor, sobretudo a prioridade dada às reclamações do credor sobre a propriedade dos devedores. Os Um Porcento credores tornaram-se uma oligarquia politicamente poderosa, apesar das reformas políticas democráticas nominais, que expandem os direitos de voto. As agências reguladoras governamentais foram capturadas e o poder tributário foi tornado regressivo, deixando o controlo e o planeamento económicos nas mãos de uma elite rentista.

 

Roma nunca foi uma democracia. E, em qualquer caso, Aristóteles reconheceu as democracias como evoluindo mais ou menos naturalmente para oligarquias - que afirmam ser democráticas para fins de relações públicas, enquanto fingem que a sua cada vez mais alta concentração de riqueza é tudo pelo melhor. A retórica do gotejamento para o fundo (“trickle down”) retrata os bancos e os gestores financeiros como a forma mais eficiente de orientar a poupança para produzir prosperidade para toda a economia, e não apenas para si próprios.

 

O Presidente Biden e os neoliberais do seu Departamento de Estado acusam a China e qualquer outro país que procure manter a sua independência económica e autoconfiança de serem "autocráticos". Este truque retórico opera uma justaposição entre democracia e autocracia. Aquilo a que eles chamam "autocracia" é um governo suficientemente forte para impedir que uma oligarquia financeira orientada para o Ocidente endivide a população a si própria - e depois saque as suas terras e outras propriedades para as suas próprias mãos e para as dos seus financiadores norte-americanos e de outros países estrangeiros.

 

A orwelliana ideia dúplice (“doublethink”) de chamar "democracias" às oligarquias é seguida pela definição de mercado livre como sendo um mercado livre para a procura de rendas financeiras. A diplomacia apoiada pelos Estados Unidos da América tem endividado países, forçando-os a vender o controlo das suas infraestruturas públicas e a transformar as "alturas comandantes" (“commanding heights”) das suas economias em oportunidades para extrair renda monopolista.

 

Esta retórica autocracia vs. democracia é semelhante à retórica que as oligarquias grega e romana utilizavam quando acusavam os reformadores democráticos de procurarem a "tirania" (na Grécia) ou a "realeza" (em Roma). Foram os "tiranos" gregos que derrubaram autocracias mafiosas nos séculos VII e VI a.C., abrindo o caminho para as descolagens económicas e protodemocráticas de Esparta, Corinto e Atenas. E foram os reis de Roma que construíram a sua cidade-estado, oferecendo aos cidadãos a posse de terras com auto-sustentação. Essa política atraiu imigrantes de cidades-estado italianas vizinhas, cujas populações estavam a ser forçadas à servidão por dívidas.

 

O problema é que as democracias ocidentais não provaram ser competentes em impedir a emergência de oligarquias e a polarização na distribuição do rendimento e da riqueza. Desde Roma, as "democracias" oligárquicas não têm protegido os seus cidadãos de credores que procuram apropriar-se da terra, do seu rendimento locativo e do domínio público.

 

Se nos perguntarmos quem está hoje a decretar e a aplicar políticas que procuram contrariar a oligarquia a fim de proteger a subsistência dos cidadãos, a resposta é que isso é feito pelos Estados socialistas. Apenas um Estado forte tem o poder de contrariar uma oligarquia financeira e buscadora de rendas. A embaixada chinesa nos Estados Unidos da América demonstrou isso mesmo, na sua resposta à descrição da China pelo Presidente Biden como uma autocracia:

 

“Agarrados a uma mentalidade de Guerra Fria e à lógica hegemónica, os E.U.A. perseguem a política de bloco, inventam a narrativa "democracia vs. autoritarismo"... e formam alianças militares bilaterais, numa clara tentativa de contrariar a China.

 

Guiado por uma filosofia centrada no povo, desde o dia da sua fundação... o Partido tem trabalhado incansavelmente para o interesse do povo, e tem-se dedicado a realizar as aspirações do povo por uma vida melhor. A China tem vindo a fazer avançar a democracia popular de processo integral, promovendo a salvaguarda legal dos direitos humanos, defendendo a equidade social e a justiça. O povo chinês goza agora de direitos democráticos mais amplos e abrangentes” (1).

 

Quase todas as sociedades primordiais não ocidentais tinham proteções contra a emergência de oligarquias mercantis e rentistas. É por isso que é tão importante reconhecer que o que se tornou a civilização ocidental representa uma rotura com o Próximo Oriente, o Sul e o Leste da Ásia. Cada uma destas regiões tinha o seu próprio sistema de administração pública orientado para a preservação do seu equilíbrio social das depredações da riqueza comercial e monetária, que ameaçava destruir o equilíbrio económico caso não fosse controlado. Mas o carácter económico do Ocidente foi moldado pelas oligarquias rentistas. A República de Roma enriqueceu a sua oligarquia ao retirar a riqueza das regiões que conquistou, deixando-as empobrecidas. Esta continua a ser a estratégia extrativa do colonialismo europeu subsequente e, mais recentemente, da globalização neoliberal centrada nos E.U.A.. O objetivo foi sempre o de "libertar" as oligarquias de quaisquer constrangimentos na sua demanda por si próprias.

 

A grande questão é: "liberdade" para quem? A economia política clássica definiu um mercado livre como sendo um mercado livre de rendimentos não ganhos, encabeçados pela renda da terra e de outros recursos naturais, pela renda de monopólio, pelos juros financeiros e outros privilégios creditícios relacionados. Mas no final do século XIX, a oligarquia rentista patrocinou uma contra-revolução fiscal e ideológica, redefinindo um mercado livre como sendo um mercado livre para os rentistas extraírem renda económica - rendimento não ganho.

 

Esta rejeição da crítica clássica ao rendimento dos rentistas foi acompanhada pela redefinição da "democracia" para exigir que esta incluísse um "mercado livre" da variedade oligárquica rentista anticlássica. Em vez de o governo ser o regulador económico do interesse público, a regulação pública do crédito e dos monopólios é desmantelada. Isso permite às empresas cobrar o que quiserem pelo crédito que fornecem e pelos produtos que vendem. Privatizar o privilégio de criar dinheiro creditício permite que o sector financeiro assuma o papel de atribuir a detenção da propriedade.

 

O resultado tem sido a centralização do planeamento económico em Wall Street, na City de Londres, na Bolsa de Paris e noutros centros financeiros imperiais. É disso que trata hoje a Nova Guerra Fria: proteger este sistema do capitalismo financeiro neoliberal centrado nos E.U.A., destruindo ou isolando os sistemas alternativos da China, da Rússia e dos seus aliados, ao mesmo tempo que se procura financializar ainda mais o antigo sistema colonialista, patrocinando o poder credor em vez de proteger os devedores, impondo uma austeridade repleta de dívida em vez do crescimento, e tornando irreversíveis as perdas de propriedade através de execução hipotecária ou venda forçada.

 

Será a civilização ocidental um longo desvio do caminho para onde a Antiguidade parecia conduzir?

 

O que é tão importante na polarização e no colapso económico de Roma, resultante da dinâmica da dívida remunerada nas mãos vorazes da sua classe credora, é como o seu sistema jurídico pró-credor oligárquico diferiu radicalmente das leis das sociedades anteriores, que controlavam os credores e a proliferação da dívida. A ascensão de uma oligarquia credora que utilizava a sua riqueza para monopolizar a terra e tomar o governo e os tribunais (não hesitando em usar a força e o assassinato político direcionado contra os pretendentes a reformadores) tinha sido impedida, durante milhares de anos, em todo o Próximo Oriente e outras terras asiáticas. Mas à periferia do Egeu e do Mediterrâneo faltavam os controlos e equilíbrios (“checks and balances”) económicos que tinham proporcionado resiliência noutras regiões do Próximo Oriente. O que distinguiu o Ocidente, desde o início, foi a sua falta de um governo suficientemente forte para controlar a emergência e o domínio de uma oligarquia credora.

 

Todas as economias antigas operavam a crédito, contraindo dívidas de colheita durante o ano agrícola. As guerras, secas ou inundações, doenças e outras perturbações impediram frequentemente as dívidas acumuladas de serem pagas. Mas os governantes do Próximo Oriente cancelaram as dívidas, nestas condições. Isso salvou os seus cidadãos-soldados e trabalhadores a corveia de perderem as suas terras de auto-sustento para os credores, que foram reconhecidos como sendo uma potencial potência rival do palácio. Em meados do primeiro milénio a.C., a servidão por dívidas tinha diminuído para apenas um fenómeno marginal na Babilónia, Pérsia e outros reinos do Próximo Oriente. Mas a Grécia e Roma estavam a meio de meio milénio de revoltas populares que exigiam a anulação de dívidas, a libertação da servidão por dívidas e a reversão da perda de terras de auto-sustento.

 

Foram apenas os reis romanos e os tiranos gregos que, durante algum tempo, conseguiram proteger os seus súbditos da servidão por dívidas. Mas acabaram por perder para as oligarquias de credores senhoras da guerra. A lição da história é, portanto, que é necessário um forte poder regulador do governo para impedir que as oligarquias surjam e utilizem as reclamações dos credores e as apropriações de terras para transformar os cidadãos em devedores, arrendatários, clientes e, em última análise, servos.

 

A ascensão do controlo dos credores sobre os governos modernos

 

Palácios e templos em todo o mundo antigo foram credores. Só no Ocidente surgiu uma classe de credores privados. Um milénio após a queda de Roma, uma nova classe bancária obrigou os reinos medievais a endividarem-se. Famílias bancárias internacionais usaram o seu poder credor para ganhar o controlo de monopólios públicos e recursos naturais, tal como os credores tinham ganho o controlo de terras individuais na Antiguidade clássica.

 

A Primeira Guerra Mundial viu as economias ocidentais atingirem uma crise sem precedentes, como resultado das dívidas inter-aliados e das reparações alemãs. O comércio entrou em colapso e as economias ocidentais caíram em depressão. O que dela as retirou foi a Segunda Guerra Mundial, e desta vez não foram impostas reparações após o fim da guerra. Em lugar das dívidas de guerra, a Inglaterra foi simplesmente obrigada a abrir aos exportadores norte-americanos a sua área da libra esterlina e a abster-se de reavivar os seus mercados industriais através da desvalorização da sua moeda, nos termos da Lend-Lease e do Empréstimo Britânico de 1946, conforme acima referido.

 

O Ocidente emergiu da Segunda Guerra Mundial relativamente livre de dívida privada - e completamente sob o domínio dos E.U.A.. Mas desde 1945 o volume da dívida aumentou exponencialmente, atingindo proporções de crise em 2008 com a explosão da bolha do lixo hipotecário, da fraude bancária maciça e da pirâmide da dívida financeira, sobrecarregando os E.U.A., bem como as economias do Sul europeu e global.

 

O Banco da Reserva Federal dos E.U.A. monetizou 8 biliões (milhões de milhões) de dólares para salvar as ações, obrigações e hipotecas imobiliárias empacotadas da elite financeira, em vez de salvar as vítimas de hipotecas-lixo e países estrangeiros sobre-endividados. O Banco Central Europeu fez muito o mesmo, para salvar os europeus mais ricos de perderem o valor de mercado da sua riqueza financeira.

 

Mas era já demasiado tarde para salvar as economias norte-americana e europeia. A longa acumulação de dívida pós-1945 já terminou. A economia dos E.U.A. foi desindustrializada, as suas infraestruturas estão em colapso e a sua população está tão profundamente endividada que resta pouco rendimento disponível para sustentar o nível de vida. Tal como aconteceu com o Império de Roma, a resposta norte-americana é tentar manter a prosperidade da sua própria elite financeira através da exploração de países estrangeiros. Este é o objetivo da diplomacia da Nova Guerra Fria de hoje. Implica a extração de tributo económico, empurrando as economias estrangeiras para ainda mais fundo em dívida dolarizada, a ser paga através da imposição da depressão e da austeridade sobre si próprias.

 

Esta subjugação é descrita pelos economistas convencionais como uma lei da natureza e, portanto, como uma forma inevitável de equilíbrio, em que a economia de cada nação recebe "o que vale". Os modelos económicos atuais baseiam-se no pressuposto irrealista de que todas as dívidas podem ser pagas, sem polarizar o rendimento e a riqueza. Todos os problemas económicos são assumidos como autocuráveis pela "magia do mercado", sem qualquer necessidade de intervenção da autoridade civil. A regulamentação governamental é considerada ineficiente e ineficaz, e, por conseguinte, desnecessária. Isso deixa os credores, os açambarcadores de terras e os privatizadores com a mão livre para privar os outros da sua liberdade. Isto é retratado como sendo o destino final da globalização de hoje, e da própria história.

 

O fim da história? Ou apenas da financeirização e privatização do Ocidente?

 

A pretensão neoliberal é que privatizar o domínio público e deixar o setor financeiro assumir o planeamento económico e social nos países visados trará prosperidade mutuamente benéfica. Isto é suposto tornar voluntária a submissão estrangeira à ordem mundial centrada nos Estados Unidos da América. Mas o verdadeiro efeito da política neoliberal tem sido polarizar as economias do Sul global e submetê-las a uma austeridade endividada.

 

O neoliberalismo norte-americano afirma que a privatização, financeirização e transferência do planeamento económico do governo para Wall Street e outros centros financeiros é o resultado de uma vitória darwiniana atingindo uma tal perfeição que será "o fim da história". É como se o resto do mundo não tivesse outra alternativa senão aceitar o controlo norte-americano do sistema global (ou seja, neocolonial) financeiro, comercial e de organização social. E só para adquirir a certeza, a diplomacia dos E.U.A. procura sustentar o seu controlo financeiro e diplomático com a força militar.

 

A ironia é que a própria diplomacia dos E.U.A. ajudou a acelerar uma resposta internacional ao neoliberalismo, forçando a juntarem-se os governos suficientemente fortes para retomar a longa tendência da história que vê nos governos um poder para impedir que a dinâmica oligárquica corrosiva faça descarrilar o progresso da civilização.

 

O século XXI começou com os neoliberais norte-americanos a imaginarem que a sua financeirização e privatização alavancadas pelo endividamento coroaria a longa ascensão da história humana, como herança da Grécia e Roma clássicas. A visão neoliberal da história antiga ecoa a das oligarquias da antiguidade, denegrindo os reis de Roma e os tiranos reformadores da Grécia como ameaças de uma intervenção pública demasiado forte, quando eles visavam apenas manter os cidadãos livres da servidão por dívidas e assegurar a posse de terras para auto-sustentação. O que é visto como o ponto de partida decisivo é a "segurança dos contratos" para a oligarquia, dando aos credores o direito de expropriar os devedores. Esta tem permanecido, de facto, uma característica determinante dos sistemas jurídicos ocidentais nos últimos dois mil anos.

 

Um verdadeiro fim da história significaria que a reforma pararia em todos os países. Esse sonho parecia próximo quando aos neoliberais norte-americanos foi dada liberdade para reformar a Rússia e outros Estados pós-soviéticos, após a dissolução da União Soviética em 1991, começando com a terapia de choque, privatizando os recursos naturais e outros bens públicos para as mãos de cleptocratas orientados para o Ocidente, que registavam a riqueza pública nos seus próprios nomes - e faziam dinheiro vendendo as suas aquisições a investidores dos E.U.A. e outros países ocidentais.

 

O fim da história da União Soviética era suposto consolidar o fim da história promovido pelos Estados Unidos da América, mostrando quão fútil seria para as nações tentarem criar uma ordem económica alternativa baseada no controlo público do dinheiro e dos bancos, saúde pública, educação gratuita e outros subsídios a necessidades básicas, livres do financiamento pela dívida. A admissão da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, foi vista como confirmando a afirmação de Margaret Thatcher de que não há alternativa (TINA) à nova ordem neoliberal patrocinada pela diplomacia dos E.U.A..

 

Existe uma alternativa económica, é claro. Olhando para o longo curso da história antiga, podemos ver que o principal objetivo dos antigos governantes, da Babilónia até ao Sul da Ásia e à Ásia Oriental, era evitar que a oligarquia mercantil e credora reduzisse a população em geral ao clientelismo, ao cativeiro por dívidas e à servidão. Se o mundo não norte-americano, eurasiático, seguisse agora este objetivo básico, estaria a restaurar o fluxo da história ao seu curso pré-ocidental. Isso não seria o fim da história, mas um regresso aos ideais básicos do mundo não-ocidental de equilíbrio económico, justiça e equidade.

 

Hoje, a China, a Índia, o Irão e outras economias eurasiáticas deram o primeiro passo como condição prévia para um mundo multipolar, rejeitando a insistência dos E.U.A. para que aderissem às sanções comerciais e financeiras norte-americanas contra a Rússia. Estes países compreendem que se os Estados Unidos da América pudessem destruir a economia russa e substituir o seu governo por títeres orientados, do tipo Ieltsin, os restantes países da Eurásia seriam os próximos na linha.

 

A única forma possível de a história acabar realmente, seria os militares norte-americanos destruírem todas as nações que procuram uma alternativa à privatização e financeirização neoliberal. A diplomacia dos E.U.A. insiste em que a história não deve tomar qualquer caminho que não culmine no seu próprio império financeiro, governando através de oligarquias clientes. Os diplomatas norte-americanos esperam que as suas ameaças militares e o apoio de exércitos vassalos obriguem outros países a submeterem-se às exigências neoliberais - para evitarem ser bombardeados ou sofrerem "revoluções coloridas", assassinatos políticos e golpes militares, ao estilo Pinochet. Mas a única forma real de pôr fim à história é através de uma guerra atómica para acabar com a vida humana neste planeta.

 

A Nova Guerra Fria está a dividir o mundo em dois sistemas económicos contrastantes

 

A guerra por procuração da NATO na Ucrânia contra a Rússia é o catalisador que fraturará o mundo em duas esferas opostas, com filosofias económicas incompatíveis. A China, o país que mais rapidamente cresce, trata o dinheiro e o crédito como serviços públicos, alocados pelo governo, em vez de deixar que o privilégio monopolístico da criação de crédito seja privatizado pelos bancos, levando-os a substituir o governo como planeador económico e social. Que a independência monetária, apoiando-se na sua própria criação monetária interna, em vez de pedir emprestados dólares eletrónicos norte-americanos, e denominando o comércio e o investimento estrangeiros na sua própria moeda, e não em dólares, é vista como uma ameaça existencial ao controlo da economia global por parte dos Estados Unidos da América.

 

A doutrina neoliberal dos E.U.A. apela ao fim da história, "libertando" as classes ricas de um governo que seja suficientemente forte para impedir a polarização da riqueza e o declínio e queda finais. Impor sanções comerciais e financeiras contra a Rússia, o Irão, a Venezuela e outros países que resistem à diplomacia dos E.U.A. e, em última análise, o confronto militar, são a forma como o imperialismo norte-americano pretende "espalhar a democracia" pela NATO, desde a Ucrânia até aos mares da China.

 

O Ocidente, na sua iteração neoliberal norte-americana, parece estar a repetir o padrão de declínio e queda de Roma. A concentração da riqueza nas mãos do Um por Cento tem sido sempre a trajetória da civilização ocidental. É o resultado da Antiguidade clássica ter tomado um caminho errado, quando a Grécia e Roma permitiram o crescimento inexorável da dívida, levando à expropriação de grande parte dos cidadãos e reduzindo-os à servidão para com uma oligarquia credora fundiária. Esta é a dinâmica incorporada no ADN daquilo que se chama o Ocidente e a sua "segurança dos contratos", sem qualquer supervisão governamental no interesse público. Despojando a prosperidade em casa, esta dinâmica exige um esforço constante para extrair uma riqueza económica (literalmente um "fluir para dentro") à custa das colónias ou países devedores.

 

Os Estados Unidos da América, através da sua Nova Guerra Fria, têm como objetivo assegurar precisamente esse tributo económico de outros países. O próximo conflito pode durar talvez vinte anos e irá determinar que tipo de sistema político e económico o mundo terá. Em causa está mais do que a hegemonia dos E.U.A. e o seu controlo dolarizado das finanças internacionais e da criação de dinheiro. Politicamente em questão está a ideia de "democracia", que se tornou um eufemismo para o domínio de uma oligarquia financeira agressiva, que procura impor-se globalmente através de um controlo financeiro, económico e político predatório, apoiado pela força militar.

 

Como tenho procurado enfatizar, o controlo oligárquico do governo tem sido a característica distintiva da civilização ocidental desde a Antiguidade clássica. E a chave para este controlo tem sido a oposição a um governo forte - ou seja, um governo civil suficientemente forte para impedir uma oligarquia credora de emergir e monopolizar o controlo da terra e da riqueza, transformando-se numa aristocracia hereditária, uma classe rentista que vive das rendas da terra, dos juros e dos privilégios monopolistas, que reduzem a população em geral à austeridade.

 

A ordem unipolar norte-americana centrada na esperança de "acabar com a história" refletiu uma dinâmica económica e política básica que tem sido uma característica da civilização ocidental desde que a Grécia e Roma clássicas, trilhando um caminho diferente da matriz do Próximo Oriente, a partir do primeiro milénio a.C..

 

Para evitarem ser arrastados para o redemoinho da destruição económica que agora envolve o Ocidente, os países do núcleo eurasiático mundial em rápido crescimento estão a desenvolver novas instituições económicas baseadas numa filosofia social e económica alternativa. Sendo a China a economia maior e de mais rápido crescimento na região, é provável que as suas políticas socialistas sejam influentes na formação deste emergente sistema financeiro e comercial não-ocidental.

 

Em vez da privatização, pelo Ocidente, das infraestruturas económicas básicas, para criar fortunas privadas através da extração monopolista de rendas, a China mantém as suas infraestruturas em mãos públicas. A sua grande vantagem sobre o Ocidente é que trata o dinheiro e o crédito como um serviço público, a ser alocado pelo governo, em vez de deixar que os bancos privados criem crédito, com a dívida a aumentar sem expandir a produção para elevar o nível de vida. A China também mantém a saúde e a educação, os transportes e as comunicações em mãos públicas, a serem fornecidos como direitos humanos básicos.

 

A política socialista da China é, em muitos aspetos, um regresso às ideias básicas de resiliência que caracterizavam a maior parte da civilização antes da Grécia e Roma clássicas. Criou um Estado suficientemente forte para resistir ao surgimento de uma oligarquia financeira que ganhe o controlo da terra e dos restantes bens produtores de rendas. Em contraste, as economias ocidentais de hoje repetem precisamente esse impulso oligárquico que polarizou e destruiu as economias da Grécia e Roma clássicas, com os Estados Unidos da América servindo como o análogo moderno para Roma.

 

 

 

 

 

(*) Michael Hudson (n. 1939) é um economista norte-americano, professor de Economia na Universidade do Missouri, em Kansas City, pesquisador do Levy Economics Institute do Bard College e Presidente do Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (ISLET). O ISLET dedica-se à investigação sobre finanças nacionais e internacionais, rendimentos nacionais e contabilidade de balanço no que diz respeito a bens imóveis. Envolve-se também na história económica do antigo Próximo Oriente. Estudou e meditou extensamente e em profundidade sobre história e teoria económica, nas suas diversas escolas, incluindo a fisiocrática, a economia política clássica, marxista, neoclássica, keynesiana, pós-keynesiana, a teoria monetária moderna, etc.. Dedicou particular atenção ao problema da dívida, pública e privada. Foi analista financeiro em Wall Street e conselheiro económico, sobre finanças e direito fiscal, de governos de todo o mundo, incluindo a Islândia, a Letónia e a China, para além de muitas organizações não-governamentais. É autor de numerosos livros, entre os quais The Myth of Aid – The Hidden Agenda of the Development Reports (1971), Global Fracture: The New International Economic Order (1977), Super-Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance (2003), Trade, Development and Foreign Debt – A history of theories of polarisation and convergence in the international economy (2009), The Bubble and Beyond (2012), Killing the Host - How Financial Parasites and Debt Destroy the Global Economy (2015), J is for Junk Economics: A Guide to Reality in an Age of Deception (2017), …and forgive them their debts – Lending, Foreclosure and Redemption from Bronze Age Finance to the Jubilee year (2018) e Cold War 2.0. The Geopolitical Economics of Finance Capitalism vs. Industrial Capitalism (2021) entre muitos outros. O presente ensaio resultou de uma exposição apresentada a 11 de Julho de 2022 ao Nono Fórum Sul-Sul sobre Sustentabilidade e está publicada no  blogue do autor. A tradução é de Ângelo Novo.

 

 

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NOTA:

 

(1) “Reality Check: Falsehoods in US Perceptions of China, 19 de junho de 2022.