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Nadine Rosa-Rosso (*)
A questão-chave deste fórum é a do apoio às resistências ao imperialismo, por toda a parte do mundo. Como militante comunista belga independente, eu gostaria de abordar unicamente o problema da esquerda europeia no que diz respeito a esta questão. As manifestações massivas nas capitais e nas grandes cidades europeias para apoiar o povo de Gaza, acabam de colocar uma vez mais em evidência o problema central: a grande maioria da esquerda, incluindo os comunistas, aceita apoiar o povo de Gaza face à agressão israelita mas recusa o apoio às suas expressões políticas, como o Hamas na Palestina ou o Hezbollah no Líbano. A esquerda não somente não os apoia como também os denuncia e os combate. O seu apoio ao povo de Gaza situa-se no plano humanitário e não no plano político. No que concerne ao Hamas e ao Hezbollah, a principal preocupação da esquerda é o apoio das massas árabes a essas formações e não a intenção deliberada e proclamada de as aniquilar por parte de Israel. No plano político, podemos dizer, sem exagerar, que o desejo (mais ou menos abertamente confessado) da esquerda situa-se na mesma linha que o do governo israelita: liquidar o apoio popular ao Hamas e ao Hezbollah. Esta questão coloca-se não somente para o Médio-Oriente mas também no seio das capitais europeias porque a grande massa de manifestantes em Bruxelas, Londres ou Paris é hoje constituída por populações oriundas da imigração magrebina e de outros países do terceiro mundo. As reacções da esquerda no que respeita a essas manifestações são sintomáticas. Citarei algumas mas poderia citar dezenas. O site da Res Publica na França, diz o seguinte, após a grande manifestação parisiense do dia 3 de Janeiro: “Nós recusamos ser armadilhados pelos islamistas do Hamas, da Jihad Islâmica e do Hezbollah!”. “Alguns militantes de esquerda e de extrema-esquerda (que fizeram uma mobilização bastante fraca) encontraram-se literalmente afogados numa multidão cujas opiniões estão nos antípodas daquilo que encarna o movimento republicano francês e daquilo que defende a esquerda do século XXI. Mais de 90% dos manifestantes defenderam uma visão do mundo integrista, comunitarista, baseada na guerra das civilizações, anti-laica, anti-republicana e pregaram um relativismo cultural do qual nós conhecemos todas as derivas nefastas, nomeadamente na Inglaterra”. Res Publica não é nem marxista nem comunista mas em vão buscaríamos em sites marxistas a mais pequena referência positiva sobre o Hamas. Encontraremos formulações tais como: ”Independentemente daquilo que possamos pensar sobre o Hamas, uma coisa é indiscutível: a população palestina elegeu democraticamente o Hamas para a direcção de Gaza, aquando de eleições que se desenrolaram sob controlo internacional”. E quando tentamos pesquisar um pouco mais sobre o significado de “independentemente daquilo que pensemos sobre o Hamas”, encontramos, tanto no site do Partido Comunista Francês como daquele do Partido do Trabalho da Bélgica um artigo intitulado ‘Como Israel colocou o Hamas no poder’. Aí ficamos a saber que o Hamas foi apoiado por Israel, pelos Estados Unidos e pela União Europeia, ponto final. Sublinho que este artigo foi publicado no dia 2 de Janeiro, após uma semana de bombardeios israelenses intensivos e na véspera da ofensiva terrestre cujo objectivo proclamado foi a destruição do Hamas. Volto ainda sobre a citação do Res Publica porque ela resume bastante bem a atitude geral da esquerda, não apenas face à resistência palestina mas também face às massas árabes e muçulmanas na Europa. O mais interessante desta citação encontra-se no parêntesis: “a esquerda e a extrema-esquerda (que fizeram uma mobilização bastante fraca)”. Poder-se-ia esperar, após uma tal confissão, um balanço minimamente autocrítico desta ausência de uma mobilização forte, em plena carnificina do povo palestino. Mas não, toda a carga é dirigida contra a massa de manifestantes (90%) a qual é criticada por defender a “guerra das civilizações”. Nas manifestações em que eu participei, em Bruxelas, pedi a alguns manifestantes que me traduzissem os slogans ditos em árabe e de todas as vezes eles o fizeram com gentileza. Eu ouvi muito apoio à resistência palestiniana e muita denúncia dos governos árabes, em particular do presidente egípcio Mubarak, dos crimes de Israel, do silêncio ensurdecedor da comunidade internacional ou da cumplicidade da União Europeia. Penso que eram palavras de ordem políticas completamente apropriadas à situação. Mas não há dúvida que alguns apenas entendem “Allahu aqbar!” e formam a sua opinião unicamente sobre essa base. O próprio facto de que haja slogans gritados em árabe basta, por vezes, para irritar a esquerda. Desta forma, o comité organizador da manifestação do 11 de Janeiro estava preocupado com as línguas que nela seriam utilizadas. Mas, será que não se pode, simplesmente, difundir a tradução destes slogans? Este seria talvez o primeiro passo na compreensão mútua. Quando nós nos manifestávamos, em 1973, contra o golpe de estado militar pró-americano de Pinochet no Chile, não passaria pela cabeça de ninguém dizer aos manifestantes latino-americanos “digam em francês, por favor!” Para fazer este combate nós aprendemos muito dos slogans em espanhol e isso não chocava ninguém. O problema está na questão: porque é que a esquerda e a extrema-esquerda mobilizam tão pouco? E, cabe ainda perguntar: a esquerda e a extrema-esquerda são ainda capazes de mobilizar para estas questões? O problema era já evidente aquando da invasão israelita do Líbano no Verão de 2006. Eu gostaria de citar um israelita anti-sionista que encontrou refúgio em Londres, o músico de jazz Gilad Atzmon, o qual dizia, já seis meses antes da invasão: “Desde há muito tempo tornou-se claro que a ideologia de esquerda se debate desesperadamente para encontrar a sua via em meio à batalha que está emergindo entre o Ocidente e o Médio-Oriente. Os parâmetros daquilo que se convencionou chamar o “confronto entre civilizações” estão presentes de forma tão clara que o militante de esquerda “racional” e “ateu” está condenado a encontrar-se mais perto de Donald Rumsfeld do que de um religioso muçulmano”. Seria difícil colocar o problema de uma forma mais clara. Entre esses parâmetros, eu gostaria brevemente de abordar dois deles, os quais paralisam literalmente a esquerda no seu apoio à resistência palestiniana, libanesa e, mais geralmente, árabe e/ou muçulmana: a religião e o terrorismo. A esquerda e a religião Aterrada pelos sentimentos religiosos presentes nas massas populares oriundas da imigração, a esquerda, marxista ou não, evoca regularmente a célebre frase de Marx “A religião é o ópio do povo”. Ela pensa que assim liquida a questão: haveria que, antes de tudo, submeter o povo a uma séria cura de desintoxicação. Eu gostaria de vos ler a citação de Marx que justificaria tal conclusão e se cito Marx não é para esconder-me atrás de uma sumidade mas sim porque eu espero assim fazer reflectir pelo menos aqueles que se reivindicam deste pensador: “A religião é a teoria geral deste mundo, (…) sua lógica sob forma popular, seu ponto de honra espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu comportamento solene, sua razão geral de consolação e de justificação. (…) A miséria religiosa é ao mesmo tempo a expressão da miséria real e, por outro lado, o protesto contra esta miséria. A religião é o suspiro da criatura derrotada, o coração de um homem sem coração, da mesma forma que ela é o espírito dos tempos privados de espírito. Ela é o ópio do povo”. Eu sempre fui ateia e continuo a sê-lo mas não estou nada admirada do aumento dos sentimentos religiosos entre os povos. No mundo de hoje, a maioria dos homens políticos, inclusive os de esquerda, gostam de proclamar a sua impotência: eles nada podem contra a superioridade militar dos Estados Unidos, eles nada podem contra as especulações financeiras e a lógica do lucro que arruínam, reduzem à fome e matam milhares de milhões de seres humanos neste planeta. Tudo isto é “a mão invisível do mercado”. Mas que diferença existe entre uma “mão invisível” e a “intervenção divina”? A única diferença é que a teoria da “mão invisível” desarma completamente as massas na sua sede de justiça social e económica e que a “intervenção divina” parece por vezes ajudá-los a aguentar e resistir. Quer isto nos agrade ou desagrade, não é cuspindo sobre milhares de milhões de seres humanos que nos aproximaremos deles. A esquerda faz exactamente a mesma coisa que ela reprova nos islamistas: ela analisa apenas a situação em termos religiosos. Ela recusa-se a compreender as afirmações religiosas como “um protesto contra a miséria”. E podemos ainda acrescentar, um protesto contra o imperialismo, o colonialismo e o neocolonialismo. Através dessa recusa, a esquerda se separa totalmente de uma imensa parte das massas populares. Eu não poderia dizer melhor do que Gilad Atzmon: “em vez de impor as nossas crenças aos outros, nós faríamos melhor em aprender a compreender aquilo em que os outros crêem”. Porque se nós continuamos a recusar “aprender a compreender”, passaremos o resto das nossas vidas a lamentar os sentimentos religiosos das massas em vez de juntarmo-nos a elas no combate pela paz, pela independência e pela justiça social e económica. A propósito da religião, é importante acrescentar que a sorte reservada à religião muçulmana é muito diferente daquela que é reservada, mesmo pela esquerda, à religião cristã. Nunca me apercebi de nenhuma reticência da esquerda em se solidarizar com os bispos latino-americanos partidários da teologia da libertação em luta contra o imperialismo yankee nos anos 1970, nem com o catolicismo declarado da resistência irlandesa contra o imperialismo britânico. Nunca ouvi a esquerda criticar Martin Luther King pelas suas referências ao evangelho que foram uma poderosa alavanca de mobilização para a massa de trabalhadores negros americanos, privados de todos os direitos políticos, económicos e sociais nos Estados Unidos dos anos 1960. A diferença de tratamento, a desconfiança sistemática em relação aos muçulmanos, todos suspeitos, sem distinção, de quererem nos impor a Charia, não pode explicar-se de outra forma senão pelas marcas indeléveis do colonialismo nas nossas consciências. Não esqueçamos que os comunistas, como os do Partido Comunista Belga, chegaram a elogiar os méritos da colonização, carreada com entusiasmo pelos missionários cristãos. Desta forma, em 1948, após uma resistência heróica dos partidos comunistas contra o ocupante nazi, podia ler-se no programa do Partido Comunista da Bélgica em relação ao Congo: “a) realização de uma só entidade económica Bélgica-Congo; b) desenvolvimento das trocas comerciais com a colónia e valorização das suas riquezas nacionais; c) nacionalização das riquezas e das empresas sediadas no Congo; d) desenvolvimento do colonato branco, do campesinato e do artesanato negro; e) extensão progressiva dos direitos e liberdades democráticas às populações negras”. Foi esse tipo de educação política dos trabalhadores que conduziu à ausência quase total de reacção desses mesmos trabalhadores face aos assassinatos de Patrice Lumumba e de Pierre Mulele, bem como de dezenas de outros dirigentes e militantes africanos anti-imperialistas. Porque a “nossa” civilização cristã é, apesar de tudo, uma coisa civilizada, não é verdade? E nós só podemos estender os direitos e liberdades democráticas às massas do terceiro mundo de maneira “progressiva”, visto que são demasiado bárbaras para delas fazerem um bom uso. É este mesmo tipo de raciocínio político colonial que faz com que hoje a esquerda se arrependa de ter apoiado as eleições democráticas na Palestina. É pena, dever-se-ia ter sido mais “progressivo” uma vez que agora vemos que a maioria votou pelo Hamas. Pior, a esquerda critica o Ocidente por ter “forçado a mão da OLP para organizar eleições legislativas em 2006 quando tudo indicava que o Hamas ia ganhá-las”. É o que podemos ler hoje no site do Partido Comunista Francês e no do Partido do Trabalho da Bélgica. Se cessássemos de nos focalizar sobre as convicções religiosas, poderíamos talvez “aprender a compreender” porque é que as massas árabes e muçulmanas que se manifestam hoje pela Palestina gritam “zero” a um dirigente árabe e muçulmano como Mubarak e saúdam o nome de Chavez, um dirigente latino-americano e cristão. Não será que essas massas exprimem assim, claramente, que a sua grelha de leitura não coloca em primeiro lugar a religião mas sim a posição relativamente ao imperialismo norte-americano e sionista? E se a esquerda colocasse o problema radicalmente nesses termos, não poderia ela recuperar um pouco do apoio popular que fez anteriormente a sua força? A esquerda e o terrorismo A segunda grande fonte de paralisia da esquerda no combate anti-imperialista é o temor de ser associada ao terrorismo. O presidente da Câmara de Representantes alemã, Walter Momper, a chefe da fracção dos Verdes, Franziska Eichstädt-Bohlig, um chefe do partido Die Linke, Klaus Lederer e ainda outros, manifestaram-se em Berlim em apoio a Israel sob o slogan “alto ao terror do Hamas”. É preciso lembrar-se que a formação de esquerda alemã Die Linke é considerada por muitos na Europa como uma alternativa nova e credível para a esquerda. Toda a história da colonização e da descolonização é uma história de terras roubadas pela força militar e reconquistadas pela força. Da Argélia ao Vietname, de Cuba à África do Sul, do Congo à Palestina, nenhuma potência colonizadora renunciou pela negociação e pelo diálogo político ao seu domínio. É o mesmo sentido que Gilad Atzmon acaba de dar na semana passada aos tiros de rocket do Hamas: “Esta semana nós aprendemos um pouco mais sobre o arsenal balístico do Hamas. É evidente que o Hamas faz prova de uma certa contenção em relação a Israel, há muito tempo. O Hamas se conteve de estender o conflito ao conjunto do sul de Israel. Veio-me ao espírito que as chuvas de rockets que se abateram esporadicamente sobre Sderot e Ashkelon não eram na realidade outra coisa do que uma mensagem dos palestinianos presos. Era em primeiro lugar uma mensagem à terra, aos campos e aos pomares roubados: Nossa terra adorada, nós não te esquecemos, nós combatemos ainda por ti, nós voltaremos o mais depressa possível e nós recomeçaremos lá onde nos fizeram prisioneiros”. Aquilo que um judeu nascido no solo de Israel pode compreender, é incompreensível e de todas as formas, indefensável pela esquerda europeia: a necessidade e o direito dos povos a retomar pela força aquilo que lhes foi roubado pela força. Uma vez que, depois do 11 de Setembro de 2001, todo uso da força na luta anti-colonial e anti-imperialista é catalogado na categoria de “terrorismo”, não vale sequer a pena discutir. Será preciso, no entanto, lembrar que o Hamas foi colocado pelos Estados Unidos na lista das organizações terroristas bem antes do 11 de Setembro, isto é, em 1995. Foi em Janeiro de 1995 que os Estados Unidos elaboraram a “Specially designated terrorist list (STD)”, na qual se encontravam praticamente todos os movimentos, partidos e organizações do terceiro mundo que fazem recurso à luta armada contra o imperialismo. Mas foi sobretudo depois do 11 de Setembro, e com o lançamento da “global war on terror (GWAT)”, a guerra global contra o terrorismo da administração Bush, que a capitulação de uma grande parte da esquerda começou. O medo de ser catalogado entre os terroristas ou entre partidários do terrorismo não é mais somente político ou ideológico, é também prático. A directiva da União Europeia para a luta contra as organizações terroristas foi traduzida na maior parte das legislações nacionais por um “copy-paste” que permite aos tribunais perseguir numerosos militantes suspeitos de apoiar o terrorismo. Em Londres, militantes que vendiam brochuras comportando uma análise marxista do Hamas foram presos e suas brochuras apreendidas. Ou seja, informar-se ou informar os outros sobre o programa político ou sobre a actuação do Hamas (ou - a prazo - do Hezbollah) é considerado uma actividade ilegal. A cada um é exigido, portanto, para viver em paz, no mínimo, que tome as suas distâncias e, se possível, condene sem reservas essas formações politicas. Nessas condições, não vemos como a confrontação política entre a esquerda e essas correntes politicas se possa fazer de maneira sã. Eu tenho portanto uma proposição muito concreta a fazer: nós devemos lançar um apelo para que o Hamas seja retirado da lista das organizações terroristas. E devemos nos opor às tentativas europeias actuais de colocar o Hezbollah na referida lista. É o mínimo que podemos fazer se pretendemos apoiar a resistência palestina, libanesa e árabe. É a condição democrática mínima para que um apoio à resistência seja possível e para que uma confrontação de correntes políticas diferentes no seio da resistência ao imperialismo seja possível. É a condição política indispensável para que a esquerda tenha a mínima possibilidade de se fazer ouvir pelas massas em luta contra o imperialismo. Estou perfeitamente consciente de que as minhas convicções políticas são minoritárias no seio da esquerda e, em particular, entre os comunistas europeus. Isto preocupa-me profundamente, não por mim mesma, sendo eu apenas uma militante entre outras, mas pelo futuro do ideal comunista que é a supressão da exploração do homem pelo homem e, a partir daí, inelutavelmente, a abolição da opressão imperialista, colonialista e neo-colonialista.
(*) Nadine Rosa-Rosso é uma militante comunista independente residente em Bruxelas. Foi secretária-geral do Parti du Travail de Belgique (PTB) até 2003, altura em que saíu do partido, por defender uma aliança eleitoral e política com organizações representativas da comunidade imigrante árabe. Tem publicados dois livros: ‘Rassembler les résistances’ (Contradictions) e ‘Du bon usage da la laïcité’ (Aden Éditions, 2008). Este artigo, já traduzido em diversas línguas, constitui a sua intervenção no Fórum Internacional de Beirute pela resistência, o anti-imperialismo, a solidariedade dos povos e as alternativas, realizado a 17 de Janeiro de 2009.
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