Pensar o comunismo, hoje

 

AA. VV. (*)

 

Militantes que somos de colectivos que publicam as revistas ‘A Contre-Courant’, ‘Carré Rouge’, ‘L’Émancipation Sociale’, ou ligados à revista/sítio ‘À l’Encontre’, da Suiça, decidimos colocar as nossas capacidades em comum para levar a cabo um trabalho de carácter teórico e político sobre a actualidade do comunismo (ou, se alguns o preferirem, do socialismo, que, no seu sentido forte e inteiro, lhe é sinónimo). Decidimos igualmente estabelecer contactos com aquelas e aqueles que perseguem um objectivo análogo, propondo-lhes que se empenhem num trabalho comum ou que mantenham pelo menos connosco algumas trocas de impressões pontuais. O objectivo do presente texto é explicar o que nos leva a empreender este trabalho, sublinhar as imensas dificuldades que ele comporta e esboçar uma primeira tentativa de ordenar o seu campo.

O entendimento comum que nos une é a ideia de que o horizonte decisivo do empenhamento político (que virá, de seguida, clarificar a actividade militante em todas as suas facetas) é o da emancipação social, sinónimo de emancipação humana. Compreendida como auto-emancipação colectiva, baseada na auto-actividade e na auto-organização sob todas as suas formas, ela tem por finalidade última a construção de uma sociedade mundial constituída por povos que não conheceriam mais a divisão em classes, e que teriam desmantelado ou destruído o Estado – o Estado que os oprimidos tiveram de defrontar no século XIX, que reencontramos sob formas ainda mais terríveis no século XX, esse mesmo Estado com o qual os povos devem hoje se confrontar em condições orwellianas, infinitamente agravadas. A emancipação do proletariado não pode ser senão uma auto-emancipação. Na medida em que é “obra dos próprios trabalhadores”, ela é conquistada por eles e cria, no mesmo movimento, as condições de uma emancipação do conjunto da humanidade.

Este objectivo de emancipação social, assim compreendido, foi partilhado por todas as correntes que fundaram o conjunto do movimento operário no século XIX. Para lá das suas divergências – e, na sequência delas, das suas cisões - este objectivo foi o horizonte comum dos militantes que uniram as suas forças para fundar a Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.). Mais tarde, membros da Segunda Internacional, por um lado, e de diversos reagrupamentos libertários, por outro, continuaram a perseguir este mesmo objectivo, a almejar e a empenhar as suas vontades neste mesmo horizonte. Separados por uma interpretação antagónica de eventos cruciais, separação esta agravada em certos momentos por severos confrontos políticos directos, alguns herdeiros das duas correntes tentaram ainda assim, de forma repetida, fazer do fundamento partilhado do seu empenho, a base para um trabalho político comum, nomeadamente nos sindicatos.

Hoje em dia, a concepção que entende a emancipação social como o horizonte do seu empenhamento político, recuou de forma dramática, no próprio meio em que nasceu e que a proclamou durante muito tempo: o movimento operário. Ela está subjacente ao empenho de muitos participantes dos Fóruns Sociais Mundiais, vindos de países em que os camponeses e os oprimidos se organizaram nos sindicatos operários, ou alinhados com eles. Mas a aspiração a dar-se como horizonte a emancipação social foi aí marginalizada e frustrada. A linguagem do “realismo”, ou seja, da adaptação ao capitalismo, prevaleceu. Nos países capitalistas imperialistas, o objectivo da emancipação social continua inscrito no programa político de certas organizações, de certos grupos políticos e de certos colectivos pertencentes às correntes fundamentais do pensamento emancipador. Mas está aí apenas sob traços formais e descarnados. Ora, nem a emancipação social, nem o comunismo, como objectivo último do empenhamento político, podem ser mumificados, ou sofrer esta forma de açambarcamento por parte de vanguardas auto-proclamadas. É preciso fazê-los viver, alimentá-los em permanência, num processo de interacção com as expressões de auto-actividade dos explorados que não cessam de se renovar. Esta auto-actividade modifica as condições do combate e muda também os seres humanos.

Existe actualmente uma necessidade gritante de demonstrar a pertinência destes objectivos e de os reformular. A experiência histórica das tentativas concretas ditas de transição ao socialismo tem de ser analisada a fundo (esta análise não foi ainda senão esboçada). Herdeiros que somos, ainda que longínquos, daqueles que fizerem frente à repressão estalinista, conhecendo os pelotões de execução e o Gulag, sabemos apreciar plenamente esta imperiosa necessidade. Mas esta exigência diz respeito também ao presente e ao futuro. O que impõe este trabalho são os desafios novos (nunca antes pensados, e/ou negligenciados até aqui pelas forças revolucionárias) lançados à humanidade pelo regime de propriedade privada dos meios de produção e pela acumulação para o lucro. À falta de serem pensadas nos seus termos actuais, a ideia de emancipação social, e a perspectiva do comunismo, tornam-se meras convicções do domínio privado, ou mesmo uma crença, de que os militantes fazem ofício na intimidade de pequenos círculos, e não na esfera política do domínio público.

No momento em que o século XXI se inicia de forma dramática, e em que alguns dos seus mais óbvios traços catastróficos são já discerníveis com um grau elevado de certeza, nós queremos participar, ao lado de todas e todos aqueles cujo empenhamento político está fundado sobre estes mesmos alicerces, num esforço colectivo para (re)pensar o comunismo hoje, mostrando a sua actualidade e a sua necessidade. Este objectivo merece que ponhamos entre parênteses (ou que aceitemos, ao menos, passá-las a segundo plano) as divergências que podem sempre existir entre aquelas e aqueles que querem dedicar-se a esta tarefa, para a desempenhar sem pretensões, mas com a consciência das necessidades impostas pela situação presente.

A actividade militante quotidiana, concreta, que cada um desenvolve, não pode senão enriquecer os debates, os diálogos e as elaborações. Contudo, tornou-se urgente consagrar uma parte do nosso tempo e da nossa energia a esta tarefa político-teórica, de forma a devolver a perspectiva indispensável do comunismo a todos os que militam há já longos anos, mas sobretudo a poder transmiti-la às novas gerações. As lutas “quotidianas”, desde que sejam de algum modo importantes (e elas tendem hoje a sê-lo todas!) transportam nelas próprias uma aspiração a uma “outra sociedade”, a um “para além” do sistema capitalista. Elas esforçam-se todas, mais ou menos conscientemente, por lançar uma ponte para essa outra sociedade. É amputá-las, e mesmo desarmá-las, não trabalharmos na definição desse ponto para o qual deve ser lançada uma tal “ponte”.

As formas actuais da questão “Socialismo ou Barbárie”

A alternativa “socialismo ou barbárie” foi formulada quase há um século. Este grito de alarme, lançado por Rosa Luxemburgo e outros revolucionários, traduzia uma modificação radical do sentido do combate pela emancipação social, que se tornava tanto um combate pela materialização das potencialidades do progresso na história, como também um combate de oposição a perigos terríveis. A “construção do socialismo” e a imagem de uma “humanidade marchando para o progresso”, forjada pelo estalinismo e pelos seus subprodutos, impediram que o grito de alarme fosse plenamente compreendido. Outros esforçaram-se por dissociar a compreensão de Auschwitz da história do capitalismo e das suas convulsões. Outros ainda deram-se como tarefa tentar convencer-nos que a superioridade militar e nuclear dos E. U. A. constituiria a garantia da “liberdade” e da “democracia”. Devemos hoje devolver todo o seu sentido a este grito “socialismo ou barbárie”, que é cada vez mais pertinente, quando após decénios sucessivos de crise crónica da economia e da sociedade capitalistas, à escala internacional, as ameaças se aceleram e se diversificam.

O capital conseguiu criar as condições para a instauração de uma terrível concorrência: dos países uns contra os outros, mas também, no seio de cada economia nacional, entre os proletários de um mesmo país, pelo “emprego”, pela venda da sua força de trabalho. Esta concorrência é o vector de uma verdadeira pandemia mortífera que se abate sobre os proletários, sobre o “mundo do trabalho”, como já há muito foi notado, e que se estende a todos aqueles que são atingidos pela pauperização e pela desprotecção social, para satisfação da sede inextinguível de valorização sem limites do capital. A “união dos trabalhadores”, a todos os níveis, tornou-se o objectivo absolutamente central da actividade militante. Só a união poderá fazer recuar os perigos, para lhes encontrar soluções mais duráveis. Pressente-se que esta união poderia ser construída sobre a convergência da auto-actividade que os destituídos e os explorados desenvolvem, todos eles, em cada um dos seus países, das suas cidades e vilas, dos seus bairros, das suas regiões.

O abismo existente entre os altos cumes das classes possuidoras e dominantes – com as “elites políticas” por elas produzidas – e a grande maioria da população tornou-se incomensurável. As dimensões parasitárias do capital financeiro encontram uma das suas expressões nas formas e conteúdos, em rápida expansão, de hiper-privatização da riqueza produzida pelo trabalho, mas também dos recursos “naturais” de todas as espécies. As novas configurações da cidade (“sectorização”, segregações espaciais, fenómenos de “aqui entre nós”, constituição de guettos reservados aos diferentes estratos da população) são uma manifestação disso mesmo. Este afastamento é acompanhado de uma verdadeira denegação, da qual sofre a situação da maioria da população do planeta, com o esquecimento de povos inteiros (como os de África, por exemplo). A espoliação dos camponeses do direito que tinham até aqui de utilizar as suas sementes para uma nova colheita - por efeito dos O.G.M. e da propriedade intelectual sobre eles - é emblemática do conteúdo prático, existencial, da separação dos produtores dos seus meios de produção e de vida. Ela é característica de mecanismos económicos - e de um pessoal que os encarna - situados numa relação de exterioridade absoluta às condições de vida das gentes comuns, que mal são reconhecidas como habitantes do planeta.

É neste contexto que é preciso situar a decadência do Estado burguês em numerosos países (entre os quais os da periferia) e a perda de crédito e de legitimidade das instituições ditas representativas e democráticas dos países imperialistas. O aparecimento súbito de todo um ramo de Direito Internacional gerido de forma privada pelas grandes firmas (arbitragem) reenvia às “regras de boa governança” propostas como modo de gestão dos órgãos estatais ou proto-estatais.

Os desafios da “questão ecológica”

O horizonte da humanidade no século XXI é o de uma crise ecológica mundial de uma gravidade excepcional que, como todos os observadores sérios pressentem, será um factor de acentuação do militarismo e de agravação das ameaças, podendo ir até ao uso de uma arma nuclear “manejável” (miniaturizada, dita “táctica”). A perpetuação da hegemonia planetária do capital financeiro conduz já aqueles que se pretendem herdeiros desta civilização (forjada, de forma contraditória, sob a dominação da burguesia) a um comportamento brutalmente destruidor para com as forças humanas e os recursos sócio-naturais que, à sua maneira, essa mesma civilização havia moldado historicamente. De uma tal forma que, no decurso do século XXI, há o risco de a alternativa não ser já entre “socialismo” e “barbárie”, mas entre o “comunismo” e formas inauditas de “aniquilamento social”.

Por pouco que ela seja abordada como questão planetária, a “questão ecológica” torna-se de facto indissociável da “questão social”. Por detrás das palavras “ecologia” e “ambiente”, há nada menos que a colocação em causa, num futuro agora cada vez mais próximo, da perenidade das condições de reprodução social de certas classes ou grupos sociais, de certos povos, ou mesmo de alguns países no seu todo. A humanidade ocupa um espaço planetário dotado de um eco-sistema muito frágil, cuja existência durante muito tempo pareceu não poder ser posta em causa. A visão das “relações entre homem e natureza” da Renascença e do Iluminismo, heróica, embora já ambígua, cedeu rapidamente lugar à visão puramente utilitária e de vistas curtas, moldada pelo positivismo burguês do século XIX, na qual o homem (isto é, o capitalista) pode explorar o planeta de forma discricionária. Esta abordagem beneficiou mais tarde de um reforço, provindo da política e da ideologia estalino-cientista (este regime desembaraçou-se, pura e simplesmente, dos teóricos críticos demasiado exigentes neste domínio). A questão das “relações com a natureza” também não fez parte dos domínios abordados pelo pensamento revolucionário, que não lhe consagrou uma crítica política e social tão acerada como aquela que dedicou à exploração do proletariado ou à opressão do(a)s dominado(a)s. A indiferença total face às questões relativas ao eco-sistema planetário foi partilhada tanto pelos gestores do capital financeiro como pelos “planificadores” do “socialismo real”, ciosos apenas de corresponder às exigências de um “desenvolvimento” que servisse de suporte ao poder das camadas sociais burocráticas, à sua dominação e à sua exploração dos trabalhadores.

O alerta respeitante às emissões de gases com efeito de estufa, em particular o CO 2, e às alterações climatéricas daí resultantes, foi dado pelos cientistas há perto de vinte anos já (no limiar dos anos 1990). Ele não foi escutado. A anarquia da produção capitalista, o facto de que a realização do lucro implica a necessidade de vender (e portanto de desperdiçar recursos de forma desenfreada), a necessidade de valorizar o capital investido nas indústrias que constituem os pilares da Bolsa, logo de fazer entrar a China e a Índia, após a América Latina e a Ásia do Sudeste, na “civilização do automóvel” e de uma urbanização cada vez mais discriminatória e devastadora (quaisquer que sejam os seus efeitos sobre o conjunto do território), tudo isto criou uma situação marcada por uma perda de controlo cada vez maior por parte dos governos. Mas, em muitos casos, estamos confrontados com as consequências directas de uma política conduzida abertamente em nome da reprodução da dominação mundial do capital financeiro. A destruição dos equilíbrios e dos recursos necessários à vida faz-se a um ritmo que se acelera. Na África oriental e na América andina, o aquecimento global e a crise da água começaram a misturar-se de forma inextricável. Todos os estudos prevêem que serão as pessoas mais despojadas e mais vulneráveis que serão as atingidas em primeiro lugar.

Nas correntes que se reivindicam do socialismo revolucionário, a tomada de consciência e a resistência política e social aos graves atentados cometidos conjuntamente contra os explorados e contra a natureza, foram tardias e insuficientes. O retraimento ou a indiferença sobre estas questões não são mais permissíveis. A ideia do comunismo e a sua necessidade devem pois ser pensadas em condições em que é a estas questões que é preciso dar resposta. Antes que seja tarde demais, não deverá o planeta ser pensado como constituindo a “casa comum da humanidade”? Se a primeira tarefa é fazer com que o espaço planetário cesse de ser um inferno para três quartos dos seus habitantes - ameaçados na sua própria existência pelas destruições ecológicas provocadas pelos modos de produção e de consumo que têm como fundamento a propriedade privada e o individualismo da mercadoria-fetiche -, que passos concretos, que medidas, poderão dar-lhe resposta? Sabendo nós que será necessário que as regras e as medidas adequadas sejam impostas, postas em prática e/ou estreitamente controladas, por intermédio da sua auto-actividade, pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores, por todo um vasto bloco social cujos contornos se desenham nas diversas lutas de resistência, incluindo as lutas que têm como alvo a propriedade dos recursos dos seus países (Equador, Bolívia, Peru, etc.).

A concorrência entre trabalhadores desencadeada pelo capitalismo globalizado

Em todos os países, sem qualquer excepção, os “proletários”, no sentido que Marx deu a este termo (aqueles que são obrigados a vender a sua força de trabalho, a “encontrar um emprego”, para viver e fazer viver os seus filhos), sofrem os efeitos cada vez mais brutais de um processo político de liberalização e desregulamentação do investimento directo no estrangeiro, das transacções comerciais e dos fluxos financeiros. Liberalização e desregulamentação estas impostas simultaneamente a todas as partes do mundo, a uma escala sem precedentes. Os assalariados de países onde as reformas por capitalização prevalecem (Chile, Argentina, Estados Unidos, Reino Unido, por exemplo) não escapam à colocação em causa das suas condições de existência. Nestes países, o capital não manifesta nenhum reconhecimento para com aqueles cuja “poupança salarial” alimenta os mercados bolsistas, dirigindo contra eles a mesma ferocidade, senão maior, que nos outros países.

Aos olhos daqueles que a impulsionam, dela tirando a sua riqueza e o seu poder, o processo de liberalização e de privatização está ainda inacabado. No entanto, ele está já bastante avançado. A sua consequência mais nóvel e mais dramática é permitir ao capital organizar, à escala de continentes ou de subcontinentes, a colocação em concorrência directa dos assalariados, dos proletários vendedores da sua força de trabalho e produtores de mais-valia. É já este o caso no conjunto europeu, do qual a União Europeia é o núcleo, mas cujo espaço se estende para Leste e para o Mediterrâneo. É também o caso da América ao Norte do canal do Panamá, da América central e do Sul. No caso dos países da Ásia, para os quais uma parte crescente das capacidades industriais mundiais está a ser transferida, o capital põe os seus trabalhadores em concorrência entre eles, ao mesmo tempo que se serve deles como de uma arma contra os níveis salariais e as condições de trabalho de outros trabalhadores, em todo o lado no mundo. Os meios de colocação em concorrência dos trabalhadores são a deslocalização da produção pelo investimento directo, mas também formas múltiplas e muito sofisticadas de subcontratação com os países onde os salários são mais baixos e a protecção social mais fraca.

A colocação em concorrência directa, a uma escala propriamente planetária, de trabalhadores vivendo no seio de relações sociais muito desiguais, face ao capital e ao Estado, beneficiou da reintegração no mercado mundial dos países do “bloco soviético”, bem como daqueles que faziam parte da própria ex-U.R.S.S.. Esta colocação em concorrência directa conheceu um salto qualitativo desde a passagem completa da elite burocrático-capitalista chinesa para o capitalismo globalizado, com a entrada da China para a O.M.C.. O desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação foi deliberadamente orientado por grupos industriais, ajudados pelos principais governos, e forneceu ao capital as condições técnicas para uma optimização da produtividade e do lucro, na base da dispersão, da flexibilização e da precarização dos trabalhadores. À medida que as posições destes na luta de classes se enfraquecem, o capital vê alargar-se a possibilidade que tem de ocultar o carácter social da produção, de deslocalizar os colectivos de trabalho que ele mesmo havia ajudado a nascer, na fase anterior do capitalismo, e de aumentar a taxa de exploração. O alongamento da jornada laboral e a usura física e psíquica acentuada da força de trabalho (ao ponto de fazer dela uma preocupação explícita dos organismos paritários da “concertação social”) são duas expressões da chegada em força de uma nova super-exploração, combinando características próprias do século XIX e do século XXI.

A selecção do(a)s imigrantes e os estatutos jurídicos especiais que lhes são impostos (a “imigração escolhida”), aos quais se acrescenta a “imigração clandestina”, perseguida pelos serviços de polícia, extraordinariamente benéfica para os empregadores, é um outro instrumento ao serviço do desígnio de alinhar progressivamente os salários e os níveis de protecção social dos assalariados que continuam a ser empregados nos países fonte dos investimentos - e das encomendas de subcontratação - com os níveis gerais, cada vez mais baixos, de remuneração e de protecção laborais. As centenas de cadáveres que flutuam sobre as águas do Mediterrâneo, ou que perecem nas zonas fronteiriças entre o México e os Estados Unidos, simbolizam e materializam a barbárie de um mercado de trabalho globalizado, estruturado pelas leis do desenvolvimento desigual e combinado próprias do imperialismo do século XXI. Enunciar a palavra de ordem “Proletários de todos os países, uni-vos!”, nas condições de hoje, significa formular correctamente desafios que possam ser entendidos pelos assalariados ameaçados pelo desemprego e pela precariedade, de modo a que o trabalhador estrangeiro não seja mais visto como o concorrente, senão mesmo como o inimigo.

“O capitalismo traz em si a guerra como a nuvem traz a trovoada”

A questão da guerra, tema central da alternativa “socialismo ou barbárie” há cem anos - e que foi efectivamente uma das expressões maiores da barbárie ao longo do século XX - permanece tão actual como na época em que Jean Jaurès pronunciou esta frase. Ela tem uma forte ressonância entre o(a)s assalariado(a)s e na juventude. As manifestações de 15 de Fevereiro de 2003 contra a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, o Reino Unido e seus aliados, foram o momento mais alto do movimento anti-globalização e alter-globalizador nascido com o Fórum Social Mundial de 2001 (no trilho aberto pelas manifestações de Seattle em 1999). No entanto, o esforço de pensar a actualidade do comunismo no princípio do século XXI implica ainda um trabalho específico nesta matéria. Não podemos agir como se a questão da guerra já estivesse “resolvida”.

Esta questão enuncia-se, hoje em dia, principalmente em relação com a necessidade imperialista de controlar as fontes de matérias-primas, de energia, de água, de terras aráveis e de “reservatórios” que possam ser exauridos pela bio-genética. A compreensão das suas relações com a concorrência inter-imperialista, que nasce do funcionamento do capitalismo enquanto tal, sofreu um recuo. A necessidade de contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro, tornada ainda mais imperiosa pela dominação do capital de colocação financeira, forçou o capital norte-americano (assim como o da União Europeia e o do Japão) a permitir à elite burocrático-capitalista operar a actual transformação capitalista da China num espaço de dez anos, quando teriam sido necessárias várias décadas para o fazer pelos seus próprios meios, mesmo com a ajuda da Formosa e de toda a diáspora chinesa. Colocando em acção um poderoso rival, o capital norte-americano recriou a possibilidade de um conflito inter-imperialista dos mais clássicos.

A corrida às armas nucleares (que se esforça presentemente em conseguir a miniaturização das bombas, por exemplo) foi relançada, do mesmo modo que a sua proliferação. A burguesia japonesa vai talvez tentar tornar-se uma potência nuclear, apesar das recordações de Hiroxima e Nagasáqui. As sublevações que poderão resultar dos atentados ecológicos mais massivos, perpetrados contra as condições de reprodução de povos inteiros, provocarão um recurso à guerra por parte dos Estados mais empenhados na preservação da actual ordem social e política mundial, fundada sobre a propriedade privada dos meios de produção. Fá-lo-ão sem qualquer hesitação. É preciso acrescentar a isso a utilização, cada vez mais sistemática, por parte dos possidentes, de formas de controlo e repressão permanente contra os explorados e os dominados.

Uma derradeira e terrível face da barbárie exprime-se no processo de privatização, de “subcontratação” da guerra e da violência, bem como na extensão e banalização da tortura. Em todo o lado em que a História haja legado ressentimentos e ódios (que se qualificam como “ancestrais”), o peso das punções económicas a proveito do estrangeiro, a constituição de enclaves mineiros ou petrolíferos estreitamente vigiados, bem como a destruição de laços de coesão longamente amadurecidos, todos estes casos podem levar a que povos explorados e despojados descarreguem as suas frustrações, todo o peso das injustiças e dos ódios dos quais eles não compreendem as causas verdadeiras (porque elas lhes são ocultadas), sobre aqueles que, mais pequenos e mais fracos que eles próprios, lhes são designados como sendo “diferentes”. É este o terreno de que se alimenta a violência em África. Os seus germes podem existir de forma endógena, em estado larvar, mas é devido à globalização do capital e às formas por ela tomadas que a violência explode.

A emancipação das mulheres, dimensão central da emancipação social

Desde tempos ancestrais, um estatuto de inferioridade – apresentado como natural – foi imposto às mulheres. Isso foi acompanhado por diversas formas de rebaixamento social, por violências, pela marginalização em relação às estruturas de “poder”. Uma obra de manipulação da consciência social foi conduzida, e continua a sê-lo, a fim de destruir todas as tentativas de abrir brechas no muro dos privilégios masculinos. Foram elaborados diversos arranjos de obediência e de consenso, mais ou menos subtis, renovando-se e reinventando-se constantemente.

A globalização capitalista comporta uma conservação, renovada e reforçada – funcional às exigências da valorização do capital - , de formas arcaicas, bem como de formas modernas, de opressão e de exploração da grande maioria das mulheres. Hoje em dia, a maioria da população feminina do mundo conhece condições de vida onde se misturam: pobreza extrema e exploração; confinamento em fábricas fornecedoras dos mercados de bens de consumo dos países do centro; violências quotidianas; estatuto de emigrantes expropriadas de tudo; para uma parte delas, condições de semi-escravatura ou de escravatura completa. Uma emancipação total, tanto da dominação patriarcal como da de classe, é tão urgente como se revelará tarefa árdua. Uma emancipação individual e colectiva, no sentido de uma oposição às diferentes formas de dominação e de opressão, inscreve-se no empenhamento em favor do direito universal dos seres humanos à liberdade.

Actualmente, as mulheres entram em massa no salariato. Elas fazem-no sob um duplo estatuto: o de assalariadas e o de participantes na reprodução da força de trabalho numa esfera privada estabelecida pela evolução do sistema capitalista e no seio da qual o homem dispõe de uma posição dominante. O tempo de trabalho assalariado das mulheres articula-se com o tempo necessário à tomada a seu cargo dos cuidados relativos a outras pessoas (crianças, marido, família mais ou menos alargada, conforme os países e os costumes). É o domínio do trabalho doméstico, que acresce ao do trabalho assalariado, constituindo-se assim o conjunto compósito do tempo de trabalho das mulheres. Hoje em dia, nos países capitalistas mais antigos, onde haviam sido feitos progressos para atenuar esta dependência, a sua renovada agravação vai de par com a colocação em perigo de certas instituições (creches, infantários, centros de saúde, refeitórios, etc.), que são encerradas ou não se desenvolvem em medida capaz de dar resposta às necessidades elementares. Com efeito, o ataque contra o salário social é um dos objectivos centrais do movimento de restauração conservadora, aos níveis social, económico e até comportamental (direito à interrupção voluntária da gravidez recolocado em causa; degradação do reconhecimento social de diversas profissões; desvalorização material e simbólica do estatuto das profissões de serviço à pessoa, etc.).

À escala planetária, as lutas das mulheres, nas suas múltiplas formas, não se limitam a participar activamente no processo de auto-actividade tendente à auto-emancipação colectiva. São uma componente central nesse processo. As desigualdades e opressões não existem simplesmente umas ao lado das outras. Elas traduzem, na realidade concreta, o funcionamento de um modo de produção – capitalista – que produz a miséria e a opressão para se reproduzir a si mesmo. Os dominadores procurarão sempre apresentar as desigualdades, as injustiças e as opressões como múltiplas e divisíveis até ao infinito. Essa constitui uma das formas de alicerçar o seu poder. Nesse sentido, os diversos movimentos de luta e de emancipação das mulheres concorrem, no sentido mais estrito do termo, às batalhas para a sobrevivência de uma parte da humanidade. Essas acções são parte integrante de um movimento mais geral do(a)s explorado(a)s e do(a)s oprimido(a)s contra a barbárie, por um socialismo a reinventar.

Fazer face aos desafios teóricos e políticos contemporâneos

O nosso empreendimento parte da convicção de que, nas condições actuais de relações de força entre as classes, que se degradaram fortemente, no seu conjunto, sob os efeitos da ofensiva multidimensional do capital, uma estratégia que procure manter o existente (em suma, os adquiridos anteriores das lutas) já não é suficiente. A orientação puramente defensiva, que é aquela adoptada, no melhor dos casos, pelo que resta do movimento operário, aparece votada ao fracasso. As mobilizações visando pôr cobro aos atentados ao nível de vida, ao emprego, os despedimentos, às reformas, defrontam-se com os poderosos meios que os capitalistas, e os seus governos, têm de os impor, nomeadamente por via da sua capacidade de colocar os assalariados em concorrência de país para país. A sua derrota pode mesmo desembocar numa subordinação acrescida às necessidades do capital por parte de instituições apresentadas por muitos como sendo neutras: a moeda, a lei, o Estado. Para além disso, o “melhor dos casos”, constitui hoje a excepção. Os aparelhos sindicais estão marcados pela convicção da irreversibilidade da globalização liberal. A partir daí, só podem alhear-se ou mesmo combater deliberadamente a construção de um movimento unitário de oposição ao capital.

O primeiro passo que eles tomam nesse sentido consiste em isolar as lutas, onde quer que elas se declarem. Uma das consequências desta orientação pode ser a difusão acrescida entre os assalariados do binómio pendular entre cólera e desilusão (que as forças conservadoras e o capital utilizam e utilizarão de cada vez que o possam). Esta dupla reacção não é o produto de simples factores sociológicos “objectivos”. Ela resulta, em grande parte, da recusa dos aparelhos a entrar em conflito aberto com as classes dominantes e os seus representantes políticos directos, logo recusa também a participar na batalha social, económica, política e cultural que permitiria aos trabalhadores identificar um outro futuro para si próprios e para os seus filhos, uma necessidade cada vez mais sentida. Um novo neo-corporativismo toma contornos cada vez mais firmes, materializados nomeadamente nas negociações a dois entre os “parceiros sociais”, ou então a três, com a participação do Governo ou do Estado, bem como em diversas modalidades de “concertação”, empresa a empresa. Esta orientação desenvolve-se sobre o pano de fundo de uma gestão capitalista visando “desintegrar” os colectivos de assalariados (flexibilidade, progressão pelo mérito, adaptabilidade…).

Apenas os revolucionários poderão ajudar os assalariados, e os explorados em geral, a superar a fraqueza, a impotência mesmo, das suas reacções face à ofensiva geral movida contra eles pelos capitalistas e pelos governos. Quando nem os partidos que pretendem representá-los, nem sequer os aparelhos sindicais, ajudam os trabalhadores a compreender a natureza e os motivos do “actual estado de coisas”, ficam os próprios capitalistas com amplo caminho livre para fazê-lo à sua maneira. Isto sucede assim porque a ausência de um qualquer projecto político global, capaz de fornecer uma alternativa coerente e credível ao capitalismo, é paralisante.

Fazendo-se cada vez mais forte e evidente, a violência das relações sociais torna a (re)construção identitária da classe necessária, mas também mais compreensível. Ela poderia articular-se em torno das desigualdades gritantes, da exploração, e reforçar-se nas lutas, assim como na auto-actividade dos produtores da riqueza social. É certo que o aumento quantitativo do salariato à escala mundial não faz dele, automaticamente, o detentor inerente de uma capacidade subversiva e de um projecto de mudança radical. Mas não faltam os exemplos para realçar que, por ocasião de mobilizações de uma certa amplitude, bem como aquando de lutas marcadas pela acção directa dos assalariados, se assiste ao surgimento de dinâmicas centrípetas, unitárias, que superam as múltiplas diferenciações de estatuto construídas no seio do proletariado pelos gerentes de “recursos humanos”. Estas dinâmicas unificadoras reforçam-se quando se apoiam sobre a auto-organização democrática e quando forças sociais e políticas alimentam as relações entre movimentos espontâneos ou semi-espontâneos, ajudando a emergir uma consciência à altura dos obstáculos e dos objectivos encontrados nas lutas. Isto é tanto mais assim quanto, num país – ou numa região mais vasta –, recordações históricas de afrontamentos de classe passados favorecem a recuperação de uma memória. A constituição dos assalariados numa classe em construção é então facilitada. Eles transformam-se em proletariado em luta, assumindo o seu potencial conflitual, assim como a sua força de vector de transformação radical da sociedade. O ponto de partida de uma orientação alternativa deve pois enraizar-se no reforço da capacidade dos assalariados de “fazer em conjunto”. Ele baseia-se na realidade do carácter social do trabalho e pode abalar a forma fetichista que adquirem no quotidiano as relações sociais.

Do lado da social-democracia, os partidos que pretendem representar os assalariados exploram politicamente, praticamente da mesma forma que a burguesia, o resultado das lutas levadas a cabo em nome do comunismo no século XX e os crimes em massa cometidos em seu nome. Matraqueiam sempre que “o capitalismo ganhou” e que a única via que pode ser seguida é portanto a “melhor adaptação possível”. A propriedade privada dos meios de produção poderá eventualmente ser temperada, mas de forma alguma abolida. Paralisados pelo seu papel envergonhado na história do estalinismo de Estado (U.R.S.S.), bem como na génese das relações políticas actuais (basta pensar no papel do P.C.F. em 1968, do P.C.I. em 1969-70, do P.C.E. na restauração da monarquia no seio do Estado espanhol), o que resta dos antigos partidos comunistas cola-se à social-democracia. Nalguns sítios eles tornaram-se partidos social-democratas modernizados (Itália), noutros a sua aliança com a social-democracia é um elemento chave da sua sobrevivência (França). Quando se operam “rupturas” nesses partidos - que guardaram sempre um elemento de continuidade com o seu passado estalinista - , elas conhecem evoluções muito rápidas para o reformismo, outrora qualificado de “euro-comunismo” (Partido da Refundação Comunista, em Itália). Os seus militantes estão ainda apegados à ideia, mais ou menos nostálgica, mas que por vezes procura reavivar-se, do comunismo. Não é porém destes partidos que se pode esperar a reconstrução de uma alternativa que seja orientada pela ideia que o comunismo é uma opção actual e concebível, viva. Ademais, não se deve nunca esquecer que, para além da sua importante evolução sócio-política dos últimos anos, os partidos social-democratas e os partidos ditos comunistas sempre tiveram em comum, historicamente, uma estratégia centrada sobre o Estado e não na auto-actividade dos trabalhadores e dos seus aliados.

Entretanto, no final dos anos 1990, os movimentos anti-globalização ou alter-globalizadores procuraram abordar os problemas com que se confrontam o(a)s mais explorado(a)s e o(a)s mais destituído(a)s. Todos aqueles e aquelas que têm apego pela civilização humana enquanto tal conhecem a extrema importância destes problemas. Estes movimentos forneceram um quadro importante no qual o(a)s militantes puderam trabalhar sobre problemas ignorados ou rejeitados pelos partidos políticos que se reclamam dos assalariados, bem como pelos próprios aparelhos sindicais. Frequentemente, o anti-liberalismo dominante fixou limites a essas discussões, fortalecido por posições institucionais mais sólidas e dispondo de meios materiais mais importantes que as outras correntes. De tal modo que o trabalho político teórico, tal qual se pôde desenvolver e formular no decurso da última década, no seio dos Fóruns Sociais Mundiais (FSM), entre outros locais, por útil que tenha sido, continua claramente insuficiente em relação ao que está em jogo e à natureza social das questões. No melhor dos casos, o anti-liberalismo transformar-se-á (na verdade, é já em parte o que acontece) em vector de um novo reformismo de carácter classicamente social-democrata, com toda a impotência que caracterizou este último. No pior, arrisca-se a enfraquecer a resistência dos oprimidos alimentando-a com ilusões. Numa palavra: não basta declarar que “o mundo não é uma mercadoria” e protestar contra o devir-mercadoria do mundo, ou contra o devir-mundo da mercadoria. É preciso ainda localizar e dar batalha às relações de produção que operam esta mercantilização universal. E estas não são outras senão as relações capitalistas de produção, hoje em dia globalizadas. Esta apreciação, com os debates, trocas de opinião e diferenciações que dela resultam, está em vias de nascer no seio de espaços que podem recobrir o FSM e noutros campos ainda. Correntes e forças novas começam a fixar-se como objectivo ultrapassar os limites fixados pelo anti-liberalismo hegemónico, sem recair em arcaísmos estereotipados.

Diversos grupos militantes crêem que a posse de uma resposta para a degenerescência da revolução russa – considerada como chave de todas as derrotas e/ou degenerescências que se seguiram – pode eximi-los da necessidade de pensar a actualidade do comunismo. O programa da revolução estaria intacto, exigindo quando muito alguns retoques menores. Levando em frente o nosso trabalho, esperamos convencê-los de que não se pode fazer como se a ideia do comunismo (ou do socialismo no sentido pleno do termo, no qual é sinónimo de comunismo) tivesse saído indemne da história do século XX. Ao mesmo título, não se deve, não se pode cultivar a ilusão de que a evolução do mundo sob o domínio total do capital financeiro, há várias décadas, não exigiria, também ela, que a necessidade do comunismo, e o conteúdo deste, sejam repensados meticulosamente nas condições contemporâneas.

A atenção muito forte por nós dispensada à auto-actividade do(a)s assalariado(a)s, do(a)s explorado(a)s e da juventude, impele-nos a demarcarmo-nos do “substitucionismo”. Este último afecta, em graus diversos, tanto os grupos políticos pequenos como as grandes organizações anticapitalistas reclamando-se do marxismo. Frequentemente, coexistem nestas organizações um certo reconhecimento da necessidade de um trabalho de carácter programático (que se debruçaria sobre, pelo menos, uma parte das questões por nós evocadas) e a fuga em frente de um pragmatismo e um activismo que as colocam, muitas vezes, em perigo de ficar a reboque dos partidos social-democratas, dos vestígios de partidos formados no estalinismo, ou também, por vezes, a reboque dos aparelhos sindicais. Nós desejaríamos convencer o(a)s militantes que compreendem a natureza do nosso projecto, e a sua necessidade, a participar neste esforço. Pela nossa parte, estaremos muito atentos a todas as propostas de reagrupamento que operem no mesmo sentido.

Pensar o comunismo, hoje: o campo de trabalho

Os golpes brutais desferidos, dia após dia, pelo capital contra uma larga maioria do salariato, contra as camadas urbanas ditas “marginais” e contra as massas camponesas em todo o mundo, a radicalidade mesma do projecto económico neo-liberal e, do ponto de vista sócio-político, neo-conservador, tudo isso traduz uma ofensiva do capital sem precedentes em muitas décadas. O capital pretende fazer tábua rasa da maior parte dos direitos adquiridos, conquistados anteriormente pelo movimento operário e por outras forças sociais organizadas. Ele impõe uma “mudança de época”, provoca uma “sacudidela no mundo” que é sentida, de maneira certamente diversa, pela grande maioria da população mundial. Na Europa, ouve-se frequentemente uma frase que traduz esse sentimento: “Os nossos filhos terão uma vida mais difícil que a nossa, e para os nossos netos, será pior ainda”. É isto que obriga a uma resposta por parte de todos aqueles e aquelas para quem o objectivo é a emancipação social. Estabelecendo diálogos e colaborações múltiplas, é preciso replicar a este assalto ao nível onde ele se desenrola. Face a esta “sacudidela no mundo”, é agora o tempo de reafirmar, mas também de repensar, a perspectiva mais radical historicamente proclamada pela luta de classes do proletariado, a do comunismo, para determinar as condições actuais da sua necessidade, bem como das suas possibilidades de realização. (Se alguns preferem o termo socialismo, repitamo-lo, não o contestaremos.)

Ao expor aqui o campo do trabalho a levar a cabo, não ignoramos os imensos problemas teóricos e políticos que são levantados por um tal projecto. Bem pelo contrário. Todo o esforço teórico e político dos nossos encontros, dos nossos seminários e do nosso sítio na rede, uma vez lançado, procurará pois formular estes problemas da forma mais clara possível e definir o mais nitidamente possível as condições da sua solução.

Definir o próprio conceito de comunismo: um ponto de partida

Entre estes problemas, o primeiro, e não dos menores, é evidentemente o descrédito quase geral em que caiu o próprio termo comunismo, na sequência da desastrosa experiência histórica do estalinismo e do balanço feito aos Estados do auto-proclamado “socialismo real”. Nos meios de comunicação social, mas também entre muitos intelectuais (ou gente que como tal se pretende) o termo totalitarismo é usado para desacreditar todo o projecto comunista. Deste modo, o nosso primeiro objectivo será (re)definir claramente o próprio conceito de comunismo, nos seus diferentes aspectos e dimensões.

Para lançar o trabalho, como base mínima de acordo entre aquelas e aqueles que tomam esta iniciativa, sem prejuízo do resultado de trabalhos e pesquisas ulteriores que sejam conduzidos entre nós, ou com outros, definiremos o comunismo como:

  1. Uma sociedade fundada sobre a socialização dos meios sociais de produção, de distribuição e de consumo, sobre a planificação democrática da produção social, destinada a satisfazer na íntegra as necessidades sociais, bem como sobre a auto-gestão das unidades de produção nesse quadro socializado. Tudo isto serão pontos de referência para uma mudança profunda na gestão dos recursos naturais mundiais e a tomada de medidas que preservem a reprodução das condições de vida sobre o planeta.
  1. Uma sociedade na qual a administração da potência social (no sentido de capacidade da sociedade para agir sobre ela própria: propor-se a si própria as suas finalidades, as suas regras de organização e funcionamento, as suas próprias modalidades de controlo) toma, aos diferentes níveis de organização social, a forma de órgãos de deliberação e decisão associando o conjunto dos membros afectados pelas decisões a tomar, excluindo-se toda a monopolização por parte de uma minoria, fosse ela a mais “esclarecida”. Isto supõe acabar com um Estado que se ergue acima da sociedade, devendo ele ser “absorvido” pelos órgãos de auto-instituição democrática da sociedade, pois essa é a condição necessária para a sua completa subordinação.
  1. Uma sociedade que é, consequentemente, liberta das relações de opressão que são o capital e o Estado, com toda a sua aparelhagem associada; uma sociedade na qual se acabou com a divisão em classes sociais e com a divisão entre governantes e governados; uma sociedade onde a livre associação dos indivíduos implica, por um lado, que eles dominam os seus próprios produtos, que assim não são já mercadorias, e, por outro lado, que a união não constrangida dos produtores com as condições de produção põe fim ao estatuto de produtor-assalariado, à “escravatura salarial”.
  1. Uma sociedade onde a troca de actividades livres, entre indivíduos sociais, funda assim o livre desenvolvimento de cada um, sob todos os planos, o qual se torna a condição do livre desenvolvimento de todos e reciprocamente; uma sociedade que põe fim a todo o tipo de opressão, nomeadamente aquela de que são vítimas, de forma ancestral, as mulheres; uma sociedade que organiza a repartição do seu tempo de forma a que cresça qualitativamente o tempo de não-trabalho, para lá do tempo de trabalho necessário para dar resposta às necessidades sociais mais diversas.
  1. Uma sociedade, por conseguinte, na qual a humanidade tende à reconciliação consigo própria, sabendo porém que do seu seio nascerão novas contradições e novos conflitos, cuja resolução dependerá da criação de instâncias e instituições reguladoras próprias a cada etapa da evolução social.

Fazer a história da luta pelo comunismo e traçar o seu balanço

Redefinir o comunismo, precisando cada um dos aspectos precedentes, sem negligenciar os novos problemas por eles levantados, não é ainda suficiente para combater o descrédito que rodeia hoje a referência comunista. É preciso ainda regressar à História e mesmo à Pré-história do comunismo, da longa luta do(a)s oprimido(a)s (escravos, servos, camponeses e proletários) para se emanciparem e tentarem criar as condições de uma comunidade humana livre de toda a opressão. Não se trata somente de reviver as páginas gloriosas dessa História, hoje em dia caídas no esquecimento ou conscientemente desfiguradas, os actos políticos e as obras ideológicas que as ilustraram, os movimentos, os grupos e as personagens que foram os seus actores mais eminentes. É preciso, sobretudo, reabrir as páginas sombrias, debruçarmo-nos sobre as derrotas sangrentas e lancinantes que a pontuaram, das quais a pior foi sem dúvida aquela que viu o movimento de emancipação do proletariado virar-se, de certo modo, contra si próprio, engendrando novos regimes de opressão, novas estruturas de exploração e de dominação. Trata-se, enfim, de retomar os debates que agitaram em permanência o movimento comunista, até o dividir em tendências contrárias e o esgotar em lutas fratricidas.

Evidentemente, esse retorno à História do movimento comunista, sobre as suas horas boas e más, sobre os seus combates e os seus debates, não é concebido numa perspectiva puramente historiográfica, mesmo que integre e acolha, naturalmente, os trabalhos dos historiadores. É em função dos problemas que se põem actualmente ao movimento comunista e que ele deve enfrentar, aqui e agora, que este retorno reflexivo se deve praticar. Isto porque o eixo central do trabalho a levar a cabo deve ser o seguinte: afirmar a actualidade e a necessidade da perspectiva comunista.

Esta actualidade deve, desde logo, ser defendida com referência à extensão e profundidade das contradições actuais do capitalismo, e das crises nas quais estas se afirmam. Mas deve também ser defendida tendo em vista as potencialidades acrescidas de transformação social que essas mesmas contradições encerram e põem na ordem do dia.

O comunismo como necessidade surgida da crise da humanidade

Um terceiro eixo do nosso trabalho consistirá pois em proceder à análise metodológica destas contradições e destas potencialidades, que estão no cerne das transformações do capitalismo contemporâneo. Nesta perspectiva, por razões que começaram a ser expostas mais acima, propomo-nos dispensar uma atenção especial aos seguintes pontos:

- A crise ecológica planetária, de alcance potencialmente catastrófico, que manifesta o vampirismo do capital, a sua tendência para destruir as suas próprias condições naturais e sociais de valorização (a terra e o trabalho). Documentaremos o grau propriamente planetário atingido hoje pela contradição entre a socialização das forças produtivas (entre as quais se encontram as riquezas naturais, sob todas as suas formas, e o conjunto dos conhecimentos científicos), por uma parte, e, por outra parte, a apropriação privada de que elas são objecto sob a forma de capital, contradição que mais do que nunca torna actual a perspectiva de lhe por fim. Examinaremos as formas actuais da fusão entre ciência e capital. Mostraremos como a apropriação, pelo capital, do conjunto do trabalho social (entre o qual os avanços científicos e tecnológicos) constitui um obstáculo às mudanças amplas que seriam possíveis na organização da produção industrial e agrícola, bem como na distribuição. Sem uma ruptura social, económica e política, as inovações técnicas que se tornaram urgentes como primeira resposta a alguns aspectos determinados da crise ecológica não poderão ser implementadas. E o mesmo vale para as inovações necessárias no ordenamento do espaço, na organização do trabalho, no alojamento e nos transportes.

- O agravamento das desigualdades de desenvolvimento entre continentes, subcontinentes, nações, regiões, nesta nova fase do devir-mundo do capitalismo, impulsionada pelo capital financeiro e pelas empresas multinacionais. Estas últimas aumentam consideravelmente a escala social e espacial da reprodução do capital. Num pólo, constata-se um aumento dos efectivos do proletariado mundial, bem como das fracções do exército industrial de reserva empregadas ocasionalmente ou desempregados. Biliões de indivíduos estão votados à pobreza (que é preciso colocar em relação directa com a super-exploração), à miséria e à marginalidade social, excluídos não somente dos quadros habituais da vida social, mas mesmo da própria humanidade enquanto tal. No outro pólo, a riqueza social continua a acumular-se desbragadamente e, com isso, dá-se um desvio para fins de dominação (a “segurança”, quer dizer, uma vigilância social mais opressiva, a guerra, etc.) de meios humanos e técnicos potencialmente capazes de libertar o homem da velha tirania da carência e da arcaica necessidade de trabalhar.

- A “globalização” (na verdade, a transnacionalização) do capital e do capitalismo, na medida em que tende a abolir as antigas divisões políticas e culturais da humanidade (a sua divisão em Estados-nação e em áreas civilizacionais), não sem com isso provocar crispações identitárias como reacção. Do mesmo modo, ela coloca as bases para a constituição da humanidade em comunidade política.

- A socialização cada vez mais contraditória dos indivíduos: a sua abertura crescente (cada vez mais ampla e cada vez mais precoce) ao conjunto do mundo, que põe à sua disposição potencialmente todas as culturas do mundo, tanto passadas como presentes, que faz deles cada vez mais concretamente o produto da humanidade inteira, no seu desenvolvimento actual como na sua herança histórica. Abertura esta que entra em contradição com a expropriação não menos crescente dos indivíduos no que respeita ao seu domínio sobre as suas condições materiais, institucionais e culturais de existência, que os priva tendencialmente de toda a faculdade de construir uma identidade estável, de comunicar com os outros e de tomar parte na construção do mundo, desde logo contestando o seu rumo actual. Deste modo, são eles privados de uma parte (mais ou menos) importante da riqueza potencial acima mencionada. Socialização contraditória que resulta também, para a imensa maioria da população do planeta, numa radical renúncia ao seu tempo e espaço próprios, de uma tal dimensão que provoca uma verdadeira mutação antropológica, afectando o Homem, a suas relações com a sociedade, a sua capacidade de agir sobre ela.

Auto-actividade e auto-emancipação

Mas a actualidade do comunismo deve também (alguns dirão talvez mesmo, sobretudo) compreender-se com referência aos desafios e às potencialidades actuais da sua própria dinâmica: a auto-actividade do proletariado. Esta última é a alavanca das transformações, antes mesmo de se tornar a regra de base da sociedade a construir. Mais talvez que em qualquer momento anterior, importa hoje proclamar que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”.

Isto é assim, em primeiro lugar, tendo em vista a experiência histórica. Todos os modelos de “socialismo” baseados na relação substitucionista e messiânica de uma elite esclarecida, auto-proclamada “vanguarda do proletariado”, com o conjunto deste último, fracassaram no propósito de realizar a sua emancipação. No melhor dos casos, conseguiram apenas aligeirar momentaneamente o peso da opressão capitalista, neste ou naquele país, antes de conduzir a novas formas de dominação e opressão e, por fim, a um regresso ao capitalismo. A emancipação não se outorga – conquista-se.

Em segundo lugar, tendo em conta a experiência actual. Torna-se cada vez mais claro que, na fase actual da luta de classes, os trabalhadores e os outros sectores sociais explorados e oprimidos não podem mais contar senão consigo próprios, não apenas para se defender face à ofensiva geral que o capital lançou sobre eles, mas para garantir as condições mais elementares de reprodução social. Os países da América Latina, para além da Rússia, oferecem já um terreno de experiência, mas os mesmos processos estão em laboração na Ásia e, parcialmente, em África. Nos países capitalistas antigos, a auto-actividade é a única maneira de defender os direitos adquiridos anteriores, de tal modo o que resta dos aparelhos sindicais e políticos do antigo movimento operário (a social-democracia e os diferentes avatares do estalinismo, rebaptizado noutra época com o termo “euro-comunismo”) se transformaram integralmente em meras roldanas da ordem capitalista, rivalizando hoje na arte de fazer aceitar aos trabalhadores e aos dominados a agravação da sua condição.

Reafirmar a auto-actividade do proletariado como princípio activo do comunismo implica, evidentemente, algumas explicações que, neste como noutros pontos, não podem negligenciar os problemas teóricos e políticos que esta referência pode levantar. Também não queremos transformá-la numa utopia, generosa mas abstracta, separada das suas condições de realização, nem numa profecia para hipotéticos amanhãs cantadores. Isto traduz-se, antes do mais, em estar de prevenção contra todo o espontaneísmo. A auto-actividade do proletariado é, para nós, sempre o resultado de uma relação de forças na luta de classes, o resultado sempre frágil, e por consequência reversível, de uma luta na qual o proletariado se confronta não apenas com os seus inimigos de classe, mas também consigo próprio. Ela pressupõe formas de organização capazes de fazer face a estes desafios, entre as quais as forças políticas organizadas têm um lugar efectivo. É que os trabalhadores estão marcados pela dominação de classe que sofrem, pela tradução organizada desta dominação nas suas fileiras, mas também pela interiorização das relações de dominação. Nesse sentido, o desenvolvimento da auto-actividade do proletariado pressupõe a ruptura, pelo menos parcial, com os comportamentos, atitudes, valores, e ideias induzidas quotidianamente entre os seus membros pelas diferentes facetas desta dominação.

Nós pensamos que a auto-actividade do proletariado é o “fio vermelho” de uma actividade capaz de desenredar o emaranhado de contradições e dificuldades em que se debatem hoje os trabalhadores por todo o lado no mundo. Vêm-se manifestações dela em todos os terrenos onde se jogam as condições de existência do proletariado: no trabalho como fora dele, nas resistências, mesmo as mais modestas, que os trabalhadores e os explorados opõem à sua dominação e exploração pelo capital, bem como nas lutas que eles conduzem para, simplesmente, aliviar a pressão constante a que estão submetidos. É nossa intenção dispensar uma atenção muito especial à maneira pela qual, nestas resistências e nestas lutas (muitas vezes pouco espectaculares), emerge a consciência da necessidade e da possibilidade de uma reapropriação colectiva dos meios sociais de produção e de consumo, de novas regras para a vida em comum.

Nesta perspectiva, e para ancorar a referência à auto-actividade do proletariado na sua experiência imediata, procuraremos compreender como esta auto-actividade é, simultaneamente, derrotada e estimulada constantemente pelas agressões do capital. A título de exemplo, vemos como os encerramentos de empresas e os despedimentos massivos provocam reacções de reapropriação da “ferramenta de trabalho”; como as privatizações conduzem, contraditoriamente, à emergência de uma nova abordagem do serviço público pelo(a)s assalariado(a)s e pelo(a)s utentes; como as condições impostas aos trabalhadores imigrantes e às suas famílias, bem como a repressão de que eles são alvo, provocam movimentos de base em favor dos seus direitos e da compreensão recíproca entre culturas; como a persistência ou o agravamento mesmo das fomes é acompanhada por novos impulsos em favor de reformas agrárias muito bem pensadas; como a acentuação do domínio do capital sobre os recursos naturais suscita, vimo-lo no Equador e na Bolívia, resistências fundadas na auto-organização, e cujo fim, pelo menos semi-consciente, é a auto-emancipação; como a agudeza da opressão das mulheres e a sua dupla exploração suscitam o nascimento e o desenvolvimento de movimentos de emancipação; como as possibilidades abertas pela Internet colocam de forma imediato a questão da gratuidade de acesso aos bens culturais.

Faremos, pois, apelo aos trabalhos de sociólogos, de historiadores, de antropólogos, e ainda aos testemunhos e análises de militantes que saberão dar conta da presença desta dimensão de auto-actividade na praxis quotidiana e histórica do proletariado, e na perspectiva por ela aberta de realização do comunismo. Faremos tudo para tentar associar às nossas discussões aquelas e aqueles de quem utilizaremos os inquéritos e as pesquisas.

Resulta de tudo o precedente que a auto-actividade, e mais ainda a auto-emancipação do proletariado, devem ser compreendidas como uma construção a longo prazo, segundo um processo que comportará avanços e recuos. Nesta perspectiva, retomaremos a um dado momento o debate sobre as mediações que devem fazer parte deste processo. Mediações programáticas, permitindo estabelecer uma ponte entre as reivindicações emergentes das lutas actuais do proletariado, por um lado, e a perspectiva de uma futura sociedade comunista, por outro. Mediações organizacionais, permitindo o desenvolvimento dos embriões de auto-actividade já compreendidos nas práticas e lutas actuais, para os conduzir até ao nível da ruptura revolucionária, que tornará possível a auto-emancipação. Mas, mesmo aqui, não pretendemos conduzir estes debates de maneira puramente teórica, ou somente com referência às experiências históricas passadas, mas tendo sempre em conta as situações nas quais se encontra directamente implicado o proletariado hoje.

A necessidade de convergências e de debates tendo o comunismo como aposta estratégica

Ao concluir a leitura este texto, ter-se-á compreendido que nós desejamos fazer com que se associem ao trabalho que empreendemos todos aqueles e aquelas, qualquer que seja a sua trajectória política anterior, que se reconheçam na referência ao comunismo ou que percebam que a sua apropriação ou reapropriação, mediante uma actualização, se tornou uma necessidade política incontornável.

Esta abertura funda-se, nomeadamente, na convicção de que, com a crise sem precedentes em que o movimento operário mergulhou com a transnacionalização do capital, o arranque das políticas neo-liberais, o fim do “compromisso fordista”, o alinhamento envergonhado ou entusiástico dos social-democratas e dos “euro-comunistas” com o paradigma neo-liberal, o afundamento ideológico e político do “socialismo de Estado”, entramos numa nova fase histórica da luta de classes. Ela torna possível, mas também necessária, uma recolocação em causa das divisões e das clivagens herdadas de fases anteriores do movimento operário. Isto porque, pura e simplesmente, esta nova fase histórica torna caducos (ainda que de forma diferente e desigual) todos os modelos de transformação social precedentemente elaborados no seio ou à margem deste movimento. Ela põe em realce as suas insuficiências e, do mesmo passo, relativiza as oposições que eles estabeleciam entre si.

Ela torna assim possíveis convergências e cooperações antes improváveis, ou mesmo impossíveis, entre indivíduos, grupos, organizações e tendências saídas do movimento operário que, até aqui, no melhor dos casos, se ignoraram, e, no pior, combateram mesmo entre si ferozmente. Tudo isto na condição, como é evidente, que estes últimos façam sua a precedente constatação de caducidade (ao menos parcial) dos seus modelos anteriores, e que aceitem deste modo estabelecer uma relação crítica com a sua própria tradição.

 

 

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(*) Este texto foi traduzido do original francês que nos foi enviado por François Chesnais, que se reconhece facilmente como um dos autores. Trata-se, como se indica no próprio texto, de um documento colectivo de reflexão, produzido por um encontro de várias revistas marxistas. Pode ser encontrado, na sua versão original francesa, na página de ‘Carré Rouge’. Outras das organizações envolvidas são A l’Encontre e A Contrecourant.