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O ocaso do PT, as eleições
Carlos Zacarias F. de Sena Júnior (*) Nas eleições de outubro de 2002 a esquerda revolucionária brasileira não somou 1% dos votos válidos no país. Em contrapartida, Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT que disputava a sua quarta eleição, foi eleito no segundo turno com 52.793.364 votos, depois de derrotar José Serra, do PSDB. Para muitos marxistas espalhados pelo planeta, a eleição de Lula representava um alento e a perspectiva de que alguma coisa no mundo caminhava para esquerda. Para outros mais céticos, a eleição de um governo do PT e o desempenho pífio da esquerda socialista no pleito brasileiro, reafirmava a impossibilidade pura e simples da via eleitoral como campo de luta dos revolucionários, já que em qualquer eleição, terreno burguês por excelência, estes estariam condenados, sempre, ao fracasso. O objetivo deste texto é tentar demonstrar que nem a eleição de Lula, por si só, significou uma virada institucional do Brasil à esquerda, nem as ilusões das massas quanto às possibilidades de saídas por dentro do regime foram sepultadas com o fraco desempenho eleitoral da esquerda revolucionária. Outrossim, pretende-se discutir, também, a falência do Partido dos Trabalhadores enquanto projeto histórico e o surgimento do fenômeno do lulismo no Brasil, assim como discutir as perspectivas da luta socialista no Brasil a partir da formação da Frente de Esquerda, englobando PSOL, PSTU e PCB, em torno da candidatura de Heloísa Helena para presidente em 2006. Brasil, 2006 No Brasil, a pouco mais de um mês da realização das eleições que escolherá deputados federais e estaduais, senadores, governadores e o presidente da república, uma pesquisa realizada pelo instituto Datafolha em fins de agosto, revelou que 18% dos eleitores pretendiam votar nulo para deputado federal, o que representaria um aumento de cerca de 500% em relação à quantidade de votos nulos para o mesmo cargo verificados no pleito anterior. A tendência registrada na pesquisa, a se confirmar, o que parece improvável, criaria uma situação inédita e desoladora, ainda que não implique na anulação da eleição, segundo parecer de um ministro do TSE. Situação desoladora ao menos para os milhares de candidatos das dezenas de siglas (mais de trinta) que disputam as eleições deste ano no país onde o voto é obrigatório. Entretanto, para um setor da pequena burguesia brasileira, que vem recorrendo sistematicamente à campanha pelo voto nulo através da Internet e da inserção de matérias em programas voltados para um público específico, em nome da "ética na política", tais números são entusiasmadores. Para os revolucionários, contudo, o resultado da pesquisa é uma faca de dois gumes: primeiro porque a perspectiva dos que pretendem anular o voto é a de que não há saída possível pela política. Depois, porque apesar de todas as crises que atingiram o lulo-petismo, a figura do presidente pareceu sair incólume, já que a aprovação de Lula atingiu o recorde histórico de 52% também em fins de agosto e, ao que parece, a reeleição no primeiro turno está se configurando como certa. Mas, no Brasil, tudo pode acontecer (ou como dizia um apresentador de TV "tudo pode acontecer, inclusive nada!"), e não obstante a aparente calmaria que embala os sonhos eróticos do governo, depois da tempestade de corrupção e das inúmeras denúncias, não é possível desconhecer a profundidade da crise do regime, muito embora ela esteja apenas sugerida pela disposição do voto nulo. Quanto às possibilidades abertas para o movimento de massas, também calcadas no terreno eleitoral com a formação, pela primeira vez na história do Brasil pós-PT, de uma Frente de Esquerda, elas tem significados que vão muito além da eleição. O PT do mensalão Na última legislatura, a primeira sob um Executivo supostamente de esquerda, o Brasil foi atingido por uma onda de denúncias envolvendo esquemas de corrupção de diversas espécies. Foi o "mensalão" (uma rede de compra de votos para o apoio a projetos do governo), que envolveu uma parte dos petistas do Congresso, inclusive o ex-presidente da Câmara, João Paulo Cunha (que terminou sendo absolvido em votação pelo Plenário), até a atual máfia dos "sanguessugas", que atinge mais de setenta parlamentares, acusados de participação em um esquema fraudulento de vendas de ambulâncias superfaturadas para prefeituras do interior. Isso sem falar nas propinas pagas pelo dono do restaurante da Câmara a Severino Cavalcanti do PPB, que terminou provocando sua renúncia quando ele era o Presidente da casa e apoiava abertamente o governo Lula; ou o escândalo dos "dólares na cueca" do assessor do deputado petista do Ceará (irmão de José Genoíno, presidente do PT na época) e na máfia dos "vampiros", um esquema de fraude em licitações para a compra superfaturada de hemoderivados, descoberta em 2004, e que envolve o ex-ministro da saúde de Lula e atual candidato ao governo de Pernambuco, Humberto Costa. Os escândalos foram muitos e sucessivos e se não foram devidamente comprovados e os autores punidos, isto se deveu, principalmente, ao corporativismo do Congresso e a "operação abafa" montada pelo governo, com a cumplicidade de parte da imprensa, do silêncio da sociedade civil organizada e do grosso dos intelectuais que, da academia, apoiavam o PT e, principalmente, da defesa que a CUT (dirigida pela corrente Articulação do partido de Lula), a UNE (dirigida pelo PC do B) e o MST fizeram do governo. Estas três entidades, outrora prestigiadas e conhecidas pelo barulho que faziam nos casos de corrupção dos governos e também papel que cumpriram na organização das lutas dos trabalhadores, chegaram a organizar uma mobilização em Brasília para defender o governo, que diziam estar sendo atacado "pelas elites". Contudo, pelo fiasco que foi a mobilização, que em novembro de 2004 não conseguiu reunir mais do que oito mil pessoas para defender Lula em Brasília, na véspera de uma outra manifestação, convocada por entidades e partidos à esquerda do governo, que reuniu quase o dobro, pode-se dizer que a idéia de que havia uma "conspiração das elites", no final das contas, ao menos para os setores organizados, não colou. Ainda com toda a defesa que fizeram de Lula, como não poderia deixar de ser, no governo do PT as baixas foram muitas: do esquema do "mensalão", em que a maioria terminou sendo absolvida pelos congressistas, primeiro caiu José Genoíno, presidente do Partido; depois vieram o tesoureiro e o secretário-geral da legenda, Delúbio Soares e Silvio Pereira, respectivamente (este último, inclusive, assumiu ter recebido, de um empresário, uma Land Rover de presente, no valor de R$ 70,00, cerca 25 mil euros); por fim, veio abaixo, o todo poderoso José Dirceu, o suposto chefe do esquema e principal artífice do governo Lula. Da máfia dos vampiros, onde também consta o nome de Delúbio Soares, apenas agora a Polícia Federal indicia os envolvidos, inclusive o ex-ministro Humberto Costa e mais quarentas servidores públicos, empresários e lobistas. Dos "sanguessugas", apenas um renunciou, e todos esperam tranqüilamente o julgamento da Câmara, confiantes que terão o mesmo tratamento deferente dispensado aos chamados "mensaleiros". De quebra, também caiu o até então intocável Antônio Palocci, ministro da fazenda de Lula e queridinho dos empresários e banqueiros e que tinha sido coordenador da campanha do PT para presidente. Palocci foi pego com a "boca na botija" quando ordenou a quebra do sigilo bancário de um caseiro enquanto este testemunhava que o Ministro freqüentava uma mansão na capital do país alugada por lobistas que, entre uma maracutaia e outra, contratavam garotas de programa para altas orgias. Enfim, não restou pedra-sobre-pedra do governo do PT. Apesar disso, o anterior petismo de resultados, se reinventou no lulismo caudilhesco e, enquanto o PT saia de cena, Lula triunfava sorridente. Do PT que dizia não, ao PT que sempre diz sim É verdade que são poucos os que podem se isentar das responsabilidades pela eleição de Lula no seio da esquerda brasileira. Construída ao longo de mais de 20 anos de sonhos e decepções, a estrela do PT nasceu para brilhar, ainda que nas eleições, e mesmo que o Partido dos Trabalhadores tenha surgido em 1980 como um fenômeno progressivo, em vista da falência do monolitismo e conciliação de classes dos PCs, aos revolucionários que lhe fizeram entrismo nos anos 80, não havia ilusões a cultivar: o PT era mesmo um partido reformista. Formado por um grande contingente de burocratas sindicais, de intelectuais marxistas, por membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e por um pequeno contingente de organizações oriundas da luta armada, o PT possuía todas as características de uma organização reformista, porém progressista e de combate, porque estribada numa forte visão classista. Portanto o PT era um fenômeno progressivo, como o prova a sua história fincada nas lutas da década de 80, que permitiram a criação da CUT, em 1983, o movimento das "diretas já", em 1984, e as célebres jornadas grevistas de 1987/88. Não obstante, ao longo dos seus 25 anos, foram poucos os revolucionários que lhe passaram ilesos. A maioria dos lambertistas foi tragada pela força da "Articulação dos 113" ainda nos gloriosos anos em que as greves deram o tom. Também foram pegos no remoinho das eleições e do "cretinismo parlamentar" que quase dizimaria a corrente labertista na viragem dos 80 para os 90. Os que restaram do lambertismo, organizados na tendência "O Trabalho", hoje navegam sem aparente horizonte estratégico, na nau dos desvalidos petistas do século XXI. Quanto aos mandelistas, da corrente Democracia Socialista , sem que se faça qualquer injustiça às idéias do velho líder do Secretariado Unificado da IV Internacional que morreu afirmando a atualidade de Trotsky, estes fizeram um caminho mais conseqüente de adaptação a ordem burguesa, primeiro sucumbiram à lógica pragmática da corrente Articulação, e depois submergiram na democracia burguesa nua e crua. Hoje sequer esboçam quaisquer críticas coerentes ao governo, sendo exilados dos movimentos sociais e um arremedo dos velhos trotskistas do jornal "Em Tempo". Contudo, se o petismo já era um fenômeno "reformista" ou mesmo "contra-revolucionário" nas suas origens, não é conveniente usarmos do anacronismo das viúvas do "socialismo real" para afirmar a falência daquele projeto no seu nascedouro. Isto porque o PT, reafirmamos, nasceu progressista, fundado na independência de classes e na perspectiva, ainda que eleitoral, de que "trabalhador vota em trabalhador" ou que "patrão de oposição é igual a patrão de situação", coisa que os PCs, há tempos, não ousavam afirmar, imbuídos que estavam das táticas de Frente Popular e de alianças com a burguesia. Tanto que num ambiente marcadamente matizado pela lógica do perdão, da concórdia e do esquecimento, gerado pela decretação da anistia "ampla, geral e irrestrita" pelos militares brasileiros e "democratas" da Nova República, o PT teve o mérito de dizer "não" em diversas circunstâncias: disse não ao chamamento dos comunistas para o ingresso no MDB; disse não à pelega CGT; disse não à farsa do colégio eleitoral que elegeu a dupla Tancredo/Sarney. E por isso foi condenado e acusado de "fracionista" e "sectário". Mas prosseguiu dizendo "não" ao longo de boa parte da década de 80, construindo o único caminho que para os trabalhadores era o mais conseqüente e necessário, o caminho da luta de classes. Foi dessa opção que, em 1983, se fundou a Central Única dos Trabalhadores. A CUT foi a peça central nas milhares de greves que foram feitas durante o governo Sarney, tendo ajudado à classe trabalhadora brasileira a construir um protagonismo que há décadas não existia. Então, nos anos 80, o PT provou que estava certo, contra a conciliação, o monolitismo e o eleitoralismo, a classe trabalhadora do Brasil reaprendeu a sonhar com um mundo melhor ao construir um partido que lhe fazia confiar nas suas próprias forças. E aos trancos e barrancos o PT chegou ao maior desafio de sua história: a eleição de 1989. E foi então a última vez que o PT disse "não", mas fracassou em afirmar perante as massas a radicalidade do seu projeto classista, temeroso de parecer excessivamente...radical. De maneira que, no dia seguinte à vitória de Collor nas eleições, quando a classe trabalhadora brasileira, que vinha num ascenso de lutas, greve geral e a possibilidade inusitada de eleger um seu representante à presidência da república de um país que sofrera 21 anos de brutal ditadura, quando essa classe trabalhadora esperava a organização da luta diária para a transformação do país pelas suas próprias mãos, o PT, que dizia "não", passou a dizer "sim": e o primeiro grande sim que disse foi ao regime, desejando, ainda em 1989, com um altissonante "feliz 1994", ano em que ocorreriam novas eleições, que a classe trabalhadora esperasse cinco anos para ser feliz. Daí por diante foi apenas "sim": sim ao pacto social, às regras do jogo, ao confisco da poupança (pela incapacidade de mobilizar), ao arrocho que se praticava e, pasmem, quando um novo ascenso se anunciou ante aos escândalos do governo Collor/PC Farias; quando a juventude e os trabalhadores voltaram a ocupar as ruas; quando o país mergulhou em catarse com sintomas de que se poderia estar vivendo uma crise pré-revolucionária; quando tudo isso indicava a imperiosa necessidade de se caminhar para as ruas, o PT, mais uma vez, disse "sim": sim a Itamar Franco, em nome da "governabilidade", que permitiria a eleição de 1994, e promoveu a desmobilização dos trabalhadores e da juventude, que tinham idos às ruas para derrubar Collor e estavam dispostos a avançar nas lutas, cometendo sua primeira grande traição à classe que o tinha engendrado. O PT no governo Antes mesmo de chegar ao governo, o eterno presidente de honra do PT, ninguém menos que o próprio Lula, já dizia, na "Carta ao povo brasileiro" de 22 de junho de 2002: "O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir pacificar". Tentando livrar-se da pecha de "radical" adquirida, inadvertidamente, enquanto liderava greves de metalúrgicos do ABC, ou falava às massas nas eleições de 1989 prometendo reforma agrária, suspensão do pagamento da dívida externa e salário mínimo do DIEESE, Lula convidou o publicitário baiano Duda Mendonça, famoso pelas vitoriosas campanhas de Paulo Maluf, em São Paulo, e pela sua invulgar paixão por brigas de galo, para comandar o "espetáculo do transformismo": do antigo "sapo barbudo", Duda Mendonça inventou o "Lulinha paz e amor". Mas a "Carta ao povo brasileiro" já havia pavimentado o caminho transformista , haja vista que defendia uma "ampla negociação nacional", para conduzir a uma "autêntica aliança pelo país" e um "novo contrato social, capaz de assegura o crescimento com estabilidade". O PT queria deixar claro, de uma vez por todas, não para o povo brasileiro, mas para o capital, que tinha mudado, então assegurava que respeitaria os "contratos e obrigações do país". E de fato, não somente respeitou todos os contratos com o capital e os capitalistas do sistema financeiro, como elevou o superávit primário a patamares nunca antes vistos, apenas para pagar a dívida externa, o que mereceria elogios sucessivos dos dirigentes do FMI e o estabelecimento de uma aliança tácita com George W. Bush para o exercício de uma política imperialista no continente. Não por acaso, Lula fez o papel de "bombeiro" da América Latina, primeiro apagando o incêndio da crise venezuelana de 2002, e criando um grupo de países chamados "amigos da Venezuela", que incluía, além do Brasil, a Espanha; depois, sob patrocínio estadunidense, resolveu enviar tropas para o Haiti e hoje mantém contingentes estacionados no país antilhano, ajudando a manter a "ordem da burguesia" num dos países mais pobres do mundo; enfim, no papel que assumiu perante a potência do norte, o lulismo aceitou o inglório lugar de um Estado subimperialista ao sul do Rio Grande. Com efeito, o lulo-petismo não só não conseguiu cumprir o desejo de mudança das massas populares que votaram em Lula em 2002, como aprofundou o fosso das desigualdades sociais no Brasil, permitindo a concentração de renda, através dos lucros gigantescos obtidos pelo sistema financeiro durante a gestão petista. Para 2006, prepara-se contra-reformas sindicais e trabalhistas dos sonhos do capital, assim como o foi a da previdência, aprovada ainda no primeiro ano do mandato de Lula. Os empresários estão eufóricos com as perspectivas eleitorais e de estabilidade e ampliação dos ganhos para o futuro próximo e apostam ainda numa segunda reforma da previdência que já está em fase e elaboração. Apesar disso, a burguesia no Brasil permanece dividida entre as opções Lula e Alckmin, já que o primeiro é o único capaz de levar adiante as reformas mais aguardadas pelos capitalistas, enquanto o segundo continua sendo, de fato, a alternativa mais confiável para um governo burguês "puro". Isto porque, como disse Delfim Netto, ex-ministro da ditadura militar e atual conselheiro e apoiador de Lula: "Só Lula pode produzir essas duas reformas, porque o trabalhador acredita nele " (1). Contudo, um partido que ainda tem alguma base operária nunca é da total confiança da burguesia, de modo que a alternativa Alckmin ainda não foi completamente descartada. Em todo caso o candidato do PSDB não tem estofo para empolgar as grandes massas e dificilmente conseguiria implantar a agenda dos sonhos do capital sem uma oposição mais consistente dos movimentos sociais que o consideram, acertadamente, como inimigo de classe. Resultado: os capitalistas migram, sem cerimônia, para o lulismo , de modo que as pesquisas de opinião dão como certa a vitória de Lula ainda no primeiro turno. O espelho distorcido As perspectivas de uma nova e desta vez fulminante vitória eleitoral de Lula no primeiro turno das eleições brasileiras trazem a baila uma velha polêmica no interior do marxismo. Polêmica esta, cujos contornos só poderão ser tangencialmente tratados aqui, já que diz respeito à relação entre sujeitos sociais e sujeitos políticos e sobre os critérios de medição das relações-de-força na sociedade. Caso se fosse tratar do assunto em profundidade neste trabalho, perder-se-ia o foco da análise aqui empreendida, que é o de esclarecer sobre a "falência do projeto histórico do PT", ou a sua transfiguração no lulismo e as perspectivas que se anunciam para a luta socialista no país, o que inclui um histórico sobre as discussões que possibilitaram a Frente de Esquerda. Nesse sentido, optou-se por uma abordagem diacrônica da temática, remetendo-se as questões teóricas para estudos que mais apropriadamente se debruçam sobre o assunto (2). Se é verdade que apesar do ocaso do PT, o presidente Lula chega ao final do seu mandato com grande popularidade e perspectiva de vitória eleitoral com grande margem de votos, não é menos verdade que a maioria esmagadora das pessoas que votarão em Lula o farão em função de uma espécie de "demanda reprimida" por mudança, já que há 21 anos do fim da ditadura militar no Brasil, todos os sucessivos governos, eleitos por voto direto desde 1989, falaram em transformações profundas, mas nenhum, efetivamente, o fez, pelos motivos óbvios. Também há que se considerar que na esteira da falência do PT, emerge o lulismo , livre das amarras e dos limites de princípios, ainda que alargados, que a existência e trajetória que um partido como o PT impunha a Lula, sua principal criação. Sobre o assunto, vale a pena uma nova citação da mesma entrevista de Delfim Netto, que não obstante, sintetiza o sentimento da grande burguesia do Brasil: "O PT é um partido em murcha. O Lula demorou para entender que foi ele que elegeu o PT, e não o PT que o elegeu. O PT só o atrapalhou. Se for reeleito, será pela maioria dos brasileiros. Vai fazer outra vez um governo de coalizão". Portanto, o lulismo , como ideologia emergente, é a antítese do petismo das origens. Todavia, é no plano eleitoral, onde os ritmos são substancialmente mais lentos, que se pode perceber a demanda por mudanças, já que as massas votarão em Lula, mas foi no PT que aprenderam a confiar. Isto porque na falta de um grande ascenso de lutas, as eleições terminam por canalizar os sentimentos de mudança. Em todo caso, quando não há lutas, persiste uma tendência conservadora majoritária na sociedade e entre os trabalhadores que são convertidos em eleitores e convencidos de que o voto é sua "arma" para mudar, a única que possuem. Tal conservadorismo, contudo, nunca chega a encobrir por completo a expectativa de mudança, haja vista que a maioria das pessoas vota para mudar sua situação normalmente degradante. Não obstante, quando os trabalhadores, convertidos em eleitores, aprenderam, com suas próprias experiências, que as mudanças realizadas se fizeram para pior, tendem a ser cauteloses e, de certa forma, conservadores, o que poderia expressar numa dialética de "conservadorismo mudancista". Em função disso, enquanto a sociedade não se transforma por via revolucionária e é sequer incapaz de mudar pela via das reformas, as pessoas votam em candidatos que as convencem de que representam uma mudança, mesmo na continuidade. O programa de Lula promete mudanças em relação ao governo passado, assim como FHC prometeu mudanças na eleição de 1998 em relação ao seu governo anterior e Serra, candidato do "príncipe dos sociólogos", jurava que significava mudanças radicais em relação ao seu correligionário presidente. Ou seja, o verbo de qualquer eleição, ao menos no Brasil, é mudar. Mas, se as eleições se expressam, de alguma maneira, o sentimento de uma parte da sociedade por mudanças, no final das contas terminam por concretizar o desejo das minorias por conservar. Portanto, distorcem os significados reais da contradição fundamental da sociedade capitalista, já que são os trabalhadores que elegem os governos dos patrões. Ou então, pior ainda, distorcem as relações-de-força dessa mesma sociedade, posto que, se na luta de classes as relações de confronto direto são possíveis, nas eleições, dada a impossibilidade de confronto real, os sujeitos sociais, objetivamente definidos, tendem a escolher representações eleitorais em sujeitos políticos de outra classe. Foi Trotsky quem observou que na Alemanha do início dos anos 30, mil votos fascistas eram tanto quanto mil votos comunistas; entretanto, mil operários mobilizados representavam "cem vezes mais" do que "mil funcionários amanuenses" visto que a grande massa fascista era composta de "poeira de humanidade " (3). É verdade que essa "poeira de humanidade" se converteu em força histórica por mais de duas décadas, mas isso se deveu também à covardia e à capitulação dos comunistas alemães orientados pela tática do "terceiro período " da IC. Para o líder russo, as eleições distorciam a realidade porque não expressavam as reais relações de força da sociedade de classes. Para exemplificar Trotsky citava o caso da Rússia revolucionária depois de julho, onde a maioria dos trabalhadores pendia para os bolcheviques nos soviets , nas greves e nos piquetes, mas nas eleições elegiam sempre mencheviques, SRs e kadetes. Ou seja, no mundo das reais relações de força, a tendência do grupo majoritário da sociedade era pela mudança, enquanto no plano das eleições, eles eram sempre, de alguma forma, conservadores. Isto acontece porque as eleições são feitas de candidatos e promessas que, na maioria dos casos, se sabe que não se vai cumprir, já que os candidatos falam para as maiorias, mas, no final das contas, governam para as minorias. Também porque as pessoas votam nos candidatos mais conhecidos, aqueles patrocinados pela mídia e pelos milhões de reais (dólares ou euros) dos grandes grupos empresariais. Por vezes, muitas candidaturas aparecidas na mídia como de "prestígio" representam justamente a tal "poeira de humanidade" referida por Trotsky, enquanto outras, nascidas e representativas das reais relações de força, passam despercebidas na grande imprensa e no voto do eleitorado. Com efeito, como admitir que candidatos que defendem interesses de um setor da sociedade que representa menos de 1% da população tenham tantos votos e outros que representam sua maioria sejam sempre minoritários? Nas eleições estarão sempre por cima os candidatos da grande burguesia, "machos, adultos e brancos", enquanto na vida real, as relações de força expressam outras maiorias, formada pelos homens que trabalham e por todos setores oprimidos que carregam em si os germes do futuro. A Frente de esquerda e luta socialista no Brasil Nos últimos 25 anos, não foram poucas as tentativas de unificação das correntes revolucionárias e/ou socialistas no Brasil. Em alguma medida, a convergência dessas forças para o interior de um partido classista como o PT das origens, gerava alguma expectativa de que isso de fato podia acontecer num curto espaço de tempo. Entretanto, a experiência histórica tem demonstrado que a classe operária tende a criar para si não um, mas vários sujeitos políticos. Estes, em tempos normais , se confrontam e esgrimem suas posições em brigas intestinas, insto porque, ainda que à esquerda das massas, muitas desses sujeitos, por vezes, abrigam em seu interior elementos reformistas e mesmo organizações combativas tendem a cultivar certas ilusões quanto à possibilidade de uma transição sem rupturas mais bruscas. Contudo, em épocas revolucionárias, quando as massas se deslocam e se põem à esquerda das suas próprias representações políticas, as organizações tendem a se unificarem, sob o risco de sucumbirem à violenta pressão dos sujeitos sociais, agora dispostos a criarem novas organizações e novas lideranças, ainda que fragilmente improvisadas. Isso, de fato, aconteceu no modelo mais clássico de revolução que se conhece, o russo, quando foi apenas em 1917 que as organizações revolucionárias, a exemplo dos grupamentos "intercantonais" próximos de Trotsky, convergiram para o Partido Bolchevique e aceitaram uma direção única, democrática e centralista. Mais recentemente, temos presenciado perspectivas crescentes de unificação em grandes ascensos com os do Equador, da Bolívia e da Argentina. Nesses casos, embora as pressões dos sujeitos sociais fossem violentas, a ponto de sepultarem diversas organizações e suspenderem, momentaneamente, as ilusões reformistas, como a revolução não avançou, terminou por refluir sob a reação democrática . Em todo caso, embora o saldo da unificação das organizações socialistas seja bem pequeno, ainda é cedo para se avaliar com exatidão os resultados daqueles processos que, abertos no ano 2000, ainda não se fecharam. No Brasil, a experiência dos grupamentos políticos que saíram do PT desde princípios dos anos 90, tem confirmado a regra da pulverização das representações políticas mais à esquerda. Não obstante os esforços empreendidos pelo PSTU e por outras organizações que lutaram pela unificação dos socialistas num novo e único Partido, desde pelo menos 2001, que as correntes socialistas de esquerda que romperam com o PT depois da eleição de Lula, optaram por construir um outro Partido, o PSOL. Em todo caso, não se pode dizer que o adiamento da unidade, embora plausível e necessária, tenha sido de todo maléfica nesses tempos de normalidade aparente, haja vista que somente a experiência histórica e o estabelecimento de relações mais estreitas com as massas poderá favorecer uma depuração das ilusões reformistas ainda alimentadas por determinados setores que hoje compõem o PSOL. Contudo, por tortuosas vias, a unidade, se ainda não foi alcançada no plano orgânico, vem sendo construída no plano social e organizativo, com a Coordenação Nacional de Lutas (CONLUTAS) e, mais recentemente, no plano eleitoral, com a conformação de uma Frente de Esquerda e o lançamento da candidatura de Heloísa Helena, encabeçando uma chapa formada pelo PSOL, pelo PSTU e pelo PCB. Esses acontecimentos, para uma esquerda de quem se dizia acostumada a só se juntar na prisão, significam uns tantos passos importantes para as tarefas que a história, embora insistindo em adiar, parece querer reservar para os socialistas brasileiros. Apesar deste fato de extrema relevância para as organizações operárias brasileiras, ainda há muita hesitação em setores do PSOL quanto à necessidade de construir uma organização combativa no âmbito sindical e popular em alternativa à CUT e à UNE. Com efeito, nem o êxito do I Congresso Nacional dos Trabalhadores (CONAT), realizado em maio de 2006 e que reuniu mais de três mil trabalhadores, entre delegados e observadores, que no final sacramentaram a CONLUTAS, nem o sucesso dessa iniciativa foi ainda suficiente para convencer certos setores da esquerda socialista, abrigados no interior do PSOL, quanto a importância do rompimento com a CUT. De qualquer forma, as rupturas com a Central nos últimos meses sinalizaram para uma tendência irreversível que deverá levar o "sindicalismo oficial" petista para o mesmo buraco histórico do PT. Apesar de todos os avanços da esquerda socialista, no Brasil estamos condenados a repetir a velha farsa da democracia burguesa, já que os candidatos que estão em primeiro lugar nas pesquisas eleitorais (Lula e Alckmin) têm programas absolutamente semelhantes e representam as pequenas minorias da sociedade. Apesar disso, a candidatura de Heloísa Helena, na casa dos 10% dos votos indicados pelas pesquisas, tem se implantado em setores importantes da classe trabalhadora brasileira, de maneira que, as representações políticas e seus candidatos e os sujeitos sociais do qual são originários têm se reforçado e se alimentado, reciprocamente, nos planos em que combatem, seja no plano social como foi o caso da recente greve dos trabalhadores da Volks que foi potencializada nas campanhas dos candidatos da Frente, seja no plano eleitoral, já que os candidatos da Frente de Esquerda têm bases eleitorais entre os trabalhadores que não deixam de ter opções para as eleições. A essa altura, espera-se que os 10% alcançados por Heloísa Helena nas pesquisas de intenção de voto se convertam em disposição de luta e, mais do que isso, no resgate de um programa absolutamente necessário para se elevar a moral da classe trabalhadora brasileira, ultimamente vilipendiada por um governo feito na medida para a direita brasileira, que ousou reinventar Lula, através do lulismo , para combater o incurável reformismo do petismo das origens. O resultado foi que o PT, embora sobreviva como legenda, desapareceu como Partido político de esquerda e projeto histórico dos setores da burocracia sindical brasileira. Enquanto isso, o lulismo viceja exuberante, não obstante, como já foi dito, a maioria dos brasileiros que pretende votar em Lula não fará isso por instinto conservador (que também há nesses casos), mas por uma certa desinformação quanto ao transformismo (no sentido gramsciano da palavra) sofrido pelo ex-operário, que algum dia corporificou os anseios de mudança dos de baixo, mas que hoje está aí justamente para confirmar a regra de que as eleições distorcem a realidade. Quanto à Frente de Esquerda, se não confirmar uma tendência de uma futura unidade dos setores revolucionários, que sirva ao menos como educação para a nova geração de socialistas que somente agora, depois do ocaso do PT, começa a despertar para a luta. Oxalá as candidaturas das classes trabalhadoras possam vingar nas urnas no dia 1º de outubro no Brasil, quiçá para denunciar as mazelas da "democracia burguesa" e a farsa desse jogo de cartas marcadas, senão para dizer o que os "de baixo" pensam do mundo, enquanto a possibilidade de transformá-lo ainda não está colocada na ordem do dia.
(*) Professor de História da Universidade do Estado da Bahia (Brasil), campus II, Alagoinhas. Bolsista de doutoramento (sanduíche) da CAPES na Universidade do Porto. ______________ NOTAS: (1) Folha de São Paulo , 26 de agosto de 2006. (2) Sobre esse assunto, veja-se o trabalho de Valério Arcary , As esquinas perigosas da História. Situações revolucionárias em perspectiva marxista . São Paulo: Xamã, 2004, p. 41-61. (3) Leon Trotsky, Revolução e contra-revolução. Rio de Janeiro: Guanabara, 1968, p. 34.
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