Movimentos sociais no Brasil de hoje

Ivonaldo Leite (*)


Há na história do Brasil uma fecunda tradição de mobilização de movimentos sociais. A Balaiada, a Cabanagem, o movimento igualitário de Canudos, entre muitos outros, são exemplos, num tempo mais distante, que dão expressão histórica à rebeldia dos sujeitos colectivos brasileiros. Em tempos mais recentes, as Comunidades de Base, o Novo Sindicalismo, o Movimento dos Sem Terra, enfim, toda uma amálgama de actores sociais que conseguiram influir significativamente na definição da agenda política do País. Prova concreta disto é o facto de o actual Presidente da República ter sido um dos principais líderes - talvez mesmo o principal – do Novo Sindicalismo, que fincou as suas raízes iniciais na então “República Operária de São Bernardo do Campo”, no estado de São Paulo, entre o fim da década de 1970/início da de 1980.

Tenha-se ainda em conta que, num momento de hegemonia internacional da ortodoxia do laissez-faire, laissez-passer, o surgimento do Fórum Social Mundial no Brasil é uma demonstração paradigmática da insubmissão dos sectores populares organizados do País. Isto não significa negar, claro está, o carácter ecléctico do Fórum - a sua propensão à “feira ideológica” -, tornando-o limitado do ponto de vista da definição de uma perspectiva estratégica global e de longo prazo. Não é meu interesse, pelo ao menos aqui, discutir o porquê desta “potencialidade brasileira” para a mobilização dos movimentos sociais. É-me suficiente dizer que penso que a razão disto não é algo monocausal. Ela decorre das particularidades político- sociais do País, mas também, entre outros elementos determinantes, do facto de no Brasil terem sido geradas interpretações marxistas que fizeram eco no mundo, a exemplo da Teoria da Dependência, e de existir, em muitas universidades, uma forte politização à esquerda.

O dito até agora, entretanto, pode ser definido como um registo histórico do que tem ocorrido no Brasil. O cenário dos dias presentes é de impasses e desafios. Entendamo-nos.

A chegada do PT ao Governo Federal, alçando à Presidência da República o operário que simbolizou o surgimento do Novo Sindicalismo e deu impulso à ascensão de uma diversidade de organizações no Brasil contemporâneo, representou, a um só tempo, e de modo paradoxal, um momento de consagração dos movimentos sociais e de transição destes a um quadro dilemático. De consagração, pois significou a chegada ao Governo de alguém que é “produto” dos próprios movimentos sociais; e de transição a um quadro dilemático, porquê, com o PT na condição de força governamental, os movimentos sociais se viram arrastados à cooptação, à perca de autonomia e viram o Partido que lhes dava abrigo, assumindo incondicionalmente as suas posições, adoptar um discurso ambíguo em decorrência dos seus “compromissos de Estado” e das imposições do governo de unidade nacional que - à última hora, sem explicar-se à sua histórica base social e parece que sem saber/prever as implicações da sua opção – ele aceitou fazer.

É evidente que a questão da relação Estado & movimento é clássica. Não é o caso de se repisar aqui a diversidade de formulações a respeito. Supõe-se que elas sejam conhecidas. De qualquer forma, convém realçar que, conforme as experiências históricas têm demonstrado, a utilização dos movimentos sociais – nomeadamente os sindicatos - como aparato estatal tem sido algo extremamente nefasto para a sua capacidade de formulação política autónoma, numa acção que, ao fim e ao cabo, termina por “congelar” a capacidade de intervenção popular. Isto, óbvio, não é preciso gastar muita tinta para demonstrar, é feito principalmente pelo populismo e por determinadas orientações tributárias do estalinismo, mas não só por estas duas perspectivas político-ideológicas. É em tal cenário que se encontram envolto os movimentos sociais brasileiros.

O tipo de relação que o governo brasileiro tem procurado manter com os movimentos sociais tem gerado muitas consequências, e uma das principais - e também uma das mais visíveis – diz respeito ao acentuado processo de divisão interna que tem marcado a actuação dos mesmos desde a chegada do PT à administração central do País. Se é verdade que sempre houve uma heterogeneidade programática no interior dos movimentos sociais nacionais, como, de resto, no próprio PT, o facto é que, nos dias presentes, esta heterogeneidade não só se tornou mais nítida, mas também foi redimensionada, onde, por vezes, ela, a heterogeneidade, deixa de ser decorrente de questões de princípio ideológico e passa a ser resultado do tipo de agenda que o governo propõe, donde segue-se o “esfriamento” das mobilizações e a cooptação de lideranças.

O caso da CUT (Central Única dos Trabalhadores), organização que surgiu congregando nacionalmente o chamado Novo Sindicalismo, é paradigmático. Decerto que a entidade nasceu aglutinando os mais diversos segmentos – de marxistas a cristãos partidários da teologia da libertação -, mas, apesar disto, não cabem dúvidas quanto à unidade que sempre marcou as mobilizações da Central. Unidade na diversidade, sempre foi assim. Actualmente, no entanto, passa-se algo diferente.

Três fenómenos, que se associam entre si, têm caracterizado a presente actuação da CUT. O primeiro, é a generalização da burocratização. Salta aos olhos o “sindicalismo de gabinete” que tem sido levado a efeito. O segundo, é a falta de comunicação com as bases, decorrendo daí que as direcções sindicais cada vez mais fazem um discurso distanciado dos seus representados. O terceiro, é a consolidação do personalismo como regra no quotidiano dos sindicatos, donde resulta tanto a perpetuação de determinados dirigentes em postos sindicais como a utilização dos sindicatos para atingir propósitos pessoais.

Nem tudo, entretanto, está perdido. Exemplos em sentido contrário existem, e parece que cabe apostar neles para que a histórica tradição de mobilização dos movimentos sociais brasileiros não capitule. O Movimento dos Sem Terra, a Oposição interna na CUT, as aspirações em torno da Consulta Popular, entre outros, apresentam-se como referências da caminhada na contra-corrente. São as iniciativas daí oriundas que (re)estabelecem a esperança política utópica no País, desafiando a incredulidade, muitas vezes cínica, dos novos e velhos partidários da real politik.

Tais segmentos continuarão fazendo a roda da História girar, para desencanto da ideologia da real politic, pois eles, ao darem vida a novos conflitos e ao formularem novas alternativas políticas, põem em xeque a suposta “perpetuidade do presente”, que é o valor maior de toda a ideologia dominante.


        
        

(*) Ivonaldo Leite é doutorado em Ciências da Educação e professor na Universidade do Rio Grande do Norte (Mossoró). Tem desenvolvido investigação na área da pedagogia e da história do sindicalismo. Em Portugal publicou ‘Novas tecnologias, trabalho e educação’ (Dinossauro, 2002).
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