Notas sobre a globalização

 

 

Ronaldo Fonseca (*)

 

 

Fim das ideologias ou ideologia da globalização capitalista

 

A tentativa de impor um «pensamento único», de matriz capitalista-neoliberal, constitui uma estratégia elaborada nos Estados Unidos e desenvolvida há mais de duas décadas, à escala mundial, pelos grandes meios de comunicação social, cujos financiadores são quase sempre os grandes grupos económicos transnacionais. Para que funcione como pretende, o sistema necessita também de subalternizar, fragmentar e eventualmente destruir, o substrato de qualidade das culturas nacionais, baseado, em geral, numa ética humanista e substituí-lo por uma pseudocultura de massas, medíocre, agressiva, maniqueísta e redutora. É esta a cultura chamada a insuflar os modelos comportamentais antiéticos (competitivos) de que o sistema necessita (1). É o modelo americano, a «macdonaldização» cultural, a «ideologia-desideologizada».

 

O «pensamento único» (isto é, a «teologia do mercado») é pois a ideologia-suporte desta colossal ofensiva dos grandes interesses privados internacionais, articulada com o Estado americano, contra os povos, à escala planetária.

 

Na Europa, diante da importância das conquistas civilizacionais dos trabalhadores e camadas médias e face à previsível resistência ao seu desmantelamento, a «nova» ideologia assumiu características mais sofisticadas, apoiada num eficaz aparelho mediático de inspiração americana.

 

A sua estratégia no período inicial (princípio dos anos 80) consistiu em veicular, de forma mais ou menos otimista, a profecia do advento de um «mundo novo», na proa da globalização. Esta seria como que uma outra «renascença», difusora de toda a gama de processos científico-tecnológicos livremente alcançáveis por todos os povos desde que estivessem dispostos a participar empenhadamente neste grande desafio de modernidade.

 

Esta nova era civilizacional seria de tal forma avançada que, imagine-se, tornaria obsoletas as próprias conquistas sociais dos povos europeus... Não somente obsoletas como mesmo prejudiciais às «reformas adaptativas» que tal processo necessitaria para implantar-se com sucesso. Os próprios Estados-nação seriam obstáculos regulamentadores ao livre desenvolvimento deste processo e como tal deveriam sofrer alterações e adaptações nas suas estruturas e modo de funcionamento. Sobretudo, não deveriam opor-se à primeira vaga de desregulamentações e privatizações já então em curso...

 

Na esteira desta primeira fase da difusão massiva da «boa nova», emerge quase por toda a parte uma nova categoria de alienados: eram «os tolinhos das novas tecnologias», para os quais os computadores e os robots fariam a felicidade dos homens independentemente de que interesses os controlassem, das finalidades da sua aplicação, etc. Para estes «cristãos-novos» não haviam dúvidas: era necessário passar um cheque em branco aos proprietários das novas tecnologias e facilitar-lhes a missão. Sobre as ruínas do «modelo social europeu», a tecnocracia «transnacional» prometia, no seio de «democracias ocidentais» e economias de mercado modernizadas, «erguer um mundo de progresso jamais sonhado».

 

Quando numa segunda fase, o carácter estritamente classista e privatista de todo este processo produzia os resultados que hoje se vão tornando óbvios e impossíveis de ocultar duravelmente, soava a hora do «reequilíbro» do discurso. A partir de então era preciso substituir em larga medida as referências ao «eldorado tecnológico» a alcançar, pelo discurso do fatalismo tecnocrático: a «recrudescência da competição internacional» (ciclópica arena inacessível aos povos) estava a postergar resultados e a impor novas «adaptações». Os mercados financeiros (os big brothers globais) estavam a «enviar sinais» exigindo mais sacrifícios e mais renúncias, alertavam os medíocres arautos mediáticos do «pensamento único». Eram os «custos-inevitáveis­ do-progresso-que-só-os-utópicos-e-os-irresponsáveis-não-compreendem».

 

Na realidade, o dogma irracionalista da «teologia do mercado» significa, objectivamente postular que, no limiar do 3.º milénio DC, após 10 mil anos de história civilizada interposta, desde a revolução neolítica, a humanidade continuaria condenada, a nível económico-social, a viver segundo as leis específicas da evolução das espécies animais descoberta por Charles Darwin. Isto é, as leis da competição pela sobrevivência, do triunfo dos mais aptos, do declínio e da morte dos mais fracos, etc. A única mudança admitida em relação a este «modelo» seria a caridade como sedativo para uma morte menos cruel dos mais débeis.

 

É esta pseudo-filosofia, «materialista-naturalista» da «natureza humana» (ficção ahistórica) que está subjacente à «teologia do mercado». Inútil seria dizer que Darwin, como homem esclarecido que foi, nunca admitiu a extensão das suas concepções à sociedade humana. Na verdade o que o materialismo histórico-dialéctico demonstra é a especificidade da civilização humana, a sua autonomia parcial em relação à natureza, o que lhe abre potencialidades para outros processos evolutivos.

 

Hoje, bem mais de um século após a morte de Darwin, os apóstolos da «teologia do mercado» continuam a defender o primado absoluto do lucro privado e a competição sem limites (isto é, o capitalismo) como o único modelo económico possível. Não é por acaso que Fukuyama, com base no mesmo «cientismo naturalista» se rejubila com o fracasso do «construtivismo social» dos últimos duzentos anos, inaugurado com a Revolução Francesa, e considera-o incompatível com a «natureza humana».

 

Revelando o seu elitismo medíocre e o seu desprezo de classe por tudo o que é progressista, continuam a ser darwinistas-sociais» malgré Darwin, e a passar um (falso) atestado de incapacidade aos povos para organizarem racionalmente o seu próprio futuro. Este, segundo eles, deve ficar cada vez mais dependente da «luta das elites», imprevisível e caótica por natureza. É aqui que o materialismo naturalista se entrelaça com as velhas filosofias irracionalistas e com o psicologismo fatalista, constituindo um mosaico fragmentado, recolado e readaptado pelos grandes media e administrado em doses suaves e persistentes. O resultado é uma amálgama arbitrária, sem qualquer base teórica séria, um pseudo «senso comum» que, buscando induzir os povos à impotência, serve às mil maravilhas os interesses do grande capital financeiro internacional. Neste sentido, podemos dizer que a «teologia do mercado» é também a ideologia dos falsos avestruzes…

 

Caminhos alternativos

 

Perante a globalização financeira-especulativa, apoiada num poderoso aparelho tecnológico-mediático-militar (2), a única resposta adequada das forças progressistas é a resistência multifacetada e criativa. Uma resistência que tem que se manifestar em primeiro lugar no plano nacional (ao nível político, social e cultural), na defesa dos Estados-Nação, e deve-se articular dialecticamente no plano internacional e no espaço supranacional com a resistência de todas as forças opostas à lógica deste processo.

 

Nesta perspectiva, é necessária a conjugação dialéctica das formas de luta tradicionais (sindicalismo de classe, comités locais, etc.) readaptando os seus métodos em função das alterações sociológicas, com outras formas de resistência convergentes (lutas ecologistas, feministas, camponesas, de minorias nacionais progressistas, etc.). Obviamente o papel das formações de esquerda coerente é fundamental, desde que conscientes de que não existem vanguardas autoproclamadas e de que no quadro de uma luta, hoje mais complexa e plurifacetada, o sectarismo é mais do que nunca estéril e paralisante. Além disso, elas têm que operar certas reorientações nas suas formas de organização, não para «adaptar-se» ao sistema mas para melhor responder, com uma luta mais eficaz, às alterações da estrutura industrial do capitalismo (fragmentação das grandes unidades de produção «graças» à acção das novas tecnologias e consequente desaparecimento dos bastiões operários, mobilidade e fluidez dos investimentos, deslocalizações, etc.) e às suas mudanças sociológicas. Isto implica nomeadamente alterações na relação dialética entre os princípios da centralização e da descentralização, uma certa autonomia parcial de organismos de base e sócio-profissionais (já não é possível o tipo de acção centralizada e homogénea dirigida aos grandes bastiões operários), métodos de trabalho mais criativos, além da superação das sequelas burocráticas dos aparelhos (3). Pensamos que a política de convergências se deve dirigir, principalmente, para os novos movimentos sociais, intelectuais e ecológicos que imprimam às suas acções dinâmicas de resistência à lógica do sistema.

 

Contudo, apesar da sua importância e de eventuais vitórias parciais pensamos que na actual correlação de forças na Europa Ocidental, tais processos, por si só, não poderão se constituir, nesta fase, em pólos de ruptura que pudessem dar lugar a novas construções sociais alternativas à globalização capitalista.

 

A possibilidade de operar uma «desconexão» real e duradoura com o sistema, dando início a um processo de desenvolvimento não-capitalista, só poderá nascer, neste contexto histórico, de rupturas nacional-populares, dirigidas contra o imperialismo americano, em países e regiões dispondo de extensão territorial significativa, recursos naturais e mercado interno importante, domínio das tecnologias essenciais ao seu desenvolvimento autocentrado e capacidade de resistência a agressões militares. Tais regiões ou blocos de países viriam progressivamente a formar grandes espaços geo-estratégicos, capazes de operar a «desconexão» com o sistema imperialista e romper o projecto da sua ditadura mundial coordenada pelo FMI, BM e OMC. Somente através de economias autocentradas, (o que não significa autárcicas) e auto-sustentáveis, do intercâmbio e cooperação regional em larga escala (a caminho da «globalização da cooperação») e apoio popular massivo, será possível romper e impedir a consolidação da ditadura da selva neoliberal, onde os mais fracos (a maioria) são reduzidos ao definhamento e à servidão.

 

As lideranças políticas das rupturas (e dos processos) nacional-populares terão necessariamente que emergir de uma conjugação e convergência entre a questão da luta de classes e a questão nacional, na perspectiva da formação de blocos de classes e camadas sociais com interesses compatíveis e opostos à globalização imperialista. Pensamos que, na grande maioria do mundo (e em particular na América Latina), este bloco convergente será composto pela classe trabalhadora nos seus diversos sectores, pelos camponeses sem terra, pelas camadas médias de profissões (inclusive sectores militares) e pelos pequenos e médios empresários urbanos e rurais. Naturalmente que as chamadas «burguesias nacionais» estarão excluídas de tais alianças na medida em que estão, no essencial, entrelaçadas ao capital imperialista.

 

Organizar politicamente este bloco de classes, com firmeza, flexibilidade e criatividade, eis aí o grande desafio (já em perspectiva) para as forças revolucionárias, progressistas e anti-imperialistas numa vasta escala. A própria ditadura do grande capital financeiro imperialista, cujo discurso anestésico/ autoritário vai-se esgotando em amplas regiões, se encarregou de desencadear um processo (assimétrico e multifacetado) de convergência dos povos, literalmente «encostados à parede» e sem outra alternativa senão a resistência.

 

Os processos oriundos das rupturas nacional-populares não dariam imediatamente origem a urna formação económico-social inteiramente nova, mas sim a um processo de transição composto por um mosaico de formas de produção com preponderância para um forte sector industrial e financeiro do Estado. Este sector estratégico, gerido por governos populares e participado pelos trabalhadores, estaria vocacionado para ser a alavanca económica do processo, capaz de orientar a economia para grandes investimentos estruturantes, voltados não para o lucro imediato, não para a «competição internacional», mas para o interesse geral, para o mercado interno e para cooperação dentro de blocos regionais com projectos semelhantes. Esta alavanca estratégica do Estado coexistiria com um vasto sector cooperativo, nomeadamente na agricultura, utilizando tecnologias intermédias que empreguem suficiente mão-de-obra, voltado prioritariamente para as culturas que permitissem a satisfação, a custos acessíveis, das necessidades alimentares básicas da população. Finalmente, existiria um amplo sector privado de pequeno-rnédios industriais (e mesmo alguns grandes) e comerciantes, orientando-se por critérios de lucro, mas devendo ter em linha de conta o interesse da economia nacional/regional e os direitos laborais e sociais dos trabalhadores. É ainda óbvio que a questão política essencial que nortearia tais sistemas seria a sua defesa eficaz da permanente acção agressiva e desestabilizadora do imperialismo. O que implica centralização do poder (conjugada com a participação democrática dos trabalhadores nos diversos níveis) e capacidade de mobilização das populações para tarefas de defesa do território etc., não sendo compatível com concessões aos modelos políticos existentes nos países dominantes. O Chile de Allende e a Nicarágua sandinista demonstraram à saciedade que isto seria o suicídio do projecto nacional-popular.

 

Apenas num contexto histórico posterior, (e para já, imprevisível) após um enfraquecimento significativo da capacidade económico/financeira do imperialismo americano, e portanto do seu poder de intervenção e desestabilização, poder-se-ia colocar na ordem do dia a questão da passagem a uma formação económico-social-cultural inteiramente nova. Esta passagem, pelos requisitos de democracia autogestionária de massas extremamente avançados que exigiria, de controlo do poder e gestão do surplus económico pelos trabalhadores «eles próprios», de progresso científico-cultural e ecológico, só seria realista após a derrota do capitalismo em alguns dos países centrais do sistema e a sua integração neste novo processo global.

 

Conclusão

 

Qualquer observador honesto, situado do ponto de vista dos interesses dos povos à escala planetária, não poderá deixar de constatar que a globalização neoliberal imperialista significou uma enorme regressão civilizacional e um profundo agravamento da situação da daqueles que já muito pouco beneficiavam das vantagens da civilização.

 

Por outro lado, a imposição através dos grandes media de uma pseudo-cultura de massas de origem norte-americana baseada no culto da violência gratuita, da competitividade cega, do sensacionalismo barato, da banalidade pretensiosa, do dinheiro e do exibicionismo consumista, engendrou (num mundo de precariedade) um perigoso declínio da ética na vida pública e nas relações humanas. À excepção, naturalmente, dos sectores engajados numa perspectiva de resistência social e cultural.

 

A emergência de um mundo unipolar criou, ao contrário do que alguns pensavam, uma situação internacional muitíssimo mais perigosa sucedendo-se as guerras de agressão da NATO ao serviço do projecto de completo domínio militar americano. Nestas agressões brutais de destruição pura e simples, com pretextos falaciosos, tem sido utilizado todo o tipo de armamento, inclusive com componentes radioactivas, como o urânio empobrecido, com consequências devastadoras para as populações e o meio ambiente. Este cenário de ameaça permanente, de humilhação de outros povos, de «punição da diferença», tem conduzido ao triunfo de fundamentalismos cegos em certas regiões, com algum apoio de populações exasperadas, dando origem a mais instabilidades locais. A criminalidade e a toxicodependência (como doença psicossocial da instabilidade e do desespero) subiram em flecha, sobretudo nas grandes cidades como consequência da pobreza e da ausência de perspectivas, nomeadamente para os jovens. Para estes, mesmo na Europa e em amplos sectores médios da sociedade, a globalização veio significar a frustração, pela negação na prática, dos cenários de grandeza e de consumismo fácil cultivados pelos media. Em seu lugar, a perspectiva mais do que certa de uma vida medíocre feita de precariedade e pobreza relativa. Este «caldo de cultura» da desilusão e do confusionismo abre as portas à acção das «moscas varejeiras do fascismo» que proliferam na esteira da putrefacção do sistema, reconstituindo o já conhecido fenómeno da decadência militante.

 

A pusilanimidade dos liberais e dos sociais-democratas perante Heider na Áustria ou Fini na Itália está longe de ser uma atitude inorgânica, exterior à natureza do próprio capitalismo. Os dirigentes europeus já perceberam que a globalização neoliberal só poderá prosseguir com regimes cada vez mais autoritários e intimidatórios pois a perspectiva é a degradação cada vez maior dos padrões de vida dos povos. As prisões de sindicalistas, de dirigentes camponeses, de militantes de base e o clima de medo e de delação (no mais puro estilo macartista) instalado dentro de grande parte das empresas na Europa constituem um sinal inequívoco e uma antevisão sinistra de um déjà vu que pode regressar sob outras formas.

 

Nesta perspectiva, os partidos fascizantes poderão constituir-se, senão em parceiros governamentais válidos, pelo menos em cães de guarda, «seguros» pela trela, ameaça potencial para todos aqueles que ousem lutar pelos seus direitos.

 

Mais do que nunca é fundamental a acção firme, coerente, democrática, criativa, aberta e multifacetada da esquerda de princípios, e dos movimentos sociais e intelectuais progressistas, na trincheira da defesa dos direitos de cidadania que, hoje, tendem a se entrelaçar com os direitos dos trabalhadores, os quais só se reconquistam e só ganham novos avanços através da luta de classes, articulando todos os terrenos de acção.

 

Lenine, com a sua teoria do imperialismo, recontextualizou o marxismo no âmbito da nova configuração e do novo dimensionamento alcançado pelo capitalismo a partir das duas últimas décadas do século XIX, fenómeno que Marx não conhecera. Não se produziu pois, uma colocação em causa da essência do pensamento marxista, da sua metodologia, das suas análises nucleares, consubstanciadas no conjunto das suas obras.

 

Mas, para que o pensamento marxista continuasse a ser um instrumento vivo e adequado para a interpretação e transformação da sociedade (e não apenas um conjunto de obras relegadas a um canto da biblioteca), era indispensável esta sua recontextualização/readaptação em função do novo dimensionamento, «orgânico» e «articulado», do sistema capitalista e dos mecanismos globais por ele molecularmente engendrados para o seu funcionamento integrado à escala mundial. O sistema não anula de forma alguma as suas contradições e seus mecanismos intrínsecos descobertos por Marx mas os remete para uma nova escala, integrada e interactiva. E introduz novos mecanismos com a perspectiva de, numa escala globalizante e integrada, intensificar a sua taxa de exploração, aumentar a sua massa de lucro no cômputo geral, obter enormes transferências de valor dos países periféricos e semiperiféricos, e assim, postergar e modificar os efeitos estagnadores e desagregadores das suas contradições, nomeadamente, nos países centrais. Constituiu um salto qualitativo·em relação ao expansionismo colonial-capitalista dos séculos anteriores. O Imperialismo tornava-se o «capitalismo realmente existente».

 

Nas Ciências Sociais, cuja metodologia (histórico-dialéctica) é diversa das Ciências Naturais justamente porque estudam e intervêm no espaço de autonomia relativa (face à natureza) constituído pelas sociedades humanas organizadas, é necessário ter em conta mutações de outra índole do que aquelas que se processam na natureza, provocadas não só por tendências estruturais objectivas mas também pela acção transformadora (ou pela resistência às transformações) desenvolvida pelos homens inseridos em classes, grupos e sistemas sociais.

 

Na nossa perspectiva, Samir Amin é o pensador que melhor continuou, alargou e enriqueceu a concepção leninista do imperialismo, nomeadamente com a sua teoria do valor mundializado, indispensável para a compreensão do imperialismo americano como fenómeno central da nossa época, em todas as suas dimensões e consequências. No plano cultural-ideológico, a sua desmistificação histórica do ocidentalismo eurocêntrico como superestrutura ideológica essencial do imperialismo (na esteira do que já fora, sob outras formas, no período do expansionismo colonialista) representa um contributo notável para a compreensão da problemática do nosso tempo. É um valioso manancial de conhecimentos e análises susceptíveis de esclarecer e fermentar a luta da humanidade progressista contra «o maior inimigo do género humano» (4).

 

A necessidade de actualização da perspectiva de Marx da vitória socialista nos países desenvolvidos (em primeiro lugar), ficou implicitamente demonstrada desde a teoria leninista do imperialismo e da tendência ao triunfo da revolução nos elos fracos da cadeia do sistema, verificada claramente ao longo do séc. XX, independentemente das dificuldades posteriores destes processos, dos seus sucessos e fracassos, relativos historicamente. O que não implica de forma alguma negar a importância e o valor histórico das lutas e conquistas parciais das classes trabalhadoras europeias, em particular nos países do sul da Europa, entre os quais avultam as tradições revolucionárias da França (5).

 

Quanto a um outro aspecto da referida perspectiva, há que notar que para a tradição marxista, «cultura europeia» era uma expressão indissoluvelmente ligada à impregnação (ainda que fragmentária) destas sociedades por alguns grandes movimentos culturais, artísticos e filosóficos de raiz humanista como o renascimento italiano, o racionalismo e o iluminismo francês, a filosofia clássica alemã, desembocando na própria filosofia marxista. Tais movimentos surgiram justamente em oposição às tendências reaccionárias sempre dominantes, desde o cruzadismo eurocêntrico, o obscurantismo inquisitorial anti-semita, até a ideologia difusa e arrogante da «superioridade» ahistórica da civilização europeia (6). Trata-se obviamente de uma intolerância em relação a outros povos e culturas, adquirindo um cariz agressivo e racista na Inglaterra colonial e posteriormente na Alemanha. O nazismo foi apenas a expressão mais radical destas tendências dominantes. A «obrigatoriedade» dos povos importarem a «economia de mercado» e o modelo de «democracia ocidental» (sob pena de bloqueio económico ou de «intervenção militar humanitária»), na formulação norte-americana, constitui a expressão mais cínica e mais sinistra do ocidentalismo.

 

Note-se também que tal intolerância e pseudo-superioridade da cultura ocidental assenta ainda em mistificações, omissões e até manipulações de ideólogos europeus. É o caso flagrante da tentativa de monopolizar a herança do helenismo, negando a enorme contribuição das civilizações e culturas orientais na sua formação, tal como nos demonstra S. Amin (7).

 

Porém, desde fins do século passado, e através do séc. XX, ficou definitivamente comprovado que a impregnação das sociedades europeias pelos referidos movimentos fora restrita, superficial e perdera qualquer significado real. Apenas o movimento operário e progressista (minoritário na grande maioria dos países desenvolvidos) se mantivera como herdeiro destes valores. O que veio ao de cima, o que domina quase completamente, no cenário actual é o ocidentalismo reaccionário, arrogante e/ou paternalista, depreciativo dos outros povos e culturas e até da sua própria «periferia». Não é por acaso que estas tendências são hoje completamente hegemonizadas pelo «mundo anglo-saxão», justamente as regiões do Ocidente que foram ainda menos tocadas pelos referidos movimentos humanistas e os valores progressistas (e racionalistas) que veicularam em certas épocas na Europa. Hoje, as expressões «cultura ocidental» e «modelo de democracia ocidental» são, na prática, sinónimos de imperialismo e estão orgânica e indissoluvelmente ligadas a este. E é justamente na sua incapacidade de captar o imperialismo euro/americano como fenómeno intrínseco, inseparável e indispensável do próprio sistema capitalista, que reside o grande equívoco do chamado marxismo ocidental. Não negamos os contributos analíticos válidos de alguns dos seus pensadores, mas a sua visão superficial, inorgânica, justaposta do imperialismo limita imensamente o seu contributo global, fá-los passar ao lado da problemática essencial. Não apenas por razões puramente teóricas mas porque têm grandes dificuldades psicossociológicas em se separarem dos modelos políticos ocidentais, e da hipostasia das «liberdades individuais» (formais) tomadas como valor absoluto e descontextualizado do carácter privilegiado dos países centrais imperialistas. Na realidade, sempre formularam modelos «obrigatórios» de socialismo (abstractos e atemporais) que de facto eram a pretensão de um socialismo, sim, mas à imagem do Ocidente (de cuja cultura exclusivista e de cujo modus vivendi são oriundos); daí a sua dificuldade em compreender e aceitar completamente a análise de Lenine (e de outros autores) do imperialismo como sistema orgânico, integrado, dirigido e hegemonizado pelos grandes países ocidentais. Isto é, como «o capitalismo realmente existente», opressor da esmagadora maioria da humanidade (8).

 

Os movimentos revolucionários e emancipatórios da humanidade devem rejeitar liminarmente todos os complexos e vassalagens culturais ao Ocidente que os levariam ao paradoxo de solicitar atestados de democraticidade às elites políticas e culturais dos Estados opressores (9). Tal atitude significa colocar sobre si um colete de forças paralisante fornecido pelo próprio imperialismo.

 

A esquerda coerente, os movimentos de libertação nacional, sem de forma alguma, rejeitarem os valores humanistas que existiram nas sociedades ocidentais e que sobrevivem nos movimentos progressistas, necessitam voltar-se para outras tradições culturais e progressistas de povos não ocidentais (ou mestiços) que constituem a esmagadora maioria da humanidade. Nelas irão descobrir os seus elementos de civilização, de humanismo e de liberdade, para inspirar-se também neles, sempre de forma crítica, situando-os historicamente, actualizando-os. Trata-se de alargar e diversificar as nossas referências civilizacionais. A possibilidade do socialismo passa também por aí. E pela rejeição de um falso monopólio de civilização e de um certo arsenal de preconceitos forjados pelas «elites» de uma ínfima minoria da humanidade.

 

Finalmente, as descobertas essenciais da ciência da ecologia moderna, levam-nos·a propor aos estudiosos de Marx uma actualização da sua perspectiva da sociedade comunista, a qual não constitui, diga-se de passagem, o núcleo das suas preocupações e da sua vasta obra.

 

Efectivamente, muitas das suas expectativas em relação a esta possível sociedade aparecem hoje como excessivas, à luz das últimas descobertas e constatações científicas. Na opinião do próprio Marx, uma sociedade com aquela configuração (desvanecimento do Estado) e aquelas características, só seria possível no quadro de uma enorme abundância material a todos os níveis. Ora, é justamente a possibilidade «desta» abundância que parece estar posta em causa pelos limites ecológicos do planeta. A ciência ecológica aconselha-nos sistemas de produção auto-sustentáveis e comedidos tendo em conta os equilíbrios fundamentais para a vida sobre a terra. São os próprios cientistas da ecologia social que nos alertam contra as ilusões de um certo tecnicismo.

 

A ser assim, a possibilidade do socialismo só poderia concretizar-se à escala mundial no âmbito de um outro modelo de civilização que, buscando a plena satisfação das necessidades essenciais, rejeite todas as formas de consumismo. Um modelo alicerçado num colectivismo democrático e voltado para motivações e valores culturais e solidários. E para a salvaguarda dos ecossistemas terrestres, do nosso envoltório natural.

 

É a perspectiva do eco-socialismo, que, a concretizar-se representará um enorme salto qualitativo na história humana.

 

Maio de 2000

 

 

 

 

 

 

 

(*) Ronaldo Fonseca (n. 1941) é um ensaísta marxista de origem brasileira, com residência permanente em Portugal desde 1975. Natural de Minas Gerais, trilhou o caminho do exílio, ainda estudante, após o golpe militar de 1964. É licenciado em Ciências Sociais pela Universidade de Praga. Tem o mestrado em Sociologia na Universidade de Paris-Nanterre e o doutoramento de 3.º ciclo em "Economia e Sociedade" na Universidade de Paris-VIII (Vincennes). Atraído pela revolução portuguesa de abril, participou intensamente dos movimentos populares de 1974-75. Foi professor na área de História e Ciências Sociais na Universidade do Minho até à contrarreforma educativa dos anos 1980. Foi cofundador e redator do periódico Nortada, dos Democratas do Minho, fundador da edição portuguesa de Le Monde Diplomatique, sendo atualmente editor da revista eletrónica O Comuneiro. Envolvido desde a juventude em movimentos estudantis, operários e populares em diversos países, é atualmente militante do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Brasil. É autor de várias obras, entre as quais A Questão do Estado na Revolução Portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa 1983, Exemplo típico de idealismo académico, Centelha, Coimbra, 1977 e Marxismo e Globalização, Campo das Letras, Porto, 2002. É precisamente desta última obra que selecionamos este trecho (pp. 162-180), para, vinte e quatro anos depois, aferirmos da sua presciência e atualidade.

 

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NOTAS:

 

(1) E o que fazer com os "perdedores da competição" (não podem ganhar todos...), que são a maioria? As respostas (inconfessáveis) seriam: sobreexploração, e, eventualmente, exclusão/criminalização/repressão.

 

(2) Mas também minada por gravíssimas contradições.

 

(3) Pensamos que, só assim, o rico património e experiência de luta de muitas formações políticas de esquerda poderão estar, eficazmente, ao serviço do novo contexto de lutas em que os povos entraram, no quadro da globalização.

 

(4) Ernesto Che Guevara.

 

(5) No contexto da Europa Ocidental, é indispensável integrar, criativamente, os contributos extremamente valiosos de Gramsci e Rosa Luxemburgo, à teoria marxista, além de grandes pensadores como Lukacs, Lefebvre, Mande!, entre outros. No âmbito mais vasto dos processos revolucionários na "periferia" mundial, no chamado "terceiro mundo", o contributo prático e teórico de Fidel Castro parece-nos hoje indiscutível.

 

(6) A margem humanista dos grandes pensadores e artistas de Renascimento e do Iluminismo foi desviada e deturpada pela grande burguesia colonialista e imperialista.

 

(7) O eurocentrismo: crítica de uma ideologia, S. Amin. É espantosa a omissão ou subvalorização nos meios intelectuais e filosóficos ocidentais de pensadores absolutamente notáveis como Ibn Khaldoun, para apenas citar um exemplo.

 

(8) Mais do que uma vez já ouvimos representantes desta área de pensamento assimilar ao "estalinismo", dirigentes que defenderam e defendem, decididamente, as suas revoluções populares das agressões e chantagens dos antigos privilegiados e de seus poderosos aliados externos. Na lógica destes “critérios”, dever-se-ia começar pela condenação da própria revolução francesa e de seus principais dirigentes…

 

(9) Para sugerir apenas um exemplo, pensamos que a democracia solidária, criativa, participativa nas bases, aberta a opções reais, do Movimento Sem Terra no Brasil é incomparavelmente superior à pseudo-democracia dos partidos de Clinton e Bush onde quem manda efectivamente, quem toma as decisões reais são os grupos económicos que os financiam, isto é, interesses privados ultra­minoritários. É a "democracia do dinheiro" que hoje impera quase por toda a parte no mundo ocidental, inclusive nos partidos social-democratas e trabalhistas.