Progresso destrutivo

Marx, Engels e a Ecologia

 

 

Michael Löwy (*)

 

 

Até que ponto é o pensamento de Marx e Engels compatível com a ecologia moderna? Podemos nós conceber uma leitura ecológica de Marx? Quais são as realizações do marxismo essenciais para a formação de um ecossocialismo à altura dos desafios do século XXI? E quais são as conceções de Marx que exigem uma "revisão" em função dessas exigências? As breves notas que se seguem não têm a ambição de responder a estas perguntas, mas apenas de colocar alguns pontos de referência para o debate.

 

Meu ponto de partida é a constatação de que: a) os temas ecológicos não têm um lugar central no dispositivo teórico de Marx; b) os escritos de Marx e Engels sobre a relação entre as sociedades humanas e a natureza estão longe de ser unívocos e, portanto, podem estar sujeitos a diferentes interpretações. A partir dessas premissas, vou tentar destacar algumas tensões ou contradições nos textos dos fundadores do materialismo histórico, salientando, no entanto, as pistas que eles dão para uma ecologia de inspiração marxista.

 

Quais são as principais críticas dos ecologistas ao pensamento de Marx e Engels? Em primeiro lugar, eles são descritos como apoiantes de um humanismo conquistador, "prometaico", que opõe o homem à natureza, e que faz dele o amo e senhor do mundo natural. É verdade que encontramos neles um monte de referências a "controlo", "domínio" ou mesmo "dominação" sobre a natureza. Por exemplo, de acordo com Engels, no socialismo, os seres humanos "pela primeira vez se tornam mestres reais conscientes da natureza, porque mestres de sua própria vida em sociedade" (1). No entanto, como veremos mais abaixo, os termos "domínio" ou "dominação" da natureza muitas vezes se referem, em Marx e Engels, apenas ao conhecimento das leis da natureza.

 

Por outro lado, o que impressiona nos primeiros escritos de Marx é o seu apregoado naturalismo, a sua visão do ser humano como um ser natural, inseparável de seu ambiente natural. A natureza, escreveu Marx nos Manuscritos de 1844, "é o corpo inorgânico do homem". Ou ainda: "Dizer que a vida física e intelectual do homem está indissoluvelmente ligada à natureza não significa nada, exceto que a natureza está intimamente ligado a ela própria, pois que o homem é uma parte da natureza". É verdade, Marx reclama-se do humanismo, mas ele define o comunismo como um humanismo que é, simultaneamente, um "naturalismo acabado"; e, acima de tudo, ele o concebe como a verdadeira solução "do antagonismo entre o homem e a natureza". Graças à abolição positiva da propriedade privada, a sociedade humana se tornará "a consumação da unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo realizado da natureza" (2).

 

Estas passagens não lidam diretamente com o problema ecológico - e as ameaças ao meio ambiente -, mas está na lógica deste tipo de naturalismo permitir uma abordagem da relação homem/natureza que não seja unilateral. Em um famoso texto de Engels sobre O papel do trabalho na transformação do macaco em homem (1876), este mesmo tipo de naturalismo serve de fundamento a uma crítica da atividade humana predatória sobre o meio ambiente:

 

"Nós não devemos vangloriar-nos muito de nossas vitórias humanas sobre a natureza. Para cada uma destas vitórias, a natureza se vinga de nós. É verdade que cada vitória dá-nos, em primeiro lugar, os resultados esperados, mas em segunda e terceira instâncias ela tem efeitos diferentes, inesperados, que demasiadas vezes anulam os primeiros. As pessoas que, na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e alhures, destruíram as florestas para obter terras cultiváveis, nunca sonharam que, eliminando conjuntamente com as florestas os centros de coleta e os reservatórios de humidade, elas lançavam as bases para o atual estado desolado desses países. Quando os italianos dos Alpes cortaram as florestas de pinheiros das encostas viradas a sul, tão amadas nas encostas norte, eles não tinham ideia de que, ao fazê-lo, cortavam as raízes da indústria de laticínios na sua região; menos ainda previam que, pelas suas práticas, eles privavam de água as suas fontes montanhesas durante a maior parte do ano (...). Os fatos nos lembram a cada passo que nós não reinamos sobre a natureza como um conquistador sobre um povo estrangeiro, como alguém que está fora da natureza, mas que nós mesmos lhe pertencemos com a nossa carne, sangue, cérebro, que estamos no seu seio e que toda a nossa dominação sobre ela reside na vantagem que temos, sobre todas as outras criaturas, em conhecer as suas leis e em podermos servirmo-nos delas com sabedoria" (3).

 

É claro, este exemplo tem um caráter muito genérico - ele não questiona o modo de produção capitalista, mas as civilizações antigas -, mas não deixa de constituir um argumento ecológico de uma modernidade surpreendente, tanto na sua advertência contra as destruições geradas pela produção, como por sua crítica de desflorestação.

 

De acordo com os ambientalistas, Marx, seguindo Ricardo, atribui a origem de todo o valor e de toda a riqueza ao trabalho humano, negligenciando a contribuição da natureza.

 

Esta crítica resulta, na minha opinião, de um mal-entendido: Marx usa a teoria do valor-trabalho para explicar a origem do valor de troca no quadro do sistema capitalista. A natureza, por outro lado, participa na formação das verdadeiras riquezas, que não são valores de troca, mas valores de uso. Esta tese é muito explicitamente apresentada por Marx na Crítica do Programa de Gotha contra as ideias de Lassalle e seus seguidores: "O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é tanto a fonte dos valores de uso (que são, no entanto, a riqueza real!) quanto o trabalho, que não é ele próprio senão a expressão de uma força natural, a força de trabalho do homem" (4).

 

Ecologistas acusam Marx e Engels de produtivismo. Essa acusação é justificada?

 

Não, na medida em que ninguém denunciou tanto como Marx a lógica capitalista de produção pela produção, a acumulação do capital, das riquezas e das mercadorias como um fim em si mesmo. A própria ideia de socialismo - ao contrário das suas miseráveis falsificações burocráticas - é a de uma produção de valores de uso, de bens necessários para a satisfação das necessidades humanas. O objetivo supremo do progresso técnico, para Marx, não é o crescimento infinito de mercadorias (o "ter"), mas a redução da jornada de trabalho, e o aumento do tempo livre (o "ser") (5).

 

No entanto, é verdade que se encontram frequentemente em Marx ou Engels (e mais ainda no marxismo ulterior) uma postura pouco crítica em relação ao sistema de produção industrial criado pelo capital e uma tendência a fazer do "desenvolvimento das forças produtivas" o principal vector de progresso. O texto "cânone" desse ponto de vista é o famoso Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), um dos escritos de Marx mais marcados por um certo evolucionismo, pela filosofia do progresso, pelo cientismo (o modelo das ciências naturais) e uma visão não problematizada das forças produtivas: "Em um certo estádio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes (…). De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se transformam em seus grilhões. Começa então uma época de revolução social. (...) Uma formação social nunca desaparece antes que sejam desenvolvidas todas as forças produtivas que ela é suficientemente ampla para conter (...)" (6) Nesta passagem famosa, as forças produtivas aparecem como "neutras", e a revolução não tem por tarefa senão abolir as relações de produção que se tornaram um "obstáculo" para o desenvolvimento ilimitado das mesmas.

 

A seguinte passagem dos Grundrisse é um bom exemplo de admiração acrítica de Marx para com a obra "civilizadora" da produção capitalista, e para com a sua instrumentalização brutal da natureza:

 

"Portanto, a produção fundada no capital cria, por um lado, a indústria universal, ou seja, o sobretrabalho ao mesmo tempo que o trabalho criador de valor; por outro lado, um sistema de exploração geral das propriedades da natureza e do homem (...) O capital começa pois a criar a sociedade burguesa e a apropriação universal da natureza e estabelece uma rede que engloba todos os membros da sociedade: essa é a grande ação civilizadora do capital.

 

"Ele se eleva a um nível social tal que todas as sociedades anteriores aparecem como desenvolvimentos puramente locais da humanidade e como uma idolatria da natureza. Na verdade, a natureza torna-se um puro objeto para o homem, uma coisa útil. Ela não é mais reconhecida como uma potência. A compreensão teórica das leis naturais tem todos os aspectos da astúcia que visa submeter a natureza às necessidades humanas, quer como objeto de consumo, quer como um meio de produção" (7).

 

Parece faltar a Marx e a Engels uma noção geral dos limites naturais ao desenvolvimento das forças produtivas. Encontra-se porém, aqui ou acolá, como nesta passagem de A Ideologia Alemã, a intuição do potencial destrutivo daquelas:

 

"No desenvolvimento das forças produtivas chega-se a um estádio em que nascem forças produtivas e meios de circulação que não podem senão ser prejudiciais, no quadro das relações existentes e não são mais forças produtivas, mas forças destrutivas (o maquinismo e o dinheiro)" (8).

 

Infelizmente, esta ideia não é desenvolvida pelos dois autores, e não é certo que a destruição aqui em questão seja também a da natureza. Por contraste, em algumas passagens relacionadas com a agricultura, vemos o esboço de uma verdadeira problemática ecológica, e uma crítica radical das catástrofes resultantes do produtivismo capitalista.

 

O que encontramos nestes textos, é uma espécie de teoria da rotura do metabolismo entre as sociedades humanas e a natureza, como resultado do produtivismo capitalista (9). O ponto de partida de Marx são os trabalhos do agrônomo e químico alemão Liebig, de quem "um dos méritos imortais... foi o de ter realçado amplamente o lado negativo da agricultura moderna, do ponto de vista científico" (10). A expressão Riss des Stofwechsels, ruptura ou rasgo do metabolismo - ou das trocas materiais – aparece, nomeadamente, numa passagem do capítulo 47, "A génese da renda fundiária capitalista", no Livro III de O Capital:

 

"Por um lado, a grande propriedade fundiária reduz a população agrícola a um mínimo em declínio constante, por outro lado, ela opõe-lhe uma população industrial em contínuo crescimento, empacotada nas grandes cidades: ela cria, portanto, condições que provocam uma rotura irreparável (unheilbaren Riss) na conexão do metabolismo (Stoffwechsel) social, um metabolismo prescrito pelas próprias leis naturais da vida; o resultado é que a força do solo é desperdiçada (verschleudert), e esse desperdício difunde-se, através do comércio, bem para além dos limites de cada país. (Liebig). (...)

 

"A grande indústria e a grande agricultura industrializada agem em comum. Embora originalmente elas se distinguissem no fato de que a primeira devastava (verwüstet) e arruinava a força de trabalho e, portanto, a força natural dos seres humanos, enquanto a segunda fazia o mesmo diretamente com a força natural do solo, em seu desenvolvimento posterior elas reúnem os seus esforços, na medida em que o sistema industrial nos campos enfraquece também o trabalhador, enquanto a indústria e o comércio fornecem à agricultura os meios para o esgotamento do solo" (11).

 

Como na maioria dos exemplos que veremos mais adiante, a atenção de Marx está focada na agricultura e no problema da devastação dos solos, mas ele vincula esta questão a um princípio mais geral: o colapso no sistema de intercâmbio de materiais (Stoffwechsel) entre as sociedades humanas e o ambiente, em contradição com "as leis naturais da vida". Também é interessante anotar duas sugestões importantes, embora menos desenvolvidas por Marx: a cooperação entre a indústria e a agricultura neste processo de rotura, e a extensão dos danos, graças ao comércio internacional a uma escala global.

 

O tema da rotura do metabolismo também se encontra numa famosa passagem do Livro I de O Capital: a conclusão do capítulo sobre a grande indústria e a agricultura. Este é um dos poucos textos de Marx em que explicitamente se abordam estragos causados pelo capital no meio ambiente natural - bem como uma visão dialética das contradições do "progresso" induzido pelas forças produtivas:

 

"A produção capitalista... destrói não só a saúde física dos trabalhadores urbanos e a vida espiritual dos trabalhadores rurais, mas perturba também a circulação material (Stoffwechsel) entre o homem e a terra, a condição natural eterna para a fertilidade duradoura (dauernder) do solo, tornando cada vez mais difícil a restituição ao solo de ingredientes fundamentais que lhe são retirados e utilizados como alimentos, roupas, etc.. Mas perturbando as condições em que se realiza quase espontaneamente esta circulação, ela obriga ao seu restabelecimento de uma forma sistemática, sob uma forma adequada ao desenvolvimento humano integral e como lei reguladora da produção social. (...) Além disso, cada progresso na agricultura capitalista é um progresso não só na arte de explorar o trabalhador, mas também na técnica de espoliar o solo; cada avanço na arte de aumentar sua fertilidade por um tempo, é um progresso na destruição das suas fontes sustentáveis de fertilidade. Quanto mais um país, por exemplo os Estados Unidos da América do Norte, se desenvolve com base na grande indústria, mais rapidamente esse processo de destruição é realizado. A produção capitalista, portanto, não desenvolve a técnica e o conjunto do processo social de produção, senão minando (untergräbt), ao mesmo tempo, as duas fontes de onde brota toda a riqueza: a terra e o trabalhador(12).

 

Vários aspetos são importantes neste texto: em primeiro lugar, a ideia de que o progresso pode ser destrutivo, um "progresso" na degradação e deterioração do ambiente natural. O exemplo escolhido não é o melhor, e parece muito limitado - a perda de fertilidade do solo – mas não deixa de levantar a questão mais geral dos danos infligidos ao meio ambiente natural, às "condições naturais eternas", por parte da produção capitalista.

 

A exploração e degradação dos trabalhadores e da natureza são colocados aqui em paralelo, como resultado da mesma lógica predatória, a da grande indústria e da agricultura capitalistas. Este é um tema recorrente em O Capital, como, por exemplo, nestas passagens do capítulo sobre a jornada de trabalho: "a limitação do trabalho fabril foi ditada pela necessidade, pela mesma necessidade que fez espalhar o guano nos campos de Inglaterra. A mesma ganância cega que esgota o solo, atacava até à sua raiz a força vital da nação. (...) Na sua paixão cega e desmesurada, na sua gula por trabalho extra, o capital ultrapassa não apenas os limites morais, mas também os limites fisiológicos extremos do dia de trabalho. (...) E atinge o seu objetivo encurtando a vida do trabalhador, da mesma forma que um agricultor ávido recebe do seu solo um desempenho mais forte, esgotando sua fertilidade" (13). Esta associação direta entre a exploração do proletariado e a da Terra, apesar das suas limitações, abre o campo para a reflexão sobre a relação entre a luta de classes e a luta em defesa do meio ambiente, na luta comum contra a dominação do capital.

 

Estes diferentes textos destacam a contradição entre a lógica imediata do capital e a possibilidade de uma agricultura "racional", fundada em uma temporalidade muito mais longa e numa perspetiva sustentável e intergeracional que respeite o meio ambiente: "Mesmo químicos agrícolas absolutamente conservadores, como Johnston, por exemplo, reconhecem que a propriedade privada é um limite absoluto a uma agricultura realmente racional. (...) O espírito da produção capitalista, orientado exclusivamente para o lucro monetário imediato, está em contradição com a agricultura, que deve levar em conta o conjunto permanente (ständigen) das condições de vida da cadeia das gerações humanas. Um exemplo notável são as florestas, que não são geridas, em certa medida, de uma forma coerente com o interesse geral, senão lá onde não estão sujeitas a propriedade privada, mas à gestão do Estado" (14).

 

Após o esgotamento do solo, o outro exemplo de desastre ecológico sugerido pelos textos de Marx e Engels citados até agora é o da destruição das florestas. Ele aparece muitas vezes em O Capital: "o desenvolvimento da civilização e da indústria em geral (...) tem-se mostrado sempre tão ativo na destruição das florestas que tudo o que pôde ser feito para a sua conservação e geração é completamente insignificante em comparação" (15). Os dois fenômenos - a degradação das florestas e a do solo – estão aliás intimamente relacionados nas suas análises. Em uma passagem de A Dialética da Natureza, Engels cita a destruição das florestas cubanas pelos grandes produtores espanhóis de café e a resultante desertificação dos solos como um exemplo da atitude imediatista e predatória em relação à natureza do "modo de produção atual" e da sua indiferença para com os "efeitos naturais" prejudiciais das suas ações a mais longo prazo (16).

 

O problema da poluição ambiental não está ausente de suas preocupações, mas é abordado quase exclusivamente pelo que respeita à insalubridade dos bairros operários de grandes cidades inglesas. O exemplo mais marcante são as páginas de A situação da classe trabalhadora em Inglaterra, onde Engels descreveu com horror e indignação a acumulação de dejetos e resíduos industriais nas ruas e nos rios, o dióxido de carbono que substitui o oxigênio e envenena a atmosfera, as “exalações dos rios contaminados e poluídos", etc. (17). Implicitamente, essas passagens e outras semelhantes põem em questão a poluição ambiental produzida pela atividade industrial capitalista, mas o problema nunca é posto diretamente.

 

Como é que Marx e Engels definem o programa socialista em relação ao ambiente natural? Que transformações deve conhecer o sistema produtivo para se tornar compatível com a salvaguarda da natureza? Eles muitas vezes parecem conceber a produção socialista como simplesmente a apropriação coletiva dos meios e forças produtivos desenvolvidos pelo capitalismo: uma vez abolida a "obstrução" que representam as relações de produção e, em particular, as relações de propriedade, essas forças poderão desenvolver-se sem impedimentos. Haveria assim uma espécie de continuidade substancial entre o aparelho produtivo capitalista e o socialista, sendo o desafio socialista antes do mais e principalmente a gestão planejada e racional desta civilização material criada pelo capital.

 

Por exemplo, na célebre conclusão do capítulo sobre a acumulação primitiva de O Capital, Marx escreveu: "O monopólio do capital torna-se um entrave ao modo de produção que cresceu e floresceu com ele e sob os seus auspícios. A socialização do trabalho e a centralização de seus equipamentos chegam a um ponto em que se não podem mais conter no seu invólucro capitalista. Este invólucro quebra-se em pedaços. A hora da propriedade privada capitalista soou. (...) A produção capitalista engendra a sua própria negação com a fatalidade que rege as metamorfoses da natureza" (18). Para além do seu determinismo fatalista e positivista, esta passagem parece deixar intacto, na perspectiva socialista, todo o modo de produção criado "sob os auspícios" do capital, não questionando senão o "invólucro" da propriedade privada, tornado um "obstáculo" para materiais da produção.

 

A mesma lógica "continuísta" preside a certas passagens do Anti-Dühring, em que se fala de socialismo como sinônimo de desenvolvimento ilimitado das forças produtivas: "A força de expansão dos meios de produção faz saltar as grilhetas que o modo de produção capitalista lhes tinha colocado. Sua libertação destas cadeias é o único requisito para um desenvolvimento contínuo das forças produtivas, progredindo a um ritmo cada vez mais rápido, e, como resultado, para um crescimento ilimitado da própria produção" (19).

 

Escusado será dizer que o problema do ambiente está ausente desta concepção da transição para o socialismo.

 

No entanto, existem também outros escritos que levam em consideração a dimensão ecológica do programa socialista e abrem algumas pistas interessantes. Vimos que os Manuscritos de 1844 se referem ao comunismo como "a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a natureza". E na passagem acima citada do volume I de O Capital, Marx sugere que as sociedades pré-capitalistas asseguravam "espontaneamente" (naturwüchsig) o Stoffwechsel, o metabolismo entre grupos humanos e a natureza; no socialismo (a palavra não aparece diretamente, mas pode ser inferido pelo contexto) ele deverá ser restaurado de uma forma sistemática e racional, “como lei reguladora da produção social". É uma pena que nem Marx nem Engels tenham desenvolvido esta intuição, baseada na ideia de que as comunidades pré-capitalistas viviam espontaneamente em harmonia com o seu ambiente natural, sendo a tarefa do socialismo estabelecer essa mesma harmonia sobre novas bases (20).

 

Algumas passagens de Marx parecem considerar que a conservação do meio ambiente natural é uma tarefa fundamental do socialismo. Por exemplo, o volume III de O Capital opõe à lógica capitalista da grande produção agrícola, baseada na exploração e no desperdício das forças do solo, uma outra lógica, de natureza socialista: "o tratamento conscientemente racional da terra como eterna propriedade comunitária, e como condição inalienável (unveräusserlichen) da existência e reprodução da cadeia de sucessivas gerações da humanidade". Um raciocínio semelhante se encontra algumas páginas atrás: "Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, enfim, todas as sociedades contemporâneas no seu conjunto, não são proprietárias da Terra. Eles são apenas suas ocupantes, suas usufrutuárias (Nutzniesser), e devem como boni patres familias, deixá-la em condições melhoradas para as gerações futuras" (21). Por outras palavras: Marx parece aceitar o "Princípio da Responsabilidade" caro a Hans Jonas, a obrigação de cada geração respeitar o meio ambiente - condição de existência para as futuras gerações humanas.

 

Em alguns textos, o socialismo é associado com a abolição da distinção entre cidade e campo, e, portanto, a supressão da poluição industrial urbana: "Só através da fusão da cidade e do campo é que se pode eliminar o envenenamento atual do ar, da água e do solo; só ela pode fazer com que as massas que agora definham nas cidades sejam levadas a uma situação em que os seu dejetos sejam usados para produzir plantas em vez de doenças" (22). A formulação é estranha - a questão é reduzida a um problema de metabolismo de esterco humano! - mas é assim levantada uma questão-chave: como acabar com o envenenamento industrial do meio ambiente? A novela utópica do grande escritor marxista libertário William Morris, News from Nowhere (1890), é uma tentativa fascinante de imaginar um novo mundo socialista, em que as grandes cidades industriais deram lugar a um habitat urbano-rural respeitoso do ambiente natural.

 

Finalmente, sempre neste mesmo volume III de O Capital, Marx já não define o socialismo como a "dominação" ou controlo humano sobre a natureza, mas como o controlo sobre as trocas materiais com a natureza: na esfera da produção material, "a única liberdade possível é a regulação racional, pelo ser humano socializado, pelos produtores associados, do metabolismo (Stoffwechsel) com a natureza, que eles o controlem conjuntamente, em lugar de serem dominados por ele (ihm) como por uma potência cega" (23). Esta ideia será retomada por conta própria, quase palavra por palavra, por Walter Benjamin, um dos primeiros marxistas no século XX que se colocou este tipo de questões: desde 1928, em seu livro Sentido Único, ele denunciou a ideia de dominação da natureza como "um ensinamento imperialista" e propôs uma nova concepção da técnica como "domínio da relação entre a natureza e a humanidade" (24).

 

Não seria difícil encontrar outros exemplos de uma real sensibilidade para com a questão do ambiente natural da atividade humana. O fato permanece que Marx e Engels não tinham uma perspetiva ecológica global. Por outro lado, é impossível pensar uma ecologia crítica, à altura dos desafios contemporâneos, sem considerar a crítica marxista da economia política, o seu questionamento da lógica destrutiva induzida pela acumulação ilimitada de capital.

 

Uma ecologia que ignora ou despreza o marxismo e a sua crítica do fetichismo da mercadoria fica condenada a não ser mais que um corretivo dos "excessos" do produtivismo capitalista.

 

Poderia temporariamente concluir-se esta discussão com uma sugestão, que me parece pertinente, avançada pela recente - e notável – obra de Daniel Bensaïd sobre Marx: reconhecendo que seria tão injusto isentar Marx das ilusões "progressistas" ou "prometaicas" do seu tempo como fazer dele um campeão da industrialização excessiva, o autor oferece uma abordagem bem mais frutífera. Propõe que nos instalemos nas contradições de Marx e as levemos a sério. Sendo a primeira destas contradições, é claro, a que existe entre o credo produtivista de alguns dos seus textos e a intuição de que o progresso pode ser fonte de destruição irreversível do ambiente natural (25).

 

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A questão ecológica é, na minha opinião, o grande desafio para uma renovação do pensamento marxista no limiar do século XXI. Ela exige dos marxistas uma ruptura radical com a ideologia do progresso linear e com o paradigma tecnológico e econômico da civilização industrial moderna. Certamente, não se trata – como é óbvio - de questionar a necessidade de progresso científico e técnico e da elevação da produtividade do trabalho: estas são condições incontornáveis para dois objectivos essenciais do socialismo: a satisfação das necessidades sociais e a redução da jornada de trabalho. O desafio consiste em reorientar o progresso de modo a torná-lo compatível com a preservação do equilíbrio ecológico do planeta.

 

O calcanhar de Aquiles do raciocínio de Marx e Engels, em alguns dos seus textos "canônicos", foi uma conceção acrítica das forças produtivas capitalistas - isto é, do aparelho técnico/produtivo capitalista/industrial moderno - como se elas fossem "neutras" e como se fosse suficiente para os revolucionários socializá-las, substituir a sua propriedade privada pela apropriação coletiva, fazendo-as laborar em benefício dos trabalhadores e desenvolvendo-as de forma ilimitada.

 

Eu acho que é necessário aplicar ao sistema produtivo moldado pelo capital o mesmo raciocínio que Marx sugeriu, em A Guerra Civil na França em 1871, para o aparelho de Estado: "A classe operária não pode se contentar com tomar tal como existe a máquina estatal e fazê-la funcionar por conta própria" (26). Mutatis mutandis, os trabalhadores não podem simplesmente tomar como ela existe a "máquina" produtiva capitalista e fazê-la funcionar por sua conta: eles devem transformá-la radicalmente - o equivalente ao que Marx nomeia, em uma carta a Kugelmann, a propósito da Comuna de Paris, "destruir o aparelho de Estado" burguês - em função de critérios socialistas e ecológicos. Isto implica não apenas a substituição de formas de energia destrutivas por fontes de energia renováveis e limpas, como a energia solar, mas também uma profunda transformação do sistema produtivo herdado do capitalismo, bem como do sistema de transportes e do sistema de habitat urbano.

 

Em suma, o ecossocialismo implica uma radicalização da ruptura com a civilização material capitalista. Nesta perspectiva, o projeto socialista visa não só uma nova sociedade e um novo modo de produção, mas também um novo paradigma de civilização.

 

 

 

 

 

(*) Michael Löwy (n. 1938) é um sociólogo e filósofo marxista franco-brasileiro, diretor emérito de pesquisas em Ciências Sociais no Centro Nacional de Pesquisas Científicas, da França (CNRS). A sua extensa obra articula-se em torno da teoria da revolução e da sociologia do conhecimento, abrangendo ainda temas como o romantismo anticapitalista, o nacionalismo e o internacionalismo, o marxismo na América Latina, a dimensão utópica do judaísmo, a sociologia das religiões, a teologia da libertação e o ecossocialismo. É coautor, como Joel Kovel, do Manifesto Internacional Ecossocialista. O presente ensaio foi publicado no livro coletivo Jean-Marie Harribey e Michael Löwy (ed.), Capital contre nature, PUF, 2003. Tradução de Ângelo Novo. Uma outra versão em língua portuguesa foi publicada como I capítulo do livro Ecologia e Socialismo (Col. Questões de Nossa Época, Vol. 125), Cortez, São Paulo, 2005.

 

 

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NOTAS:

 

(1) Friedrich Engels, Anti-Dühring, Paris, Ed. Sociales, 1950, p. 322.

 

(2) Karl Marx, Manuscrits de 1844. Economie politique et philosophie, Paris, Ed. Sociales, 1962 , pp. 62, 87, 89.

 

(3) Friedrich Engels, La dialectique de la nature, Paris, Editions Sociales, 1968, pp. 180-181.

 

(4) Karl Marx, Critique des Programme de Gotha et d’Erfurt, Paris, Ed. Sociales, 1950, p.18. Ver também Le Capital, Paris, Garnier/Flammarion, 1969, I, p. 47: "O trabalho não é assim a única fonte dos valores de uso que produz, da riqueza material. Ele é o seu pai, sendo a sua mãe a Terra, como dizia William Petty".

 

(5) Sobre a oposição entre "ter" e "ser", ver Manuscrits de 1844, ob. cit., p. 103: "Quanto menos você é, menos propósito manifesta a sua vida, mais você possui, mais a sua vida alienada se engrandece, mais você acumula do seu ser alienado". Sobre o tempo livre como a principal base do socialismo, consulte Das Kapital, III, Berlim, Dietz Verlag, 1960, Werke, Banda 25, p. 828.

 

(6) Karl Marx, Préface à la Contribution à la critique de l’économie politique, Paris, Ed. Sociales, 1977, p. 3.

 

(7) Karl Marx, Fondements de la Critique de l’Economie Politique, Paris, Anthropos, 1967, pp. 366-367.

 

(8) Karl Marx, L’Idéologie allemande, Paris, Ed. Sociales, p. 67-68.

 

(9) Tomo esse termo, e a análise que se segue, do importante trabalho de John Bellamy Foster, Marx’s Ecology. Materialism and Nature, New York, Monthly Review Press, 2001, pp. 155-167.

 

(10) Karl Marx, Capital, tradução de Joseph Roy, Paris, Editions Sociales, 1969, Volume I, p. 660.

 

(11) Karl Marx, Das Kapital, III, Berlim, Dietz Verlag, 1960, Werke, Banda 25, p. 821 (tradução minha, ML).

 

(12) Karl Marx, Le Capital I, p. 363, revista e corrigida a partir do original alemão, Das Kapital I, pp. 528-530.

 

(13) Karl Marx, Le Capital, I, pp. 183-200.

 

(14) Karl Marx, Das Kapital III, p. 630-631.

 

(15) Das Kapital, II, p. 247.

 

(16) Friedrich Engels, Dialectics of Nature, Moscou, Progress Publishers, 1964, p. 185.

 

(17) Friedrich Engels, The Condition of the Working-Class in England (1844), in Marx, Engels, On Britain, Moscow, Foreign Language Publishing House, 1953, pp. 129-130.

 

(18) Marx, Le Capital, I, pp. 566-567.

 

(19) Friedrich Engels, Anti-Dühring, p. 321.

 

(20) Este aspecto do texto é perdido na tradução de O Capital feita por J. P. Lefebvre, na medida naturwüchsig - "espontâneo" - é traduzido como "origem simplesmente natural".

 

(21) Karl Marx, Das Kapital, III, p. 784, 820. A palavra "socialismo" não aparece nestes passsages, mas está implícita.

 

(22) Friedrich Engels, Anti-Dühring, p. 335. Veja-se também a seguinte passagem de La question du logement (Paris, Editions Sociales, 1957, p. 102). De Engels: "A supressão da oposição entre cidade e campo não é mais uma utopia do que a supressão do antagonismo entre capitalistas e assalariados. (...) Ninguém a reivindicou mais fortemente do que Liebig, em seus escritos sobre a química agrícola, nos quais ele é o primeiro a pedir, fazendo-o insistentemente, que o homem devolva ao solo o que dele recebe, e onde demonstra que só a existência de cidades, incluindo as grandes cidades, coloca a isso obstáculo". A sequência do argumento gira em torno, uma vez mais, dos “fertilizantes naturais" produzidos de grandes cidades.

 

(23) Karl Marx, Das Kapital III, p. 828. Ted Benton, que parece ter lido este texto em tradução, se pergunta se, ao falar de "controle conjunto", Marx se refere à natureza ou à troca com ela. O texto alemão não deixa margem para dúvidas, uma vez que se trata do masculino (ihm), do metabolismo, e não do feminino de natureza...

 

(24) Walter Benjamin, Sens Unique, Paris, Lettres Nouvelles - Maurice Nadeau, 1978, p. 243.

 

(25) Daniel Bensaïd, Marx l’intempestif, Paris, Fayard, 1995, p.347.

 

(26) Karl Marx, La guerre des classes en France en 1871 in, Marx, Engels, Lénine, Sur la Commune, Moscou, Editions du Progrès, 1971, p. 56.