A discriminação contida na teoria social

 

 

António Pedro Dores (*)

 

 

 

Este artigo sublinha o facto de estas características da sociologia actual favorecerem a naturalização das discriminações correntes. A começar pelo exemplo da discriminação axiológica entre peritos especializados (observadores) e públicos por eles estratificados (objectos de estudo). Favorecem a naturalização da normalidade (objectos de estudo com comportamentos semelhantes aos dos observadores) e do moralismo (a estranheza implícita embebida nas teorias sociais e nas classificações dos objectos de estudo). Favorecem a procura das causas das misérias e das violências no livre arbítrio individual, escamoteando as corresponsabilidades configuracionais das condições sociais na construção de mecanismos e ambientes onde as pessoas vivem e a que reagem.

 

Escamotear intenções e sentimentos políticos e sociais legitimadores da violência institucional é uma das características da condição moderna(Hirschman, 1997). Vale a pena recordar como a produção da separação entre acção e as suas representações, a nomeação de contra quem a violência pode e deve ser exercida, é ancestral. Qual deverá ser o papel das ciências sociais: simples monitorização da violência estigmatizada (na sua vertente negativa) ou participação na construção da violência como instrumento de orientação social (por vezes positiva e outras vezes negativa)?

 

A discriminação contida na teoria social

 

A hiperespecialização das ciências sociais das últimas décadas (Lahire, 2012:319-356) acompanhou o desinteresse da teoria social pela violência (Wieviorka, 2005:68). Esquecida entre os elementos tomados por relevantes para caracterizar a sociedade (Giddens, 1988).

 

A criminologia crítica, de inspiração sociológica, por seu lado, conheceu uma expansão. Os conflitos sociais são reduzidos a disputas jurídicas. Especialistas profissionalizados, juristas e aparentados, transformam os problemas sociais em problemas do seu foro, quais Kafka, remetendo as pessoas envolvidas para meros espectadores daquilo que lhes acontece, na vida e nas instituições (Ruggiero, 2000:38). Tal como o economista e o criminólogo, o sociólogo estiliza a complexidade da existência em nome duma racionalização especializada própria (segundo Mouzelis (1995), a teoria social conjuga operações de reducionismo – a indivíduos – e de reificação – das interpretação dos comportamentos). As profissões autorregulam-se e vivem do direito profissional de organizar, parcialmente, a heterorregulação de terceiros. Sobretudo dos mais socialmente desorganizados, alegando trabalhar para a sua integração e bem-estar social. Essencializam as relações sociais de acordo com as suas preocupações disciplinares e lutam por impor a sua visão particular e interesseira, como se fosse completa, quando é manifestamente parcial.

 

Este artigo sublinha o facto de estas características da sociologia actual favorecerem a naturalização das discriminações correntes. A começar pelo exemplo da discriminação axiológica entre peritos especializados (observadores) e públicos por eles estratificados (objectos de estudo). Favorecem a naturalização da normalidade (objectos de estudo com comportamentos semelhantes aos dos observadores) e do moralismo (a estranheza implícita embebida nas teorias sociais e nas classificações dos objectos de estudo). Favorecem a procura das causas das misérias e das violências no livre arbítrio individual, escamoteando as corresponsabilidades configuracionais das condições sociais na construção de mecanismos e ambientes onde as pessoas vivem e a que reagem.

 

Dores1

 

Em Janeiro de 2015, no centro de Bruxelas, capital da União Europeia, homens pedintes, bem constituídos, ajoelhavam no chão e baixavam a cabeça, todo o dia, para atrair esmolas para o copo que mostravam. No que poderia ser uma performance contra o consumismo. Ou uma forma de adoração do dinheiro que possa cair no copo. Ou um comentário político à humilhação da Grécia. Questionados transeuntes sobre o significado daquela posição, a resposta mais comum era de desinteresse e inspirava-se no management: “será porque rende mais!?!” Merecerá atenção sociológica este não assunto social?

 

Poucos dias antes tinha ocorrido o sangrento atentado contra o Charlie Hebdo, em Paris. Um recepcionista de hotel argelino relacionou o caso com aquilo que o fez abandonar França, sua terra natal, para se refugiar em Bruxelas: a discriminação contra os descendentes de africanos. Incomodado com a ambígua simpatia que não podia exprimir com os atacantes, prognosticou uma guerra civil em França. Por causa do desprezo que “os franceses” têm pelos 5 milhões de magrebinos que vivem em território francês. (Na sequela de 11 de Setembro de 2001, recordo uma visita a Nova Iorque. Afro-americanos, num estado de espírito semelhante, explicaram que quem semeia ventos colhe tempestades).

 

As configurações sociais discriminantes perduram por séculos. Em Janeiro de 2015 o Syrisa ganhou as eleições na Grécia, reclamando respeito e dignidade para o povo. Em Junho, por falta de pagamento do estado grego ao FMI, o clima de guerra verbal estava instalado na UE e nos media. A opinião pública europeia dividiu-se: deverão os gregos (e outros oprimidos) ser promovidos a parceiros iguais ou, por não respeitarem o status quo e a sua hierarquia, deverão ser desqualificados ou expulsos?

 

Cada um destes episódios revela e esconde tensões eventualmente mergulhadas no esquecimento selectivo, eventualmente politicamente mobilizadas para apelar às emoções (lutas contra a pobreza, contra o terrorismo, contra a dívida). Conforme entendamos, para efeitos de acção, que os pedintes, os agressores, os falidos, são diferentes de nós, os observadores, ou os entendamos como nossos semelhantes.

 

O artigo apresentará referências centrais da actual discussão sociológica sobre a definição de violência. Discute de seguida a relevância social da violência, assim como a sua importância sociológica para o questionamento e desenvolvimento da teoria social. Por fim, tendo em conta a marginalização dos estudos sobre as emoções e os corpos, por um lado, sobre o tempo, o dinheiro e outros sistemas de orientação social, por outro lado, discute-se a necessidade de não perder de vista e estudar a especificidade da natureza humana: as pessoas como parte de uma espécie eminentemente sociável e em transformação. Essa discussão elevará o nível de compreensão do que são a sociedade e as discriminações associadas.

 

As teorias sociológicas da violência

 

A concepção mais objectiva de violência limita-a às acções que produzam danos físicos (Collins, 2008:24-26). Todo o trabalho de produção de situações violentas é desconsiderado: a violência física é difícil e dura. As ameaças e a violência simbólica, como a mencionada por Bourdieu (2013), é fácil e suave, escreve Collins. Em ambos os casos, violência comporta uma valorização negativa das suas consequências e das suas causas. Em Collins, a microssociologia da violência directa, distinta da macrossociologia, pretende escapar às controversas incertezas dos usos de senso comum da palavra. Será violento o rio ou as margens? O actor ou a situação? O individuo ou a instituição?

 

Para a microssociologia, como para as notícias dos tabloides, a violência emerge do nada, imprevisível, localizada, rara, protagonizada por poucas pessoas violentas confrontadas com situações propícias (Collins, 2008:370-411). Se uma das conclusões de Collins, ao observar a violência directa, é que as pessoas evitam a violência e são as situações que as obrigam a envolverem-se em actos de violência, as causas eficientes da violência não são violentas: há uma cadeia de acções sociais não violentas que tornam a violência difícil de evitar.

 

Os estados de paz, comparados com os estados de guerra, podem distinguir-se entre si por, neste último caso, os hábitos espontâneos de evitar as situações que tornam a violência inevitável estarem suspensos. Em guerra há liberdade, impunidade e honrarias para os raros violentos, para que exercitem as suas competências extraordinárias. Multiplicam-se as oportunidades para as pessoas se tornarem violentas. Em estados de paz, porém, a repressão dos raros violentos não impede que haja cultos da violência a funcionar, nomeadamente para uso dos poderes estabelecidos. Há aquartelamentos e campos de treinos militares ou militarizados, para actividades eufemisticamente chamadas de defesa e de segurança, onde se escondem actividades de produção de raros violentos profissionalizados. Pessoas treinadas para evitar os instintos não violentos que condicionam todas as pessoas.

 

Tanto em guerra como na paz, a violência preliminar, digamos assim, é frequentemente escamoteada, para benefício do status quo. As humilhações e as provocações contra os inimigos ou simplesmente os desvalidos remetem-nos para uma profecia que se auto-realiza: a desorientação própria de vidas violentas. São segredos de guerra e segredos de estado.

 

A concepção reducionista da violência é funcional para quem viva protegido da rua. O acesso às posições sociais é condicionado. Nomeadamente ao comportamento civilizado, em particular, não violento (Elias, 1990). Para quem a miséria e a exclusão, como as descritas classicamente por Victor Hugo ou Dostoiesvki, são experiências alienígenas, a violência directa é instrumental e não expressiva. Deve ser eficaz e discreta. Geralmente delegada em profissionais, em vez de exercida pessoalmente. Ou então encenada, por exemplo sob a forma de desporto (Collins, 2008:193-334).

 

Uma tal concepção ilude uma parte das realidades sociais. Entre as quais, os próprios fundamentos dos estados, segundo Max Weber. A monopolização da violência legítima pode fechar os olhos a violências e castigar desproporcionadamente ameaças, conforme a origem social de quem as praticar: a violência de estado que sustenta a estratificação social, por exemplo, protege bairros ricos de assaltos e assalta bairros declarados problemáticos.

 

No seu livro sobre violência, Wieviorka (2005:217-218) manifestou a sua convicção de ser preciso sair do campo da teoria social, para ser possível compreender a) os diferentes sentidos da violência e b) os paradigmas que organizam a violência em cada época. Isto é, o reducionismo sociológico não é suficiente para dar conta dos fenómenos de violência. Os esforços de conhecimento deveriam, então, expandir-se para integrar o estudo normativo das motivações dos sujeitos, segundo as propostas de Touraine. Da violência há que conhecer as origens e as fontes através a) dos sentidos da vida social organizados e possibilitados por b) planificações geo-estratégicas dominantes institucionalizadas.

 

Bourdieu (2013) pensa a violência simbólica como um antropólogo que reconhece a discriminação de géneros embutida nas práticas sociais incorporadas. Collins reclama um estudo científico assente na fisicalidade da violência, não nas ameaças de violência. Wieviorka chama a atenção para os limites estreitos da teoria social para estudar a violência. Em nenhum dos casos a repressão do estado, como violência, é incluída na análise (Wieviorka, 2005:281).

 

Quando uma universidade alemã decidiu construir um sítio para dar a conhecer mutuamente os investigadores sociais da violência (AAVV, n.d.), considerou as violências interpessoais, interestatais e intraestatais. Desconsiderou, pois, as violências estatais sobre as pessoas. Seguindo as prescrições da teoria actual. Omitindo uma parte do problema.

 

Como referiu Michel Wieviorka no Congresso da ISA de 2010, em Gutemburgo, estudar a violência causa preocupações às lideranças das instituições de pesquisa social e pode causar dissabores às carreiras dos académicos. Os financiamentos, como veremos com um exemplo mais adiante, mostram que a melhor orientação a seguir é ignorar as causas estatais da violência. O assentimento dos investigadores a tais condicionamentos da melhor consciência científica não é exemplar, mas corresponde ao comportamento geral dos trabalhadores. Três clínicos de saúde mental apresentaram uma comunicação no primeiro Congresso do Observatório das Condições de Vida, em 22 de Junho de 2015, em Lisboa. Fizeram um balanço das suas experiências profissionais. Revelaram como, nos anos de austeridade, os doentes que os procuraram identificaram como uma das causas do seu estado patológico a degradação das relações sociais no trabalho entre os colegas, com as chefias e com efeitos no ambiente de trabalho. Mas não mencionaram o ambiente político, nem as eventuais disfuncionalidades éticas ou sociais das respectivas actividades laborais.

 

A crise económica gerada pela crise financeira e pela necessidade de reorganização dos sistemas produtivos e de empregos está na mente de todos como causa de efeitos generalizados e difusos, como os identificados por Wilkinson e Pickett (2009). Falta imaginação e energia para enfrentar os problemas sociais e políticos, como os limites ecológicos ao crescimento, os efeitos das discriminações dos imigrantes, a pobreza e outros.

 

Provavelmente as causas mais profundas do mal-estar e da dispensa de tantos trabalhadores é a desadaptação do actual sistema económico às possibilidades e necessidades da sociedade. Hoje, como no tempo do Salazar, a política dos trabalhadores tomados individualmente continua a ser o trabalho, ou o emprego. Alheados de problemas globais prementes por continuarem, apesar dos inegáveis avanços da democracia, desqualificados para participar em decisões de interesse comum.

 

A discriminação social está embebida na tomada de consciência das desigualdades sociais. As constatações estão resignadas aos factos, como se as transformações não ocorressem ou fossem impossíveis. Alguns politólogos identificam neste alheamento das decisões e neste escamoteamento dos problemas, conjugados, a causa da normalização da vida política: a confiança delegada no sistema, isto é, nos especialistas e nas instituições. Holliday (2003) diz que a alienação da política e da relação com a natureza é consequência da divisão de trabalho; da ignorância dos trabalhadores especializados sobre o funcionamento dos sistemas complexos de que são parte integrante. Sabem o que têm de fazer, mas desconhecem o que fazem os outros.

 

Não serão igualmente os sociólogos vítimas, como outros trabalhadores, de uma confiança alheada do funcionamento das instituições políticas e dos respectivos braços armados?

 

Quem está em condições de, a partir do seu lugar individual, pensar e discutir fora da caixa da respetiva especialização (Amaral, Branco, Mendonça, Pimenta, & Reis, 2008)? Quem se dispõe a pensar a sociedade como se a sua intervenção não só pudesse fazer alguma diferença, como, sobretudo, fosse requerida, como acto de solidariedade e participação? Por que razão os melhores entre os sociólogos, aqueles que se atrevem a pensar a sociedade, são apresentados ao público, e aos outros sociólogos, como pessoas extraordinárias, alguns alvos de cultos de personalidade?

 

Nenhum dos autores citados explica por que razão a violência é um tema secundarizado na teoria social. Wieviorka reconhece a violência fora do raio de acção da teoria social. Mas não explica como o estudo da violência poderá vir a ocupar, no seio da teoria social, um lugar adequado à sua importância central para a vida em sociedade. Porque não vingou a proposta de Anthony Giddens (1988) de passar a considerar a violência omnipresente?

 

Relevância social e sociológica da violência

 

A reacção da sociologia à crise civilizacional não deve resumir-se a retomar, de forma especializada, temas esquecidos, como a violência, entre outros. A sociologia deve preparar a sua própria transformação, participando nas transformações sociais em curso. A abertura das ciências sociais ao diálogo cognitivo entre as suas várias disciplinas e subdisciplinas, mas também entre todas e as humanidades, por um lado, e as ciências, por outro (Wallerstein, 1996) é uma necessidade reclamada. Estudar o lugar apropriado de novos objectos de estudo, como a violência, pede a adopção de novas perspectivas (Giddens, 1988). Para as considerar, mostra a experiência, não bastam actos voluntaristas. Há que saber utilizar o espírito do tempo, agora, para actualizar propostas e críticas anteriormente estruturadas, tendo em vista a transformação previsível.

 

A sociologia procura tradicionalmente noutras ciências e saberes recursos para o seu próprio desenvolvimento. Pode, pois, aprender a tratar da violência como a física trata do tempo. Um instrumento cognitivo de elevada abstracção, produzido num encadeamento evolutivo de processos de orientação prática cada vez mais eficazes e incorporados de modo a tornar-se numa segunda natureza das sociedades e, ao mesmo tempo, ter a capacidade de relacionar e integrar holisticamente todos os níveis de realidade (Elias 1998:20-23).

 

Como o dinheiro, a linguagem, o tempo, também a violência pode ser concebida como um sistema ao mesmo tempo instrumental e cognitivo de orientação, em devir e herdado. Violência desdobrada em controlo da acção social e individual, em guerras, como disciplina produtiva nas relações de produção, etc.. Os movimentos pelos direitos humanos, pacifistas, trabalhistas, ecologistas, feministas, criticam diversos aspectos da violência tradicional e procuram condicioná-los, transformá-los, reorientá-los, reorientando as acções institucionais e individuais de modo a obter os resultados esperados. Torturas e perseguições, belicismo e discriminação, exploração e desigualdades sociais, extrativismo e poluição, abuso ou assédio sexual e patriarcalismo, são formas particulares de violência, mais ou menos ligadas umas às outras, mais ou menos específicas. Mais ou menos promovidas por outros sistemas de orientação, em particular famílias, partidos políticos, instituições estatais e outras formas de organização e perpetuação do poder.

 

Há quem pense que combater a violência específica, no exemplo os abusos sexuais de crianças, não pode ser feito eficazmente sem articular esse combate com as condições sociais gerais de violência, aquilo que Wieviorka chamou paradigma de violência. Exige um modo de atuar mais profundo e um tempo bem mais largo do que a vida de um ser humano, no caso cinco gerações (AAVV, 2013).

 

A violência não é só uma referência cognitiva abstracta. A violência é experimentada existencialmente pelas pessoas. É a partir da elaboração dessa experiência que se têm vindo a organizar máquinas de orientação. A violência das polícias ou das forças armadas modernas são tanto mais substitutivas da violência directa desorganizada quanto mais a violência simbólica for capaz de orientar a vida das pessoas e das sociedades, com base em experiências prévias acumuladas. Por exemplo, foi o nacionalismo que criou o duplo estatuto de humanos nacionais e não nacionais. A partir dessa diferenciação surgem as polícias, para organizar o sentido da violência entre nacionais. As forças armadas especializam-se em violências entre estados. A violência, portanto, está sujeita a paradigmas epocais.

 

Em todos os tempos, a capacidade de orientação social da violência é incerta: o desequilíbrio de forças, à partida, é importante para credibilizar as ameaças de violência, nomeadamente a violência institucional. Porém, nenhum desequilíbrio aparente garante o desfecho. São famosos os casos de David e Golias, a Índia de Gandhi, o Vietnam dos anos 70 vencedor dos EUA, Mandela sobre o apartheid na África do Sul, Xanana Gusmão capturado pela Indonésia, no processo para a independência de Timor-Leste. São temidos os casos das revoluções. Em condições de modernidade, as populações são um interveniente ao mesmo tempo abstraído e decisivo nas situações violentas. O que explica a especialização policial, a repressão dos estados contra os seus próprios povos para os conformar aos desígnios das classes dominantes. Em caso de guerra, igualmente, as populações não são poupadas. Tornam-se o próprio cenário das guerras e suas principais vítimas.

 

A violência institucional discrimina entre a massa de pessoas indiferenciadas e os indivíduos conhecidos pessoalmente, através da política ou dos media. Estes últimos são pensados como protagonistas autodeterminados sobre um magma de gente líquida (Bauman, 2000). Em estado de guerra discrimina-se os desvalidos dos poderosos através da acção psicológica promovida pelos beligerantes, através dos media, fazendo querer aos seus respectivos povos a inumanidade dos povos sob o jugo do inimigo. O mesmo tipo de processos, à sua escala, é usado pelas polícias (Dores, 2013).

 

Os instrumentos e processos de orientação promovidos pela violência decorrem das avaliações que sobre ela se façam as pessoas singulares, as instituições, os estados, as instâncias internacionais, as populações, os povos. A sincronização da acção violenta – o modo como as forças armadas se submetem aos poderes civis, por exemplo – depende das configurações sociais, isto é, tradições, desenvolvimento, cultura, disponibilidades económicas e tecnológicas, alianças geo-estratégicas. Não há violência nem se produzem concepções sobre o sentido da violência sem manipulação de símbolos emocionalmente densificados pelas experiências passadas.

 

Por exemplo, actualmente, falar de violência, no mundo ocidental, é conotado com algo negativo. Ao contrário do que acontece em situações de guerra, por exemplo, onde dispor-se a morrer como mártire é considerado um acto pessoalmente heróico e socialmente prestigiante. Repugnante continua a ser, em geral, a violência contra os nossos. A outra violência, dos nossos contra terceiros, é geralmente bem-dita e louvada: como reacção defensiva, exercício de poder ou acto de justiça. Perante as contradições entre os lados envolvidos nas lutas, como poderá a ciência social encontrar uma plataforma de ponderação racional, um padrão de medida da violência para serviço universal? E que critérios usar para distinguir, como se faz com o colesterol, entre a violência boa, no desporto, por exemplo, e a violência má, no abuso sexual?

 

Encontrar respostas para estas perguntas não é apenas uma tarefa cognitiva da ciência. É uma tarefa central para a evolução da espécie humana, para o que a ciência poderá oferecer a sua contribuição. Nomeadamente tomando consciência dos muito longos processos sociais e cognitivos de produção de instrumentos de orientação incorporados na mente das pessoas e nas infraestruturas sociais, como os sinais de trânsito, os avisos sobre riscos na paisagem, por motivos de obras ou de instabilidade de formações naturais, e sobre riscos institucionais: “trajecto sem saída” ou “propriedade privada” ou “propriedade do estado” ou “zona de exercícios militares”.

 

A violência em sociedades diferentes, como as sociedades aristocráticas europeias ou as sociedades colonizadas, tem usos diferentes e provoca sentimentos diferentes. Em “cenas da vida de um cavaleiro”, Norbert Elias (1990:239-250, 1º vol) explica como a honra significava uma disponibilidade para enfrentar os atentados e a morte que actualmente nos repugna. Entre as sociedades aristocráticas e as sociedades burgueses as emoções e os símbolos de civilização mudaram de forma evidente.

 

Embora sejamos herdeiros das Cruzadas e da Inquisição, quedamo-nos estupefactos e incrédulos perante o terrorismo suicida actual. A nossa história foi isolada do nosso presente. História e presente são usados como formas de discriminação de outros povos. Mas podiam ser usados como formas de compreensão e simpatia entre adversários da mesma espécie.

 

A violência passada, actual e futura não é uma mera troca de acções agressivas entre pessoas ou grupos antagonistas. Não é só uma forma de comunicação, em que os vencedores são agressores e os perdedores vítimas. A violência é um fenómeno bem mais complexo. Os familiares e amigos são, em muitos sentidos, quem mais violência pode exercer contra os seus mais próximos, às vezes com boas intenções. Os equívocos relativamente à violência, sobre quem procurou evitá-la e quem a provocou, mostram como as avaliações morais se arriscam a revelar-se maniqueístas. Do ponto de vista da sua instrumentalidade para servir sistemas de orientação cognitivamente sofisticados, a violência, sob a forma de ameaça, controlo, maus tratos, tortura, sinaliza e testa limites de actuação que uns querem e podem romper e outros não. Na expressão de Randall Collins (2008:4-5), são as situações que são violentas e as pessoas escapam quanto podem a exercer a violência que as situações reclamam (as excepções confirmam a regra). Acrescenta o autor ter verificado como em situações de violência, em razão das características referidas, são sobretudo as pessoas mais indefesas quem são activamente procuradas para servirem de vítimas da violência (Collins, 2008:9-11). Actualmente as populações desarmadas servem de alvos preferenciais, no Iraque, sob o embargo e depois a guerra, na Síria, com 4 milhões de refugiados. Como antes aconteceu na Somália, no Afeganistão, na Líbia e em muitos outros lugares. Como acontece ao povo da Grécia sob austeridade, na segunda década do século XXI, sem que haja uma guerra militar.

 

As situações violentas atemorizam especialmente os velhos, as mulheres e as crianças. Porque são activamente procurados como alvos. E é um desafio à masculinidade. Há nisto algo de ancestral, de apelo telúrico às forças de sobrevivência, capazes de transformar a espontânea aversão à violência em uma necessidade de expressão violenta para defesa da honra, isto é, defesa do lugar social de cada um, eventualmente ameaçado de decadência ou extinção.

 

Pode parecer estranho os mais poderosos serem os maiores promotores de violência, se instintivamente a violência ocorre como reacção de último recurso às ameaças mais radicais. Uma reflexão mais atenta compreenderá como a artificialidade das posições de poder e a sua entrega a indivíduos os torna vulneráveis. O que explica o uso generalizado de serviços de segurança especiais para pessoas em altos cargos e a retórica usada entre os políticos de serem guerreiros. Efectivamente podem ser confrontados com atentados contra si ou a necessidade de determinar acções policiais ou militares, com uma probabilidade diferente das outras pessoas mais discretas.

 

A agressividade afirmativa dos jovens machos, numa fase da vida particularmente instável, é desafiada e moldada milenarmente por gente mais velha, por exemplo, para fins militares. A violência institucionalizada orienta a necessidade de integração social dos jovens para finalidades legitimadas como comuns, através de sistemas de liderança. A evolução da espécie gerou sistemas religiosos e políticos capazes de elaborar cognitivamente a legitimidade da acção de massas dos jovens e, portanto, a sua orientação. As capacidades de acção colectiva parecem divinas, quando suscitam carismas e identificam povos. Chefes e identidades colectivas estabelecem padrões maniqueístas entre nós e os outros. A violência destes últimos é sempre negativa e mal-intencionada, avaliação ao espelho da nossa violência, a que frequentemente se prefere chamar reacção, defesa, manutenção da ordem, reposição da moral, justiça, revolução.

 

As lutas pela legitimidade da violência, em particular escondendo-a atrás de muitas outras palavras, protegem a sobrevivência moral dos agressores e, sobretudo, dos seus mandantes. Isso é válido num círculo restrito de convivência, onde as mulheres batidas ou as crianças abusadas frequentemente não estão em condições de reconhecer a sua condição de vítimas, como é válido em casos de guerra, em que os militares se escusam a reconhecer os crimes de guerra da sua parte. Uma longa cadeia liga, no tempo, a natureza espontânea e instintiva da espécie relativamente à violência e as formas institucionais de a usar culturalmente.

 

As questões de género, da hierarquização social, do (re)conhecimento e da (re)pressão física e moral, estão no centro do estudo da violência. A discriminação social sustentada e contestada pela violência estrutura as sociedades modernas. Funda-se na evolução dos instintos e das características da espécie humana, enquanto forma de vida particular na Terra.

 

Para melhor compreender a violência será preciso substituir a dicotomia sociedade-individuo, discriminação naturalizada fechada sobre si mesma, pelo estudo das interdependências entre a natureza, as sociedades e os indivíduos como processos indissociáveis entre si (Elias, 1998:17). As pessoas antes de comunicarem (improvavelmente, segundo a conhecida teoria de Luhmann) querem e precisam orientar-se no meio e orientar-se interiormente. Precisam dar sentido às suas acções e às suas vidas, através de avaliação de hábitos e de disposições herdadas (Bourdieu, 1979). No mundo virtual, do verbo, da escrita, da internet, a sociedade procede intelectual e laboriosamente a críticas recursivas (Corballis, 2011), eventualmente violentas: é o mundo da violência simbólica.

 

A definição de violência de Reemtsma (2011:111-115), como “redução ao corpo”, produz não apenas um melhor desempenho analítico de casos empíricos (admite integrar violência simbólica ou a noção de bio-poder, de Foucault) mas também produz uma separação mais clara do moralismo (as consequências da violência, maior ou menor redução ao corpo, não dependem da legitimidade das causas).

 

Esta definição, por outro lado, permite compreender como a teoria social tem sido complacente com as discriminações sociais implícitas no uso de conceitos maniqueístas de violência. Nomeadamente relativamente às consequências das desigualdades de oportunidades entre géneros, grupos etários, classes sociais, etnias, povos. Permite criticar as tautologias que confirmam a legitimidade da violência contra os mais desprotegidos, ao mesmo tempo que denuncia o carácter ancestral que funda as práticas institucionais, dissimuladas através de retóricas auto justificativas implícitas.

 

Esta definição apresenta a violência como um efeito (a redução ao corpo) – e não uma causa (a maldade dos outros, geralmente os mais frágeis, exactamente a quem a violência mais atinge ao longo da vida). Quando as situações se transformam em violência é porque, em vez de as pessoas se elevarem ao nível das circunstâncias, evitando o uso da força, desorientam-se como quem está num beco sem saída. Procuram os mais fracos para sobre eles fazer recair a violência, esgotando a situação de tensão sobre os corpos. Frequentemente para satisfação dos sentimentos de vingança.

 

Uma vez espoletada a violência, a acção é rápida e termina em breve. A menos que seja instigada sistemática, profissional e institucionalmente (Bouthoul, 1991). A separação das pessoas do mundo natural, onde controlavam individualmente as situações violentas, tem paralelo no processo de exclusão social: a construção de humanos separados do padrão de humanidade vigente.

 

Natureza humana

 

Ninguém sabe como surgiu a espécie humana na Terra. Mas admite-se que foi como aconteceu com todas as outras espécies vivas: por evolução. Haja um nicho ecológico suficientemente favorável para a afirmação de determinada forma de vida, e haja capacidade dessa forma de vida se reproduzir, uma espécie pode constituir-se autonomamente das outras formas de vida.

 

No caso da espécie humana, podemos constatar que ela existe, capaz de se adaptar a virtualmente todos os nichos ecológicos na Terra – caso único. Desenvolveu uma capacidade de criar artificialmente as condições do seu próprio habitat. A cultura tornou-se a sua segunda natureza. Sendo difícil distinguir instintos e hábitos.

 

Mesmo assim, podem arriscar-se algumas afirmações: a natureza humana nunca foi outra coisa que não social. Resultado de uma evolução da vida na Terra numa janela de tempo particular, os indivíduos da espécie humana não sobrevivem fora de quadros sociais organizados. As crianças são demasiado frágeis durante demasiado tempo para ser possível de outro modo.

 

Socorremo-nos de Virno (2014:79): “(…) a permanência das características infantis mesmo em sujeitos adultos (…)  [obriga] o homem, ambientalmente desorientado como é, [a] ter de lutar contra uma torrente de sugestões destituídas de qualquer finalidade biológica precisa (…). [Esta] ´abertura ao mundo´ (…) gera uma incerteza e uma desorientação que nunca são de todo reversíveis”. A singular adaptabilidade da espécie humana, por desorientação, decorre da sua natureza pouco instintual, deixando a sobrevivência muito dependente das aprendizagens e do tempo necessário para as produzir socialmente, em cada geração e em cada território.

 

Dores2

 

O lado esquerdo da figura representa a reprodução social e o lado direito a produção social, na prática mescladas entre si. Reguladas institucionalmente através de fechamentos sociais (Parkin, 1979).

 

Na espécie humana é aguda a necessidade da protecção. A par da organização dos cuidados infantis, sem os quais não há sobrevivência, as sociedades organizam a sua desorientação ambiental, face a instintos plásticos e insuficientes, sob a forma de preparação para a violência. Violência ambiental e violência de outros grupos humanos. A organização da violência ainda hoje é uma fonte de hierarquização e poder, nas famílias, nas ruas, nas instituições, entre estados. Nas sociedades burguesas, a organização da violência é legitimada por uma ideologia da paz, forma de escamotear as intenções por de trás do belicismo (Hirschman, 1997). A esperança doutrinária de construir sociedades igualitárias, de pessoas livres e de relações universalmente fraternais, tem sobrevivido, com avanços e recuos, compatível com discriminações de género, étnicas, sociais, hierarquizadas e, sobretudo, dissimuladas. Como descobriu Pierre Bourdieu (1979), a respeito dos gostos.

 

As teorias sociais não têm conseguido evitar os escolhos dissimulatórios ideologicamente produzidos nas sociedades modernas, classicamente descritos por Voltaire (1795). Por isso Collins (2008:25-26) prefere fixar a violência como uma coisa, e não um processo, de modo a poder assentar em métodos de investigação mais controlados. Na sua observação notou como as encenações e as ameaças de violência são usadas para reclamar protecção social contra a violência, quando ela não ocorreu de facto. A violência efectiva, embora pareça eminente e fácil, presente em todo o lado e muito perigosa, é muito rara. Na esmagadora maioria dos casos em que ocorre, os danos físicos são minimizados pela relutância espontânea das pessoas em agredir. Por outro lado, a violência simbólica chama a atenção de como, no quotidiano, se criam hábitos de subordinação cuja emancipação requer enfrentar as ameaças de violência em cascata socialmente espoletadas por violação das normas. Por exemplo, tomem-se os casos de mulheres que denunciam ser vítimas de violência doméstica (AAVV, 2013) ou a situação dos desertores. Procurar evitar a violência social e institucionalmente legitimada espoleta violências acrescidas, em cascata.

 

Instintivamente há grandes dificuldades em exercer violência individual, como as abelhas que ao usarem o ferrão o fazem como último acto da sua vida. Mesmo em situações propícias, como estados de guerra ou alistamento em campanhas militares (Collins, 2008:44; 53), o instinto anti-violência impõe-se às circunstâncias. A minimização de riscos, em caso de imposição social da violência, estabelece o princípio da procura dos mais fracos para sobre eles exercer a violência de forma mais segura. A experiência da violência, por outro lado, é excitante e prazerosa, na medida em que é um teste ao sentido da existência de cada um dos envolvidos, decorrente de um encontro virtual ou tangível com a consciência da morte.

 

Ao lado infantil e ingénuo da nossa espécie, sempre pronta a experimentar, ao bom selvagem de Rousseau, justapõe-se, de modo só aparentemente contraditório, a extrema violência do homem lobo do homem, de Hobbes. A desorientação própria da espécie gera, nas pessoas e nas sociedades, uma instabilidade que se transmite ao meio ambiente. Como um boomerang, retorna à base. O bom selvagem e o lobo do homem são duas faces da mesma moeda.

 

Colectivamente, temos a noção de que a violência pode surgir de um momento para o outro, sem aviso nem pretexto conhecido. Sempre vivemos em sociedades de risco. Sabemos que quando a violência se torna uma epidemia, nunca se sabe quem vai sobreviver, no final. Mas o quotidiano está cheio de violências habituais, escondidas. Todos os políticos sabem que a protecção pela força das sociedades – uma das principais funções dos estados – é a sua primeira prioridade. O que legitima quase tudo o resto, a começar pela protecção especial dos mais poderosos e a obrigação geral (menos os protegidos do poder) de colaborar com a cobrança de impostos. Instintivamente, cada pessoa esforça-se quanto pode para escapar às situações violentas (Collins, 2008:4-5), incluindo as forças de estruturação social e as ameaças dos privilegiados de usar as forças de defesa do estado contra os cidadãos. Desorientadas, as pessoas e as sociedades, submetem-se em troca de alguma orientação fixada pelos mais poderosos. Como na síndrome de Estocolmo. Deixam que as orientem. Poupam esse trabalho a si próprias, que não saberiam fazer de outro modo, no imediato (Dores, 2012b).

 

Para compreender melhor como nem a democracia foi capaz de abolir as hierarquias, há que estudar a natureza humana. Por exemplo, como foi possível numa época singular em que as crianças beneficiam de direitos jamais anteriormente reconhecidos, os maus tratos a crianças serem tão praticados na privacidade familiar e institucional (AAVV, 2013; Almeida, André, & Almeida, 1999)? Os métodos dominantes em ciências sociais são manifestamente insuficientes para dar conta do que se passa. Não apenas insuficientes: ilusórios. Susceptíveis de serem utilizadas para reforçar os efeitos de dissimulação próprios da violência, negando-a por falta de evidências institucional e socialmente reconhecidas.

 

Por exemplo: a partir de 2004 tornou-se moda o estudo da radicalização ideológica como causa de terrorismo. Numa avaliação do estado desse campo de estudos, Daniel Pinéu e Christien Leuprecht concordaram em que a procura de causas do terrorismo na vida intelectual dos operacionais é uma limitação à compreensão do terrorismo (mesa redonda Radicalization Leading to Violent Extremism, dia 2015-05-26 no ISCTE-IUL, organizada por CIES-ISCTE-IUL). No caso do terrorismo, segundo os palestrantes, o pensamento radicalizado não explica a disponibilidade para a acção (a esmagadora maioria das pessoas radicalizadas não pratica nem planeia terrorismo, mesmo que não partilhe do sentimento de repugnância perante certos actos de terrorismo; do mesmo modo que casos de extrema violência contra inimigos dos estados ocidentais, como Sadam Hussein ou Bin Landen, são acolhidos no ocidente com júbilo). Imaginar que a radicalização ideológica implica o terrorismo obscurece as possibilidades de investigação científica das causas do fenómeno. Daniel Pinéu citou o alheamento dos financiamentos dos estudos sobre o terrorismo de estado, incluindo nos estados ocidentais, em particular a instigação, treino e pagamento a milícias não regulares para atacar estados considerados inimigos, mas a quem não se declara guerra. Ignorar a declaração de guerra global e informal do ocidente a pessoas ou grupos radicalizados, na ressaca da Guerra Fria, parece particularmente anacrónico para quem queira estudar a violência terrorista: é como se ao estudar uma guerra a violência apenas merecesse registo quando vem de um dos lados da contenda. E fosse, inclusivamente, independente da intensidade, duração, persistência, capacidade institucional.

 

Pinéu afirmou que a qualidade dos dados para informar os assuntos em causa (realidade igualmente enfatizada por Leuprecht na sua palestra) e mesmo erros metodológicos básicos, não eram o principal critério de avaliação dos financiadores. O principal critério é a conformidade ideológica do argumento com os desejos de confirmação dos financiadores. Isto é, as ciências sociais não se têm oposto a estas práticas de propaganda.

 

Loïc Wacquant (2000:4-17) denunciou o efeito dos think thanks e das suas avaliações em função dos interesses dos financiadores. No campo do policiamento, refere, a políticas de tolerância zero foram legitimadas cientificamente, sem distinção da propaganda empresarial e política associada.

 

Fecho

 

O pensamento moderno, em particular o estabelecido por Descartes, inviabiliza radicalmente as relações íntimas entre a natureza e os seres humanos – separa sistematicamente os elementos e os sistemas, por exemplo as células e os seres humanos por elas constituídos (Damásio, 1994); como separa os indivíduos e as sociedades (Elias, 1998:9).

 

Dificulta também o convívio entre diferentes tipos de gente. A legitimação das separações observadas foi procurada na biologia, na sociologia, na teoria evolucionista pensada como hierarquia. Apesar das críticas, a legitimação científica das discriminações continua a ser mantida, apoiada nas discriminações de senso comum. Politicamente é incorrecto, e pasto das políticas racistas (sexistas, classistas), legitimar a discriminação. Fazê-lo seria reconhecer a intencionalidade social, as fobias latentes que precisam de ser tratadas. Porém, não deixam de ser regularmente utilizadas para dividir e reinar, apesar de sistematicamente negado o racismo institucional, por exemplo no caso dos imigrantes (Palidda e Garcia (org.), 2010; Palidda (ed.), 2011).

 

Escamotear intenções e sentimentos políticos e sociais legitimadores da violência institucional é uma das características da condição moderna (Hirschman, 1997). Vale a pena recordar como a produção dessa separação, a nomeação de contra quem a violência pode e deve ser exercida, é ancestral (Agamben, 1998; Girard, 1978). Esta produção foi modernizada a partir dos Descobrimentos, de que resultou na naturalização da inferioridade atávica dos povos colonizados, hierarquizados entre si consoante a presumível docilidade. O mesmo critério, por semelhança, é usado para justificar a violência contra os pobres das sociedades colonizadoras.

 

O pedinte em Bruxelas é, na verdade, tão invisível ao público moderno como qualquer ser humano colonizado e inferior. Tem um grau de transparência próprio da vida nua (Agamben, 1998). Jamais poderia ser pensado como um manifestante anti-consumista ou anti-trioka. Apesar de, teoricamente, a igualdade se manter como valor distintivo da modernidade. O mesmo raciocínio se pode fazer sobre a dificuldade, perto da impossibilidade, da expressão dos magrebinos mal tratados em França ou dos afro-americanos, apesar do sucesso das campanhas pelos direitos civis meio século atrás e da eleição de um presidente negro nos EUA. Foi preciso o Estado grego ter sido pressionado pela chantagem da dívida, para alguns nos fazerem recordar como o resgate de guerra nazi a favor da Grécia acabou letra morta após a segunda grande guerra. Como contribuição à Alemanha para recuperar a dignidade perdida com a derrota militar? Ou por incapacidade de cobrança face à desproporção de forças entre dois países dizimados pela mesma guerra?

 

Os sinais recentes de discriminação política contra os sem-abrigo, em países europeus, são, para já, excepções que valorizam a regra. Mas a questão que aqui se levanta é esta: porque razão a modernidade admite a existência de sem-abrigos ou pobres entre os seus cidadãos? Ou melhor, como funcionam as sociedades de modo a tornar invisível a miséria e a repressão que sobre as pessoas atingidas recai? E, para a teoria social, a abolição das condições que permitem a nossa indiferença discriminatória contra os pobres não deveria ser um objectivo a perspectivar, ao menos em nome do rigor científico? Em vez da mera constatação da persistência das desigualdades, não caberia à teoria social descobrir aquilo que a repugnância moral contra as discriminações encobre: as discriminações, elas próprias?

 

A definição de violência como um fenómeno de comunicação de características físicas, entre um agressor-emissor e uma vítima-receptora, embebidos num meio social qualquer a determinar, cumpre o desiderato de ser apolítica e independente, como o ideal do jornalismo. Separa a violência directa (popular, quotidiana e factual) da violência simbólica (de referência, elitista e dissimulada), na prática indissociáveis. Essa distinção tem efeitos discriminatórios: a constatação de facto, mas reducionista, de a violência ser observada sobretudo na vida dos mais fracos leva a teoria social a concluir que são as vítimas as causas da violência, num raciocínio reificador errado. Conceber a violência como um efeito mostra bem o problema: as acções tornam-se perversamente violentas quando atingem seres que não lhe podem opor resiliência. Quando há capacidade de resiliência, a violência pode ser educativa, formativa, desportiva, positiva. Isto é: a maldade da violência que infecta a vida dos desvalidos não é só má por causa da violência.  É má porque essa gente vive em estados de fraca resiliência, ao contrário de pessoas de outros grupos sociais.

 

A definição de violência como “redução ao corpo” reclama conhecimentos sobre como a natureza e as culturas humanas são parte de um mesmo todo: a espécie humana em evolução, no quadro de uma evolução da vida na Terra e da Terra no Universo. Como uma minhoca, a existência humana expande-se em convulsões sucessivamente contracteis e de estiramento. A nível individual e a nível social. A nível físico e a nível cultural. A violência será um fenómeno próprio das fases contráteis da experiência humana. Tão inevitável como a dor e, como ela, cumpre funções por vezes sobretudo positivas e, outras vezes, negativas. Muitas vezes resultam em efeitos ambíguos ou de desfecho protelado no tempo. Tempo, dor e violência, como linguagem e dinheiro, podem ser concebidos como formas de relacionamento entre a natureza, os indivíduos e as sociedades construídas pela espécie para sua própria orientação.

 

Qual deverá ser o papel das ciências sociais: simples monitorização da violência estigmatizada (na sua vertente negativa) ou participação na construção da violência como instrumento de orientação social (por vezes positiva e outras vezes negativa)?

 

 

 

 

 

(*) António Pedro Dores (n. 1956) é licenciado e doutorado em Sociologia no Instituto Superior de Ciência do Trabalho e da Empresa (ISCTE) em Lisboa. Desempenha funções docentes no Departamento de Sociologia desta instituição desde 1996, sendo ainda investigador no seu Centro de Investigação e Estudos de Sociologia. Estudou ainda engenharia e informática. Foi campeão nacional em rugby 1980/81. Trabalhou no Instituto Nacional de Estatística entre 1991 e 1997. Entre os anos 1997 e 2002 acumulou funções docentes na Universidade Lusófona. Como investigador tem-se dedicado principalmente a dois temas: sociedade da informação e sociologia das prisões. Foi membro da direção da Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento (ACED) e da “Plataforma Não ao Abuso Sexual de Crianças”. Actualmente é presidente das Mesas de Assembleia Geral da Transparência e Integridade - TIAC e da Opus Gay, presidente do Conselho Fiscal da Animar, associação de desenvolvimento local, e colaborador do Observatório Europeu das Prisões e do Observatório das Condições de Vida.

 

 

 

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