Sobressalto na Europa

 

 

Ângelo Novo (*)

 

 

 

Depois de sensivelmente duas décadas em que o “socialismo do século XXI” parecia manter-se teimosamente circunscrito a alguns países da América Latina, começam a reunir-se sinais de que podemos estar próximos de assistir, este ano, à sua irrupção na cintura meridional da Europa. O primeiro sinal foi, como é óbvio, a vitória do partido conhecido pelo acrónimo Syriza, nas eleições gregas de 25 de janeiro.

 

Synaspismós Rizospastikís Aristerás (Coligação da Esquerda Radical) formou-se em 2004, a partir de uma convergência formada à volta do processo internacional do Fórum Social. As organizações aderentes incluíam eurocomunistas, trotskistas, maoistas, socialistas de esquerda, ecologistas, feministas, anticapitalistas, cidadanistas, nacional-populistas, social-democratas. Durante quase uma década, os resultados eleitorais do Syriza oscilaram entre os 3 e os 5%, nada acrescentando de substancial aos que o seu maior componente, o partido Synaspismos, obtinha habitualmente desde 1991.

 

O jovem Alexis Tsipras foi eleito vereador na Câmara Municipal de Atenas em 2006. Dois anos depois ascendeu à liderança do Synaspismos (e, por inerência, do Syriza), abandonada no seu 5º congresso por Alekos Alavanos, um veterano das lutas estudantis contra a ditadura dos coronéis (1967-74). O Syriza e o Partido Comunista Grego (Kommounistikó Kómma Elládas - KKE) pareciam destinados a replicar as velhas disputas do comunismo grego, dividido desde os anos 1960 entre uma ala estalinista e outra liberal. Esta última passando por sucessivas amálgamas, fusões e recomposições, a primeira sofrendo sucessivas dissidências, purgas e depurações. Em certo sentido é isso ainda o que se passa, mas esta rivalidade acerada deixou agora de se jogar num espaço confinado de marginalidade política.

 

Porque, entretanto, sobreveio o pesadelo. A crise norte-americana do subprime de 2007-2008 replica-se de forma diferida na crise das dívidas soberanas da periferia europeia. É o tempo dos PIIGS, sintoma das tensões polarizadoras acentuadas pela camisa de forças da moeda comum (1). Por fim, há ainda razões específicas à formação social grega e à estrutura do seu Estado clientelar oligárquico por detrás da sua particular fragilidade. Em abril de 2010, revelou-se que a Grécia tinha sofrido três recessões técnicas sucessivas entre o terceiro trimestre de 2007 e o final de 2009. Os números da dívida e do défice também tinham sido maquilhados por técnicas estatísticas criativas (saídas, sem dúvida, do livro de arte da Goldman Sachs), o que levou as agências de rating a baixar imediatamente a cotação da dívida pública grega para “lixo”. Os mercados de capitais dispararam para níveis de juros insustentáveis. A 2 de maio de 2010 chegou o primeiro “resgate” da troika (FMI, Banco Central Europeu, Comissão Europeia).

 

A Grécia sofreu já dois “resgates” da troika, sete pacotes de austeridade+“reformas”, de fevereiro de 2010 a julho de 2013, vinte e quatro trimestres consecutivos de crescimento negativo, totalizando uma perda de produto de cerca de 26%. Os efeitos sociais são absolutamente catastróficos, inauditos em tempo de paz. A taxa de desemprego está nos 27,5%; entre os jovens baixou apenas marginalmente do seu pico de 65%, devido a uma ligeira retoma no setor turístico. 3,9 milhões de pessoas, mais de um terço da população, vive abaixo do limiar da pobreza conforme definido pelo Eurostat. O rendimento nacional per capita baixou de 25.474 US dólares em 2008 para 20.744 US dólares em 2013. Os salários foram cortados em 27,4% em média, de uma forma regressiva, sendo ainda mais severos os cortes na metade inferior da tabela. As despesas com a educação e com a saúde baixaram em 25%. Três milhões de pessoas, um quarto da população, não tem qualquer direito a assistência médica. Enquanto tudo isto se passava, a dívida pública grega – apesar de um cancelamento parcial em março de 2012, aquando do segundo “resgate” - aumentou em termos absolutos de 263,28 biliões de euros em 2008 para 316,97 biliões de euros em 2014, passando de 105,4% para 174,9% do PIB. Foi este o ganho quanto à sua sustentabilidade.

 

Verdade seja dita que os gregos nunca quiseram entrar mansamente nesta boa noite. E o seu inconformismo começou a mostrar-se ainda antes das imposições da troika. Em dezembro de 2008 houve uma extraordinária onda nacional de revolta provocada pelo assassínio pela polícia de um jovem estudante de 15 anos em Exarcheia, bairro da boémia inconformista de Atenas. Na altura estava ainda no poder o corruptíssimo governo direitista de Kostas Karamanlis. As queixas da juventude eram, já então, para além da violência policial, o desemprego, a degradação do ensino, a precariedade, o “resgate” dos bancos, a selvajaria neoliberal. Esta verdadeira insurreição civil durou várias semanas e criou um clima de completa deslegitimação do conjunto da classe política grega. As eleições foram antecipadas para o ano seguinte dando a vitória ao Movimento Socialista Pan-Helénico (PASOK), dirigido por Georgios Papandreou. No leme de governo, ao sobrinho de Konstantinos Karamanlis, fundador do partido Nova Democracia, sucedeu o filho de Andréas Papandreou, fundador do PASOK. A oligarquia política grega não é muito extensa nem muito diversificada. É nesta transição governativa que deflagra a crise da dívida soberana, provocando a chegada da troika com o seu primeiro memorando.

 

A frente de recusa da austeridade na Grécia abarcou diversos componentes, bastante díspares, interagindo por vezes de forma conflitual. No final, a sua complexa dinâmica cooperativa revelou-se profícua na emergência de um sujeito político novo.

 

A parte mais frágil desta frente esteve, porventura, no lado sindical. O nível de sindicalização dos trabalhadores gregos é bastante fraco. A GSEE (setor privado) e a ADEDY (função pública) são centrais sindicais de ideologia contratual, não-classista. A terceira central é a Panergatiko Agonistiko Metopo – PAME (Frente Militante de Todos os Trabalhadores), afeta ao KKE. Dezenas de greves gerais foram convocadas em quatro anos na Grécia por estas três centrais sindicais. Este instrumento de luta foi banalizado, enfraquecendo e desmobilizando progressivamente os trabalhadores. A articulação com o movimento social contestatário foi deficiente ou inexistente, por vícios de burocratismo ou sectarismo. As próprias manifestações de rua dos trabalhadores grevistas foram conduzidas àparte, com a PAME, a exemplo do próprio KKE, fazendo questão de se apresentar sempre orgulhosamente só.

 

O movimento social caraterizou-se pela sua extensa mobilização e criatividade. Houve movimentos de desobediência civil como o “Não pago”, movimentos de voluntariado para distribuição de refeições, cuidados médicos e alojamentos gratuitos, movimentos de ocupação (ministérios, fábricas, escolas, universidades, órgãos de comunicação social, câmaras municipais, estradas), movimentos de democracia directa através de assembleias populares, movimentos de oposição a despejos, de reconexão de energia elétrica cortada, etc.. Foram sendo erigidas estruturas de ajuda mútua e de poder emergente ao nível de vizinhança que, para além de terem um profundo significado revolucionário preparam o povo grego para resisitir melhor a uma situação demorada de cerco e intimidação.

 

Uma palavra especial deve ser dedicada ao movimento dos indignados gregos ou Aganaktismeni, que teve a sua máxima expressão na ocupação e acampamanto em diversos espaços públicos, nomeadamente a Praça Syntagma (Atenas) e a Praça da Torre Branca (Thessalónica). A Praça Syntagma, situada defronte ao Parlamento grego é um local simbólico, berço do constitucionalismo helénico em 1834. Foi aí que se desenrolaram as mais significativas manifestações anti-austeritárias, em especial a quasi-insurreição de 29 de junho de 2011, no final de uma greve geral de 48 horas, enquanto o parlamento votava mais um pacote de austeridade imposto pela troika. Esta praça é, na verdade, presentemente constituída por duas praças distintas, uma a um nível superior e outra a um nível inferior, ligadas por uma grande escadaria. No decurso da sua ocupação, no verão de 2011, formaram-se dois grupos distintos de ocupantes. Na praça baixa estavam os manifestantes de esquerda, nomeadamente do Syriza e do Antarsya, um movimento eco-socialista de caráter revolucionário. Na praça alta campeavam os manifestantes da pequena burguesia agredida pelas “reformas” e massas populares não-politizadas. Na praça baixa, as bandeiras vermelhas, o clamor contra as injustiças sociais e o neoliberalismo. Na praça alta, as bandeiras gregas, o brado contra os traidores e os vende-pátrias. As extrema-direita fascista tentou infiltrar-se também na praça alta mas acabou por ser rechaçada (2).

 

No final, as duas praças entenderam-se muito bem, firmaram contactos e entendimentos. O movimento de protesto social foi-se esvaindo lentamente, por cansaço e desilusão, ao longo dos anos de 2013 e 2014. A agressão social e a humilhação pátria, essas, continuaram sem quaisquer relaxamento. A aliança nacional-popular de resistência firmada na Praça Syntagma ganhou raízes silenciosamente na consciência das massas. Criou-se um sujeito político novo que acabou por desembocar naturalmente, com uma firme tranquilidade, na vitória eleitoral de 25 de janeiro de 2015. Como na tragédia de Sófocles, a população de Tebas, assolada por uma peste inclemente, fez um apelo pungente ao honrado e talentoso Édipo: - Salva-nos, salva-nos da peste! Assim a esquerda radical acedeu ao poder, para espanto e horror de todas as capitais europeias. Fazendo um apelo aos seus “melhores”, o Syriza convocou para tarefas governativas ou de direção política uma certa inteletualidade marxista, por vezes de origem social privilegiada, de visão cosmopolita, com bastantes carreiras académicas internacionais de prestígio.

 

 

 

A chegada do Syriza ao poder foi cinicamente recebida em Bruxelas com abraços, passeios de mão dada com Tsipras e uma cilada terrível. O pagamento da última tranche de 7,2 mil milhões de euros do segundo “resgate” (aí se incluindo 1,9 mil milhões de euros de lucros obtidos com títulos da dívida grega, cuja devolução é devida ao seu povo) havia já sido suspenso, antes das eleições de janeiro. Imediatamente após estas eleições (4.2.2015), numa votação apertada (tamanha era a violência e o despropósito da medida), o conselho de governadores do Banco Central Europeu (BCE) decidiu que não era possível prever a conclusão bem sucedida do programa em curso de assistência à Grécia. Em consequência, cortou o acesso dos bancos gregos ao crédito bancário europeu, deixando de aceitar para o efeito, como garantia, títulos da dívida pública grega. Tudo foi preparado para provocar a fuga maciça de capitais, uma corrida aos bancos e o colapso financeiro súbito do país. Foi sob esta ameaça cada vez mais negra e mais próxima que, após algumas escaramuças, a Grécia foi forçada a assinar com o Eurogrupo o infeliz acordo de 20 de fevereiro para um financiamento a quatro meses (3).

 

Este acordo foi efetivamente uma retirada, mas a luta prossegue, tenaz, corpo a corpo, embora em condições muito difíceis. A Grécia está completamente isolada, não só no Eurogrupo, como em todo o conjunto da União Europeia. A ortodoxia neoliberal e a hegemonia do capital financeiro continuam a imperar entre as classes dirigentes e os governos de serviço no velho continente, de norte a sul, de leste a oeste. Esta consideração sobrepõe-se completamente a quaisquer veleidades de sacudir o jugo do mercantilismo alemão, que poderíamos esperar encontrar da parte da burguesia inglesa, francesa ou italiana, estas duas últimas servidas de turno por governos de “esquerda”. É verdade que há rivalidades entre as potências europeias, mas elas continuam e permanecerão em surdina. Não vão deflagrar por uma causa tão mesquinha, do seu ponto de vista, como as agruras e a miséria do povo grego. Antes de tudo, há que garantir que as “dívidas” sejam sempre pagas pontualmente. Senão, todo o sistema bancário, já extraordinariamente “stressado”, poderá entrar em zonas de risco de colapso.

 

Naturalmente que o sistema da moeda comum terá que ser revisto ou compensado por mecanismo redistributivos. Neste momento ele funciona como um colete de forças que acelera enormemente as tendências polarizadoras já pré-existentes entre nações excedentárias e deficitárias. Que isto tem de ser corrigido, a burguesia europeia (inclusive a alemã) já o compreendeu. Mas neste momento ela está completamente tomada pelo pânico bancário. Fixa o abismo com uma espécie de paralisia hipnótica. Não é só a “falta de estatura” dos atuais dirigentes europeus, como alguns comentadores presumidos por vezes gostam de perorar.

 

Como ficou abundantemente claro nas negociações de fevereiro no seio do Eurogrupo, existe uma primeira frente de recusa das posições do Syriza, constituída pela burguesia dos próprios países da periferia devedora, em particular Espanha e Portugal (4). Com efeito, são as burguesias rentistas destes países as que estão mais diretamente ameaçadas pela revolta das suas classes populares contra o garrote austeritário e anti-nacional. Consequentemente, são elas as mais preocupadas e as mais ansiosas neste momento. Para elas, o Syriza (a “demagogia populista”, na sua curiosa expressão) é um pesadelo que tem que ser esconjurado e cauterizado o mais rapidamente possível.

 

Mas o efeito de exemplo representado por uma experiência política do Syriza que possa ser publicamente percebida como bem sucedida preocupa também, e muito, as classes dirigentes dos países centrais no capitalismo europeu. E as dos países menos centrais também. Para a burguesia, isso seria o mundo virado do avesso. Os devedores deixariam de respeitar os credores, logo mais os trabalhadores deixariam de temer o desemprego, os desempregados deixavam de recear o suicídio e a prisão, os imigrantes não mais fugiriam à polícia e ao repatriamento. A democracia apunhalava assim traiçoeiramente os próprios fundamentos do são e malthusiano funcionamento do mercado. Que isso não pode ser permitido é uma opinião unânime em todas as capitais europeias, de Dublin a Riga, de Roma a Estocolmo, de Varsóvia a Amsterdão, de Berlim a La Valleta.

 

O governo grego vai estar completamente sozinho nesta sua difícil batalha. Contudo, se conduzir a luta com ousadia, prudência, tenacidade, astúcia, conhecimento alargado dos assuntos e esclarecimento tático-estratégico, mantendo sempre atrás de si um apoio sólido do povo helénico, terá condições para se manter em campo durante muito tempo e de obter alguns sucessos palpáveis. Para já teve ganhos de causa sobretudo simbólicos, que alguns gostam de ridicularizar (5). Mas a primeira condição para se prosseguir uma luta é precisamante a preservação da auto-estima dos contendores. De seguida, há que evitar a todo o custo o colapso financeiro. Esta é agora, claramente, a aposta do diretório europeu. Hipocritamente, não querem assumir a tomada de uma decisão política de exclusão da Grécia da Zona Euro – o Grexit. Mas tudo farão (como têm feito até agora) para que sobrevenha um Grexident (6), ou seja, uma saída catastrófica e desordenada, ditada pelas próprias circunstâncias, nomeadamente o colapso bancário, necessidade de um controlo severo do movimento de capitais ou o esgotamento da liquidez do Estado.

 

A capacidade de pressão da Grécia, enquanto devedor, está muitíssimo diminuída em relação àquela que já teve, em 2010 (7). Nessa altura, a dívida pública grega era detida na sua grande maioria pela banca privada, sobretudo alemã, francesa e holandesa, que não poderia então ter absorvido o choque de um default sem apelo nem agravo. Foi essa banca que foi resgatada com os programas de “assistência” da troika, que serviram como uma gigantesca ponte aérea (ou subterrânea) de transferência encoberta de créditos duvidosos de mãos privadas para mãos públicas. Neste momento a dívida pública grega já é detida, no seu grosso, pelas “instituições” (FMI, BCE, Comissão Europeia). Em caso de incumprimento grego (melhor, quando ele ocorrer), estas terão apenas de transferir calmamente a conta para o contribuinte europeu. É a isto, essencialmente, que Merkel e c.ia se referem quando dizem que a Europa está hoje “melhor preparada” para lidar com um Grexit.

 

Lutar contra a conspiração internacional do Grexident vai ser uma tarefa muito difícil, para a qual será indispensável uma grande unidade nacional, incluindo a colaboração de uma parte muito substancial da burguesia grega. Vai ter que ser dada satisfação aos credores sem novas agressões ao povo grego e sem ser demasiado agreste para com a oligarquia no seu conjunto. Uma constante navegação entre Cila e Caríbdis, para retomarmos os temas mitológicos. O Estado grego tem liquidez assegurada apenas até meados ou finais de abril. Tem agendados proximamente pagamentos muito substanciais aos seus credores, desde logo 1.500 milhões de euros ao FMI. Em abril será avaliado pelas “instituições” para manter o financiamento já acordado. Em junho será preciso chegar a um acordo de financiamento de longo prazo com a União Europeia.

 

Só depois de superar tudo isto o Estado grego estará em condições de, sempre em luta, levantar finalmente a cabeça para tomar as suas próprias opções de uma forma ordenada, livre e democrática. A primeira opção, será o atual compromisso eleitoral de manter a Grécia no euro, o que a nosso ver só faria sentido, para um projeto político nacional-popular, numa paisagem europeia que teria de ser radicalmente diferente da atual. A segunda opção seria negociar seriamente uma saída do euro, por iniciativa nacional soberana, acordando simultaneamente nesse processo uma reestruturação da dívida. Uma variante mais radical desta última opção seria a cessação unilateral de pagamentos, com repúdio de uma parte da dívida e reestruturação da restante. A Grécia não está impedida de tomar este tipo de medidas mantendo-se na União Europeia, pois que esta última não dispõe de mecanismos jurídicos para proceder à sua expulsão. Mesmo que repudie a sua dívida em bloco, nacionalize a banca e decrete a socialização da economia, a Grécia pode manter-se na União Europeia, o que, nos termos dos tratados, implica um direito de veto e de bloqueio sobre muitas matérias.

 

Esta perspetiva não deixa de incomodar o diretório europeu, que receia igualmente a turbulência nos mercados causada pela saída de um membro do clube euro. O “espírito animal” de que falava Keynes pode bem causar aqui um efeito dominó de consequências imprevisíveis. Outro importante factor aliado da rebeldia grega pode ser ainda a cumplicidade do imperialismo norte-americano. Se a situação de crise grega se arrastar durante muito tempo, com impasse negocial, drama social, incerteza nos mercados mundiais, a administração Obama poderá, a qualquer altura, assinalar que se sente forçada a intervir. Fá-lo-á, aliás, com muito gosto, porque isso lhe permitirá reafirmar a sua hegemonia e indispensabilidade, como dirigente e protetor de todo o campo ocidental (8). Ora, a posição norte-americana não pode ser outra senão impôr a manutenção da Grécia na Zona Euro, na UE (e na NATO, é claro) a todo o custo. Nada poderia fazer menos sentido, do seu ponto de vista, do que ver a Grécia e o Chipre saírem da esfera europeia, aproximarem-se da Rússia e/ou tornarem-se “terra de ninguém” no complexo teatro geo-político do Médio Oriente. Há uma base naval e um posto avançado de mísseis estratégicos da NATO e na ilha grega de Creta (baía de Suda).

 

Com as limitadas armas de que dispõe, o novo poder grego já sinalizou claramente que está disposto a lutar. Montou as suas linhas de defesa e prepara-se para aguentar firme. Em primeiro lugar, perante a sabotagem, a intimidação e a retenção dos fundos, já fez saber que não tem medo de ir para o default. Se for colocado perante a alternativa entre pagar salários e pensões ou satisfazer a próxima prestação ao FMI, a sua opção será a primeira (9). O que significará nacionalizar a banca, impor restrições aos movimentos de capitais e reintroduzir o dracma em circulação paralela. Em segundo lugar, o parlamento grego presidido por Zoe Konstantopoulou empossou uma Comissão de Auditoria da Dívida Pública Grega, que deverá determinar, até junho próximo, que parte desta dívida pode ser considerada ilegítima, dando assim base legal para que o governo a possa repudiar (10). Sob particular escrtínio vai estar a parte da dívida contraída pela ditadura dos coronéis, os sobrecustos com os Jogos Olímpicos de 2004, a compra de seis submarinos alemães defeituosos, todos os contratos com a Siemens, comprovadamente obtidos com suborno de oficiais públicos e a maquilhagem das contas públicas gregas feita pela Goldman Sachs. A terceira trincheira de luta não está diretamente relacionada com a dívida pública grega e deve ser objeto de uma discussão absolutamente em separado. Trata-se da questão das dívidas e indemnizações por crimes de guerra relacionados com a ocupação nazi-fascista de 1941-44. Este problema tem diversos capítulos, incluindo um que é diretamente financeiro, já que uma parte das requisições do ocupante germânico foi formalizada como empréstimos forçados, a pagar pela Alemanha no final da guerra, o que nunca aconteceu. Existe um extenso relatório ministerial já encomendado por anteriores governos gregos e uma comissão parlamentar presentemente a tratar deste assunto.

 

 

 

A manutenção em campo do governo do Syriza, em condições de lutar pelo cumprimento do seu programa eleitoral, é muito importante para as classes trabalhadoras europeias. Desde logo para suster a agressão de que têm sido incessantemente vítimas até aqui. Em seguida, poderá abrir uma possibilidade rara, única em décadas, de reintroduzir a luta de classes a partir de baixo na política europeia.

 

A primeira hipótese de alastramento da mancha de rebeldia aberta pela vitória do Syriza é, naturalmente, a Espanha. Desde 2014 existe aí um novo ator político de primeiro plano: o partido Podemos, herdeiro do movimento dos Indignados que tomou a Puerta del Sol, em Madrid, a partir de 15 de maio de 2011 e muitas outras ruas e praças espanholas, nesse ano e no seguinte.

 

O Podemos nasceu por iniciativa de um grupo de jovens académicos da Universidade Complutense de Madrid, conhecidos publicamente pela condução ou participação em programas de tertúlia política na televisão, alguns deles com experiência de conselheiros ou colaboradores de governos bolivarianos da América do Sul (Venezuela, Bolívia, Equador). Estas caraterísticas são comuns a cinco das figuras mais emblemáticas do partido: Pablo Iglésias Turrión, Juan Carlos Monedero, Carolina Bescansa, Luis Alegre Zahonero e Iñigo Errejón. A sua formação política de base é marxista, gramsciana mas também tributária do “pós-marxismo” populista e do democratismo radical de Ernesto Laclau. Desde o manifesto inaugural do partido (11), lançado em janeiro de 2014, o partido cresceu exponencialmente em muito pouco tempo. Hoje agrega praticamente todos os setores de esquerda radical que não se revêm na Izquierda Unida. As propostas económicas do partido têm o selo de autoria do veterano catalão Vicenç Navarro e de Juan Torres Lopez (12).

 

Nas suas eleições de estreia, as europeias de maio de 2014, o Podemos obteve 7,98% dos votos e elegeu cinco deputados, tornando-se a quarta força política nacional. Algum tempo depois, as sondagens começaram a atribuir-lhe o primeiro lugar em intenção de votos em eleições legislativas. A classe dirigente espanhola – nomeadamente o setor bancário - foi tomada de um verdadeiro pânico. E esse frémito de horror transmitiu-se rapidamente por toda a Europa. Depois da vitória do Syriza na Grécia, não restam dúvidas de que a burguesia europeia vai traçar o seu próprio “No passarán” em Madrid, empenhando nessa batalha todas as suas forças (13).

 

Certo é que o Podemos continua ainda muito mal estruturado e implantado, a nível local e regional. Os seus dirigentes e as suas propostas são mal conhecidos, para lá do fenómeno de adesão mediática à figura do secretário-geral Pablo Iglesias (14). Por outro lado, a paisagem política espanhola mantém-se muito fluida, com o aparecimento de novos fenómenos de popularidade instantânea, como o Ciudadanos, de centro direita, também ele pessoalizado em torno do jovem e atraente Albert Rivera. Para já, o que existe por certo é uma grande rejeição dos partidos tradicionais do poder (PP e PSOE), por cansaço e repugnância. Não é seguro que isso se vá expressar numa viragem radical à esquerda. A situação social espanhola, sendo grave, sobretudo para a juventude, não atingiu ainda o dramatismo da grega. Nas eleições regionais andaluzas, de 22 de março de 2015, o Podemos teve 14,8% dos votos, continuando assim a registar progressão. Todavia, este resultado foi agora considerado dececionante, não correspondendo ao que se esperaria de um verdadeiro candidato ao poder. O teste definitivo, no caminho para as legislativas do final do ano, serão agora as eleições municipais e autonómicas de 24 de maio próximo.

 

Na Irlanda, as eleições legislativas realizar-se-ão obrigatoriamente até 3 de abril de 2016, mas provavelmente ainda em 2015. Não está excluída a hipótese de uma vitória do Sinn Féin de Gerry Adams, um partido eurocético do socialismo democrático, crítico da austeridade. As eleições portuguesas serão em setembro ou outubro de 2015. Devem resultar numa vitória do Partido Socialista de António Costa, que poderá no entanto ficar dependente de partidos à sua esquerda para formar maioria. É possível que até ao final do ano a Grécia possa já contar com verdadeiros aliados ou, pelo menos, romper o seu atual isolamento absoluto na União Europeia. Não são esperadas proximamente eleições em França ou Itália. Vitórias ou avanços eleitorais decisivos do Front de Gauche e das forças da esquerda italiana coligadas, na última eleição, sob a sigla Rivoluzione Civile seriam um elemento essencial numa alteração da paisagem política europeia em favor do campo popular. Assim se possibilitaria o começo do “despertar dos porcos” (PIIGS) propugnado já há uns anos por Luciano Vasapollo (15): uma convergência entre estas nações periféricas ao sul e oeste da Europa, sacudindo o jugo mercantilista do capitalismo renano.

 

Mesmo que nenhuma destas propostas políticas de esquerda avance para o poder já na próxima oportunidade, devem afirmar-se claramente como alternativas reais, amadurecidas e confiáveis aos olhos dos seus povos. A luta de massas contra a austeridade (que pode englobar a ação direta) e a solidariedade ativa com o povo grego são frentes de batalha muito importantes, a englobar num amplo movimento de afirmação política ascendente com vista ao exercício do poder numa perspetiva de rotura. Este movimento poderá ser articulado a nível internacional, com troca de informações e coordenação de ações.

 

A Europa está numa encruzilhada. O Reino Unido, obviamente, nunca aderirá à moeda comum e poderá mesmo sair da União, arrastando provavelmente consigo alguns países nórdicos e do leste europeu. A política de integração progressiva e incremental (o chamado acquis comunitário) chegou a um beco sem saída, em que o imperialismo alemão passou largamente para lá dos limites permitidos pela sua potência efetiva. Avançar para o federalismo político é impossível sem uma política orçamental de transferência compensatória de rendimentos, mas não existe imaginação nem confiança suficientes para encarar isso. Hic Rodhus, hic salta. Muito em breve se assistirá ao estilhaçamento da Zona Euro e da própria União Europeia em diversas zonas de geometria variável, devido ao acumular de uma tensão irresolvida entre as pulsões centrípetas e centrífugas.

 

A revolta da periferia sul-oeste europeia será um cordão de levantamentos nacional-populares que pode trazer em si o embrião de um renascimento da alternativa socialista. Ela pode ser replicada pontualmente noutros países europeus, mas não há qualquer possibilidade de tomar por dentro o próprio projeto da União Europeia para o transformar numa qualquer Europa “social”, antecâmara de uma futura União dos Estados Socialistas da Europa. Esta não é uma tarefa para a presente época histórica, nem poderia decorrer, sem solução de continuidade, da integração europeia até aqui promovida ativamente pelo capitalismo monopolista. A retoma em mãos pelos povos do seu próprio destino coletivo terá como palco o Estado-Nação, que é onde a soberania popular se pode ainda impôr. Não existe uma soberania popular europeia. Por isso, nós democratas, somos necessariamente eurocéticos. O socialismo é a democracia transportada até às suas últimas consequências, elevada à plena consciência de si própria.

 

 

 

 

 

 

(*) Ângelo Novo (n. 1961) é um pesquisador e ensaísta independente português, editor da revista eletrónica ‘O Comuneiro’. Foi advogado, jornalista, cineclubista e tradutor. Foi ainda redator ou colaborador permanente em diversas revistas culturais, literárias e de intervenção política, designadamente ‘Vértice’, ‘Última Geração’ e ‘Política Operária’. É autor de O estranho caso da morte de Karl Marx, Edições Mortas, Porto, 2000, para além de outras obras publicadas em poesia e ficção. Os seus escritos principais podem ler-se em linha na sua página pessoal na rede.

 

________________

NOTAS:

 

(1) Como Eugénio Rosa demonstrou convincentemente, com números oficiais da Comissão Europeia, a Alemanha deixou já há algum tempo de transferir riqueza para a União Europeia. Desde o ano de 2003, com a consolidação do euro, o movimento inverteu-se, sendo o Produto Nacional Bruto (PNB) alemão sistematicamente maior que o seu Produto Interno Bruto (PIB), diferença que vem mostrando tendência para se acentuar progressivamente. Vide, Eugénio Rosa, ‘A União Europeia e o Euro serviram para enriquecer a Alemanha’ e a sua sequência em ‘O mito de que é a Alemanha que financia a União Europeia’. Em suma, a Alemanha passou a sugar cada vez mais a riqueza produzida alhures. Curiosamente, foi aproximadamente a partir dessa altura que a Alemanha adotou a sua atual postura nacional neo-bismarkiana, afirmativa e impositiva sem peias. Até então, a sua diplomacia pautou-se por um perfil sempre baixo e discreto, orientando-se pelo lema de Schmidt e Kohl de que a afirmação alemã no mundo se faria sempre sob o manto do círculo europeu de estrelinhas em fundo azul.

(2) Cf. Marilena Simiti, Rage and protest: the case of the greek indignant movement.

 

(3) Sobre este acordo, leia-se, neste mesmo número de O Comuneiro, Stathis Kouvelakis, A alternativa na Grécia. A estratégia negocial da liderança do Syriza falhou, mas não é tarde de mais para evitar a derrota completa.

 

(4) O episódio mais obsceno desta conjura foi, naturalmente, a audiência que a ministra portuguesa das Finanças, Maria Luís Albuquerque, solicitou ao seu colega alemão, Herr Wolfgang Schäuble, a 18.2.2015, em Berlim. À saída, a ministra portuguesa foi exibida publicamente por Schäuble, em oportuna photo-op anti-helénica, como exemplo do sucesso das políticas de austeridade. Nessa sequência, o diário germânico Die Welt revelouainda que a ministra pediu, “a título pessoal”, ao seu homólogo alemão, que fosse duro nas negociações com os gregos, não lhes cedendo em nada. O jornal cita “fontes bem informadas”. Roma não pagava a traidores. Berlim também não. Usada, exposta e humilhada, Maria Luís nega tudo. Uma senhora em aflição já não pode confiar em ninguém nestes dias… V. Maria Luís Albuquerque pediu a Schäuble para não ceder, diz jornal alemão, com link para a peça noticiosa original do Die Welt. A burguesia portuguesa torce soezmente para que a corda se aperte mais e mais em torno do pescoço do povo grego, sabendo perfeitamente que é do pescoço do povo português que se está a tratar também.

 

(5) As “instituições” em vez da troika, o facto de ser grega a autoria e iniciativa dos seus próprios programas de reformas, o facto de as conversações e avaliações serem sediadas em Bruxelas, etc..
 

(6) Grexit é um acrónimo anglo-saxónico (Greek Exit) inventado por analistas financeiros do Citigroup em 2012 e muito usado na grande imprensa para significar uma saída imposta da Grécia da Zona Euro. Grexident (Grexit by accident) é uma criação mais recente e sinistra, referindo-se à hipótese de uma saída da Grécia da Zona Euro provocada por uma série de eventos “acidentais”. O facto de se falar muito agora nesta hipótese significa que o enfoque do diretório europeu se deslocou para uma operação velada de empurrão da Grécia para a saída, guardando embora espaço de manobra para atribuir este desenlace à incompetência ou obstinação ideológica das autoridades gregas. São fontes governamentais alemãs, aí incluído o ministro das Finanças Wolfgang Schäuble, quem aparece a admitir esta possibilidade, protestando que a Alemanha tudo fará para a evitar. Ora, isto é um indicador seguro que estão, isso sim, a fazer tudo para que ela se concretize, começando desde já a preparar a opinião pública para essa eventualidade.
 

(7) Foi referindo-se a esse ano de 2010 que Yanis Varoufakis disse, no Festival Subversivo de Zagreb de 2013, certamente tentando ser pedagógico e captar a atenção de uma assistência pouco interessada em complexos argumentos macroeconómicos, que a Grécia devia então, pura e simplesmente, ter cessado pagamentos, sem sair do euro, mostrando o dedo médio à Alemanha e dizendo-lhe que o problema era dela para resolver. Presentemente, é claro, não é essa a atitude a tomar. Por isso, embora não negue as palavras, Varoufakis desmente a autenticidade destas imagens. Como afirmou Pimenta Machado, dirigente desportivo português, em tese de genial alcance epistemológico, “o que hoje é verdade, amanhã pode ser mentira”.

 

(8) A Sub-Secretária de Estado norte-americana para os assuntos euroasiáticos, Victoria Nuland - famosa pela expressão “fuck the EU” captada em conversa telefónica sobre a Ucrânia - já está em campo, tendo visitado Atenas, Roma e Bruxelas entre 16 e 20 de março.

 

(9) V. Tsipras avisa Merkel que Grécia pode não ter condições para pagar dívida.

 

(10) V. Grécia cria comissão de auditoria da dívida coordenada por Eric Toussaint.

 

(11) V. Mover ficha: convertir la indignación en cambio político.

 

(12) V. Un proyecto económico para la gente.

 

(13) Nada menos que o presidente do banco central alemão (Bundesbank) Jens Weidman já considerou oportuno, com um ano de antecipação, começar a advertir didaticamente o eleitor espanhol sobre os perigos de votar Podemos. V. El Bundesbank avisa a Podemos: "Reestructurar la deuda equivale a ser expulsado de los mercados". E continuou a acompanhar o assunto, com toda a sua autoridade democrática, fulminando o programa económico do Podemos assim que ele foi publicado. V. El País: El Bundesbank dice que las propuestas de Podemos amenazan la Economía.

 

(14) Pablo Iglesias tornou-se uma figura muito conhecida e estimada a nível nacional a partir de programas televisivos de entrevista e debate político como La Tuerka e Fort Apache.

 

(15) Luciano Vasapollo, Rita Martufi e Joaquin Arriola, Il risveglio dei maiali, Jaca Book, 2011. A tradução em castelhano foi publicada recentemente, em Espanha e em Cuba. V. Soy un hombre del Sur del mundo. Impõe-se a tradução desta obra para a língua portuguesa.