O complexo de Orfeu

- Elogio do retrovisor


Jean-Claude Michéa (*)

 

Em 1910, um certo Adolphe Vasse – homem público de esquerda hoje esquecido – descrevia do seguinte modo a cartografia do campo político tal como havia sido inteiramente redesenhada após o caso Dreyfus: “As três grandes divisões geográficas da Câmara – Direita, Centro e Esquerda correspondem às três grandes divisões ideológicas, fora das quais não há lugar para nenhuma outra concepção política, económica ou social. Ontem é a Direita; hoje é o Centro; amanhã é a Esquerda. Reaccionários, Conservadores e Democratas, eis os três partidos essenciais, categoriais, poderia dizer-se, que se disputam a soberania” (1).

Esta classificação, um pouco grosseira (mas que seria subscrita, hoje, sem hesitações, pela maior parte dos intelectuais de esquerda), introduzia, de um modo particularmente claro, os novos pressupostos ideológicos sobre os quais repousa ainda o imaginário da esquerda moderna. Por um lado - e era essa evidentemente a transmutação mais importante – o movimento operário socialista (que tinha desempenhado um papel tão relevante na história do século XIX francês, desde as jornadas de Junho de 1848 até à Comuna de Paris) deixava definitivamente de existir como força política independente, portadora de um projecto filosófico específico e agindo fora das clivagens ideológicas tradicionais. Passou a representar apenas uma corrente, entre outras, da grande família das “forças de esquerda” (isto apesar da poderosa oposição dos sindicalistas revolucionários cuja carta de Amiens - adoptada em 1906 – simbolizava precisamente a vontade de se opor a toda a recuperação politiqueira do movimento operário) (A). Por outro lado, ao definir enfaticamente a esquerda como o partido de amanhã, isto é, recentrando-a exclusivamente sobre os valores supostamente “democráticos” do progresso e da modernidade (com exclusão de toda a referência à luta de classes ou ao poder dos trabalhadores) (B), confinava-a numa postura metafísica de uma temível simplicidade. Daí em diante, para poder enfeitar-se com o desejado estatuto de “homem de esquerda” (expressão, que, aliás, só começou a usar-se no começo do século XX) bastava, com efeito, arvorar um desprezo de princípio por tudo aquilo que trousesse a marca infamante de “ontem” (o mundo tenebroso dos territórios, das tradições, dos “preconceitos” do “recolhimento sobre si”, e das ligações “irracionais” a seres e a lugares) e manifestar paralelamente compreensão e simpatia por todas as evoluções da sociedade moderna, sejam políticas, morais ou culturais (2). Numa palavra, a esquerda representa doravante, a chave de acesso primário a este “melhor dos mundos” (“a brave new world”) (3) cujos únicos valores (ou únicos limites) seriam a leis universais da Razão.

É, em primeiro lugar, à luz desta fé ingénua (4) num “sentido da história” (por exemplo, a certeza da desaparição do mundo artesanal ou camponês, ou, noutro registo, do ciúme ou dos desgostos de amor) – e no universalismo abstracto que constitui o seu fundamento habitual (a ideia de que a abolição das fronteiras e o desenraizamento generalizado (C) seriam as condições prévias de um mundo reconciliado consigo mesmo) (D) – que se torna possível compreender a espantosa psicologia do homem da esquerda moderna.

Se “ser de esquerda” significa, antes de tudo o mais, “viver com o seu tempo” (e mesmo, idealmente, em avanço sobre ele – ao modo do artista de vanguarda ou do criador de moda (5) ), as figuras do mal e da desrazão ganham, desde logo, um grande relevo. Todos aqueles que - incapazes ontologicamente de admitir que os tempos mudam – manifestem, em qualquer domínio que seja, alguma ligação (ou alguma nostalgia) por aquilo que existia ontem, exibem, sem querer, um inquietante “conservadorismo” ou inclusivamente, para os mais ímpios, uma natureza irremediavelmente “reaccionária”. Dois pecados capitais que podem, aliás, reunir-se – em caso de necessidade eleitoral – sob o conceito ainda mais negro de “fascismo” (E) e que são suficientes para definir inteiramente a demonologia específica – ou o Malleus Maleficarum – do homem de esquerda. Porque, se existe um mau pensamento que ele deve incondicionalmente evitar – já que dele depende a salvação da sua alma – é o de que sobre este ou aquele aspecto da existência colectiva (quer se trate da segurança de um bairro, do nível dos alunos, da qualidade da alimentação ou das condições de trabalho, da evolução dos programas de entretenimento televisivo ou do respeito pelas regras de civilidade) as coisas passavam-se melhor anteriormente (F).

Este é o ponto central. Poderá acontecer que o futuro radioso venha a revelar-se mais sombrio do que havia sido previsto e que – perante a lição impiedosa dos factos (6) - seja obrigatório reconhecer que há algo de errado nos sonhos milenaristas de um mundo futuro onde “jamais poderia haver algo que se assemelhasse à história antiga” (G). Mas, mesmo nesse caso, a essência da religião do progresso não seria fundamentalmente afectada, como se prova pela existência – à primeira vista contraditória – de ecologistas de esquerda (ecologistas para os quais, tal como para Georges Bush, “o crescimento é a solução e não o problema”). Este paradoxo desvanece-se quando se toma consciência de que o “desejo de futuro” (o anseio por uma ou outra forma do “melhor dos mundos”) nunca foi mais do que o momento secundário (ou até facultativo) da crença no progresso (H). Na verdade, o motor psico-ideológico desta convicção religiosa foi sempre a rejeição e o ódio do passado (quer se trate do passado colectivo ou do passado individual e familiar) e o convencimento de que este, com o seu cortejo de costumes absurdos, preconceitos ridículos e superstições assassinas, representa tudo aquilo de que os indivíduos deveriam arrancar-se se querem finalmente conhecer a paz (civil ou interior), a liberdade (política ou pessoal) e – para os mais exigentes – o reino triunfal da Razão. É por isso que o desenvolvimento, a partir do século XVIII, de um crença consoladora no “sentido da história” não seria compreensível sem o traumatismo original das guerras civis religiosas dos séculos XVI e XVII, traumatismo cuja primeira tradução (para retomar a fórmula teórica que a esquerda tornou familiar) foi uma filosofia do isto nunca mais (I). Efectivamente, só esta terrível experiência permite compreender porque razões o espírito progressista se baseia muito menos num real interesse pelo mundo futuro (ou pelas gerações futuras) do que no desejo de escapar, a qualquer preço, a um passado psicologicamente insuportável e na certeza obsessiva de que hoje será sempre melhor do que ontem (J). Certeza tão profundamente enraizada no inconsciente do homem de esquerda que acabou por constituir uma espécie de forma a priori do seu entendimento, a que não pode renunciar sem renunciar a si mesmo, ou seja (para utilizar as suas próprias distinções conceituais) sem ser confrontado com o terrível sentimento de que pode estar em vias de se tornar um pouco reaccionário, ou, no limite, facho.

 

Neste sentido, o tabu fundador de todo o pensamento de esquerda (muito diferente, mais uma vez, do antigo socialismo operário e popular cuja relação com o mundo pré capitalista – ou mesmo com o universo familiar – era bastante mais dialéctica (7) ) é esta proibição religiosa de olhar para trás ou, a fortiori, de dedicar o menor interesse à busca do tempo perdido ou à experiência histórica das civilizações anteriores. Proibição que, diga-se de passagem, é suficiente para explicar que a inclinação natural dos movimentos de esquerda e de extrema-esquerda – uma vez rompidos os últimos laços com as classes populares e com o seu “conservadorismo temperamental” (Orwell) – não possa deixar de ser a escalada mimética e a fuga para a frente.

 

Muitos leitores recordarão o destino exemplar de Orfeu, o “príncipe dos poetas”. Tendo descido ao reino dos mortos para reencontrar a bela Eurídice – mordida por uma serpente no próprio dia das suas núpcias – conseguiu, graças à magia da sua palavra e dos sons envolventes da sua lira, convencer o próprio Hades a deixá-lo regressar com a sua amada ao mundo dos vivos. Mas o deus dos infernos só aceitou este excepcional arranjo com uma condição. Orfeu não poderia “olhar para trás antes de ter saído dos vales de Averne” (Ovídio, Metamorphoses, livro X). Como é sabido, foi no próprio momento em que franqueava o limite (gesto de esquerda por excelência) que separa o reino das sombras do dos vivos, que Orfeu não resistiu a voltar-se para o objecto do seu amor (sentimento pouco compatível com o distanciamento estóico que implica o culto do progresso e da moda) e perdeu assim – e desta vez, para todo o sempre – aquela que tinha vindo salvar (8).

 

Já que todo o ensaio deve ter um título, escolhi designar sob este nome de ‘Complexo de Orfeu’ o conjunto de atitudes a priori e de mandamentos sacrificiais que define – estão a perfazer-se dois séculos – o imaginário da esquerda progressista (K). À semelhança do pobre Orfeu, o homem de esquerda está condenado a subir o caminho escarpado do “Progresso” (aquele que terá o condão de nos afastar, em cada dia que passa, um pouco mais do mundo infernal da tradição e do enraizamento) sem se autorizar o mínimo repouso (um homem de esquerda nunca pode ser epicurista, sejam quais forem as suas vanglórias sobre o tema) nem o menor olhar à retaguarda (9). Naturalmente, esta estranha mística ascensional – e o fascínio beato por tudo o que é novo que ela implica – representa apenas, no nosso Orfeu moderno, o anverso lógico da espantosa incapacidade filosófica – e muitas vezes também psicológica – de tecer a mais pequena relação positiva com o passado (e, sem dúvida, como pensava Orwell, o medo de envelhecer desempenha um papel decisivo nesta incapacidade). Ora, o sentido do passado não é apenas aquilo que nos confere o poder de meditar sobre as ruínas das civilizações desaparecidas ou de nos lamentarmos sobre a loucura eterna dos homens. É também - e talvez antes de mais nada - aquilo que permite a cada indivíduo ou a cada povo inscrever-se numa continuidade histórica e numa soma de filiações e de fidelidades (herança que terá que ser assumida, em cada vez, de forma singular) e escapar desse modo à ilusão adolescente de um recomeço absoluto e às mitologias paralelas – ao mesmo tempo religiosas e cartesianas – da ilha deserta e do ano 01. Mitologias que são, como é sabido, o fundo do imaginário ocidental e que, de uma forma ou de outra, sempre conduziram os modernos a pensar-se como “mónadas sem portas nem janelas” (Leibnitz), seja sob a forma romântica do Robinson ingénuo e engenhoso, do aventureiro solitário, do artista maldito, do rebelde neo-punk incompreendido, do marginal misantropo e alcoólico ou ainda - nas versões mais empobrecidas deste individualismo radical (pode pensar-se nos romances apologéticos de Ayn Rand) - sob a forma do self-made man, empreendedor decidido a contar apenas consigo mesmo na selva impiedosa do mercado capitalista (L). Que tais figuras, na sua própria diversidade, se tenham tornado hoje mais familiares do que nunca, mostra bem até que ponto trinta anos ininterruptos de domínio cultural pós-miterrandiano (M) quase acabaram por fazer esquecer que, na sua origem, o termo “socialismo” fora forjado por Pierre Leroux, em 1834, justamente para designar a exacta antítese deste individualismo exacerbado cuja fonte filosófica maior ele detectava na “economia política inglesa” (ou seja, na herança de Adam Smith) a qual implicava que “os homens desassociados fossem, não apenas estranhos entre si, mas necessariamente rivais e inimigos” (N).

 

Enquanto as estruturas do Antigo Regime se mantiveram activas ou, pelo menos, enquanto as forças reaccionárias que se propunham restaurá-las constituíram uma ameaça real, a invocação do “progresso” ou de um “sentido da história” poderia ainda passar por uma cobertura provisória da crítica social (do mesmo modo, em suma, como o cristianismo tinha podido fornecer um quadro ideológico às insurreições camponesas do século XVI). Em contrapartida, uma vez que aquelas estruturas e estas forças foram definitivamente varridas (a direita do Antigo Regime – a única que alguma vez foi reaccionária no sentido estrito do termo – desapareceu da paisagem política após 1945), a ideia de que uma sociedade fraterna só poderia nascer da ruína de todas as formas particulares de enraizamento e de uma ruptura deliberada com tudo o que lembrasse o mundo de ontem – visto que esse é o grande princípio de metafísica progressista – só poderia adquirir um novo sentido e revelar abertamente as ambiguidades que transportava desde a sua origem. É, sem dúvida, a Marx que devemos a consciência mais nítida desta inversão dialéctica programada. Com efeito, se é verdade que “o desequilíbrio constante de todo o sistema social e a agitação e a inseguranças perpétuas” (10) são precisamente os traços específicos que separam a civilização capitalista “de todas as precedentes” (‘Manifesto comunista’), tornar-se-á claro que a velha exortação progressista de andar sempre para a frente, de transgredir, por princípio, todos os limites morais e culturais recebidos como herança ou de substituir – em todos os domínios da existência – a moda à tradição, adquire subitamente uma tonalidade bem diferente. Em todo o caso, uma tonalidade bem diferente daquela que definia ainda, no século XVIII, o combate dos filósofos contra um poder autocrático secular fundado no domínio da Igreja católica, dos privilégios arbitrários do nascimento e da grande propriedade rural.

 

É por isso que deveria inevitavelmente chegar um tempo – e eis que estamos aí com toda a evidência – em que por detrás da convicção outrora emancipadora de que não se trava o progresso, se torna cada vez mais difícil entender outra coisa que não seja a ideia, hoje dominante, segundo a qual não se trava o capitalismo e a globalização. Porque esse é, na verdade, o pesado tributo a pagar (de que o abandono pela esquerda moderna de toda a crítica socialista do modo de vida capitalista é apenas um efeito secundário) por todos aqueles para os quais o “complexo de Orfeu” continua a organizar – consciente o inconscientemente – a compreensão da história e da política. Seja em função da sua inserção social (as novas elites móveis do mercado global) ou da sua relação psicológica pessoal ao universo familiar e à ideia de filiação.

 

É, pois, daqui que será preciso repartir se ainda mantivermos a ideia de que é possível um mundo diferente daquele que aí vem.

 

 

 

Escólios

 

(A)

 

(…toda a recuperação politiqueira do movimento operário…)

 

Em 1898 - como veremos mais adiante – Jean Jaurès e Jules Guesde consideravam ainda o afrontamento entre a direita anti-Dreyfus e a esquerda pró-Dreyfus como um simples episódio desta “guerra civil burguesa” onde nem a classe operária nem os partidos políticos socialistas deviam intrometer-se. Quanto à esquerda da época (isto é, no essencial, a frente comum dos liberais e dos “republicanos de progresso”, a que um pouco mais tarde se aliaram os “radicais”) ela definia-se, desde o princípio do século XIX, por um combate permanente contra duas ameaças, aos seus olhos, simétricas. De um lado, “o perigo clerical e monarquista” – incarnado pela direita tradicional “ultra” – e do outro, o “perigo colectivista” incarnado pela classe operária, os seus partidos políticos socialistas (ou anarquistas), o seu movimento cooperativo e os seus poderosos sindicatos. O jogo político francês – até final do século XIX – não se organizava à volta de uma clivagem binária (a oposição supostamente eterna entre uma esquerda “progressista” e uma direita “conservadora” e “reaccionária”). Era, em primeiro lugar, um jogo a três que envolvia os Brancos da direita monárquica e católica, os Azuis da esquerda liberal e progressista e os Vermelhos do movimento socialista, comunista e anarquista que pretendiam agir de forma independente em relação às duas outras formações (a mais apressada leitura de Marx é suficiente para o confirmar). Na realidade, é só depois do caso Dreyfus que os principais partidos políticos da classe operária (pelo menos aqueles que tinham representação parlamentar) iriam progressivamente aliar-se à política de “defesa republicana” (por razões, à partida, puramente tácticas, às quais voltaremos) e que a clivagem esquerda/direita iria, pouco a pouco, invadir o campo da política moderna (até engendrar nos historiadores da IIIª República a ilusão retrospectiva de que já existia, nessa forma antes do caso Dreyfus). A partir desse momento preciso pode dizer-se, com Marc Crapez, que “a antiga esquerda, tornada um centro-esquerda, já não limita as suas alianças apenas a radicalismo, que se tornou o núcleo da esquerda nascente, mas aceita o apoio de uma parte do socialismo, tornado uma extrema-esquerda” (Naissance de la gauche, op. Cit. p.63).

 

Um dos objectivos do presente ensaio será o do estabelecer quais foram as razões históricas – e sobretudo qual foi o preço político e filosófico a pagar – por esta integração, à primeira vista surpreendente, do movimento operário socialista – outrora independente – no campo da esquerda liberal e das “forças republicanas de progresso”.

 

 

(B)

 

(…toda a referência à luta de classes ou ao poder dos trabalhadores…)

 

É claro que a esquerda nunca havia deixado de se definir, desde 1815, como o partido do movimento, do progresso e das Luzes. Mas, ao longo de todo o século XIX, a maior parte dos seus representantes – por razões que tinham que ver com a natureza autocrática do Antigo Regime – não dissociavam senão muito raramente a causa do progresso da causa do povo (para retomar o nome do jornal fundado, em 1848, por Georges Sand). Apenas os liberais como Guisot, Royer-Collard ou Victor Cousin – a que se chamava precisamente “os doutrinários” – se aventuravam já a opor sistematicamente a “soberania da razão” (de que se consideravam os representantes naturais) à das classes populares, nas quais viam a matriz sempre fecunda dos excessos terroristas da Revolução e de todas a reivindicações “exageradas” (eles são pois, em certo sentido, os verdadeiros antecessores filosóficos dos cronistas do Libération, dos Inrokuptibles, do Grand Journal, do Canal Plus).

 

Em contrapartida, uma vez se recentrou definitivamente na sua função “vanguardista” (processo que, em França, só se perfez com a era Mitterrand) já nada poderia proibir aos intelectuais e aos artistas que se proclamassem como representantes heróicos de uma “minoria esclarecida” (ou de um “partido da inteligência”) (11), operando, por definição, no “sentido da história” (isto é, no sentido da “globalização”) e profundamente convencidos de que as insuportáveis inclinações “populistas” das classes inferiores – este universo ruidoso e “nauseabundo dos Beaufs, dos Grosseille e de Bidonchon constitui o único perigo susceptível de ameaçar os equilíbrios delicados e subtis da sociedade aberta (e os privilégios tão legítimos desta minoria esclarecida). Como Georges Orwell já o constatava em 1937 – no Quais de Wigan – a maior parte dos intelectuais de esquerda pensa que a “revolução não é um movimento de massas a que eles desejem associar-se, mas um pacote de reformas que nós, as pessoas inteligentes, vamos impor às classes populares”.

 

 

(C)

 

(…a abolição das fronteiras e o desenraizamento generalizado…)

 

Se o universalismo da esquerda é, primariamente, o da filosofia das Luzes, não podemos esquecer as suas raízes cristãs e, designadamente, a sua origem Pauliana (é um ponto sobre o qual Alain Badiou teve o grande mérito de insistir). Com efeito, para S. Paulo, no reino de Deus, “não haverá nem judeus nem gregos, nem senhor nem escravo, nem macho nem fêmea (Epístola aos Galateus, 3-28) porque todos serão “um em Cristo”. Nesta concepção desincarnada (ou transgenérica) do universal (que encontramos, nos nossos dias, na base da luta cidadã “contra todas as formas de discriminação”, como nestes reinos de Deus modernos que são a “Comunidade europeia” e o Mercado mundial”), toda a determinação particular – isto é, toda a marca simbólica concreta é considerada suspeita de encerrar o sujeito (individual ou colectivo) nos limites de uma herança histórica ou natural dada – deve ser pensada como um obstáculo maior à instituição de uma ordem justa e, por consequência, como uma configuração politicamente incorrecta que deverá ser erradicada o mais rapidamente possível. Este é, no fim de contas, o sentido da cruzada perpétua da esquerda e da extrema-esquerda contemporâneas contra tudo o que possa implicar uma forma qualquer de filiação ou de identidade individual ou colectiva, mesmo sob o plano anatómico ou sexual (Judith Butler – figura emblemática da esquerda norte-americana moderna – considera a Drag queen o único sujeito político revolucionário capaz de tomar o lugar do “antigo” proletário da doutrina marxista (12) ). Se, portanto, a lei do progresso é aquela que deve conduzir inexoravelmente das atabafantes “sociedades fechadas” até à maravilhosa “sociedade aberta”, lei que impõe a todo o conjunto de civilizações existentes (desde o mundo islâmico até às tribos da Amazónia) a renúncia gradual a todas aquelas limitações “arbitrárias” que fundavam a sua identidade contingente para se dissolveram triunfalmente na unidade pós-histórica – no sentido em que a entendia Fukuyama – de uma sociedade mundial uniformizada (cujo motor só poderia ser evidentemente o desenvolvimento coordenado do livre-câmbio, dos “direitos humanos” e da cultura mainstream), torna-se compreensível o que faz a coerência filosófica da esquerda moderna. Para esta, com efeito, é forçosamente uma única e idêntica coisa, recusar a herança sombria do passado (que, por princípio, só pode dar lugar a crises de “arrependimento”), combater todos os sintomas de febre “identitária” (quer dizer, noutros termos, todos os sinais de uma vida colectiva enraizada numa cultura particular) e celebrar incessantemente a transgressão de todos os limites morais e culturais legados por todas a gerações anteriores (o reinado efectivo do universal liberal-paulista tende a coincidir, por definição, com o reino da indiferenciação e ilimitação absolutas (13). Aos olhos do intelectual de esquerda contemporâneo, é algo de evidente que o respeito pelo passado, a defesa dos particularismos culturais e o sentido dos limites não são mais do que as três cabeças, igualmente monstruosas, da mesma hidra reaccionária.

 

Este empreendimento de depuração e de erradicação geral (“do passado façamos tábua rasa!”) tem, no entanto, um preço filosófico a pagar. Ele exige que se apague para todo o sempre a revolução teórica realizada por Hegel (e depois por Marx e pelos fundadores do movimento operário socialista) e se regresse aquém da ideia hegeliana segundo a qual o acesso à verdadeira universalidade (aquilo a que Hegel chamava o “universal concreto”) nunca resulta da negação pura e simples das determinações particulares existentes (por exemplo, a tradições, as formas de cultura, as identidades, as línguas e as pertenças anteriores) mas supõe, pelo contrário, a sua “superação dialéctica” (Aufhebung) que “suprime conservando” (14).

 

É por isso que, nas páginas que se seguem, tentarei insistir, do modo mais claro possível, sobre esta questão absolutamente crucial das relações entre o universal e o particular. É uma questão que, à primeira vista, pode parecer inutilmente metafísica. Mas, como veremos, é ela que, em última instância, comanda a compreensão política do mundo em que vivemos e é só ela que pode esclarecer o beco sem saída em que se meteu a esquerda contemporânea, que escolheu abandonar, sem armas nem bagagens, a imensa maioria dos trabalhadores e das classes populares, esmagando-as debaixo do peso do seu desprezo pretensamente “universalista”.

 

 

(D)

 

(…um mundo reconciliado consigo mesmo…)

 

Em Culture de masse et culture populaire (reedição Climats, 2011) Christopher Lash recorda-nos que, para a esquerda liberal moderna, toda a política dita de “democratização” dever fundar-se “num programa educativo e num processo social (ou ambos) capaz de arrancar os indivíduos ao seu contexto familiar e enfraquecer os laços de parentesco, as tradições locais e regionais e todas as formas de enraizamento num local. Particularmente nos Estados Unidos, a liquidação das raízes é considerada como a condição essencial do desenvolvimento e da liberdade. Os símbolos dominantes da vida americana, a fronteira e o melting pot, incarnam, entre outras coisas, esta crença segundo a qual só os desenraizados podem aceder à liberdade intelectual e política” (p. 21). “Desenraizados de todos os países, uni-vos sob a égide do mercado mundial!” poderia ser a nova palavra de ordem da esquerda liberal (15).

 

 

(E)

 

(…sob o conceito ainda mais negro de fascismo…)

 

Os termos “conservador” (aquele que quer manter as condições existentes), e “reaccionário” (aquele que quer andar para trás), só podem evidentemente definir crimes de pensamento se previamente se aderiu a uma teoria do progresso e do sentido da história. Um Rousseau, por exemplo, jamais poderia recorrer a tal terminologia. Tal como, inversamente, um militante de esquerda (ou de extrema-esquerda) moderna será filosoficamente compelido a considerar o ‘Discurso sobre as ciências e as artes’ (no caso de ter ouvido falar dele) como o exemplo paradigmático do pensamento “reaccionário”; é, aliás, surpreendente que nenhuma associação de pais de alunos (nem mesmo de professores pedagogicamente correctos) tenha ainda pensado solicitar a colocação definitiva no índex das obras nauseabundas de Jean-Jacques Rousseau.

 

Observe-se ainda que o primeiro autor que sistematizou o uso político negativo destes conceitos de “reacção” e de “conservadorismo” – antes de Henri Saint-Simon e Auguste Comte – foi justamente Benjamin Constant (Cf. Des réactions politiques, 1797), o mais notável e mais brilhante representante da esquerda liberal nascente (16). Não é certamente um acaso. Tentai, por exemplo, defender o princípio da globalização capitalista – ou do mérito das centrais nucleares – sem o apoio de uma teoria do progresso (ou seja, sem a noção de que se trata de evoluções “inelutáveis” a que os homens têm que submeter-se mais tarde ou mais cedo) e sem estigmatizar paralelamente todas as atitudes “temerosas” e “conservadoras” que só poderiam fundar-se “no medo irracional do futuro”. Há, sem dúvida, em França, autênticos conservadores e verdadeiros reaccionários (o papel do Libération e dos Guignols de l’info consiste precisamente em amarrá-los diariamente ao pelourinho da modernidade), mas o que está garantido é que não é possível encontrar um só que seja nos corredores do poder ou entre os dirigentes das grandes firmas multinacionais.

 

 

(F)

(…as coisas passavam-se melhor anteriormente…)

Um político de esquerda poderá sempre reconhecer que – por efeito das políticas impiedosas dos seus clones de direita – as condições de vida das classes populares se degradaram em todos os domínios (mesmo que, para tanto, ainda seja necessário que consinta apoiar-se em indicadores diferentes dos que lhe são habitualmente fornecidos pelas estatísticas do Estado). O que jamais alguém o ouvirá concluir – o que, no entanto, respeitaria a lógica mais elementar – é que, se estas classes populares vivem hoje cada vez pior, é porque, para elas, as coisas iam um pouco melhor anteriormente, quando o capitalismo ainda não tinha desenvolvido as suas recentes metástases. Com efeito, uma conclusão tão arrepiante convidá-lo-ia a pôr em questão a ideia de que existe um sentido da história (que deve necessariamente conduzir do sílex biface às centrais nucleares) e que a nostalgia – sentimento reaccionário e fascista por excelência – é o crime que tem dentro de si todos os crimes.

Quando a lógica e o bom senso são colocados no índex pelos simples constrangimentos do dogma, torna-se claro para toda gente que o terreno da crítica social já foi abandonado há muito tempo e trocado pelo – aliás respeitável, no seu domínio – da pura e simples fé religiosa.

 

 

(G)

 

(…jamais poderia haver algo que se assemelhasse à história antiga…)

 

“Cidadãos, o século XIX é grande mas o século XX será feliz. Então, nada haverá de semelhante à velha história; jamais haverá que temer uma conquista, uma invasão, uma rivalidade de nações armadas, uma interrupção da civilização devido a um casamento real, um nascimento nas dinastias hereditárias, uma separação de povos num congresso, um desmembramento pela queda de uma dinastia, um combate de duas religiões em frente a frente, como dois emissários da sombra na ponte do infinito, jamais teremos que temer a fome, a exploração, a prostituição pelo abandono, a miséria pelo desemprego, o cadafalso e a espada, as batalhas e todos os malefícios do acaso na floresta dos acontecimentos. Então, quase poderá dizer-se: já não haverá acontecimentos. Seremos felizes” (Victor Hugo, Les Misérables, Vª parte). Este discurso de Enjolras (“Que horizonte se vê no alto da barricada”) constitui, sem dúvida, um dos textos mais emblemáticos da literatura profética de esquerda do século XIX. Convém notar que Enjolras tinha demasiado de Saint-Just e de menos de Anarcharsis Clootz. Mas, “desde há algum tempo – sublinha Hugo – ele saía pouco a pouco do molde estreito do dogma e avançava na direcção dos alargamentos do progresso até aceitar, como evolução definitiva e magnífica, a transformação da grande república francesa na imensa república humana”. Victor Hugo – certamente o mais sublime dos escritores franceses de esquerda – não poderia evidentemente imaginar que esta mesma ideia de progresso (e da “ciência feita governo”) daria lugar, por sua vez, a uma religião particularmente assassina e dotada de dogmas perfeitamente cerrados. Pelo menos teve a desculpa de escrever estas linhas em 1882, ou seja, cento e cinquenta anos antes de Jacques Attali (17).

 

 

 

(H)

 

(…o momento secundário ou mesmo facultativo da crença no progresso…)

 

 

No seu Le Seul et vrai paradis (Champs-Flammarion, 2006), Christopher Lash mostrou bem, na sequência de Hans Blumemberg, por que razões a ideologia do progresso - tal como aparece no século XVII – não pode ser entendida como “uma versão secularizada do milenarismo cristão”. A construção de “utopias” e de “cidades do Sol” - desde o século XVI ao século XIX – pertence aliás essencialmente à tradição republicana e socialista. Não se encontra nenhum equivalente na tradição liberal original.

 

 

(I)

 

(…uma filosofia do isto nunca mais…)

 

Na Europa moderna nascente, o traumatismo fundador que os homens desse tempo iriam ter que aprender a superar colectivamente foi o das terríveis guerras civis religiosas (aquelas em que o filho se arma contra o pai, o irmão contra o irmão). Tal como o decreto ateniense de 403 tinha imposto, após a guerra do Peloponeso, a proibição de evocar em público os acontecimentos dramáticos que haviam ocorrido (esperava-se assim que, recalcando a memória do passado, fossem banidas as palavras de divisão susceptíveis de realimentar a guerra civil entre os Gregos), o édito de pacificação de Agosto de 1570, exortava, por seu turno, católicos e protestantes a recalcar definitivamente a “memória das coisas passadas de ambos os lados” (18). Os éditos de pacificação ulteriores (1573, 1576, 1577 e 1598) esforçaram-se naturalmente e, sem maior êxito, por manter esta proibição de regresso ao passado, isto é, noutros termos, de olhar para trás. E, em 1584, o jurista Antoine Loisel empreendeu a teorização filosófica desta política da amnésia voluntária numa obra várias vezes reeditada intitulada De l’amnésie ou oubliance des maux faits et receus pendant les troubles, et à l’occasion d’iceux.

 

É, em primeiro lugar, neste contexto histórico dramático (o passado visto como o lugar natural de todas as vinganças possíveis e de todas as palavras de divisão) que se pode compreender o papel filosófico maior que iria ser atribuído, a partir do século seguinte, à revolução científica de Galileu. Ao propor a imagem de um saber objectivo e imparcial, repousando apenas sobre os factos, a Scienza Nuova oferecia aos pensadores políticos do tempo o modelo ideal de um discurso de especialista (ou more geométrico) que será capaz de escapar a estas palavras de divisão que incessantemente ameaçavam ressuscitar as crises miméticas e a guerra de todos contra todos. Se acrescentarmos que esta “filosofia experimental da natureza” constitui a verdadeira matriz histórica da ideia de progresso ilimitado (como Pascal observara, desde logo, no seu Traité du vide – a Ciência é o único domínio intelectual onde os Modernos têm fundamento para dar lições aos Antigos) vemos que todas as condições ideológicos e conceituais estavam reunidas para definir a solução do problema teológico-político. E para tornar rapidamente pensável a ideia de um “sentido da história” (que Adam Smith, Turgot e Condorcet se encarregarão de afinar), decalcada da ideia do desenvolvimento das ciências e das técnicas e cuja função ideológica primacial seria a de legitimar a progressiva ruptura do género humano com a suposta barbárie de todas as civilizações anteriores - a ideologia colonial elaborada pela esquerda republicana do século XIX (19) não representam, deste ponto de vista, senão um dos múltiplos efeito secundários desta nova metafísica da história.

 

 

(J)

 

(… tudo é necessariamente melhor do que ontem…)

 

Na Génération Lyrique. Essai sur la vie e l’ouvre des premiers-nés du baby-boom (Climats, 2001), François Ricard põe admiravelmente em evidência o elo filosófico que existe entre o extraordinário traumatismo provocado pela segunda guerra mundial (Auschwitz, como fundamento de um novo isto nunca mais) e o desenvolvimento das modas da educação familiares e escolares liberais, fundadas na rejeição total a tradição e do passado. É este novo passo em frente na radicalização da cultura liberal-progressista (cultura de que as gerações saídas do baby-boom constituem a autêntica incarnação) que explica, em grande parte, segundo o autor, o triunfo absoluto - a partir dos sixties – do capitalismo de consumo e da contra-cultura “contestatária” que é a sua tradução natural (“os filho de Marx e da Coca-Cola” para retomar a fórmula profética de Jean-Luc Godard). A análise de François Ricard é tanto mais fascinante quanto é certo que ela se baseia essencialmente nos dados relativos à sociedade quebequense e se mostra integralmente transponível para o velho continente.

 

 

(K)

 

(…o imaginário da esquerda progressista…)

 

Quando o ideólogo strauss-kahniano Olivier Ferrand declara que “a globalização é um facto que se impõe ao planeta” (‘Libération’, 7 de Abril de 2011) e que, em consequência, ser de esquerda é, em primeiro lugar, defender “uma política de competitividade do valor acrescentado”, ele toma, com toda a evidência, a palavra “esquerda” no sentido que ela tinha antes do caso Dreyfus (isto é, antes o compromisso histórico com os partidos operários). Quando, no mesmo dossier do ‘Libération’, o economista crítico Jacques Sapir constata, pelo contrário, que a “mundialização não funciona e que atingimos o ponto em que é preciso voltar para trás” e quando Arnaud Montebourg começa a encarar seriamente um programa de “desglobalização, isto é, de reterritorialização da economia”, eles reencontram, ambos, pelo contrário, esta tradição socialista e popular com que a esquerda mitterrandiana (“cidadã” e “anti-racista”) teve o cuidado de romper desde 1984.

 

 

(L)

 

(…na selva impiedosa do mercado capitalista…)

 

É óbvio que o Robinson moderno – mesmo que pretenda “ter-se feito completamente sozinho” sem ter “necessidade de ninguém”, e “não dever nada seja a quem for” – não deixa de ter um passado familiar (e, portanto, um lugar preciso numa genealogia qualquer) que deve assombrá-lo tanto mais quanto a sua filosofia oficial lhe proíbe precisamente assumir e cuidar dele. Que haja sempre por detrás de cada self-made man proclamado (e o rebelde de esquerda partilha, sob este aspecto, uma mitologia idêntica à do Medef), um rosebud escondido que ilumina a sua verdade profunda é - desde 1941- a eterna lição de Citizen Kane.

 

 

(M)

 

(…trinta anos de domínio cultural ininterrupto da esquerda pós-mitterrandiana…)

 

Devemos coibir-nos de confundir aqui a ideologia dominante (que corresponde, por definição, aos interesses da elite que está no poder) e a opinião comum – ou sensibilidade popular – que possui sempre uma autonomia, maior ou menor, em relação à primeira.

 

A ideologia dominante designa, antes de mais (numa sociedade de classes), o regime de pensamento que deve governar o “debate” intelectual oficial (com as suas falsas oposições e os seus papéis antecipadamente distribuídos) e as suas múltiplas tradições mediáticas (já que, na sociedade do espectáculo, é em primeiro lugar o jornalista que tem o encargo de incarnar de forma quotidiana esta ideologia dominante). Um regime de pensamento deste tipo, deve definir, ao mesmo tempo, um quadro linguístico obrigatório (“crescimento” em vez de “acumulação de capital”, “intervenção humanitária” em vez de “guerra neo-colonial”, “tentação populista” em vez de “exigência democrática”, etc.) (20), uma forma manipuladora de colocar todos os problemas (de modo a tornar, à partida, impossível toda a solução contrária aos interesse dos ricos e dos poderosos) e esquemas de pensamento mecânicos dos quais é “politicamente incorrecto” afastar-se, o mínimo que seja. A existência deste regime obriga aqueles que se esforçam por contestar realmente a ordem estabelecida (e que por isso se encontram geralmente longe dos circuitos mediáticos oficiais) a praticar permanentemente toda uma série de rodeios filosóficos esgotantes e de fastidiosas precisões – tendo sempre o cuidado de manter a “correcção” ideológica da cada palavra usada (é um exercício intelectual - evitar o “pecado de língua”, segundo a fórmula da Inquisição do século XVI – que os defensores do pensamento correcto nem sequer podem imaginar). Como é sabido, Spinoza foi o mestre incontestado desta arte de escrever debaixo do olhar sempre presente de uma polícia do pensamento (foi por isso que ficou, na história da filosofia, como o símbolo insigne do opositor intelectual).

 

Podemos, pois, tomar a medida do que separa a ideologia dominante da opinião comum. É claro, por exemplo, que, se a religião e a moral ocupam ainda um lugar importante na sensibilidade popular, não podem, pelo contrário, ter qualquer espaço na ideologia dominante liberal (qualquer debate entre “especialistas” da O.M.C. ou do F.M.I. ou do Banco mundial jamais fará apelo a este género de considerações “metafísicas”) (21). Nestas condições, o facto de que uma ideia (ou um sentimento) comece a progredir na opinião pública não significa necessariamente que ela corresponde à ideologia dominante e, ainda menos, que se tenha tornado a “nova ideologia dominante”, como os polícias do pensamento são geralmente levados a queixar-se, sempre que o seu poder é ameaçado. Ela pode muito bem ser a expressão real da cólera e da revolta do povo. Para evitar, consequentemente, toda a confusão entre o pensamento do alto (designadamente aquele que alimenta a actividade jornalística quotidiana) e o pensamento de baixo (o que brota das condições de vida das classes populares) é indispensável reservar o conceito de ideologia dominante para aquelas formas de pensamento politicamente correcto cuja infracção será imediatamente sancionada por um escândalo mediático ou por uma conspiração do silêncio (22).

 

 

(N)

 

(…necessariamente rivais e inimigos…)

 

Num dos seus textos de 1845, Pierre Leroux (23), depois de ter recordado que “a sociedade não é o resultado de um contrato”, apresenta assim os fundamentos filosóficos do socialismo nascente: “A individualidade absoluta foi a crença da maior parte dos filósofos do século XVIII. Era um axioma metafísico que só existiam indivíduos e que os pretensos seres colectivos ou universais, como a sociedade, a pátria ou a humanidade, etc., eram apenas abstracções do nosso espírito. Estes filósofos lavravam num grande erro. Não compreendiam aquilo que não é tangível pelos sentidos; não compreendiam o invisível. Porque, após uma determinado período de tempo, a mãe se separa do fruto que transportava nas suas entranhas, e que mãe e filho formam duas entidades distintas e separadas, negais a relação que existe entre eles; negais que esta mãe e este filho, um sem o outro, são seres incompletos, doentes e ameaçados de morte e que, tanto a necessidade mútua, quanto o amor, os fazem, de facto, um ser composto de dois seres? Passa-se o mesmo com a sociedade e a humanidade. Longe de ser independente de toda a sociedade e de toda a tradição, o homem tem a sua vida na tradição e na sociedade. Ele não vive senão porque tem fé num certo presente e num certo passado” (ibidem, p. 165). Note-se que esta crítica radical - pelo fundador do socialismo francês – da antropologia liberal (e mesmo, de algum modo, dos seus fundamentos edipianos) deixa de ser compreensível a partir do momento em que a nova classificação proposta por Adolphe Vasse adquiriu o estatuto de uma evidência incontestável. A nova esquerda, libertada doravante da hipoteca socialista, pode progressivamente regressar aos seus primeiros amores liberais, ou seja, a essas “robinsonadas” do século XVIII (o termo é de Marx) que suportam, ainda hoje, tanto a temática dos “direitos do homem” como a sua concepção da economia e do crescimento (Renan dizia que um cidadão ideal da sociedade moderna deveria “nascer criança abandonada” e morrer “celibatário”).

 

 

 

 

(*) Jean-Claude Michéa (n. 1950) é professor de filosofia aposentado no Liceu Joffre (Montpellier) e um pensador anticapitalista independente, influenciado por George Orwell e pela escola antropológica seguidora de Marcel Mauss. Entre as suas obras destacam-se L'Enseignement de l'ignorance et ses conditions modernes Climats, 1999; Impasse Adam Smith. Brèves remarques sur l'impossibilité de dépasser le capitalisme sur sa gauche, Climats, 2002, reedição Paris: Champs-Flammarion, 2006; Orwell éducateur, Climats, 2003; L'Empire du moindre mal: essai sur la civilisation libérale, Climats, 2007, reedição Paris: Champs-Flammarion, 2010; La double pensée. Retour sur la question libérale, Champs-Flammarion, 2008. O presente texto é o prefácio ao seu último livro ‘Le complexe d’Orphée’, Climats, 2011. Tradução de João Esteves da Silva.

 

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NOTAS:

 

(1) Les Partis politiques et leurs programmes. Pour qui voter? Guide de l’électeur, Durand, 1910 (citado por Marc Crapez em ‘De quand date le clivage droite/gauche en France?’, Krisis, Maio de 2009, p. 50; este artigo retoma, de forma sintética, as análises já desenvolvidas pelo autor no seu estudo magistral La Naissance de la gauche, publicado em 1998 nas edições Michalon). O termo “democracia” é tomado aqui no seu sentido tocqueviliano (ou seja, para designar a dinâmica histórica do individualismo moderno).

 

(2) No seu artigo ‘Wells, Hitler e o Estado mundial’ (Horizon, Agosto 1941) Orwell descrevia assim a antítese entre o “progressista” que espera a vinda de um Estado mundial planificado e o “reaccionário” que “quer restaurar um passado onde tudo era desordem” (antítese absurda mas que a obra de H. G. Wells tinha, segundo Orwell, contribuído infelizmente para tornar familiar): “de um lado, a ciência, a ordem, o progresso, o internacionalismo, os aviões, o aço, o betão, a higiene; do outro, a guerra, o nacionalismo, a religião, a monarquia, os camponeses, os professores de grego, os poetas e os cavalos” (Essais, articles. Lettres, volume 2, Ivrea/Encylclopédie des nuisances, 1995, p. 180).

 

(3) É esse o título original de Meilheur des Mondes de Aldous Huxley (romance publicado em 1932).

 

(4) Já em 1932, Lewis Mumford – um dos espíritos mais profundos do século XX – considerava a ideia de progresso como “a mais morta das ideias mortas”.

 

(5) Quando a única posição subversiva seria a de ser, segundo a palavra de Nietzsche, intempestivo (é, aliás, claro que aquilo que descrevemos como o imaginário da esquerda progressista corresponde, em grande parte, ao que Nietzsche havia chamado o “niilismo do último homem”).

 

(6) “Não há grande dúvida de que os modos de produção e os modos de vida serão profundamente modificados nos anos e decénios que aí vêm. Vai ser necessário, em média, adoptar soluções que, segundo os cálculos das Nações Unidas, permitirão dividir por cinco, de hoje até ao ano 2050, as emissões de gases com efeito de estufa dos países ditos desenvolvidos; que reduzirão, em fortes proporções, os transportes automóvel e aéreo e o comércio internacional de longa distância, o uso dos recursos fósseis, de água e de matérias-primas, o consumo de carne e peixe, etc.” (Jean Gadrey. Adieu à la croissance, Alternatives économiques/Les Petits matins, 2010, p. 18).

 

(7) “Como a vida era bela contra Franco!” é hoje um dos slogans anticapitalistas mais populares em Espanha. Eis uma fórmula que dá testemunho de uma compreensão dialéctica da relação ao passado que se tornou muito rara deste lado dos Pirenéus.

 

(8) Esta obrigação de não olhar para trás encontra-se em muitos outros mitos. O mais conhecido é de Loth – sobrinho de Abraão – cuja mulher será transformada em estátua de sal por não ter respeitado esta proibição fundamental (Génesis, 19). A história de Loth é retomada de modo idêntico no Corão.

 

(9) Pense-se na célebre “definição” de Dominique Strauss-Kahn: “o socialismo é a esperança, o futuro, a inovação” (declaração de 20 de Fevereiro de 2011). É fácil para o leitor proceder à rectificação desta definição, que não é a do socialismo (noção de que ele já não terá a mais leve recordação), mas a do imaginário da esquerda moderna (ou, o que é a mesma coisa, do F.M.I.).

 

(10) Note-se, de passagem, que se a insegurança perpétua constitui realmente um dos traços mais fundamentais da ordem capitalista, é difícil de apresentar a “ideologia securitária” como o cerne da política liberal. Também aqui será necessário escolher entre Marx e Foucault (sabemos, desde há trinta anos, qual foi a escolha da universidade burguesa).

 

(11) Pense-se na célebre petição social-narcísica dos Inrokuptibles de Fevereiro de 2004.

 

(12) A afirmação de Judith Butler não peca por irrealismo. Para a maioria dos militantes da esquerda moderna (particularmente para a juventude burguesa mais “à la page”) é, desde já, ponto assente que a Parada Gay (tal como, num registo paralelo, a Festa da Música ou os Aperos do Facebook) constituem acontecimentos políticos muito mais “subversivos” e “inquietantes” para o poder” do que as manifestações operárias do 1º de Maio.

 

(13) É aquilo a que Badiou chama com entusiasmo, “a igualdade na arena da ilimitação” (Segundo Manifesto pela filosofia, Fayard, 2009, p. 33). Esta postura orgulhosamente transgressiva da esquerda moderna foi, aliás, defendida com uma comovente convicção por um dos mais fervorosos admiradores de Badiou: “Penso que cada um de nós se construi transgredindo, que uma pessoa se cria sempre transgredindo. Eu mesmo, criei a minha personagem transgredindo certas regras do pensamento único. Eu acredito na transgressão (…). O interesse da regra, do limite, da norma, é justamente que eles permitem a transgressão. Porque, a liberdade é transgredir” (Nicolas Sarkozy, Diálogo com Michel Onfray, Philosophie magazine. Abril 2007). O Mestre não teria dito melhor.

 

(14) É relativamente fácil datar esta reviravolta dos intelectuais de esquerda. Em Junho de 1996, Michel Foucault anunciava, com entusiasmo (na revista Ars) que “está em vias de formar-se uma cultura não dialéctica”, enquanto Gilles Deleuze (Le Nouvel Observateur de 4 de Abril de 1967) se regozijava, por sua vez, com o “refluxo do pensamento dialéctico em favor do estruturalismo”. Como nota Lucien Sève – que refere precisamente estes textos – “assim, já se esboçava, no seio de uma certa esquerda intelectual, na véspera dos acontecimentos de Maio de 68, a programação da morte de Marx” (Struturalisme et Dialectique, Éditons Sociales, 1984, p. 11). Que, hoje, se tenha tornado quase impossível fazer carreira na universidade burguesa sem prestar reverência a estas duas personagens totémicas da esquerda liberal confirma até que ponto a análise de Lucien Sève era justa.

 

(15) É, de resto, a tese “revolucionária” defendida por Michel Hardt e Antonio Negri em Empire (Exils, 2000). Para eles, com efeito (como para Badiou), é o facto de terem rompido com a sua nação de origem que confere aos migrantes do mundo inteiro uma consciência política necessariamente superior aos trabalhadores do país de acolhimento; análise que os conduz logicamente (na sequência de Gilles Deleuze e de Felix Guattari) a apoiar entusiasticamente todos os desenvolvimentos do capitalismo contemporâneo, visto que a grandeza histórica deste reside em “exigir uma mobilidade permanente da mão-de-obra e migrações contínuas através das fronteiras nacionais” (ibidem, p. 481).

 

(16) Como todos os liberais, Constant aderia integralmente à religião do progresso: “existe, na espécie humana - escrevia ele – uma disposição que lhe confere perpetuamente a força de imolar o presente ao futuro” (De la perfectibilité de l’espèce humaine, 1829).

 

(17) O leitor que queira conhecer as fontes soviéticas do pensamento attaliano poderá ter interesse em consultoar La vie au siècle XXI, obra redigida em 1964 por Sergui Gouchtev e Mikhail Vassiliev e publicada por éditions Buchet-Chastel. Esta obra-prima da futurologia de esquerda descrevia em 250 páginas – num tom de celebração permanente da indústria nuclear (“já com a ajuda da energia atómica obtivemos variedades de cevada de elevado rendimento”) – as inovações tecnológicas que não deixarão de transformar a vida quotidiana dos “homens de 2007” - desde os “automóveis voadores” até aos “sovkozes de criação de baleias”, passando pelo desvio metódico do “curso dos rios subterrâneos”. Particularmente revelador, deste ponto de vista, é o capítulo consagrado à evolução demográfica do século XXI intitulado “A idade do ouro da abundância está à nossa frente”. É uma idade na qual haveria congeladores especiais onde seriam conservados corpos das pessoas que acabam de morrer”. Interrogado, com efeito, sobre se poderia haver “um limite ao acréscimo da população terrestre”, o académico Semion Isaakovitch Volkovitch – adversário implacável de Malthus e defensor fanático dos pesticidas e dos adubos – respondia aos autores da obra “com segurança e sem hesitação”: “Não, não pode haver limite”. É exactamente este tipo de certeza a priori que define a essência de todo pensamento de esquerda ou, se preferirem, da metafísica progressista da ilimitação. E compreende-se mais facilmente agora o acolhimento glacial que deveria necessariamente ser dado pela esquerda ortodoxa, em 1972, ao relatório do Clube de Roma sobre os limites do crescimento e a existência de um muro ecológico (“um programa monstruoso”, segundo os termos, então, empregados pela direcção do partido comunista).

 

(18) Cf. Nicolas Le Roux, Les guerres de religion, 1559-1629, Berlin, 2009, p. 320.

 

(19) Jules Ferry será um dos grandes obreiros desta política progressista (que, nesta época, os principais partidos de direita contestavam por razões simétricas) fundada na ideia - tomada de empréstimo à filosofia das Luzes – segundo a qual os povos “avançados” têm que exercer uma missão civilizadora para com os povos atrasados ou subdesenvolvidos. O discurso do F.M.I. (dirigido por Dominique Strauss-Kanh, membro do PS francês) ou da O.M.C. (dirigida por Pascal Lamy, membro do PS francês) sobre os extraordinários benefícios que a mundialização e a liberalização das trocas não deixarão de trazer aos países do Sul, ganharia muito em ser lido à luz deste imaginário colonial de esquerda do século XIX.

 

(20) Aquilo que Orwell descrevia – no 1984 – sob o nome de “novilíngua” tinha precisamente por função impor este tipo de linguagem ”politicamente correcta” capaz de tornar completamente impossível qualquer forma de pensamento crítico.

 

(21) Elas podem, em contrapartida, desempenhar um papel mais ou menos importante na retórica oficial dos partidos de direita sempre que se acham obrigados – eleições assim o obrigam - a ter em conta a sensibilidade das classes populares. Ainda assim é preciso o máximo cuidado em evitar qualquer “efeito de boomerang” susceptível de prejudicar os interesses fundamentais da classe dominante. É o que explica, por exemplo, que logo depois das derrapagens de um Claude Guéant – no início do ano de 2011, - se tenha assistido a uma sucessão de intervenções de Christine Lagarde, Laurence Parisot, Jean-François Copé e do patrão da confederação geral das pequenas e médias empresas (dito de outro modo, os verdadeiros guardiões do templo liberal), criticando o novo Ministro do Interior, acusando-o de ter brincado com o fogo e lembrando-lhe firmemente que “as suas declarações sobre a diminuição da imigração não se sustentavam de um ponto de vista económico” (‘Le Canard enchainé’ de 13 de Abril de 2011). Que se, em consequência, aquelas palavra improvisadas fossem tomadas à letra, podiam ser comprometidas as próprias bases de economia capitalista, para a qual (como Marx tinha previsto em O Capital, quando estudou “o exército industrial de reserva”) a manutenção de uma imigração permanente (e, se possível, clandestina) é uma verdadeira questão de vida ou de morte (*). É certo que, neste tema tão crucial, o Medef pode sempre contar com o apoio indefectível do bravo Besancenot e de todas as ligas de virtude “anti-racistas e cidadãs”, para quem a leitura de Marx nunca foi a sua taça de chá.

 

(*) Este ponto é de tal modo fundamental para a sobrevivência do capitalismo globalizado, que, desde ao 17 de Abril de 2011, o ‘Le Monde’ julgou necessário oferecer uma página a Laurence Parisot (que aliás sempre se definiu – e a justo título - como “rocardiana”) para lhe permitir lançar o seu apelo à manutenção de um país aberto, que tira proveito da mestiçagem. Note-se que, na mesma entrevista, a presidente do Medef não se esquecia de lembrar, muito logicamente, a oposição absoluta do Medef ao princípio do sistema “prémio contar dividendo”. A ideia de que seria também justo recompensar (mesmo simbolicamente) os trabalhadores que produzem a riqueza colectiva sobre a qual os accionistas enriquecem dormindo (uma ideia populista segundo o secretário da CFDT, que veio apoiar Laurence Parisot) é visivelmente incompatível com o projecto de uma sociedade aberta e mestiça.

 

(22) Em regra, a fórmula do escândalo mediático é a que deve sancionar todos os atentados aos dogmas do liberalismo político e cultural (por exemplo a “pequena frase” – deixada cair na internet pelos especialistas de delação moderna – e que deve ser apresentada, por toda a parte, como “estigmatizante” para com esta ou aquela categoria da população (**). A política do silêncio, pelo contrário, é antes reservada àqueles que representam uma ameaça aos dogmas do liberalismo económico (defendendo, por exemplo, o decrescimento ou apelando à relocalização das actividades produtivas). Para quem se interesse de perto pela unidade filosófica do liberalismo, seria instrutivo estudar as razões ideológicas precisas que conduziram a polícia do pensamento a afinar esta estratégia punitiva diferenciada.

(**) Em caso de necessidade, a polícia do pensamento poderá, ela mesma, inventar as condições do escândalo mediático procurado. Sobre o modo, por exemplo, como Mediapart soube construir o caso “Laurent Blanc” – e sobre o efeito de motim que este “processo de feitiçaria” desencadeou no mundo mediático – pode ler-se a precisão salutar de Stéphanne Beaud e Gerard Noiriel: “Race, classe, football: ne pas hurler avec la meute”. ‘Libération’, 6 de Maio de 2011.

 

(23) À la source perdue du socialisme français, antologia de Pierre Leroux estabelecida por Bruno Viard, Desclée de Brouwer, 1997, p. 161.