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Formação do movimento operário português (*)
Victor de Sá
A formação do movimento operário português atesta a transformação das estruturas económico-sociais em Portugal na Época Contemporânea. É mesmo uma das características que permitem distinguir esta época das precedentes. Não é que anteriormente não tenha havido operários, ou artífices, ou mesmo escravos a criar produtos por conta doutrém. Mas só na Época Contemporânea, em resultado da utilização do vapor como energia e da mecanização da indústria, se pode falar com propriedade num movimento operário. É um fenómeno que se patenteia à medida que se opera a industrialização do país, e que vai ganhando força com a criação de grandes unidades manufactoras, ou com a concentração de múltiplas fábricas numa dada região.
Em Portugal, como noutros países, o período da industrialização sucede às mudanças anteriormente produzidas em resultado da extinção do Antigo Regime, isto é, em resultado da libertação da terra, do comércio, e da própria liberdade de circulação das pessoas e das coisas. Pode dizer-se que no caso se confirma o que Paul Bairoch enunciou (1): nos países que se industrializaram, a revolução da máquina a vapor e do maquinismo foi em geral precedida de profundas transformações na agricultura e na sociedade.
Em Portugal, essas transformações aparecem inicialmente delineadas na obra legislativa de Mousinho da Silveira (1832), e depois efectivadas quando do triunfo (1834) e durante a instauração do liberalismo. É no 3.º quartel do século XIX, já sob o domínio político da «Regeneração», que o nosso país se estrutura em conformidade com a economia moderna. Por isso Oliveira Martins disse bem que «regeneração é o nome português do capitalismo (2).
O movimento operário corresponde e sucede, mas em proporções muito mais dilatadas e com características diferentes, à organização corporativa do Antigo Regime, extinta em Portugal desde o triunfo do liberalismo (3). Como fenómeno característico da Época Contemporânea, o movimento operário resulta das novas condições de produção determinadas pela mecanização e pela utilização do vapor como fonte de energia, aquilo, enfim, que se chama a 1.ª revolução industrial. Enquanto a antiga sociedade se estruturava no quadro dos três estados (clero, nobreza e povo), a Época Contemporânea assiste ao emergir da nova formação social que é o «quarto estado», expressão que logo surge para designar essa inovação do século XIX. Quarto Estado (4) é exactamente o título que surge entre nós numa brochura do militante socialista José Fontana, que em Portugal foi um dos animadores do movimento operário.
Inicialmente, como geralmente acontece às inovações, o movimento operário produziu reacções de rejeição e de hostilidade, antes de ser reconhecido como uma nova formação social. Mas o estudo da sua génese e evolução não pode mais deixar de interessar ao historiador, por múltiplas razões. Além de constituir uma importante realidade social em si mesma, também pelos efeitos dinâmicos e de interacção com outros fenómenos igualmente importantes.
É o caso, por exemplo, da correlação com a própria industrialização. Embora resultante dela, o movimento operário acaba por constituir também um elemento de pressão para estimular o desenvolvimento tecnológico. Algumas vezes tem acontecido introduzir-se novos tipos de maquinaria como modo do neutralizar as reivindicações operárias (5).
Por outro lado, o movimento operário vai adquirindo, à medida que se estrutura e ramifica, uma dinâmica própria que levanta à sociedade problemas específicos. Estes acabam por dominar ou pelo menos condicionar as próprias estruturas sociais, mesmo antes de atingir o ponto de ruptura. É ver como, em resultado dessa pressão, é muito diferente a configuração de um Estado burguês e capitalista actual do que era, por exemplo, no século passado. A dinâmica do movimento operário provocou a criação de novos organismos estatais destinados a equacionar os problemas económicos, sociais, políticos, administrativos e ideológicos decorrentes dessa pressão, e mesmo com vista a atenuar os seus efeitos.
Com o crescimento do proletariado e as ramificações cada vez mais densas e mais extensas da sua organização, quer a nível nacional como internacional, as sociedades de hoje não podem mais desconhecer, e muito menos desdenhar do movimento operário. Mergulhadas as raízes na esfera do económico, o seu crescimento social acabou por afectar a esfera do político.
Outro aspecto interessa ainda ao historiador. É a importância de que se reveste a imprensa operária como fonte e testemunho. Para o século XIX sobretudo, quando a imprensa representou papel fundamental como meio de comunicação social, a imprensa operária permite-nos auscultar as aspirações e as queixas de grandes sectores da opinião pública, que dum modo ou doutro terão acabado por influir no espírito e na actuação dos homens políticos responsáveis pelos governos.
Por todas essas razões, o historiador não pode alhear-se mais da apreciação desse fenómeno social tão característico da Época Contemporânea. Entre nós, a sua história tem sido ensaiada geralmente por prosélitos da própria causa operária. Deve-se-lhes já a recolha de importantes testemunhos e algumas formulações críticas sugestivas. Aliás, o interesse pela história dos movimentos operários é geral e crescente em todo o mundo. A Universidade, por sua vez, não pode alhear-se e permitir que o processo investigativo sobre esta matéria decorra à sua revelia.
Tentemos, então, ver como se gerou e cresceu entre nós o movimento operário, no período da sua formação.
So houvesse dúvidas quanto à existência de um movimento operário português no século XIX, logo elas se desvaneciam, entre outras razões, pelo testemunho que nos ficou da produção impressa sobre temas sociais.
É este o meio que de momento adoptamos para abordar a questão, dado que só o prosseguimento das investigações, entre nós apenas iniciadas, irá permitir um mais seguro domínio sobre a formação e a evolução do movimento operário em Portugal. Este método pressupõe o levantamento bibliográfico da produção nacional sobre a questão social, a que aliás temos vindo a proceder.
O tratamento dos temas sociais aparece-nos em três surtos que se verificam entre nós desde meados do século passado:
- o 1.º, à volta de 1850, representa uma tomada de consciência da questão social;
- o 2.º, no princípio da década de 1870, quando verdadeiramente se inicia o movimento operário português;
- por fim, nos últimos anos do século, quando a questão social se agrava e agudiza.
É no decurso destas fases que se gera, estrutura e alarga o movimento operário português. Vamos analisar as duas primeiras e referir parcialmente a terceira.
O primeiro período, desde o início ou mesmo desde as vésperas da década de 1850, surge em grande parte como eco ou reflexo da revolução francesa de Fevereiro de 1848 (6). A literatura social deste período revela a antecipação de uma tomada de consciência da questão social por parte de um sector intelectual da burguesia, com vista a prevenir ou, se possível, evitar os conflitos sociais.
É em Portugal o período da 1.ª geração socialista ou dos socialistas românticos, composta essencialmente por jovens intelectuais. É o caso de um Joaquim Marcelino de Matos, a saudar em 1848 o socialismo numa brochura publicada em Coimbra, «Bientôt le socialisme», e a propagá-lo dois anos mais tarde no Porto através da revista «Esmeralda». É o caso de um José Maria do Casal Ribeiro, que em Lisboa proclama os novos tempos num folheto a que deu o significativo título- «Hoje não é ontem», - para expor também em revista («Atheneu», Lisboa, 1850) os princípios falansterianos do socialista francês Charles Fourier. Outro jovem advogado, Custódio José Vieira, proclamava no Porto (in «A Esmeralda», 1850) o socialismo como sendo a «ideia predominante, característica da época». Enquanto em Lisboa um Lopes de Mendonça e um Sousa Brandão lançavam no mesmo ano a revista «Eco dos Operários», destinda a incrementar a instrução no seio da classe trabalhadora, atraindo-a ao mesmo tempo à convivência paternalista dos intelectuais.
É o caso ainda de um jovem professor de Matemática da Escola Politécnica do Porto, agora a nossa Universidade, Pedro de Amorim Viana, a empreender numa revista de 1852 («A Península», Porto, 1852-53) A «Análise das contradições económicas de Proudhon».
Nesta primeira fase, não são ainda os trabalhadores propriamente a tomar em mão a defesa dos seus interesses. A primeira associação operária conhecida depois da instauração do liberalismo, é a Associação dos Artistas Lisbonenses, criada em 1838, mas na realidade ainda muito ligada à tradição corporativa; era da iniciativa dos profissionais de ourivesaria e tinha objectivos essencialmente mutualistas.
A partir da revolução francesa de Fevereiro de 1848, são o intelectuais socialistas portugueses quem procura atrair a si os trabalhadores, e pretendem mesmo moldar-lhes os seus tipos de organização. Aparecem as primeiras associações destinadas aos trabalhadores, mas inspiradas por espírito filantrópico, e com o objectivo de evitar que se verifiquem em Portugal os sobressaltos sociais que a França e outros países já conheciam. Custódio José Vieira, por exemplo, é claro a tal respeito: «os homens do passado - escreve (7) - não poderão comprimir por muito mais tempo o movimento europeu principiado em Fevereiro de 48»; e «nós não somos tão estranhos a este movimento, ao movimento dos grandes países, que não precisemos de precaver-nos contra males que os afligem e que não devamos preparar-nos para o bem por que anseiam».
É com este sentido que já em fins de 1848 surgiu em Ponta Delgada, por iniciativa do poeta Castilho, que então lá se encontrava, a Sociedade dos Amigos das Letras e das Artes. Propunha-se essencialmente dois objectivos: por um lado, promover a iniciação literária e artística dos camponeses; por outro, criar um estabelecimento de crédito misto, que fosse ao mesmo tempo caixa económica, banco industrial e montepio.
A partir de 1850, com a publicação em Lisboa do «Eco dos Operários», é o engenheiro Sousa Brandão, um dos seus fundadores e redactores, quem vai tornar-se o grande propagandista das associações operárias: em 12 números do semanário aparecem escritos da sua autoria a exortar as vantagens do associativismo. Esta actividade jornalística é acompanhada por uma acção militante no mesmo sentido, pois o semanário dá-nos notícias da criação de várias associações nessa época (8).
Os seus objectivos centravam-se à volta da instrução (primária e profissional) e da criação de montepios ou outras formas mutualistas.
É na sequência deste movimento que em 1852 vai surgir a mais importante realização associativa destinada a trabalhadores. Trata-se do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas. O próprio Sousa Brandão elaborou os seus estatutos, que ficaram aprovados no ano seguinte. Entre os seus objectivos lá estava o de propagar o ensino primário e técnico entre os trabalhadores, e os de carácter assistencial e mutualista: criação de creches, asilos, armazéns (para matérias primas) e bazares (para a distribuição de produtos).
Durante os restantes anos das décadas de 1850 e 60, é à volta deste Centro Promotor que se agrupam os operários da capital de mistura com gente da classe média, intelectuais e políticos da monarquia constitucional (9).
Pretende-se através deste modelo imprimir à classe operária um perfil organizativo orientado no sentido da solidariedade de classes, e até com vista, como algumas vezes se proclamou, a transformar os trabalhadores em capitalistas ou em proprietários (10).
Mas entretanto muitas coisas se foram modificando no país.
No espaço de tempo decorrido entre a 1.ª e a 2.ª gerações socialistas, isto é, entre os anos de 1850 e os de 1870, Portugal sofreu, com efeito, profundas transformações, decorrentes do lançamento das estruturas materiais e jurídicas que confirmaram o país moderno de feição capitalista.
Foram, por um lado, as vias e os meios de comunicação. As estradas macadamisadas, iniciadas ainda durante o período da ditadura parlamentar de Costa Cabral, permitiram nos anos 50 o funcionamento de diligências regulares: do Porto para Braga e Guimarães, a partir de 1852; entre Lisboa e Porto, a partir de 1855.
Os novos meios de comunicação são agora introduzidos: o uso dos selos postais data de 1853; as linhas telefónicas do ano seguinte; o serviço telegráfico inicia-se um ano depois (1855); e o primeiro cabo submarino (de ligação a Londres), em 1857. Em 1874, a organização civil dos serviços de correios e telégrafos já ocupa mais de um milhar de empregados e assalariados (652 no telégrafo, 371 nos correios) (11).
É quando se intensifica a aplicação do vapor aos transportes marítimos e terrestres. Entre 1856 e 1872 mais que duplica o número das embarcações a vapor que demandaram os portos portugueses (12), enquanto as embarcações à vela começam a diminuir. Quanto aos caminhos de ferro (13), a primeira linha (Lisboa-Carregado) inaugura-se em 1856, e na década seguinte atingem a fronteira (1863, Évora), e estabelecem a ligação com o Norte (Gaia, 1864).
A expansão das redes rodoviária e ferroviária, assim como de outros melhoramentos materiais, estimula a concentração e a acumulação de capitais. É o fascínio da especulação financeira e a era da criação dos bancos. Entre 1858 e 1875, o seu número passa de 3 para 51. E em 1867 são liberalizadas as sociedades anónimas (lei de 22-VI), o que irá facilitar os grandes empreendimentos privados e a concentração crescente de capitais.
Entretanto iniciou-se a expansão demográfica. O número de habitantes, que no primeiro terço do século se havia mantido estacionário, passou no terço seguinte de 3 para 4 milhões (entre 1835 e 1871), e continuaria a subir até atingir os 5 milhões no final do século.
A concentração urbana começou também a verificar-se, sobretudo nas duas principais cidades do país: Porto viu a sua população duplicar-se em poucos decénios: de 59 para 105 mil entre os anos de 1838 e 1878; Lisboa, que em 1864 teria uns 190 mil habitantes, ia atingir os 390 mil no final do século.
A própria orgânica do aparelho do Estado se enriqueceu com a criação sucessiva de organismos especializados destinados a empreender e dirigir novas actividades, assim como a criar quadros técnicos profissionais: em 1852, o Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria; em 1857, a Comissão de Estatísticas do Reino; os Institutos agrícolas e industriais datam de 1852 (14), o Curso Superior de Letras de Lisboa foi criado em 1858, e as Escolas Normais primárias começam a funcionar em 1869 (15). Toda esta obra renovadora das estruturas materiais e mentais da sociedade portuguesa é complementada por reformas jurídicas que consolidam o novo regime: por exemplo, a supressão dos vínculos (1862-1863), e a adopção em 1867 dos Códigos Civil e Administrativo.
Pode dizer-se que desde então Portugal está definitivamente entrado nos tempos modernos, sob o signo das grandes realizações do capitalismo. O reconhecimento, consignado no Código Civil, da liberdade de associação como «direito originário e fundamental», irá por sua vez abrir possibilidades, entre muitas outras, de o movimento operário se organizar.
Também no domínio da indústria se verificam progressos substanciais que conduzem à concentração de massas operárias. É o caso, por exemplo, de 62 novas fábricas de têxteis que se abrem entre 1846 e 1860 (16). Enquanto a indústria dos transportes e a metalúrgica tiveram neste período a sua fase de arranque.
Ora, como se reflectiram os progressos da indústria no que respeita ao problema que essencialmente nos interessa, o da concentração operária?
Não há estatísticas específicas sobre tal matéria. Mas pode-se inferir do grau de concentração pela recolha de alguns dados dispersos, como sejam: informações marginais às estatísticas propriamente ditas, notícias da imprensa operária, e memórias de lutas reivindicativas (17). Estes dados não permitem ainda, é certo, apresentar quadros sistematizados e conclusivos. Mas, no entanto, podemos já apontar alguns índices significativos para o período que nos ocupa, o 3.º quartel do século (18).
Assim, por exemplo. No domínio da têxtil (algodoeira e lanifícios), trabalhavam em 1860-61 na fábrica de lã de Portalegre, 202 operários; 308 na Nacional de Fiação de Torres Vedras; e 1.596 nas fábricas da Covilhã.
No sector da metalurgia, em 1867 trabalhavam 200 operários na fábrica de Massarelos, no Porto, e 250 na Perseverança, em Lisboa. Mas na do Calvário (de Daupias), também em Lisboa, o crescimento foi espectacular: de cerca de 100 operários em 1844, passou em 1850 para meio milhar, e para 600 em 1867.
O Arsenal do Exército e da Marinha passou de 582 operários em 1834 para 750 em 1872-73. Enquanto na Imprensa Nacional, de centena e meia em 1859, passou para duas centenas em menos de um quarto do século (1872-73).
Na Vista Alegre (louças), em Santarém e em Lisboa (a do Cordeiro) havia no final do 3.º quartel fábricas com 200 a 250 operários, uma (Companhia de Lisboa) com 715; enquanto a indústria do vidro concentrava na Marinha Grande cerca de meio milhar (de 304 em 1855, a fábrica Stephen passou para 600 em 1879).
Duas outras indústrias contribuiram nesta época poderosamente para a concentração operária: a dos tabacos e a dos caminhos de ferro. Localizadas em Lisboa e no Porto, as fábricas de cigarros ocupavam em 1852 (ano em que já se verificou uma greve neste sector), 1.235 operários; antes do fim do século, este número iria quadriplicar (4.776 em 1896).
Quanto aos caminhos de ferro, de recentíssima criação, é significativo que em Janeiro de 1873 já tenha sido possível declarar-se uma greve, que abrangeu maquinistas, fogueiros e operários de oficinas.
O movimento operário ia assim acompanhando o desenvolvimento material e técnico accionado pelo capitalismo.
É sobre dados deste género, e tendo em conta as profundas alterações introduzidas na sociedade portuguesa na última vintena de anos, que melhor se compreenderão os acontecimentos sociais de 1871 e 1872. É quando surge, mais ou menos em consonância com a Comuna de Paris, a 2.ª geração socialista, e se verifica um novo surto de publicações a tratar de temas sociais.
Mas nesta altura, além de intelectuais como Antero de Quental, Oliveira Martins, Augusto Fuschini, Eduardo Maia e Batalha Reis, já aparecem também trabalhadores militantes, como José Fontana, empregado de comércio, Nobre França, tipógrafo, José Tedeschi, professor primário, e muitos anónimos operários, serralheiros, manufactores de tabaco, etc..
É com esta militância operária que se passa das realizações meramente intelectuais, como foram, por exemplo, as Conferências Democráticas realizadas no Casino Lisbonense nos meses de Maio e Junho de 1871, para as de carácter organizativo.
A Associação Internacional dos Trabalhadores exerceu então um grande papel instigador em Espanha e em Portugal.
A própria iniciativa das Conferências Democráticas pode ter sido inspirada pela realização em Madrid, dois meses antes, das conferências ditas de Santo Isídro, (nome da sala onde tiveram lugar, na calle de los Estudos) promovidas por elementos activos do primitivo núcleo organizador da Internacional (**).
A Comuna de Paris, por sua vez, também representa um marco no despertar das atenções em Portugal para as questões sociais.
Há um testemunho operário da época, muito singelo, que nos mostra a diferente natureza do interesse suscitado no espírito dos trabalhadores portugueses em resultado da Comuna de Paris: «Quando foi a guerra da França» - refere-se à guerra franco-prussiana - «reuniamo-nos numa praça arborizada e apreciávamos a nosso modo os sucessos. As nossas apreciações eram políticas. Seguiu-se-lhe a Comune, e o nosso pequeno grupo começou a discutir, as questões sociais. Não conhecíamos a existência da Internacional, a que os periódicos se referiam raramente, mas compreendemo-la e excitou-nos curiosidade».
Trata-se de uma passagem da carta de Nobre França dirigida a Engels, datada de Lisboa, 24 de Junho de 1872, e recentemente publicada em Portugal (19).
Com a excitação de curiosidade provocada pelos novos problemas suscitados pela Comuna de Paris, opera-se de facto em Portugal uma modificação na forma de encarar as questões públicas: os aspectos sociais passam a sobrepor-se, especialmente nos sectores operários e de tendência socialista, aos aspectos meramente políticos. E toma-se também consciência de que já não basta prègar doutrinas, é igualmente imperioso promover a organização de sociedades de resistência. É neste momento de viragem que verdadeiramente se inicia a formação do movimento operário português, de que vai surgir, no sector industrial, o primeiro surto grevista registado entre nós (20). Este surto resulta do novo espírito reivindicativo instigado pela A.I.T.. Às associações operárias havia-se passado a chamar então sociedades de resistência.
Não é linear nem clara a forma como nesta encruzilhada se processa a movimentação dos diferentes grupos sociais que intervém no dealbar da organização operária. Pelo contrário, este momento aparece marcado por uma complexa teia de intrigas e de pequenas conspirações que dificultam a análise do processo. São, por um lado, os reflexos da conspiração gerada no próprio seio da Internacional pela facção bakuninista da Aliança da Democracia Socialista. Esta facção foi a que enviou a Portugal delegados seus para criar a secção local da A.I.T.. Por outro lado, influe também a ruptura verificada no sector republicano, do qual então se afastam activos militantes, como Oliveira Martins e Antero de Quental, que passam, desde então, a alinhar na corrente socialista (21).
No estado actual dos nossos conhecimentos, cremos que é cedo ainda para tentarmos dissecar essa trama. Estão ainda a tornar-se conhecidas fontes de informação que até aqui se mantinham inacessíveis. Teremos portanto de avançar gradualmente, à medida que se vão inventariando e divulgando esses materiais.
Para já, temos bases de informação que nos permitem afirmar que o movimento operário português se formou desde 1871, e que a Associação Internacional dos Trabalhadores ocupou um grande papel nessa formação. Foi o caso nomeadamente do modelo organizativo - a criação de associações de resistência, onde eram admitidos os que trabalhassem em ofício, excepto patrões e mestres, ligados por sua vez entre si formando confederações. Este modelo, que estruturou as primeiras associações portuguesas exclusivamente operárias, era decalcado dos estatutos da A.I.T..
Também a deslocação a Lisboa de duas delegações da Associação Internacional, uma no Verão de 1871, e outra em Agosto do ano seguinte, tiveram uma grande importância no processo, até por serem representativas de facções opostas no seio da própria A.I.T.. A primeira era constituída por três internacionalistas espanhois, Mora, Morago e Lorenzo (9 de Junho a 21 de Agosto); a outra pelo médico cubano Pablo Lafargue e sua mulher Laura, filha de Carlos Marx.
Com a delegação de 1871, além de um primeiro impulso de mobilização e propaganda, introduziu-se em Portugal uma dupla organização à sombra da A.I.T.: um núcleo constituinte da Internacional propriamente dita; e um grupo bakuninista da Aliança (22).
É na sequência dessa dualidade organizativa que surge ainda no Outono desse ano, na região de Lisboa, uma dispersão de núcleos activistas. É um momento de confusão, em que intervém várias correntes ou grupos, procurando cada uma atrair a si o maior número de aderentes operários: são os aliancistas (23), são os internacionalistas propriamente ditos (24), são ainda os mentores monárquicos do Centro Promotor (25), e, enfim, os republicanos (26). Desta concorrência, porém, resulta uma intensificação do movimento associativista operário, que rapidamente vai atingir números substanciais.
A esta dispersão organizativa sucede, porém, um movimento reunificador, através de sucessivas fusões, assegurando ao operariado português a sua integração na Associação Internacional. É assim que, logo em Janeiro de 1872, se fundem aliancistas (Fontana, Antero) e internacionalistas (França, Tedeschi, Maia) numa só associação, a Fraternidade Operária, que vai passar a ser o organismo legal, com jornal próprio desde Fevereiro, «O Pensamento Social», onde actuavam os internacionalistas portugueses.
A cúpula organizativa da Fraternidade Operária assentava em ramificações de base que credenciaram o movimento operário português para aderir, logo no mês de Março (a 10) à A. I. T.. Na carta de adesão assinada por Nobre França e José Maria Tedeschi, afirmava-se que não obstante as grandes dificuldades a vencer neste país, já estava constituída uma Secção abrangendo 400 associados, havendo ainda mais três sociedades de resistência ligadas à Secção, uma com cerca de 300 associados, outra com 600 e a terceira com 50 (27), prefazendo portanto cerca de 1.350 associados. Este número continuou a subir em flecha: em Junho, 3.500 (28) e em Agosto 4.000 (29).
Foi esta força mobilizadora da Fraternidade Operária que acabou por avassalar o incipiente movimente operário português. A segunda delegação internacional, vinda a Lisboa em Agosto de 1872, pôde assim constatar, conforme escreve Lafargue numa carta a Engels, que «os internacionais portugueses começaram por ser aliancistas antes de ser internacionais». «Tedeschi disse-me que tinham considerado a aliança com um ponto para chegar à Internacional» (30). Com efeito, a Secção portuguesa da A.I.T. vai aparecer no Congresso desse ano, em Haia (Setembro), representado exactamente por Lafargue. É esse Congresso que vota a expulsão da fracção bakuninista, e a formação de partidos políticos operários distintos dos «senhores da terra e do capital» (31).
É depois disso que uma nova fusão vem dar ao movimento operário português uma feição unitária. A Associação Protectora do Trabalho Nacional e a Fraternidade Operária acabam, com efeito, por fundir-se numa só (Outubro de 1873), a Associação 18 de Março ou dos Trabalhadores da Região Portuguesa. Com as suas múltiplas associações de base, passa a constituir verdadeiramente a secção portuguesa da A.I.T.. É esta associação que por sua vez irá transformar-se, a 10 de Janeiro de 1875, no Partido Socialista em Portugal. Lembremos que o Congresso de Haia havia recomendado que o proletariado se constituísse em partido político distinto.
Portugal foi, assim, o primeiro país onde aquela resolução se cumpriu, já que a Alemanha, embora no mesmo ano, só quatro meses mais tarde viu surgir do Congresso de Gotha o seu Partido Socialista Unificado. Nos restantes países, os Partidos Socialistas são de criação mais recente (32).
Aquela trama de correntes e agrupamentos reflecte-se no primeiro jornal do movimento operário português, que nos anos de 1872-73, era também o orgão dos internacionalistas portugueses. Criado no seio da Fraternidade Operária, «O Pensamento Social» (1.º n.º, Fevereiro de 1872, último n.º, o 51, 5 de Abril de 1873) passou a ser ostensivamente declarado como seu orgão a partir de Agosto de 1872 (33). Mas já em Março na carta de adesão à A.I.T., se anunciava a junção de alguns números como sendo «o nosso jornal». Sabe-se, aliás, que foi com vista a reunir fundos para o seu lançamento que Antero havia redigido ainda em 1871, o folheto «O que é a Internacional». A própria legenda ostentada no cabeçalho da revista - Não, mais deveres sem direitos, não mais direitos sem devores - era extractada dos estatutos da A.I.T..
«O Pensamento Social» é um jornal muito referido mas pouco conhecido, pela sua raridade nas bibliotecas portuguesas. Ainda não foi feito um estudo analítico do conjunto dos seus 51 números. Recentemente, porém, obtivemos por fotocópia a colecção completa (34). Pelas sondagens de leitura que entretanto pudemos fazer, estamos habilitados a referir desde já, no contexto do nosso tema, alguns aspectos da sua importância. Por outro lado, começam agora a tornar-se acessíveis outros elementos de informação que em Portugal eram impensáveis antes do 25 de Abril. E assim também podemos dispor da carta que Nobre França dirigiu a Frederico Engels em Junho de 1872 (35), na qual se contém algumas informações muito úteis sobre a revista. Por ela se sabe quem inicialmente constituía a redacção - Nobre França, Tedeschi e Eduardo Maia. Foram esses que, por sua vez, resolveram aceitar a colaboração de Oliveira Martins, Augusto Fuschini e Batalha Reis, embora este último não tenha chegado a colaborar. E conhece-se também, a despeito de nunca apareceram assinados, a autoria de alguns dos seus artigos.
No conjunto dos seus números, «o Pensamento Social», é visivelmente um jornal de encruzilhada. De início, oscila entre o idealismo utópico (a organização pela palavra), o ideal pequeno-burguês (transformar o operário em proprietário) e a crítica económica (à propriedade, à oligarquia, ao regime fiscal). Defende a liberdade de associação, a igualdade económica e o acesso dos operários à instrução primária e técnica, assim como o mutualismo e as sociedades cooperativas de consumo (36). Nestas posições alinham os seus colaboradores identificados, mesmo Antero, Augusto Fuschini, Sousa Brandão e Oliveira Martins.
Mas por vezes aparecem também posições divergentes, a denunciar aquelas modalidades reformistas como sendo incapazes de resolver o problema social (37). A heterogeneidade é pois uma das suas características. Ora se sublinha a realidade do conflito de classes (38) ora se proclama o socialismo sob a fórmula evangélica de «amai-vos uns aos outros» (39).
Mas ao longo do seu curso, o jornal não mantém o mesmo grau de heterogeneidade. Até Maio é predominantemente proudhoniano. Considerado o «mais formidável pensador dos modernos tempos» (n.º 2), Proudhon é citado ora por Antero, ora por Oliveira Martins e Tedeschi. Em Junho, porém, há uma nítida fractura. O artigo atribuído a Antero, «A política do socialismo» (n.° 16) é no mesmo número contestado pela redacção (40).
E a partir de Julho são mais acentuadas as posições de feição marxista. Começa a ser explicada a teoria da luta de classes (n.° 19), e Carlos Marx passa a ser citado algumas vezes. Também são publicados os Estatutos Gerais da A.I.T. conforme a edição oficial (n.os 23 e 24). E se em todos os números apareciam já muitas notícias do movimento social nos outros países, e transcrições dos jornais internacionalistas espanhois («Emancipación» de Madrid, e «Federación» de Barcelona), agora começam a surgir múltiplas informações sobre os movimentos reivindicativos em Portugal. A partir de Outubro de 1872 e até final da publicação, as greves passam mesmo a merecer títulos de caixa alta e frequentemente na primeira página (41).
Por fim, publica em folhetins dois documentos marxistas: o «Manifesto inaugural da A.I.T.» (n.os 44 e 45), e o «Manifesto do Partido Comunista» (n.os 46 a 51). Mas isso não obsta a que, simultâneamente, dê também publicidade aos congressos aliancistas belgas (n.° 43) e espanhois (n.os 33 e 48), mesmo depois da expulsão dos bakuninistas do seio da I Internacional.
O que nos parece mais assente, isto é, uma consciência mais assumida no conjunto da publicação, é o espírito contido nos considerandos iniciais dos Estatutos da A.l.T., a saber, entre outros: que a emancipação da classe operária deve ser obra dos próprios trabalhadores; que os esforços dos trabalhadores para conquistarem a sua emancipação não tendem a constituir novos privilégios, mas a estabelecer para todos os homens os mesmos direitos e os mesmos deveres; que a sujeição económica do trabalhador aos detentores dos instrumentos de trabalho é a causa principal da escravidão sob todas as suas formas; que, enfim, a emancipação dos trabalhadores não é problema unicamente local ou nacional, mas sim um problema social, cuja solução interessa a todas as nações onde existe a civilização moderna.
É neste sentido que a revista assume, pela primeira vez em Portugal, a posição de uma consciência de classe autónoma. «O Pensamento Social» exprime a ruptura, a emergência, do movimento operário propriamente dito, e a afirmação da sua autonomia relativamente à classe dos patrões e possidentes. Assim, repudia o paternalismo burguês, que caracterizou a 1.ª geração socialista. Oliveira Martins e Fuschini foram aceites como seus colaboradores, mas não como seus mentores nem dirigentes. O movimento operário autonomiza-se e organiza as suas estruturas à base exclusivamente dos que trabalham por conta doutrém, adoptando a greve como meio de actuação reivindicativa. Esta divergência táctica fundamental será a fronteira entre o movimento operário propriamente dito, e os teóricos reformistas da sociedade burguesa.
Afora isso, «O Pensamento Social» aparece como plataforma de precário equilíbrio de várias tendências, que no futuro, porém, irão projectar-se em divergentes correntes ideológicas e tácticas. Tais divergências irão mesmo constituir um importante manancial da história do movimento operário português. Mas nos primeiros anos da década de 1870, essa história apenas começa, e as correntes não estão ainda suficientemente definidas e diferenciadas.
Em alguns pontos, porém, há uma unanimidade constante na revista. E isso é muito importante, porque constitui um dado novo na situação social portuguesa: considerar o proletariado como a nova realidade do século; as questões sociais superiores às questões políticas; o futuro pertencendo à revolução socialista; e a convicção generalizada de que nada mais havia a esperar dos códigos de liberdade assentes no domínio dos que possuem sobre os que trabalham.
São esses, com efeito, pontos dominantes do pensamento social que então começa a vigorar em sectores cada vez mais amplos da jovem intelectualidade portuguesa.
O movimento operário, uma vez constituído, irá seguir a via sacra de uma história longa, a princípio hesitante e quase sempre acidentada. Mas, paralelamente a ele, e em resultado da sua existência, a própria Monarquia tomará por vezes um certo pendor social. Para isso contribuiram os jovens intelectuais que desde o início da década de 1870 foram tocados pelos problemas do pauperismo, e aceitaram os princípios do criticismo socialista.
Um dos casos mais frisantes desta nova corrente é sem dúvida Oliveira Martins, colaborador de «O Pensamento Social». É por alturas da publicação da revista, que lança as suas primeiras obras de cariz socializante: a «Teoria Socialista» (1871) e «Portugal e o Socialismo» (1873) (42). Note-se, aliás, que uma parte deste último livro é preenchida por matéria tratada naquele jornal quase nos mesmos termos e citando os mesmos exemplos Trata-se do capítulo IV sobre «A Revolução e a Propriedade».
Mais tarde, como é sabido, Martins desliga-se do Partido Socialista e integra-se no Partido Progressista, e como tal será deputado e depois ministro (da Fazenda, em 1892). Os efeitos práticos da sua actuação política é certo que foram extremamente precários. Mas a sua oposição à oligarquia «regeneradora» será sempre orientada pelo criticismo socialista que adoptou nos primeiros tempos. São disso testemunho, entre outros, os estudos dispersos reunidos no volume de 1885, «Política e Economia Nacional». Nessa espécie de programa doutrinário para a política de Vida Nova de que foi paladino, lá aparece o que ele chama «compreensão lúcida e progressiva da missão do Estado»: essa missão – afirma - «abrange em si a iniciação e a protecção por via das quais as classes miseráveis têm de subir gradualmente à dignidade de cidadãos conscientes» (43).
Por isso, entre «as medidas mais urgentemente reclamadas pela economia social portuguesa» como ele diz, Martins inclui a de «promulgar um código do trabalho fabril, regulando as condições e o tempo do exercício diário, estabelecendo prescrições com relação ao trabalho das mulheres e crianças, organizando o aprendizado, criando instituições preventivas das consequências dos acidentes e da inabilitação pela velhice» (44).
Este programa, enunciado por Oliveira Martins em 1885, será com efeito aquele que se vai tentar executar antes ainda da proclamação da República. Data de 1889 a 1.ª lei laboral (a criação de tribunais de árbitros-avindores), logo seguida, no decurso da última década, de várias leis proteccionistas do trabalho assalariado: sobre mulheres e crianças (14-IV-1891 e 16-III-1893); redução para 8 horas do trabalho diário dos manipuladores de tabaco (23-III-1891); criação de bolsas de trabalho (9-III-1893); segurança dos operários da construção civil (6-VI-1895); caixa de aposentações para trabalhadores assalariados (21-V-1896 e 29-VIII-1907); segurança no trabalho para várias profissões (1897, 1898, 1900, 1902, 1903, 1908 e 1909); e obrigatoriedade, a partir de 1907, do descanso semanal aos domingos (7-VIII e 14-X-1907).
Esta actividade legislativa foi acompanhada de múltiplos trabalhos de análise social algumas vezes empreendidos ou encorajados como já foi sublinhado (45), por professores universitários e conselheiros de Estado.
É o caso, entre outros, do Prof. Ruy Ennes Ulrich, que em 1902 publica uma compilação crítica da «Legislação Operária Portuguesa» (Coimbra); do Prof. Anselmo de Andrade, que em 1904 prefacia o livro de José Lobo d'Ávila Lima sobre «O Movimento Operário em Portugal»; do Prof. Marnoco e Sousa, cujo nome aparece na portada do livro de Luís Gonçalves, «A evolução do Movimento Operário em Portugal» (1905); e do Conselheiro Eduardo Vilaça que em 1905 prefacia o livro de Fernando Emídio da Silva, doutor em Direito, sobre «O Operariado Português na Questão Social». Enfim, o próprio «Boletim do Trabalho Industrial» começará a publicar-se em 1905.
Esta será, a partir do final do século passado, a nova realidade em Portugal, decorrente da formação e da intensificação do movimento operário português.
(**) Nota sobe as conferências madrilenas ditas de Santo Isidro, que precederam as Conferências Democráticas de Lisboa
Tiveram lugar na Escola de Agricultura, numa sala designada de Santo Isidro, na calle de los Estudos em Madrid, nos meses de Março e Abril de 1871. (As Conferências de Lisboa decorreram entre 22 de Maio e 19 de Junho do mesmo ano).
Obedecendo os madrilenos ao propósito de propaganda e controvérsia, tinham sido convocados por circulares afixadas nas esquinas e enviadas a jornais e a personalidades políticas diferenciados. Nelas se acusavam as universidades, por usurpação da riqueza social, de estarem abertas ao rico que explora e fechadas ao pobre que trabalha, conforme sublinha a memória donde colhemos este testemunho de contemporaneidade (Anselmo Lorenzo, El Proletariado Militante, na recente edição espanhola, Madrid, 1973, pp. 145-153).
O presidente destas conferências era o estudante de engenharia, Celso Gomis regressado de um exílio em Genebra. O objectivo deles era expor a situação do operariado e defender a necessidade de a remediar com urgência. Realizaram-se nove sessões, sem hostilidade, a despeito da contestação das bases da economia liberal e da defesa dos princípios internacionalistas.
Terminaram por iniciativa dos próprios promotores quando ao abrir a última sessão, em 30 de Abril, o presidente declarou que tendo sido negativo o concurso prestado pelos intelectuais do privilégio, escasso em pessoal burguês e mais escasso ainda em ideias, e posto que os que viveram deram uma contribuição reconhecidamente ineficaz, os promotores das conferências rejeitavam os conselhos recebidos, contrapondo um ideal concreto e bem determinado: como representantes que se declaravam da Associação Internacional dos Trabalhadores, aspiravam a organizar a sociedade sobre a base do trabalho e a equitativa repartição dos seus produtos, para que cesse de uma vez e para sempre a opulência folgazã e o esforço do trabalho miserável.
Foram participantes activos destas conferências: Borrel (contra os economistas), Mora, Morago (que em Junho viriam a Portugal como delegados da secção espanhola da A.l.T.), Súñer e Capdevila (estes como representantes da ordem burguesa).
O corácter fortemente contestatário destes jovens intelectuais e militantes internacionalistas espanhois, de certo modo se reflecte nos propósitos, ainda assim bem mais comedidos, mas também contestatários do liberalismo individualista, dos promotores das Conferências Democráticas de Lisboa, ditas do Casino, iniciadas logo no mês seguinte, e cujo encerramento forçado foi aproveitado para denunciar as contradições legalistas da ordem estabelecida. Sem o radicalismo das conferências espanholas, os conferencistas lisboetas fizeram uma afirmação de virilidade intelectual que foi suficiente para alarmar as autoridades portuguesas que ordenaram o encerramento da sala do Casino Lisbonense. Um dos animadores, impulsionadores e organizadores destas confências foi, não esqueçamos, o internacionalista José Fontana, suíço de origem, e elemento de ligação, em Lisboa, com os internacionalistas espanhois.
(*) Este texto constitui a lição de síntese em concurso para Professor da Faculdade de Letras do Porto, em 7 de abril de 1978. Embora praticamante sem consequências na sua carreira académica, este concurso foi palco de uma última agressão intelectual a Victor de Sá, já em democracia, com as suas provas de agregação a merecer reprovação de um júri revanchista, presidido por Vitorino Magalhães Godinho.
_____________ NOTAS:
(1) Paul Bairoch, Révolution industriel et sous-développement, Paris, 1963.
(2) Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo (1881), 3.° v., Lisboa, Guimarães & C.ª, 1953, pág. 173.
(3) Lei de 7-V-1834, que considerava os grémios como sendo «outros tantos estorvos à indústria nacional».
(4) Folheto que sublinha, de mistura com ideias reformistas e pequeno-burguesas, a autonomização do movimento operário em Portugal. Transcrito in Carlos da Fonseca, A origem da 1.ª Internacional em Lisboa, Lisboa, Editorial Estampa, 1973, págs. 93-101.
(5) Quando das greves de 1905 na indústria conserveira de Setúbal, dizia um engenheiro da respectiva circunscrição industrial a propósito das máquinas de soldar então introduzidas: «A vantagem suprema delas é permitir aos industriais dispensar a parte mais remexida do pessoal». (cit. por M. Villaverde Cabral, O operariado nas vésperas da República, Lisboa, ed. Presença, 1977, pág. 40).
(6) O princípio apregoado pela República social do «direito ao trabalho» (garantia do trabalho) leva pela primeira vez ao governo (provisório), embora na posição subalterna de secretários do ministério dos Trabalhos Públicos (Pierre Marie) um trabalhador mecânico, o operário Alberto (Alexandre-Martin Albert), na companhia do jornalista e socialista Louis Blanc, este como presidente e aquele como vice-presidente da Comissão chamada de Luxemburgo, em cujo palácio parisiense sediava a direcção dos «atteliers nationaux» e o movimento de inquérito à situação dos trabalhadores.
(7) «A Esmeralda», n.º 12, Porto, 22-VII-850, in Victor de Sá, Perspectivas do Século XIX, 2ª edição, Inova, Porto, 1976, p. 78.
(8) Associação Operária, de Lisboa; Associação Tipográfica ou dos Operários. (Esta Associação, de que foi presidente Sousa Brandão, teve a sua origem numa greve tipográfica na oficina onde se imprimia o jornal «Revolução de Setembro», em 1849); Sociedade de Artistas e Operários para Teatros, Bailes e Filarmónicas; Associação de Sombreiros; Sociedade dos Artistas Lisbonenses. Outras associações criadas nesta época são a Fraternidade dos Sapateiros (1850) e a dos Tipógrafos do Porto (1852, tendo esta como presidente Custódio José Vieira).
(9) Por exemplo, Rodrigo da Fonseca Magalhães e António Rodrigues Sampaio, este seu presidente durante os dez primeiros anos.
(10) Já Alexandre Herculano afirmara em 1843 esse ideal, in «Da instituição das Caixas Económicas» (Opúsculos, VI) (Ver Victor de Sá, A crise do liberalismo e as primeiras manifestações da ideias socialistas em Portugal, 2.ª edição, pág. 199). Castilho e Oliveira Marreca reafirmaram-no em 1849: Castilho nos «Serões do Casal», crónicas no jornal «O Agricultor Michaelense» que em 1850 foram reunidos no volume intitulado «A Felicidade pela Agricultura» (in «A crise...», ob. cit., págs. 252-254); Oliveira Marreca no Relatório Geral do Jurado, in «Sociedade Promotora da Indústria Nacional. Exposição da Indústria de 1849» (in «A crise...», ob. cit., pág. 209). Sousa Brandão é peremptório em 1850: afirma no «Eco dos Operários» que não haverá um só operário «que deixe de concorrer com o resultado das suas economias para se tornar capitalista» (in «Perspectivas...», ob. cit., pág. 76). Antero de Quental ainda em 1872 repetirá o mesmo objectivo (in «O Pensamento Social», n.º 4).
(11) Gerardo Pery, Geografia e Estatística geral de Portugal e Colónias, Lisboa, 1875.
(12) As entradas passaram de 173 em 1856 para 398 em 1872. As saídas passaram de 178 em 1856 para 392 em 1872. (G. Pery, 1875).
(13) Já em 1844 se tinha criado a Companhia de Obras Públicas em Portugal com vista à construção do caminho de ferro de Lisboa à fronteira, mas o projecto então não foi por diante.
(14) Instituto Geral de Agricultura; Instituto Industrial de Lisboa; Escola Industrial do Porto.
(15) As Escolas Normais primárias tinham sido criadas em 1844, mas só agora começam a funcionar.
(16) Gerardo Pery, ob. cit., 1875.
(17) Carlos da Fonseca in Integração e ruptura operária, Lisboa, Estampa, 1975, pág. 36, já fez um primeiro ensaio.
(18) Para 1845, Joel Serrão já tinha constatado, através do Arquivo do Ministério das Obras Públicas, concentrações operárias superiores a 300 indivíduos por fábrica em Lisboa e Porto, chegando a 407 na Fábrica do Tabaco do Porto (in Temas Oitocentistas, Lisboa, Ática, 1959, pág. 35).
(19) Carlos da Fonseca, op. cit., pág. 169.
(20) Em 1872 nas fábricas de fundição de ferro, serralharias e artes correlativas: início na fábrica Linders (abolição dos serões), generalizada às demais fábricas com fundição (Perseverança, Burnay, Peters, Viúva Ramos, Bacheley e 14 mais pequenas); calafates (diminuição das horas de trabalho); fragateiros (pagamento de salários em atraso); tipógrafos do «Jornal da Noite» (pontualidade nos salários); tipógrafos da Casa Lallemant (contra o impedimento de se associarem); tanoeiros (aumento de salários). Em 1873 - Manipuladores de tabacos (3 greves), operários dos caminhos de ferro, fabricantes de massas, colchoeiros, cortadores, tecelões. Algumas delas (ferroviários, fabricantes de massas e colchoeiros) eram contra o impedimento de se associarem na Fraternidade Operária. (F. Emygdio da Silva, As Greves, Coimbra, 1913, págs. 270-271).
(21) Martins e Antero de Quental tinham colaborado na «República Federal», fundada em 1869 por Felizardo Lima. Em 1870, o próprio Oliveira Martins fundou «A República», em que também colaborou Antero, Batalha Reis, etc.. Por outro lado, o ex-padre João Bonança e o Conde de Peniche aparecem como mentores de uma facção de republicanos ditos «pinicheiros», a cujas intrigas se referem diversos testemunhos desta época.
(22) Testemunha-o, entre outros, um dos delegados espanhois nas suas memórias: Anselmo Lorenzo, EI proletariado militante, Madrid, Alianza Editorial, 1974, págs. 162-165. Diz terem-se entendido para esse efeito com Antero, Batalha Reis, José Fontana e mais 3 ou 4 jovens, entre eles um operário, durante a célebre conferência noturna num passeio de barco no Tejo.
(23) Secção chamada do Monte Olivete (residência de José Fontana), e Associação Protectora do Trabalho Nacional, em Alcântara, com Antero e João Bonança.
(24) «Nós éramos só quatro. Tedeschi, professor de instrução primária, Oratti, empregado no observatório meteorológico e antigo marceneiro; Tito e eu, tipógrafos da imprensa nacional». «Ao convite para formar um grupo de propaganda só Oratti se escusou, para não comprometer os seus interesses. A nós juntou-se Fontana, Maia estudante de Medicina, e Monteiro, logista e proprietário». «De nós, quem parece ter compreendido melhor a Internacional, éramos Tedeschi e eu». «Só Maia e eu somos intransigentes» - Nobre França, carta a F. Engels, de 24-Vl-1872.
(25) Contudo, não tendo sido homologados os novos estatutos, de feição internacionalista, aprovados em 19-X-1870, o Centro Promotor não conseguiu mais recuperar a sua antiga popularidade.
(26) Ferreira Nunes e João Bonança na Associação Protectora do Trabalho Nacional; Conde de Peniche no Bairro de Alfama, a Associação da Costa do Castelo ou de Solidariedade das Classes Produtoras.
(27) In Carlos da Fonseca, ob. cit., pág. 165.
(28) Carta de Nobre França a Engels, in C. Fonseca, ob. cit., pág. 171.
(29) Relatório de 15-VIII-1872 ao Congresso de Haia In Documents of the First International, Moscow, Progress Publishers, 1976, p. 263.
(30) Friedrich Engels, Paul et Laura Lafargue, Correspondance, t. III, Paris, Éditions Sociales, 1959, pág. 490.
(31) Resolução inserida no artigo 7.° dos Estatutos, adoptada por 29 votos contra 5 e 8 abstenções: «Os senhores da terra e do capital servindo-se sempre dos seus privilégios políticos para defender e perpetuar os seus monopólios económicos e submeter o trabalho, a conquista do poder político torna-se o grande dever do proletariado».
(32) Ao Partido Socialista em Portugal seguiu-se, ainda no mesmo ano de 1875, em Maio, o da Alemanha (P. S. Unificado na Alemanha, congresso de Gotha), e só mais tarde os da Espanha (P. Democrático Socialista obreiro, Madrid, 1879), da França (P. Operário Francês, Ruão, 1882, P. Socialista Unificado, J. Jaurès, 1904), da Inglaterra (Federação Social Democrática; Henry Myers, 1882, P. Laborista Independente, 1893) e da Itália (P. S. Italiano, Génova, 1892). Três anos mais tarde, o P. S. em Portugal mudou a sua designação para P. dos Operários Socialistas em Portugal.
(33) No n.° 24, de 17 de Agosto, «O Pensamento Social» anuncia que vai pertencer às associações dos trabalhadores da Fraternidade Operária e de outras associações idênticas, passando a ser «administrado pelos representantes das associações de classe». Na sequência deste anúncio, verifica-se a suspensão da sua publicação até Outubro.
(34) Existe nos arquivos da Préfecture de Police de Paris (Musée des Archives, rue des Carmes, BA-437), e deve-se ao agente da polícia francesa Lateux que, com o pseudónimo de Latour, esteve em Lisboa (no Hotel Central) até fins de Maio de 1873, para organizar os serviços de repressão contra os «communards» refugiados e o operariado em geral. Foi este polícia quem levou para França a colecção de «O Pensamento Social», com algumas anotações (Jacinto Rodrigues, Perspectivas sobre a Comuna e a 1.ª Internacional em Portugal, Lisboa, Slemes, 1976, págs. 65-71).
(35) In Carlos da Fonseca, op. cit., págs. 169-179.
(36) [Eduardo Mala], «Sociedades cooperativas de consumo», n.os 7 e 9, Abril de 1872.
(37) [Tomás Gonzalez Morago], «Associações Operárias», n.° 11, de Maio de 1872.
(38) [Paul Lafargue], «A luta de classes na história», n.° 10, Abril de 1872.
(39) [J. Tedeschi], «Paz aos homens», n.° 6, Março de 1972.
(40) O artigo, que abre a 1.ª página, faz a defesa do Estado e da Política: «que possa e deva mudar essencialmente a maneira de funcionar do Estado, obtendo-se outro carácter da política». Mas logo o texto seguinte torna explícita a divergência, afirmando que «parte dos redactores deste jornal não aceita e não defende alguma doutrina expendida no artigo que se leu. O que nele é nosso é a crítica dos factos contemporâneos que é de nós todos; a afirmação do estado, essa não é unânime». Na continuação desta nota redactorial (atribuída a Nobre França e Eduardo Maia), repudia-se expressamente o Estado, considerando-o «o resultado da imperfeição, da injustiça e da imoralidade sociais».
(41) «As greves», n.° 27 (20-X-72) e 32 (24-Xl-72); dos fragateiros, dos fabricadores de massas, dos fundidores (n.os 30, 31, 32 e 38); dos compositores tipográficos e impressores (n.os 32 e 33).
(42) Sobre a Teoria do Socialismo, o próprio autor reconhece que foi feita por «modo confuso e defeituoso» (nota 1, pág. 106 do Portugal e o Socialismo, ed. 1953). Mas na sua aplicação à sociedade portuguesa, que é o objectivo da obra de 1873, há já uma manifesta preocupação, de empreender - o que será preocupação constante da obra de Oliveira Martins - uma análise social, política, económica e financeira do país à luz do criticismo socialista expresso em «O Pensamento Social». O seu capítulo IV - «A Revolução e a Propriedade» - contém matéria tratada naquele jornal, quase nos mesmos termos, n.os 4 (Março, 72, «Quatro períodos e um artigo»), 9 (Abril, 72, «Um testemunho insuspeito», artigo de fundo atribuído a Antero), 12 e 13 (Maio, 72, «A teoria do juro»).
(43) Ed. 1954, pág. 13.
(44) Id., pág. 18.
(45) Manuel Villaverde Cabral, O Operariado nas Vésperas da República, Lisboa, Ed. Presença, 1977.
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