A geração de 1852

 

 

 

Victor de Sá 2

Victor de Sá (*)

 

 

Um erro de perspectiva, que dominou inteiramente durante a primeira metade do nosso século, fez que apreciássemos, com as deformações próprias dos estrábicos, a extraordinária importância da nossa evolução cultural do século XIX.

 

Dominados, por um lado, pelo prejuízo mental que resultou da reacção de feição tradicionalista contra o denegrido século; por outro lado, impressionados pelo espectacular revolucionarismo da polémica que a geração de 1870 travou com a velha mentalidade indígena, não nos temos debruçado com a atenção devida sobre o conjunto da evolução operada desde as invasões napoleónicas até à proclamação da República, centúria dramática e fecunda, no cadinho da qual mergulham as raízes da nossa própria mentalidade actual.

 

Não se verificou apenas, no decurso de Oitocentos, o reflexo ideológico e político da Revolução Francesa, que penetrou profundamente na nossa mentalidade durante a Revolução Liberal portuguesa; mas também toda uma variada gama de ideais de feição social implicados na revolução técnico-económica do industrialismo, e que, em meados do século, tinham atingido a maior acuidade, especialmente na Inglaterra, França e Alemanha.

 

Sem nos perdermos por agora numa digressão, que, contudo, será útil, sobre as implicações sociais da Revolução Industrial nos países mais adiantados da Europa daquela época, queremos especialmente chamar a atenção para o intenso reflexo que esse conflito de interesses e seu correlativo conflito ideológico alcançou no nosso país, de mentalidade afeiçoada pelo domínio teológico e pelo carácter provinciano que resultava da exploração rural como quase única fonte de actividade produtora.

 

Por isso nos causou grande satisfação a descoberta do pensamento sociológico do autor de uma crítica às Contradições Económicas de Proudhon, produzida no Porto em 1852. Surpreendidos com o que então nos pareceu uma precoce manifestação do pensamento português no domínio económico-social, supúnhamos que Amorim Viana era um caso ímpar daquela época. Mas já posteriormente demos notícia (1) de outra crítica substancial a Proudhon, publicada entre nós no mesmo ano, não, porém, no Porto, mas em Coimbra, e devida à autoria de Oliveira Pinto, contendo mesmo citações bibliográficas de Karl Marx.

 

Na continuação das nossas investigações, temos encontrado escritos da mesma época devidos à pena de escritores jovens que revelam inquietação social. Entre eles avultam os de Custódio José Vieira, que arrojadamente se confessava «republicano exaltado e socialista fanático». Possuidor de uma sólida formação histórica e filosófica, como Amorim Viana, foi menos especulativo do que ele, e, ao contrário dele, político militante, chegando a ser candidato a deputado em eleições que Viana publicamente apoiava, e sendo mesmo eleito em 1867 e 1876. Natural da Régua, exerceu a advocacia no Porto, onde, em 1871, foi também reitor do liceu.

 

Em 1852 colaborou com Amorim Viana na revista portuense A Península, sendo a sua colaboração especialmente de feição filosófica e de doutrinação sociológica, mas abrangendo também a crítica e a poesia. Este homem, que contava precisamente a mesma idade do autor da Defesa do Racionalismo, tinha com ele grandes afinidades ideológicas, e devem ter-se mantido amigos, pelo menos, durante a sua longa permanência no Porto.

 

Ficamos assim a conhecer um fenómeno de que a nossa crítica histórico-cultural parece não se ter ainda apercebido e que talvez seja justo denominar por «geração de 1852». Joaquim Martins de Carvalho (2) testemunha que «em 1851 principiou uma época florescente para a classe operária. As lutas civis haviam cessado, e a tranquilidade que daí proveio fez que as ideias se voltassem para o lado prático e útil, desenvolvendo-se de uma maneira prodigiosa o espírito de associação». Foi, portanto, neste novo clima, propício às actividades associativistas, que a geração de 1852 apurou o seu criticismo à luz dos ideais eclodidos na revolução francesa de 1848 e iniciou em Portugal a divulgação socialista das ideias.

 

Na realidade, é por volta de 1852 que se verifica a erupção, no nosso meio cultural, dessa plêiade de homens novos que aparecem a enunciar novas problemáticas. Duas revistas culturais se fundam nesse ano, de grande interesse e significado: A Península, no Porto, e O Instituto, em Coimbra. Em Lisboa, aparecera o opúsculo editado em 52, A Ibéria, de D. Sinibaldo de Más, adepto da confederação ibérica, forma que aos socialistas de então se afigurou como solução política apropriada para os povos peninsulares. Henriques Nogueira, que em 1851 iniciou os seus Estudos sobre a Reforma em Portugal, promoveu a publicação anual, a partir de 52, de um Almanaque Democrático. E Sousa Brandão, que fundara com Lopes de Mendonça e Vieira da Silva o primeiro jornal português de defesa do proletariado - Eco dos Operários (1850-1851 - surge como o grande animador das associações de trabalhadores, de cujo proselitismo resulta a fundação, em 53, do Centro Promotor das Classes Laboriosas.

 

Verifica-se por essa altura, portanto, um movimento social e cultural em todo o País, que mobiliza igualmente e alia proletários, políticos e intelectuais, sendo de notar que, entre estes, avultam homens de formação científica e técnica, especialmente matemáticos e engenheiros. É uma das características desta geração de 1852 a unidade entre o pensamento e a acção, a preocupação de mobilizar inteligência e aptidões humanas na transformação da realidade física e social.

 

A essa geração pertencem literatos, como Arnaldo Gama, Delfim Maia e Coelho Lousada; filósofos e sociólogos, como Pedro de Amorim Viana e Custódio José Vieira; críticos e divulgadores da história e da ciência, como Ribeiro da Costa e Almeida, Gaspar Ribeiro e Latino Coelho; economistas, como Viana e Oliveira Pinto; doutrinadores e militantes, como Lopes de Mendonça, Henriques Nogueira, Sousa Brandão, Carlos José Caldeira, Custódio Brás Pacheco, Francisco Vieira da Silva, etc.. Foi esta geração que iniciou em Portugal, quinze anos antes da geração de Antero, o curso do pensamento socialista entre nós.

 

É claro que o próprio pensamento socialista estava, nessa altura, apenas em formação; era pensamento a um tempo humanista e humanitário, de raízes históricas seculares, que na doutrinação de muitos pensadores antigos tinha alcançado já uma certa estruturação dos seus ideais, de feição militante no cristianismo dos apóstolos e nas comunas dos cristãos primitivos, mas que no século XIX, com o prodigioso desenvolvimento técnico que então se produziu, recebeu novos alentos. Por isso que até então os ideais de fraternidade e felicidade humanas eram transferidos para as regiões transcendentes do além, do outro mundo, de uma vida nova para depois da morte, em que o Reino dos Céus era prometido, sem dificuldade, pelos poderosos da Terra àqueles que aqui lhes sofriam a espoliação do seu trabalho e o desprezo pela sua dignidade pessoal. Mas agora que o vapor, accionando as máquinas, e a mecânica, reproduzindo-lhes os movimentos, multiplicava a produção em proporções até então nunca imaginadas, a máquina vinha imprimir ao problema social da distribuição das riquezas uma acuidade que se tornava dramática na medida em que, mantendo-se a propriedade privada na sua exploração, isso produzia uma acelerada acumulação de riquezas nas mãos de poucos e um alastramento impressionante de miséria nas legiões incontáveis dos que tinham de vender a preços de fome a sua força muscular de trabalho.

 

Foi, portanto, no terreno fértil do conflito entre o capital e o trabalho que o pensamento socialista, até ao século XVIII constituído por um ideal mais ou menos platónico e de realização longínqua, se desenvolveu e transformou num pensamento de feição imanente em busca de realização concreta e prática na Terra, a curto prazo. O Céu veio transferido, pelos novos apóstolos, do além para o terreno, ao sopro de uma nova rajada, em ânsias de justiça e equidade humanas.

 

Enquanto o Génesis prescrevia que - «a terra será maldita, ela te produzirá espinhos e abrolhos» -, agora, Saint-Just proclamava na tribuna da Convenção: «A felicidade é uma ideia nova na Europa», querendo com isso significar que estava nas mãos e na inteligência dos homens a possibilidade de transformar num sentido favorável as condições da sua existência.

 

Desde os primeiros ideólogos, contemporâneos ainda da Revolução Francesa (Saint-Simon em França, Godwin e Owen em Inglaterra, etc.), iniciou-se uma busca ardente de novas fórmulas de organização social que permitissem abolir as iniquidades gritantes que atiravam para degradante miséria as mais largas camadas da população activa. Eram exactamente os trabalhadores, agentes da produção e fautores da riqueza, os mais desafortunados: a única liberdade de que desfrutavam era a de viverem na degradação e morrerem na miséria. Constituíam uma classe à parte, que não beneficiava das novas garantias que tinham constituído a tríade ideal da Revolução Francesa - liberdade, igualdade, fraternidade -, de que apenas a classe possidente, a burguesia, era a usufrutuária. Por isso, as novas legiões de trabalhadores ficaram a constituir o proletariado, tal como os cristãos primitivos tinham sido considerados pela sociedade romana dominadora: homens que viviam à parte, que não cabiam nos quadros sociais estabelecidos. Mas enquanto os cristãos tinham como força apenas o ardor da sua fé, os operários alcançavam agora, unidos pela solidariedade que a concentração industrial propiciava, a consciência da própria força do seu trabalho, à custa da qual se acumulavam as grandes fortunas. Agora, não era através da conquista militar, mas da produção industrial, que se processava a exploração económica. E os operários, o proletariado, se eram a grande massa dos explorados, começavam, porém, através da associação, a organizar a sua força e a ilustrar na sua consciência as humanas aspirações da dignidade, que por sua vez teria de assentar na equidade e na justiça.

 

Foi neste cadinho que se desenvolveu o pensamento socialista. Não se tratava já apenas de uma pregação ideal, mas também de uma afanosa busca de métodos e de sistemas que permitissem a realização prática imediata desses ideais. Foi a época dos socialismos utópicos e pequeno-burgueses, a qual perdurou por toda a primeira metade do século XIX e que teve, em teóricos e apóstolos como Saint-Simon, Owen, Fourier, Louis Blanc, Proudhon, etc., os seus mais fervorosos adeptos. Era um socialismo ainda de transição para as formas sólidas e cientificamente estruturadas que na segunda metade se consolidaram, após o 1.º Congresso Internacional de Trabalhadores (Liga dos Comunistas), realizado em Londres em 1847, e do qual resultou o célebre Manifesto elaborado por Marx e Engels. Mas a importância ideológica e programática deste Manifesto só nos decénios posteriores alcançou a projecção que a sua importância implicava.

 

Até ao fim da primeira metade do século, praticamente e na realidade, foi o socialismo utópico que vigorou, preocupado mais em estabelecer fórmulas aprioristicamente estabelecidas do que em assentá-las numa análise objectiva da realidade social e das forças que nessa realidade actuam, tornando possível a sua transformação. Socialismo que, sendo embora utópico quanto aos objectivos, e idealista quanto ao método, radicou nos homens a convicção de que a ideia do paraíso devia ser atraída para a realização terrena, afastando assim o novo humanismo dos prejuízos resultantes da inoperância dos ideais transcendentes, que retiravam ao homem a confiança e a fé em si próprios e faziam dele presa passiva do fatalismo a que tendia a sua condição de espoliado.

 

A doutrinação dos socialistas utópicos alcançou, portanto, uma importantíssima função histórica na derrota dos preconceitos do transcendentalismo, ao mesmo tempo que sujeitou as contradições da nova sociedade capitalista a uma análise inclemente, que, por sua vez, gerou numerosos doutrinadores da moralização pública, os quais assentavam as suas doutrinas na crítica acerada do status quo vigente.

 

Foi o pensamento social dessa época que a geração de 1852 reflectiu e introduziu em Portugal. Geração constituída por ideólogos, críticos, doutrinadores económico-sociais, moralistas, que buscavam na especulação as directrizes mais adequadas à acção prática e intervencionista, que especialmente preconizavam. Não eram materialistas. Eram adeptos até de uma filosofia teísta, em que Deus figurava como postulado da razão e a Providência como garante de uma finalidade superior da conduta humana. À omniscência divina opunha-se o limite da razão humana, que apenas a podia entrever, em graus sucessivamente progressivos. Por outro lado, a sua religiosidade alimentava a fé em transformações sociais com vista à perfectibilidade, tornada possível por um constante e esclarecido esforço humano, não pela intervenção milagrosa do ente divino.

 

A mentalidade dos homens de 52 entronca nas correntes filosóficas do racionalismo e no criticismo dos empiristas do século anterior, que em Portugal já tinha inspirado o pensamento reformista de Verney e outros.

 

Foi esta geração também que em Portugal primeiro erigiu a crítica ao liberalismo e ao sofisma constitucional, que mais tarde encontraria em Oliveira Martins e Teófilo Braga os grandes demolidores das suas bases.

 

São ainda alguns destes homens os primeiros adeptos da solução republicana para o problema do regime político português.

 

É certo que já anteriormente, na revolução de Setembro (1836), foram aproximadamente estes ideais que animaram a erupção popular que pela primeira vez abalou as traves mestras do edifício constitucional do liberalismo e atraiu o povo, a arraia-miúda, o nascente e ainda tímido proletariado português, à participação activa na vida cívica nacional. Mas essa primeira manifestação foi vaga e amorfa, foi uma força e uma vontade que se manifestaram, sem dúvida, com toda a pujança da sua espontaneidade, mas ingénua e não informada ainda por uma reflexão ideológica.

 

É a geração de 1852, enriquecida com a experiência da revolta portuguesa da Patuleia (1847) e da Revolução de Paris de 1848, a que cumpre a missão histórica de estruturar essas aspirações populares já claramente afirmadas. Ela erigiu os novos ideais, dilucidando-os através de uma crítica sistemática e de uma análise à sociedade portuguesa, embora mais dominada por preocupações éticas e reformistas do que científicas e revolucionárias. Claro é que não dispunham ainda para essa análise das conclusões cientificamente estabelecidas, que nas sociedades industrialmente mais evoluídas estavam então a sistematizar-se. Mas deram o primeiro e mais sólido arranque para a crítica que tornou possível à geração de 1871 (Antero, etc.) a sua fundação demolidora, embora lamentavelmente inconsequente.

 

O seu magistério é exercido principalmente através da imprensa. «O jornalismo, que até aí era mui limitado», testemunha Martins de Carvalho (3), «tomou o lugar que lhe competia, e todas as classes tiveram os seus advogados na imprensa.» Os jornais e revistas, estas epecialmente, desempenharam no século passado uma função laicizadora da cultura que se tornou imperiosa após a extinção das ordens monacais, que eram os antigos centros da cultura nacional. Função laicizadora em que se empenham A Península e O Instituto, como anteriormente se empenhara O Panorama de Alexandre Herculano e outros.

 

Em 1852, nem todos os intelectuais novos e ávidos de novidade são claramente socialistas. Oliveira Pinto, por exemplo, é um livre-cambista. Mas em todos se encontram claras manifestações de um criticismo reformador, cuja análise é do mais alto interesse promover, para esclarecimento e orientação das gerações actuais, herdeiras da sua inquietação e do seu espírito intervencionista.

 

A geração de 1852 e o intercâmbio cultural com a Espanha

 

Desde 1640 que as relações entre Portugal e a Espanha eram menos íntimas. E se, no decorrer das décadas, se tinham normalizado as relações entre os dois Estados, nos domínios político e diplomático; se, mesmo no plano militar, os exércitos de ambos os países se encontraram em campo comum a batalhar lado a lado, aquando da campanha do Rossilhão, por exemplo - a verdade é que ao chegar-se a meados do século XIX mantinha-se intransposto ainda, em grande parte, o fosso das relações culturais e do recíproco conhecimento das literaturas e progressos científicos dos dois povos vizinhos.

 

É a partir da Revolução Liberal que começa a verificar-se a aproximação entre os dois povos; frente à solidariedade dos absolutistas, que não reconhecem fronteiras na defesa dos seus interesses de classe, deram-se as mãos os povos oprimidos de ambos os lados. A princípio, é a identificação das aspirações políticas que os desperta. Mas, efectuada a revolução portuguesa (1820-1834), novas aspirações se radicam.

 

Na realidade, depois de despertada a consciência cívica de mais largas camadas da população, os seus anseios de maioridade política manifestaram-se através da revolução de Setembro (1836), que procurou dar satisfação às exigências de enriquecimento espiritual através da instauração da instrução pública, que data desse período.

 

E já em 1841, na Revista Universal Lisbonense, o grande pedagogo que foi António Feliciano de Castilho, clamava, no n.° 2 do periódico, a favor da união e conhecimento mútuo das literaturas peninsulares.

 

Mais tarde, a Revista Popular também se esforçou por tornar conhecidos entre nós jornais e publicações espanholas, iniciando mesmo a permuta com duas revistas publicadas em Madrid, o Semanário Pitoresco e a Ilustratión. Chegou então a ser proclamada até a necessidade de se publicar um jornal comum às duas literaturas.

 

Em 1849 apareceu nesse sentido, publicado em Badajoz, um pequeno jornal e de curta duração: El Frontero, revista literária de Espanha e Portugal. Seguiu-se no mesmo propósito a Revista del Mediodia, em que colaboraram, nomeadamente, escritores portugueses: Rebelo da Silva, Lopes de Mendonça, Lobo de Ávila, Barbosa e Silva, etc.. O primeiro ocupou-se da literatura portuguesa contemporânea; Lopes de Mendonça, de uma notável figura das letras espanholas, D. José Zorrilla; e Lobo de Ávila defendeu a ideia da criação de uma Liga das Alfândegas Peninsulares.

 

Com a Revista del Mediodia manteve intercâmbio um jornal portuense, o Eco Popular, através de um tal Sr. Rivera, que vivia em Lisboa, e ligado aquela revista. Porém este senhor abandonou a capital portuguesa e interrompeu-se o intercâmbio, que também foi de curta duração, apenas até ao n.° 3 da revista (4).

 

Que esse desejo de mútuo conhecimento entre Portugal e a Espanha era especialmente alimentado pelas élites mais interessadas na emancipação popular prova-o ainda a circunstância seguinte: desde o Outono de 1851 que a Sociedade de Instrução dos Operários, criada em Coimbra pelo visconde de Ouguela e pelo Dr. Filipe de Quental, instituíra cursos de instrução primária e secundária; pois logo no 1.º curso, além da leitura e da escrita, se ensinavam os princípios gerais de geografia - «com especialidade a da Península» (5).

 

Depois dessas primeiras tentativas de aproximação cultural, foi à geração de 1852 que especialmente coube a iniciativa e o esforço para o estreitamento dos laços culturais entre Portugal e a Espanha. A revista A Península foi o órgão que consubstanciou esse ideal.

 

A afirmação da consciência democrática portuguesa emparelhou desde o início com o sentimento de fraternidade entre os povos peninsulares.

 

A primeira ponte lançada para quebrar o isolamento entre as duas margens foi projectada e realizada no Porto. Foi quando uma plêiade de novos, em oposição ao estado de indiferença e apatia cultural que então por cá reinava, se abalançou à empresa temerária de publicar uma revista, propondo-se «principiar - principiar unicamente - a tarefa de fazer conhecida entre nós a literatura espanhola, bem como o grau do desenvolvimento a que têm chegado alguns ramos da ciência social na nossa irmã e vizinha». Era um terreno vasto, que essa geração de pioneiros teve a consciência de arrotear pela primeira vez. Mas lançaram-se ao empreendimento com denodo, pois A Península publicou-se regularmente todas as semanas durante ano e meio consecutivo (1852-53). Foram obreiros da empresa: Ribeiro da Costa e Almeida, Pedro de Amorim Viana, Arnaldo Gama, Delfim Maia e Coelho Lousada. Colaboraram assiduamente: Custódio José Vieira e Delfim Maia.

 

Na consecução dos seus propósitos, a revista inseriu, no decurso da sua publicação, vários estudos sobre temas espanhóis. De Arnaldo Gama, várias séries de artigos, uma sobre José Zorrilla, outra sobre Gines Perez de Hyta, e ainda dois estudos, um intitulado «Macias, El Enamorado», outro «O Chefe dos Abencerragens», respeitante à história de Granada no século XVI. Delfim Maia subscreveu um estudo sobre Fernão Cortez e outro sobre as obras poéticas e dramáticas de Martinez de Ia Rosa. Ribeiro da Costa, Coelho Lousada e Amorim Viana também escreveram sobre temas que respeitam à cultura espanhola.

 

Que todo esse esforço, no entanto, se debatia com as maiores dificuldades, sobretudo de informação, torna-se patente através dos escritos de dois colaboradores, Custódio José Vieira e Ribeiro da Costa. O primeiro, ao fazer a crítica à edição em português da célebre monografia de Sinibaldo de Más intitulada Ibéria (Lisboa, 1852) e que hoje se sabe ter sido traduzida e prefaciada por Latino Coelho, mas que na altura, por razões de segurança, saiu como publicação anónima, Custódio Vieira, que se considera «sectário da ideia principal que serve de assunto deste opúsculo», confessa-se desconhecedor dos nomes dos seus autor e tradutor e exprime-se de modo a convencer-nos desse desconhecimento.

 

Ribeiro da Costa denuncia, num elucidativo artigo, «Sobre as Relações Literárias de Portugal com a Espanha», publicado no n.° 21 (8 de Junho de 1852 - 1.º vol., p. 253), o lamentável estado das relações culturais luso-espanholas e as tremendas dificuldades que então se verificavam em Portugal para obter informações culturais relativamente aos nossos vizinhos: «Em Portugal não há um só livro moderno espanhol impresso em alguma tipografia espanhola. O que sabemos e o que podemos haver da literatura e ciência modernas de Espanha devemo-lo às edições francesas.» E para documentar a sua afirmação discrimina os títulos e autores das poucas obras espanholas conhecidas em Portugal através de edições francesas: são nove obras literárias, três de história, uma de geografia e outra de economia política. Nada sobre direito, filosofia ou ciências físicas e matemáticas.

 

«Realmente, é vergonhosa a nossa ignorância», continua Ribeiro da Costa. «Ao passo que estamos em dia com todas as obras que a ciência e a literatura publicam quotidianamente em França, que temos algum conhecimento da literatura inglesa e que começamos a estudar os livros alemães, apenas um ou outro livro espanhol nos chega às mãos vindo de França, onde se imprimiu, sem que um só volume nos venha directamente da Espanha.» Queixa-se dos livreiros que se recusavam, pelo menos os do Porto, a aceitar encomendas para mandar vir de Espanha.

 

Em Espanha, por sua vez, verificava-se a mesma dificuldade relativamente ao livro português: «Nas lojas de livros de Espanha não se encontra à venda um só livro português, nem os homens lidos têm conhecimento das obras modernas de Portugal, e mesmo das antigas apenas conhecem poucas!» - segundo um relatório apresentado ao Governo por um professor da Universidade de Coimbra.

 

Os redactores da revista portuense procuraram estabelecer permuta com jornais literários de Madrid, para o que lhes enviaram A Península, mas nunca alcançaram qualquer resposta. E mesmo pagando adiantadamente a assinatura de uma dessas revistas ao seu correspondente, «a quem pedimos e rogamos com insistência» que a remetessem sem falta, «voltamos segunda, terceira e mais vezes a fazer a mesma recomendação, e ainda até agora não recebemos um número sequer». Foi, pois, em circunstâncias desesperantes que se desenvolveu esta primeira tentativa de intercâmbio cultural luso-espanhol.

 

Ribeiro da Costa atribui a causa das dificuldades à «ignorância e desmazelo principalmente dos nossos livreiros», que entediam dever manter-se tudo como estava, «que as barreiras hão-de ser sempre as mesmas, que a distância que nos separa há-de ser sempre como se a Espanha fosse onde é a Turquia, os Espanhóis e nós vizinhos ocultos, camaradas desconhecidos e irmãos desirmanados».

 

Da constatação do mal passa à sugestão de soluções. É, de resto, uma das mais salutares características dessa geração intervencionista de 1852: não desligar a enunciação teórica da solução prática. E, assim, apoiando embora uma proposta do professor universitário no sentido de estabelecer o intercâmbio entre lentes e compêndios escolares dos dois países, denuncia a insuficiência dessa solução, que - diz - «é nada para a sede que padecemos; a literatura fica fora deste quadro; estaremos em dia com a ciência que se cultiva em Espanha, mas ignoraremos a sua literatura, o seu jornalismo, a parte mais popular e mais compreensiva do seu progresso literário». Quer dizer, não o satisfaz o contacto meramente académico e oficial. Pertencente a uma geração arreigadamente democrática, reivindica formas populares de intercâmbio, de que a literatura e o jornalismo eram ao tempo os veículos mais acessíveis.

 

Foi a partir dos esforços dessa pioneira geração de 1852 que sobretudo se iniciou a aproximação cultural dos dois povos peninsulares.

 

 

 

 

 

(*) O texto que aqui reproduzimos foi publicado no volume ‘Perspectivas do século XIX’, cujos originais foram dados ao editor em 1962. Reflete uma afinidade eletiva muito marcada que Victor de Sá sempre manteve para com os primeiros socialistas portugueses. Noutro ensaio do volume é longamente recenseada a primeira imprensa socialista – ‘O Eco dos operários (1850-51), ‘A Esmeralda’ (1850-51) e ‘A Península’ (1853-53) – e analisada a produção inteletual dos seus principais plumitivos - Lopes de Mendonça, Sousa Brandão, Marcelino de Matos e Custódio José Vieira, transcrevendo-se largos excertos seus.

 

Victor de Sá - Perspectivas

 

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NOTAS:

 

(1) Seara Nova, n.° 1974, Abril de 1960, o qual se reproduz no capítulo seguinte.

 

(2) Apontamentos para a História Contemporânea - Imprensa da Universidade, Coimbra, 1868.

 

(3) Obra citada.

 

(4) Não consultámos directamente estas publicações: estamos a referi-Ias através de apontamentos colhidos nas primeiras revistas socialistas portuguesas, de que nos ocupámos em capítulo antecedente.

 

(5) J. Martins de Carvalho - Apontamentos para a história contemporânea, Coimbra, 1888.