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Da estabilidade ao movimento
“O antigo sucumbe, os tempos modificam-se, E sobre as ruínas floresce uma vida nova!” Schiller
Vasco de Magalhães-Vilhena (*)
Em 89 eclodira em França a revolução.
Surtas no século XI, mercê de factores vários formadas por alturas do século XVI e desde então em movimento ascensional, unidos os seus diversos sectores no Terceiro Estado as classes urbanas francesas guindaram-se ao poder.
A 14 de Julho caíra algo mais do que uma fortaleza: um símbolo. O Ancien Régime tombara por terra. E com ele a dominação de um corpo social fora por momentos afastada do centro da cena política.
As águas muito tempo contidas pela represa transpõem o leito. Cavam-se sulcos profundos e elementos novos vão sendo progressivamente trazidos para a luz. É o momento das grandes surpresas. Na véspera ainda, julgava-se a monarquia mais consolidada do que nunca, e intangíveis os privilégios senhoriais.
Há na história um fundo permanente, subterrâneo e misterioso. As guerras, as revoluções, as resoluções aparentemente súbitas, são o resultado de meditações prolongadas, de interrogações e dúvidas, «das deliberações silenciosas de que se compõe a vida muda» da consciência dos povos; numa palavra: «o fruto de uma existência silenciosa». Jean-Richard Bloch, com a penetração psicológica que lhe é própria, inteligente e subtil, viu bem o caso.
Reparai naquele homem que preocupado com a direcção do trânsito atravessa neste momento a rua, ou naquele outro que descuidado sorri para a companheira: «au fond d'eux, quelque chose poursuit et accompli son travail. Au fond d'eux, une observation, une anecdote. une image, déposées par le journal ou par une conversation, font leur chemin». É assim a vida dos povos. Por detrás do entrecruzar constante dos grandes feitos, do tumultuar incessante da vida quotidiana, realiza-se a vida secreta das nações, forjam-se obscuramente os destinos da civilização.
Num dado momento a marcha regular interrompe-se, as contradições acentuam-se, os antagonismos estão patentes aos olhos de todos. É o momento das grandes surpresas. O que havia anos se vinha preparando por um intenso e admirável trabalho, e até aí se conservara oculto, transparece. Todos se apercebem, enfim, que a grande ruptura se produziu e que a vida não vai um dia recomeçar como outrora. O tumulto das ruas é diferente. Há qualquer coisa de diverso nos olhares dos homens. Os próprios monumentos falam uma linguagem nova, têm um outro significado. Fora assim em todos os instantes graves da história, era assim nos dias decisivos que antecediam a subida de Luís XVI ao cadafalso.
Na sua profundidade, a Revolução Francesa foi longamente preparada pela formação das camadas sociais urbanas, pela crescente desagregação da orgânica feudal, pelo aparecimento de modos novos de produção agrícola e industrial, pela acção dissolvente e construtiva das correntes ideológicas próprias do novo estado de coisas. Para seguir todos os traços essenciais deste vasto processo através da rede de causas de uma prodigiosa complexidade, arrancando a ideia à confusão caótica para seguir-lhe o curso profundo, torna-se necessário remontar longe, tão longe quanto o preciso para assistirmos aos primeiros acordes do espírito moderno, tanto no domínio prático da acção como no intelectual.
«Após o longo período de decadência e anarquia que se sucedeu à dissolução do império carolíngio, numerosos índices de uma vida nova aparecem nos países civilizados da Europa desde a segunda metade do século XI» (Johan Nordström).
Alargam-se as comunicações internacionais. Por toda a Europa despertam as actividades económicas. A agricultura e a indústria tomam um novo impulso, o comércio amplia as suas zonas de influência. Desenvolvem-se entre as aldeias vizinhas as relações de troca. Erguem-se cidades novas, reconstroem-se as antigas, e as riquezas e a população voltam de novo, pouco a pouco, aos aglomerados urbanos. Modificações profundas atingem a vida social, política e económica.
Desde o século V, desde que com a desagregação do império se destruíra o centralismo romano, até à organização completa da sociedade feudal, seis, sete centúrias mais tarde, a situação dos núcleos citadinos vinha-se agravando. Só no momento em que o feudalismo se estabeleceu, reorganizada a Europa por um compromisso entre o direito privado romano e o direito comunal germânico, abandonada a vida errante e fixados os homens à terra, as cidades retomam certa actividade e influência. Não são já como na idade antiga postos administrativos, nem mesmo grandes mosteiros ou castelos, mas residência de mercadores, centros industriais e de comércio.
Com o engrandecimento das povoações acasteladas formam-se os burgos. Aumentam as facilidades de troca. Os artífices, ainda dependentes dos proprietários dos feudos, afluem às cidades para estar mais próximos do mercado, muitos se estabelecem nestes novos centros, que desde o século X irrompem por toda a Europa ocidental. Desta forma e com o andar dos tempos, as aldeias de tráfico mercantil se vão pouco a pouco transformando. São agora já cidades embrionárias e, individualizando-se do resto do mundo feudal, alcançam um significado económico independente. Ao mesmo tempo, à medida que a cidade se sobrepõe ao campo, separam-se as populações urbanas e campesinas.
A agricultura começa perdendo a sua importância, na medida em que a actividade artesã oferece maiores possibilidades e se elevam as remunerações do trabalho citadino.
Submetidos aos liames feudais, sujeitos a pesados tributos pela posse e cultura do solo, debilitada a vida rústica, os servos abandonam as alfaias trocando o campo pela cidade. Apenas o conservantismo, a inércia e a tradição familiar os detêm, por vezes. Os mais audaciosos e afoitos deixam suas aldeias: atrai-os a carreira aventurosa do comércio.
Sente-se a falta de rurais e jornaleiros. Cobrem-se de urzes e mato as terras outrora férteis; os rebanhos invadem os campos de cultivo. Engrandecem-se os burgos, são mais numerosas as suas populações e cada dia mais próspera a sua indústria.
A sociedade adquire mais vastas amplitudes. Convertido o burgo em centro económico da região, aumentam visivelmente a extensão e variedade da produção social. O tráfico, excedidos os limites da economia natural a que a Europa até aí restringira o seu viver, é agora mais constante e regular: abandonada a imobilidade de uma vida agrícola sedentária e local, às feiras periódicas sucedem-se os mercados permanentes e a comunidade-aldeia e as próprias fazendas feudais são atraídas para o comércio. À economia senhorial isolada sobrepõe-se por toda a Europa a economia urbana regional.
Quaisquer que sejam as particularidades locais, o espectáculo é sensivelmente o mesmo por toda a parte Desenvolvem-se os meios de comunicação: estendem-se as redes de estradas, erguem-se pontes, embarcações mais velozes e de maior calado são construídas. Progride a técnica industrial e dispõem os obreiros de maiores quantidades de matérias-primas.
Excedido o tempo em que o artífice se dedicava aos diversos ramos do seu mester, e para satisfazer crescentes necessidades, organizam-se as actividades criando-se um certo número de profissões especiais. Opera-se deste modo, necessariamente, uma divisão no trabalho. Acrescido o número de mercados, na proporção em que as relações entre as cidades e entre estas e as aldeias aumentam, ao produtor é-lhe já impossível ocupar-se da colocação dos artefactos.
Alargada a área dos centros económicos, o pequeno produtor perde o contacto com o mercado, agora ilimitado e distante. Daí inevitáveis consequências: a produção e distribuição, que tinham até esse momento caminhado indissoluvelmente unidas, constituindo como que o verso e o reverso de uma só medalha, separam-se.
Aumentada, portanto, a produção com as crescentes actividades artesanais, o regime de distribuição existente, amoldado às condições anteriores, abalado de um modo mais ou menos forte, mais ou menos rápido, não podia subsistir. Acompanhando os progressos de especialização dos métodos técnicos, as duas funções fragmentam-se. Aos produtores, por um lado, e aos distribuidores, por outro, cabem-lhes agora missões distintas. Assim surgem novas diferenças sociais e se estabelece na sociedade uma nova correlação de forças.
Idêntico fenómeno ocorrera séculos antes, na Grécia antiga, ao dissolver da constituição gentílica; acrescida a divisão do trabalho com o antagonismo entre os centros aldeãos e citadinos, surgira na sociedade um elemento novo. Verificara-se o aparecimento de um grupo social não ocupando directamente no processo produtivo. Tinha por missão dominante, por seu principal objectivo, o estabelecimento das trocas em larga escala, o transporte de produtos. Era o necessário e indispensável intermediário, neste momento em que o número de mercados se ampliava consideravelmente, dos produtores entre si e entre os produtores e consumidores.
Emancipa-se o trabalho urbano, não-campesino, e ao mesmo tempo diminui a servidão da gleba. Numerosos elementos da população, abandonada definitivamente a terra, vêm engrossar as fileiras artesãs. E em breve tempo, os artífices das cidades «medievais» «pela primeira vez na história com esta amplitude - escreve Werner Sombart (1) - constituem uma camada social de indivíduos independentes e livres, sem ser proprietários, logrando a sua liberdade e autonomia mediante o trabalho de suas mãos».
Simultaneamente, adquirem mais vincado relevo as transacções comerciais, a que um número cada vez mais elevado de pessoas consagra o melhor das suas energias. Assiste-se a um rapidíssimo desenvolvimento do ramo da produção constituído pela distribuição de mercadorias.
Decai a velha ordem feudal. Paralelamente, e como reacção às violências que havia tempo se vinham acumulando por parte dos senhores contra a classe mercantil, estende-se a rebelião comunal.
Iniciada não se sabe ao certo quando, talvez no decorrer do século XI, a luta pela autonomia das cidades, e de certo modo também pela reivindicação de uma reforma religiosa, atinge toda a Europa. Como um movimento espontâneo e geral, resultante de uma situação idêntica, mas - poder-se-á dizer - não de carácter unânime e concertado, as comunas (concelhos se lhes chamou em Portugal) sublevam-se.
Em guerra aberta com seus senhores, unidas por um mesmo pensamento de resistência, rompendo os vínculos feudais, as populações das cidades têm o seu primeiro acto político de corpo social. Munidos de quantas armas dispõem, exprimindo sentimentos espontâneos de protesto e de cólera, por toda a parte vibram seus ataques sobre os castelos. E dos burgos, o movimento de emancipação estende-se às massas camponesas. Os motins e arruídos sucedem-se. Ante o poder combativo do «poboo mehudo» a nobreza recua. No século XII, confirmada a autonomia administrativa pelos forais, a libertação das comunas é um facto.
A prosperidade do comércio e da indústria impulsionara um vigoroso desenvolvimento à divisão social do trabalho entre os diferentes sectores da produção.
Ofícios manuais, navegação e agricultura, tudo se diferencia em infinitos ramos. A população divide-se, segmenta-se nuns tantos grupos profissionais firmemente unidos às suas ocupações.
Criados pela distribuição do trabalho entre as cidades e os campos, entre os centros rurais e de indústria, e entre os diversos ramos do trabalho, estes novos grupos, apenas ligados entre si pelas mesmas normas do processo produtivo, dão por sua parte origem a novos interesses, criam por sua vez organismos novos para dar realidade e vigor a esses mesmos interesses.
Ao quadro principal da população dos burgos formado pelos primeiros habitantes e proprietários urbanos e rurais acrescentaram-se os negociantes de pouco trato e os mercadores.
Corrompe-se a unidade populacional das cidades. De toda a parte e em tão grande número afluem marítimos e camponeses e escravos que, por vezes, essa população heterogénea, de desenraizados vindos não se sabe de onde, é social e numericamente mais considerável que a dos próprios naturais. E com essas populações, são novas crenças e ideias, novos usos e costumes, que pouco a pouco se vão infiltrando na vida europeia, quebrando-lhe a sua linha de continuidade, o seu ritmo tradicional.
Sob a acção decisiva de um movimento de trocas intenso, da dominação cada dia crescente do mercado e do poder do dinheiro, criando novas atitudes perante a vida mesmo entre as gentes camponesas, sucessivamente vão tendendo a desaparecer os antigos hábitos patriarcais e até - porque não dizê-lo? - certos ritos de magia. Todos os conhecemos das nossas aldeias ou através de páginas de literatura de um realismo magnífico. Em romances sobre a vida da velha Rússia dos tsares, numerosas são as vezes em que se nos fala das procissões dos mujiques pedindo a intervenção divina contra a seca, contra a fome e contra a peste, ou para afastar da terra os maus-espíritos. É à decadência destes e de tantos outros costumes por toda a Europa central e ocidental - será talvez excessivo falar de desaparecimento - que a modificação das condições de vida anda estreitamente ligada. Um homem que percorre as rotas comerciais, dominado por esse amor da especulação e do lucro que levaria Gutenberg a abrir pela primeira vez em madeira as letras dos copistas (2), um homem que sofre o peso do dinheiro e se sente envolvido pelas relações estranhas do mercado, não pode pensar e olhar a vida como um camponês feudal ligado à terra e cultivando-a com sua família, ou como o mujique tolstoiano do império tsarista. Há um mundo que os separa.
Enquanto o comércio urbano se desenvolve, as camadas inferiores dos habitantes citadinos transformam-se em comerciantes. A classe mercantil vê deste modo crescer a sua importância no conjunto das forças sociais, criando assim as condições necessárias para um desenvolvimento independente. E este crescimento, condicionado já, por seu turno, pelas vitórias políticas obtidas, pela consciencialização burguesa que se começa operando, é tanto maior quanto mais intensa se torna a produção industrial.
Da necessidade de colocação de novos artefactos resulta a dependência em que o produtor vai caindo em relação ao comerciante. Tornado intermediário indispensável, o mercador conquista rapidamente riquezas consideráveis. Formado havia pouco, tornou-se já indispensável. Acompanhando o alargamento constante das relações comerciais, e de certo modo como uma sua consequência, a burguesia, se bem que existindo já como um complexo determinado das relações de produção, não tinha tido até aí consciência do seu papel social. Em todos os lugares, porém, se encontram «homens colocados na mesma situação, cujos interesses e hábitos são idênticos e entre os quais não podia deixar de se ir estreitando um certo laço» (Guizot). Laço de ordem social e económica e também de ordem espiritual. Só pouco a pouco, à medida que o desenvolvimento económico se vai operando, e passado um certo tempo da sua formação como corpo social distinto, a classe média adquire consciência dos seus interesses em oposição aos de outros grupos humanos. Só muito lentamente se torna uma força independente, sabendo o que quer e ao que aspira.
Múltiplas transformações para isso concorriam.
Perdera-se o equilíbrio antigo. A situação económica agravara-se. Fortes das suas regalias, cientes dos seus direitos e deveres, as gentes urbanas consagram suas atenções a destruir os vestígios da economia natural e da antiga orgânica agrária, que não pode já adaptar-se à nova situação. Surgem conflitos. Postas em movimento pelos homens dos burgos, as novas forças criadas com o incremento da circulação dentro de cada país e entre os vários povos aproximados pela vida mercantil, «assim como as condições e necessidades de troca por elas originadas, tornam-se incompatíveis com o modo de produção existente, transmitido pela história e consagrado pela lei».
Havia tempo em que, criadas condições novas, estabelecidas novas relações humanas, aparecidos interesses novos, por toda a Europa se tinham realizado tentativas várias de organização política.
Dissolvida a unidade romana busca-se a diferenciação. Os elementos essenciais da sociedade separam-se e isolam-se: têm uma existência local, particularista. Restabelece-se a variedade sobre as ruínas da unidade. Passado pouco tempo, quando a estabilização parece ter sido alcançada, necessidades económicas aproximam os feudos. Acercam-se uns dos outros, uns tantos dentre eles são absorvidos. Aumenta o número das grandes propriedades senhoriais. Criam-se centros sociais de importância, e como efeito das Cruzadas surgem as grandes comunas. A pequena indústria e o pequeno comércio revelam-se insuficientes. Tudo procura aproximar-se; o tráfico marítimo e o negócio de grande vulto firmam o contacto entre os povos.
Em fins do século XIII - o século da grande invasão mongol - parara o impulso geral das Cruzadas. Despertara a consciência nacional - efeito estranho da guerra religiosa -, a um «movimento de geral localização» sucedia-se um movimento centralizador. O sistema irregular das contribuições de foral cede o passo ao sistema de Fazenda dos tributos gerais. A lei civil geral substitui a lei civil local. Dentro em pouco, sobre as ruínas das administrações dos senhorios e municípios erguer-se-á a administração do Estado.
«Até chegar a este resultado ensaiaram os diversos países da Europa todos os vários sistemas que nela coexistiam; buscaram o princípio da unidade social, o liame político e moral, ora na teocracia, ora na aristocracia, aqui na forma democrática, acolá na realeza.» (3)
À medida que a burguesia enriquecida com a vida urbana ganha importância, aproxima-se do centro do Estado e começa a ter mãos no poder central.
Estreitam-se os laços entre burgueses e soberanos. Atingida rapidamente a prosperidade económica, em breve as gentes citadinas se esforçam «por alargar essas vantagens de facto, transformando-as numa situação de direito».
O desenvolvimento do comércio e da actividade marítima e todo o vasto movimento de populações vinham criando, havia algum tempo, as possibilidades de um novo ordenamento político europeu. Todo este período é dominado por essa tendência. Através de factos dispersos colhidos entre infindo número de outros, desenham-se já com certa nitidez e riqueza de pormenores os traços da nova fisionomia. Por todo o século XIV tornam-se patentes as grandes directrizes em que se moldariam as condições de vida da nascente Europa, as formas múltiplas da civilização moderna.
Tomara novos rumos o pensamento.
O decorrer dos anos, deslocando com novos factos e circunstâncias as antigas questões, modificando-as, dando-lhes outros aspectos, criara problemas para que cumpria buscar a adequada solução.
Há assim ideias novas que se formam. Vivendo agora em condições diversas daquelas em que até aí tinham vivido e a que as suas ideias estavam afeitas, os indivíduos, impelidos pelo curso impetuoso da vida, necessariamente traduziam de um modo novo as novas realidades. O espectáculo do mundo - natureza e sociedade - que neste momento se lhes oferece, impressiona-os diferentemente. E são precisamente estas impressões, mal acabadas ainda de tão recentes, que se fixam no domínio do espírito sob a forma de pensamentos novos. As mudanças da mentalidade geral nascem daí.
A vida decorre agitada. As lutas intensificam-se e às já grandes perturbações vêm acrescentar-se as desavenças políticas e religiosas dos partidos.
Turvam-se assustadoramente os ânimos, provocando numerosas correntes intelectuais e controvérsias, inúmeras discussões, críticas e conflitos ideológicos.
Sobre a decomposição da orgânica tradicional, ideias novas vão brotando. Imprecisas e confusas a princípio, mais claras depois, pouco a pouco. A situação, todavia, é ainda a dos períodos tumultuários e indecisos do começo. Caminha-se para qualquer coisa de novo, que se não sabe ainda claramente o que seja; sem perfeita consciência - mas caminha-se. E isto é muito.
À medida que, com o ganhar de importância dos que se empenham na vida mercantil, a riqueza mobiliária aumenta, estabelecem-se novas relações de propriedade, expressão jurídica do mundo novo.
Uma vez desfeitos os antigos laços, acentuada a dissolução ideológica patriarcal que traduzia a psicologia agrária, acanhada e simplista, de um momento histórico e em ligação justamente com a modificação das relações sociais, o indivíduo adquire personalidade, na medida precisa em que a sua vontade e o seu pensamento exprimindo as energias jovens da nova humanidade se salientam.
Descendo às origens profundas do comportamento humano, é aqui também necessário pôr em evidência as causas sentimentais deste estado de espírito, que as teorias e os sistemas, ordenado o que de difuso e incerto andava no ar, mais tarde farão esquecer. Num livro a muitos títulos de inegável interesse, Pierre Trahard, ao estudar as manifestações da sensibilidade em França nos cinco anos decisivos do «século das luzes», pôde com justificado motivo chamar a atenção pura a necessidade de se sublinhar suficientemente a parte de espontaneidade e do instinto na constituição das doutrinas. Isso justamente, ainda que de um modo sumaríssimo e sem dúvida quase sempre acidental, aqui se pretende fazer.
Se insisto e continuarei insistindo com certo interesse em alguns aspectos do processo histórico-social complexo e estranho que num estudo da evolução das ideias cumpre não esquecer - processo para os homens de hoje mais complexo do que estranho -, fi-lo tendo presente a observação justíssima do Prof. Trahard. Fi-lo ainda - não o julgo desnecessário dizer - porque no meu espírito estava presente a ideia de que as transformações psicológicas prodigiosas que se virão a exprimir claramente na elaboração do pensamento moderno - de que a ideia de Progresso objecto destas reflexões é um aspecto particular e dos não menos interessantes - têm aí a sua mais real e fundamentada razão de ser. Digamos o termo justo: o seu ponto de partida.
Desde as duas últimas décadas do século XVII se pode falar, com o rigor de todas as delimitações em história, numa «crise da consciência europeia». E Paul Hazard, que ao assunto consagrou um estudo valiosíssimo, admirável de precisão e poder de síntese, sugere mesmo a data de 1680 para marcar o início da crise. A «explosão da sensibilidade» que o século XVIII presenciará, abrindo o caminho ao romantismo, marca um avanço evidente e irrecusável na concretização dos traços psicológicos, visíveis já em forma rudimentar e incerta por alturas do século XVI, quando o mundo da compra e venda, da competição e do lucro, sucedia à produção artesanal. E certamente não se pretenderá tratar-se de simples coincidência. O sincronismo em toda esta evolução é demasiado nítido para que possa ser negado. Pô-lo em evidência é já, de certo modo, esclarecer o problema.
O que aqui se vê, portanto, é talvez isto: o alargamento dos horizontes visuais com o conhecimento de novas terras e a deslocação da estrutura económica com o acréscimo das disponibilidades monetárias que a posse dessas novas terras permitia, abalaram fundo as consciências. Tudo se sentira atingido, mesmo o que de ordinário resiste. E antes ainda de que os homens se tivessem claramente apercebido do que havia de mudado à face da terra e tivessem buscado uma tentativa de readaptação, alguma coisa de diferente podia ser notada no domínio da alma. Mas como sempre em circunstâncias idênticas sucede, começara por se produzir uma confusão e incerteza inevitáveis. Só passado o século XVI, indeciso e hesitante, o século de Montaigne, de Charron e Ribeiro Sanches, passado o século da formação dos grandes Höchstetter e Welser, passado o século da formação dos grandes Estados, quando a classe média se assenhoreia do poder económico e começa ditando leis, cria uma nova arte, uma nova religião e uma filosofia nova, o que até então só acidentalmente podia ser notado, assume agora todo o significado e importância.
O século XVII é o século dos primeiros grandes sistemas «totalitários» modernos, o século da reconstrução. E é também o século da subida vertiginosa da classe mercantil. Compreendê-lo é compreender todo o significado profundo dos sessenta e sete, sessenta e oito anos de história que separam a primeira viagem de Colombo – 1492 – da paz de Cateau-Cambrésis e dos começos da guerra de religião de que a França foi o teatro europeu de batalha - 1559, 1560. Compreendê-lo é divisar a plena luz e evolução daquilo a que poderemos chamar «o tipo social protagonista da história moderna», na medida em que a sombra do seu poder se alarga sobre o mundo, e na medida em que o arranjo básico da sociedade que a sua entrada em cena fizera surgir criavam uma nova ordem de vida. Compreendê-lo é ainda relacionar com tudo isto a evolução do pensamento, distinguir as acções e reacções recíprocas em todo este vasto processo, acompanhar a evolução dos traços psicológicos, nascidos contemporaneamente dos inícios de biografia moderna do mercado; assistir à sua transformação em isocronismo com a transformação da nova economia, vê-los ganhar forma e tomar corpo definido, inserir-se no já existente, identificar-se com o génio moderno, criar um novo estado de ânimo, e acabar por constituir uma sensibilidade, uma nova ética e uma imagem nova do mundo.
Por tudo isto e pelo mais que aqui não cabe, insistir nesta ordem de factos é tomar possível a compreensão nítida daquilo a que se pode chamar o «pensamento moderno», de que, volto a dizê-lo, a ideia de Progresso é um dos mais curiosos e apaixonantes temas.
Insistirei, portanto: só feita história, a história das ideias se compreende.
Chegado o século XVI, decorridos cerca de quatrocentos anos sobre a libertação das comunas e passados cinco séculos sobre o seu aparecimento, a classe urbana está constituída e a sua situação no complexo das forças sociais apresenta umas tantas particularidades novas. No século XII, compunha-se essencialmente de pequenos proprietários citadinos e rurais, mercadores e pequenos negociantes. No século XVI, entre os cidadãos dos burgos, podem já contar-se os magistrados locais, homens de leis, «físicos» e toda a sorte de letrados. A sua composição social alargara-se, portanto; e esse alargamento conferia-lhe um mais proeminente papel na sociedade. Para mais, o crescimento da classe média em número e qualidades dos seus componentes, além de uma debilitação da nobreza, significava ainda a confiança na energia criadora, a vitória progressiva do individualismo.
O essencial deste processo, porém, vinha já de longe, do decorrer dos séculos precedentes.
O pensamento religioso «medievo», que na salvação da alma individual via o mais profundo e justo interesse pela vida, conhecera já um individualismo filosófico.
Nominalistas e místicos, a um tempo, ainda que por diferentes vias, procuraram dar, quando a «Idade Média» se aproximava do fim, uma formulação consciente às aspirações individualistas. Nominalismo e misticismo, fazendo do indivíduo o ponto de partida do pensamento, considerando o primeiro a estrutura do conhecimento como alguma coisa formada no íntimo do indivíduo por meio de seus estados de consciência e dos seus actos, buscando o segundo o divino na própria alma individual, afirmando o respeito pela personalidade humana um e outro abrem aos tempos modernos vastas perspectivas, de certo modo preparando-lhes a vinda.
A nova situação económica que se sucedera à desagregação feudal e que o desabrochar do comercialismo e das novas relações humanas suscitara, dando ao indivíduo a confiança de se sentir solidamente firmado em si próprio, despertara na consciência social a ideia das relações individuais, dera realidade e consistência a uma representação abstracta do indivíduo.
Começaram-se assim a formar, havia anos, com o estabelecimento deste necessário esteio, as premissas indispensáveis para que um pensamento que tivesse a pessoa humana por objectivo e o indivíduo como centro das relações sociais pudesse surgir.
O século XVI vê acelerar-se esta tendência. Libertam-se os indivíduos da servidão feudal que sucedera ao escravismo antigo. «As nacionalidades separam-se e o individualismo nacional toma consciência de si próprio, paralelamente ao individualismo da pessoa humana.» Como faz notar Jean-Richard Bloch, o imperialismo do indivíduo reforça-se com o imperialismo das nações.
E desde então, favorecido pelas circunstâncias de ordem económica e social, política e também religiosa, durante o espaço de alguns séculos assiste-se a um fenómeno singularmente curioso: o espírito individualista, que surgira com as novas condições criadas pelo aparecimento da burguesia, vai sucessivamente imprimindo o seu sinete particular às mais diversas formas de vida.
O espírito empreendedor de homens arrastados pela animação e dinamismo da nova vida, o optimismo calmo e reflectido que se não detém ante o menor revés, alcançam cada vez círculos mais vastos. Este mesmo princípio, que dominando a luta pela satisfação de necessidades meramente materiais derruba barreiras, rompe o equilíbrio de uma economia estática, feudal e artesã, vai reflectir-se em distantes domínios, fora já do âmbito normal da actividade económica.
E dentro em breve, este espírito de inquietude, de liberdade e de conquista, que anima o mundo dos negócios e atinge todos os sectores da vida humana, estender-se-á às mais abstractas e complexas esferas do pensamento. O individualismo prático, de acção, por toda a parte imperante, transmutar-se-á em individualismo artístico, filosófico e religioso.
A consciência individualista que já nos séculos XII e XIII se fizera ouvir pela voz de alguns poetas, que ainda no misticismo e no nominalismo, por exemplo, se podia considerar como que latente, depara-se-nos agora plena de vitalidade, exprimindo-se de um modo nítido e decidido.
Desde os séculos anteriores se tinham acentuado uns tantos antagonismos que circunstâncias históricas particulares haviam originado. As antinomias trabalho e lazeres, o homem e a natureza, indivíduo e sociedade, o saber e o fazer, que em determinado sentido encontram expressão nas distinções entre mecanismo físico e finalidade ideal, corpo e alma, actividade prática e conhecimento teórico, estes vários dualismos culminam, quanto ao aspecto filosófico - escreve o pragmatista e pedagogo norte-americano John Dewey - numa bem vincada separação entre espíritos individuais e o mundo, e, por isso, desses espíritos entre si.
Alguns destes antagonismos, coincidindo com a diferenciação de actividades em servis e livres, eram já antigos. Filósofos e doutrinadores educacionais e políticos como Platão e Aristóteles, entre outros, deles se haviam ocupado.
Da Grécia, esta concepção dualista da vida espiritual autónoma, considerada em relação à vida prática, passara ao mundo romano, onde um Séneca, na época decadente do Império, chegara ao ponto de dizer que, se se honrassem os trabalhos manuais, qualquer simples artífice, não importa que escravo, se poderia intitular filósofo.
As circunstâncias sociais da escravidão, circunstâncias com que seria absurdo não contar, criando um tipo específico de mentalidade, obrigavam as inteligências à nobreza intelectual - relevo, notoriedade e consideração públicas que as técnicas e ofícios não podiam dispensar.
A vida contemplativa é o fim supremo da acção, dissera Plotino; e Aristóteles, por sua vez, não fora menos expressivo quando escrevera na Ética a Nicómaco que a contemplação é superior às mais elevadas formas da actividade prática. Se em tão significativos trechos, na República e nas Leis (livro VIII), Platão dissera, por exemplo, que dando ensinamentos ao navegador a astronomia se degrada, e que na cidade ideal nenhum cidadão exerceria uma profissão mecânica, Séneca por seu turno afirmaria: «a finalidade da ciência não está em ensinar os homens a servirem-se de suas mãos, mas em formar-lhes a alma».
Da civilização clássica, esta concepção do espírito e da natureza como domínios independentes em sua existência, ganha o mundo «medieval», onde o pensamento religioso lhe dá a sua figura suprema. A «vida intelectual» de helenos e de romanos, tornada agora «vida espiritual», é exaltada e concebida em oposição às actividades práticas quotidianas.
Com o advento da modernidade, porém, há elementos novos que vêm dar ao problema aspectos particulares. As ideias da identificação do espírito com o eu pessoal e da apresentação do eu, identificado com uma consciência psíquica individual, como uma coisa independente que a si própria se basta, entre outras, foram desconhecidas dos gregos e a escolástica ignorara-as.
A convicção de que só é verdadeiro conhecimento o que as experiências pessoais tivessem criado e posto em prova e a ideia de que o espírito, «fonte de conhecimento e seu detentor», é «coisa de formação inteiramente individual», são relativamente recentes. Nem de outro modo podia ser. O divórcio entre o cérebro que pensa e a mão que executa e a consequente depreciação da actividade manual, os gregos, contemporâneos de Platão e seus discípulos, haviam-no conhecido como efeito necessário do regime escravista. A filosofia helénica conhecera também o problema das relações do homem com a natureza, ainda que posta a questão de um modo diverso daquele por que modernamente se nos apresenta. Grande número de outras antinomias lhe haviam sido familiares, muitas das quais por intermédio do elo «medieval» transitariam para os tempos modernos. Porém, a atmosfera das novas épocas imprime-lhes tonalidades novas, reforça algumas delas. O problema do Indivíduo e do Mundo, do pensamento como puramente individual, está neste caso.
A Grécia, em circunstâncias relativamente semelhantes àquelas que caracterizam a formação da civilização europeia, presenciara, e por motivos não muito díspares, o despertar de uma forte corrente individualista. Em ambos os momentos o individualismo surgira em consequência da formação de um grupo mercantil cosmopolita e do enfraquecimento dos laços familiares e de propriedade rústica. Em ambos os momentos, mau grado a distância de alguns séculos, é o estado de ânimo individualista uma das armas mais poderosas e de mais dissolvente efeito usada no domínio das ideias pelo grupo humano novo contra os valores tradicionais. No século XVI, porém, porque mais amadurecido pelo decorrer dos anos e melhor valorizado por condições mais propícias, o estado de ânimo individualista revela-se mais fértil em resultados. Não é de estranhar, portanto, que antagonismos que a vida grega originara se renovem e que, integrados num conjunto mais complexo, adquiram significação diversa.
Na Grécia, a decomposição do Estado grego e o alargamento de todos os vínculos sociais tinham criado, como é natural, o espírito individualista e a divisão social do trabalho, estabelecendo novas relações humanas, havia separado, naturalmente, também, as actividades manuais e a vida intelectual, criando dualismo teoria e prática, espírito e matéria. A ideia do conhecimento desinteressado e independente da acção tinha aí, talvez, para os gregos, a sua origem.
Para a Europa pós-Cruzadas, a situação não se apresenta totalmente por igual forma. A tendência individualista tivera, é certo, idêntico ponto inicial; pelo que respeita ao dualismo mão e cérebro, espírito e matéria, o caso, todavia, é outro. O que para os gregos fora um facto vivido, fruto das antinomias da sociedade da sua época, resultado de uma fermentação espontânea e necessária, para o europeu do findar do século XVI é uma sobrevivência, incentivada pelo impulso individualista, da tradição romana, alexandrina e «medieval». E se repararmos que nos romanos e alexandrinos e homens «medievos» este antagonismo fora dado a conhecer por importação, melhor compreenderemos o carácter abstracto, meramente teórico - o escravismo como base social ao modo grego desaparecera - deste dualismo filosófico para os pensadores quinhentistas e para os dos séculos que imediatamente se seguiram. Tudo isto, dissipando os laços reais que uniam o efeito à causa do fenómeno, viria acentuar mais ainda o isolamento do espírito e do mundo.
E não só isso. Disse-se em página anterior, recordando uma ideia feliz de Pierre Trahard, que o comportamento humano, tão vário e contingente, há que buscar compreendê-lo em suas causas sentimentais, nas manifestações primeiras da sensibilidade. As relações de homem para homem do homem concreto e pessoal para com a natureza que o circunda e incita, variáveis de momento para momento e de lugar para lugar, ditando os fins variáveis também, que esses homens prosseguem, os valores diversos que criam ou a que aderem, valores morais e intelectuais que orientam e modelam a acção, e que em seu conjunto exprimem posições em face da vida e do universo, tais são, ou se me afiguram dever ser, dentro já do plano ideológico, o ponto indispensável de largada para a análise a que nos convida o crítico francês da «sensibilité révolutionnaire».
Siga-se aqui o caminho indicado um dia (4) por Joaquim de Carvalho. Abandone-se «a via cómoda da narração histórica, que nunca explica, embora às vezes descreva e deleite». Fujamos da «poeira de acontecimentos desagregados e eventuais com a duração de um instante». E assim, depois, tomado impulso, aventuremo-nos pela região das ideias, «de tão sedutora aparência e de tão difícil acesso» e «tentemos captar os conteúdos e formas de vida».
O sentido e a intuição clara do que se vai fazendo, a nítida percepção das mudanças, onde às vezes penetra a agudeza do génio, é sempre coisa difícil para o homem. Só gradativamente, quando do plano da sensibilidade as mutações atingem a própria estruturação das ideias, quando a consciência se converte em verdade pela razão, as modificações são de súbito compreendidas - e de início sempre confusamente.
É o que em certo sentido aconteceu com os homens da «Renascença», no alvor esplêndido da modernidade.
O mundo alargara-se. Deslocada a realidade, as perspectivas diferem. E o ser humano não se sente já, diz um crítico e ensaísta (5), à medida de um tão vasto e complexo universo. «L'homme n'y a plus sa place toute faite, le destin sa voie toute tracée» O sentimento nacional e ao mesmo tempo universalista superando o localismo anterior, o espírito do utilitarismo mercantil, a larga visão astronómica, a aproximação com a natureza, a lei da oferta e da procura destruindo o princípio do justo preço, a competição criando a inquietude, a vontade de posse e de domínio, o querer assegurar a sua permanência no mundo, fazem o homem sair da ordem, da hierarquia revelada.
Como Filipe II de Espanha, na bela imagem de Cassou, «en montant sur son trône, allonge les bras et tente d'atteindre les confins de ses divers royaumes tout fraichement découvert et reconnu. [ ... ] Il a mis Ia main sur Ia planéte et en a fait le tour. [ ... ] Observe et éprouve les phénomènes, les reclasse selon les critères de Ia raison et les résultats de l'expérience. Mais Ia raison est particulière et l'expérience limitée. Cette réalité, mieux connue, voilà que par un singulier retour, elle est moins sûre. L'homme a découvert Ia nature, mais il découvre aussi son esprit. [...] Sur cette nature l'esprit projette donc des vues diverses».
Perspectivas infinitamente variadas se oferecem. A realidade muda, fragmenta-se em ilusões múltiplas. «Le monde n'est donc pas tel qu'iI nous aparaît. Chacun de nous le voit à sa façon. Chacun de nous, en outre, a le pouvoir de lui substituer des apparences plus belles et plus pures. Et qui a raison?»
Saindo da ordem feudal, imutável, fixa, e para mais divina, o homem de Quinhentos começa duvidando. A dúvida - eis a sua afirmação primeira. Sentindo um desejo profundo de mudança e renovação no âmbito da vida humana, desejo que se não é ainda uma crença no Progresso é já algo de novo por oposição ao destino inexorável do pensamento anterior, o homem do século XVI, contemporâneo de Quixote e Sancho, de Ülenspiegel e Cervantes, hesita. Há nele uma inquietude por vezes dramática. Que fazer? Em que acreditar? Que sais-je?, pergunta Montaigne.
O espectáculo do desabar de uma civilização que durara séculos, construída a preço de tantos sacrifícios, a súbita queda das ideias transmitidas e pela tradição impostas, as rápidas transformações da vida pondo a nu o que há de instável e passageiro em tudo o que existe, o estilhaçar dos quadros políticos, religiosos e familiares em que até aí se vivera, trazem necessariamente, como consequência grave, um cepticismo aflitivo e dissolvente.
Iam-se abatendo as coragens e rareando a confiança, atormentados os homens pela obsessão de uma realidade cruel. Poucos persistem na marcha, perdido momentaneamente o optimismo heróico.
Pelos fins do século XV o nominalismo, com a passagem para o seu sector dos argumentadores mais hábeis, ganhara a batalha. E agora, século XVI em meio, vencidos os realistas, pouco ou quase nada ficava da teológica «ciência racional». Pequena ante o mundo a conhecer, hesitando sobre o valor da caminhada, a «razão» detém-se incerta, duplamente duvidando de si mesma. «Ao sentir-se senhora de um espaço engrandecido, a consciência vacila», diz Jean Cassou. E natural é que assim seja.
A este, todavia, outro mal se junta, gravíssimo também.
Levado pelo rio transbordante da acção social, pelo desequilíbrio da sociedade, desordem e perturbação dos pensamentos que o descrédito de tantas ideias suscitava, pela anarquia moral e efeitos de um individualismo sem limites, a fixar sua atenção sobre as relações sociais e sobre a natureza humana, o indivíduo para quem tudo parecia terminado, não pensando já numa salvação colectiva, confiando apenas na felicidade individual como fim supremo, é impelido também a concentrar-se em suas íntimas reflexões. Domina-o o desejo sempre renovado de procurar desvendar-se a si próprio.
Perdera-se a confiança e o cepticismo invadia as almas. Para grande número destes homens do século de Quinhentos, o futuro mostra-se carregado e triste. A ideia da morte espreita-os a cada passo, a apologia do suicídio está na mente de muitos (6). Um temor supersticioso estremece-os. Tudo se pode despedaçar de um momento para o outro. Nada há seguro, nada se lhes afigura estar seguro. Os indivíduos fecham-se em si próprios dando largas a um subjectivismo intenso, único meio que se lhes depara possível de resistência a uma sociedade que os hostiliza. A própria história a concebem antiprogressistamente, ao modo até aí habitual. Para eles, como um século mais tarde para um grande fidalgo, o nosso D. Francisco Manuel de Melo, o mundo «envelhece, caduca e vai caindo».
A coragem de lutar abandonara-os. Por isso, tendo de escolher entre os dois caminhos que as crises dramáticas da história sempre propõem, à semelhança de socráticos e de estóicos, procuram solucionar todos os antagonismos no domínio da consciência.
Batidos entre a evidência dolorosa e o instinto da conservação, não sendo já tempo de esperar um regresso ao passado e não antevendo, não podendo antever, a possibilidade de uma transformação social em seu benefício, dado o momento da evolução histórica, é longe dos lugares onde em rudes lutas se decide dos destinos do homem que certos sectores da sociedade resolvem o mais impressionante dos problemas do seu tempo. A sua incapacidade para fazer face ao mundo tal como é, o abandono da realidade, o isolamento e a evasão consequente para o abstracto, para o devaneio e para a mística, atingem aqui o valor de um testemunho: o testemunho dos que impotentes vêem aproximar-se o instante último, o apagar do clarão imenso de uma tradição forte por um passado milenário.
«Tout cela - deste momento se pode dizer o que do final da antiguidade disse Nizan - compose un monde de grand vagabondage sans dessein, dominé par l'angoisse ou les seules relations humaines relèvent de Ia morale de l'état de guerre. Chaque homme doit sans fin reconstruire sa vie. [ ... ] Au milieu de cette débacle, l'homme restait seul, faisant parfois des rêves.» Campanella... Moro...
Giordano Bruno primeiro, encerrado inteiramente no século XVI, Bacon e Descartes pouco depois, nascidos já quase ao dobrar do século, e Pierre Bayle mais tarde ainda, em pleno reinado de Luís XIV, podiam na verdade fazer ouvir suas vozes. «O mundo estava apto a escutá-los. A sua hora tinha soado.»
(*) Vasco de Magalhães-Vilhena (1916-1993) nasceu em S. Tomé, no seio de uma família culta de origem aveirense. Frequentou o Liceu Pedro Nunes em Lisboa, onde foi aluno de Câmara Reis, que o apresentou a António Sérgio. Era um jovem franzino mas determinado, de uma extraordinária erudição. Aos 16 anos já participava nos movimentos estudantis de contestação à ditadura nascente. Frequentou depois as Faculdades de Letras de Lisboa e Coimbra, licenciando-se nesta última em Ciências Histórico-Filosóficas, no ano de 1939, com uma dissertação intitulada ‘Progresso – História breve de uma ideia’, da qual o texto aqui publicado constitui o primeiro capítulo. Foi uma obra pioneira de história das ideias numa perspetiva marxista, reeditada pela Editorial Caminho em 1979. Por essa altura já era um autor prestigiado, tendo publicado A Luta pela Inteligibilidade no Pensamento Grego (1935), A Arte e a Vida Social (1936). São dos inícios da década o seu ensaio Unidade da Ciência - Introdução a um Problema (1941) e o Pequeno Manual de Filosofia (1942), sucessivamente reeditado e muito ampliado. Em 1943 foi nomeado assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo regido os cursos de História da Filosofia Antiga e de História Moderna e Contemporânea. Depois começaram os problemas. A sua dissertação para doutoramento em volta do tema da “unidade da ciência” foi recusada. A Inglaterra estava então na vanguarda dos estudos do materialismo dialéctico e John Desmond Bernal era uma referência. Conseguiu assegurar uma bolsa para Cambridge, onde pretendia prosseguir as suas investigações, mas a guerra frustou esse objetivo. Entretanto, a auto-censura e a habilidosa dissimulação do seu marxismo atingiram o seu limite. O segundo tema de dissertação de doutoramenteo em Coimbra (desta vez à volta de Sócartes) foi também recusado e o seu contrato de assistente não foi renovado em 1945. Foi bolseiro do governo francês durante dois anos, após a libertação, tendo integrado o quadro de investigadores do Seminário de Filosofia Antiga da Universidade de Paris (Sorbonne). Em 1949, doutorou-se em Filosofia nessa universidade, com duas importantíssimas teses sobre Sócrates: Le problème de Socrate: le Socrate historique et le Socrate de Platon (PUF, Paris, 1952) e Socrate et la légende platonicienne (PUF, Paris, 1952). Deu então início a uma longa e prestigiada carreira académica em França. Foi durante vinte anos investigador do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS). Em 1956 dirigiu a publicação em Lisboa, para a Biblioteca Cosmos, de um Panorama do pensamento filosófico, que se quedoupelos três primeiros volumes, com uma extensa introdução do organizador. Nos anos sessenta publicou em França, Bacon et l’Antiquité (1963), dois importantes estudos sobre progresso técnico e obstáculos sociais na cidade antiga e Hegel, Aristote et Anaxagore (na revista La Pensée, 1968). Em Portugal, foi o tempo da publicação da sua crítica sergiana, com António Sérgio e a Filosofia (Edições Cosmos, Lisboa, 1960) e António Sérgio, o idealismo crítico e a crise da ideologia burguesa (Seara Nova, Lisboa, 1964). Na década seguinte surgem dois importantes estudos sobre o pensamento marxiano: Ideia e Matéria. A teoria como força material (1976) e Marx: racionalidade e praxis (1977), ambos incluídos depois na grande recolha Anciens et Modernes. Études d’histoire sociale des idées (Méridiens Klincksieck, Paris, 1986). Todos os seus estudos originais em francês tiveram tradução portuguesa, publicada por Livros Horizonte ou Fundação Gulbenkian, garantindo-lhe o lugar de mais consumado filósofo marxista português. E também, provavelmente, o único que poderá ter feito avançar, nalguns pontos, as fronteiras do conhecimento humano universal. Foi membro do Conselho Mundial da Paz e por motivo das suas atividades no âmbito desta organização foi proibido de regressar a Portugal pelo regime fascista, mesmo ocasionalmente. Tornou-se um exilado. Foi galardoado em 1970 com a medalha de ouro Lenine pelo presidium do Soviete Supremo da União Soviética. Pertenceu à presidência da Internationale Hegel Geselschaft. Após a revolução de Abril de 1974 regressou ao seu país e foi nomeado professor catedrático da Faculdade de Letras de Lisboa. É providencial a sua edição do ‘Manifesto do Partido Comunista’ para as edições Avante!, Lisboa, 1975. Foi ainda presidente da Sociedade Portuguesa de Filosofia e do Conselho Português para a Paz e Cooperação. Nos anos oitenta dirigiu a excelente coleção “dialéctica” da editora Livros Horizonte, onde apresentou ao público português numerosos filósofos marxistas de todo o mundo, nomeadamente da União Soviética e da Europa de Leste.
______________ NOTAS:
(1) La industria, trad. castelhana, colección Labor, Barcelona, 1931, p. 68.
(2) Cf. Paul Lacroix, Histoire de l'imprimerie et des arts et profissions qui se rattachent à Ia typografie, Paris, 1852.
(3) Guizot, Histoire de la civilisation en Europe, II lição.
(4) Sessão Inaugural do Instituto de Altos Estudos, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1932, p. 37.
(5) Jean Cassou, Cervantes, 1936.
(6) Cf. Montaigne, Essais, II, 3: «La plus volontaire mort c'est Ia plus belle». Contra esta Ideia replicou Pascal, anos decorridos, no fragmento célebre Les deux infinis, ed. Brunschvicg, frag. 63.
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