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António Sérgio e a crise da ideologia burguesa (*)
Vasco de Magalhães-Vilhena
É significativo que toda a obra de Sérgio é explicitamente polémica de ponta a ponta (1); polémica em considerável parte provocada mais por circunstâncias exteriores que buscada por ele mesmo (como o próprio Sérgio reconheceu: «não sei escrever senão provocado, mas custa-me a não escrever quando me incitam»). É este aliás um aspecto característico da maneira por que a obra de Sérgio engrena na própria existência nacional. Algumas de essas polémicas situadas no seu exacto e correcto contexto são, de resto, datas memoráveis na história da cultura portuguesa. Assim, as relativas ao seiscentismo e à questão do «Desejado», por exemplo, com todas as suas implicações históricas, ideológicas e filosóficas, são de bem maior significação social que, digamos, a famosa questão do «Bom Senso» e «Bom Gosto». Acresce que esses escritos polémicos carreiam achegas incomparàvelmente mais sólidas e mais profundas (embora nem tudo nos pareça nelas de aceitar) para o esclarecimento decisivo de pontos da maior relevância da história social e cultural portuguesa do que o famoso discurso de Antero no Casino Lisbonense sobre as causas da decadência dos povos peninsulares.
Ora sucede, no entanto, que apesar desse enraizamento polémico constante nas realidades do país, é convencimento de muitos que o pensamento de Sérgio (como aliás o dos intelectuais da chamada «geração de 71» a que Sérgio está ligado por tantas afinidades ideológicas e laços afectivos) não conseguiu inserir-se profundamente nas condições nacionais, consubstanciar-se com o seu país. Que há de verdade nisso? Não terá Sérgio porventura antecipado ou prefigurado este reparo ao fazer preceder os ensaios reunidos no 1.º tomo, em 1920, por estas palavras de Antero, um dos dois escritores que (como ele próprio diz) o seduziram mais no período da sua adolescência: «Cada vez sinto mais o falso da minha posição nesta terra lusitana. Não me entendo com homens e coisas: apenas com o céu e os montes: mas isto não é suficiente»? (2).
Diremos nós que neste desencontro – se verdadeiro desencontro há da sua parte - do autor dos Ensaios e dos leitores que lhe são contemporâneos, se deverá ver possivelmente o testemunho do ambiente mental que, por razões históricas bem determinadas, se havia criado no país? É mais do que provável, mas relevaria nesse caso explicar ainda esse mesmo ambiente mental pois foi nele - e em reacção contra ele - que a obra de Sérgio surgiu e se desenvolveu. É, pois, num sentido, esse ambiente mental que explica a obra de Sérgio - e, noutro sentido, a incompreensão de que tantas vezes tem sido alvo. Mas esse «ambiente mental» (em que se inscreve a obra de Sérgio, inseparável de ele, pois constituem os seus necessários quadros ideológicos, os seus pontos de referência ideológica indispensáveis) não existe de per si, autónomo, fechado sobre si mesmo, mas sim radicado em quadros sociais precisos, corpo social não homogéneo, como se logo vê, em sociedade de classes. E porque não é homogénea essa realidade social, antes profundamente contraditória (além de antagónica, claro), não é, não pode ser homogénea a sua «reflexão» mental. Se é certo que a obra de Sérgio tem sido contraditòriamente recebida, não é menos certo, ao que também pensamos (embora saibamos, claro, que um idealismo como o de Sérgio leva por certo a repulsar esta nossa ideia) que a sua obra reflecte - ou que nela se reflectem - contraditòriamente, as contradições mesmas da realidade social que ela se propõe estudar para, em retorno, contribuir para a sua transformação.
Ora, o primeiro problema que se nos depara é aqui o seguinte: De que maneira reflecte ela a existência social portuguesa? Se bem nos parece, cremos que assim:
Dissemos já que a obra de Sérgio é visceralmente polémica. Todas as obras autênticas o são, claro está, de uma maneira ou doutra, mas a de Sérgio é-o propositalmente e pela forma mais explícita, de ponta a ponta. Pelo particular modo de ser da pessoa de Sérgio, como é razoável pensar. Mas antes de tudo, e é o que a nós importa, pelo propósito declarado de Sérgio de intervir activamente na vida social do seu país. A polémica é a sua maneira de intervir como escritor público. Essas polémicas (que são, tudo bem medido, o fundo da sua obra inteira, expressão perfeita da unidade do conteúdo e da forma), não as buscou ele, como tantas vezes lho ouvimos dizer: foram-lhe impostas. Impostas por adversários que o provocavam, e que, provocando-o (senão mesmo atacando-o), o obrigaram por seu turno a reagir.
Vejamos, por exemplo, como se originou a polémica sobre a questão do «Desejado», e tal como no-la conta o nosso autor (3):
«Pediu-me Raul Proença, um dia, uma pequena introdução histórica para o seu Guia de Portugal [...] Apresentei nesse trabalhito (Bosquejo da História de Portugal) hipóteses sobre todos os pontos importantes da história do país» [... Repare-se bem: hipóteses de Sérgio evidentemente contrárias às comummente aceites pelos historiadores do tempo e contestando-as, senão não as apresentaria ele como hipóteses -V. de M. V.]; e ao ter de mencionar o Desejado (como era forçoso - prossegue Sérgio) disse o que dele pensava, isto é: que foi um fanfarrão e mentecapto, pois assim se revelara na sua expedição de Marrocos. O que toda a gente discutiu». Pouco depois o escritor reaccionário Malheiro Dias publicou uma Exortação à Mocidade, e, antes do opúsculo aparecer, dá para os jornais um texto no qual diz: «Hoje, como dantes, a história portuguesa, manancial de ensinamentos edificantes, fonte de juvência da nossa fé, anda mal contada pelos que, destituídos de sensibilidade, cuidam entendê-la aplicando-lhe apenas os processos da análise racionalista, que não podem suprir, na sua agudeza, o dom do sentimento [(4)…] António Nobre, a quem perguntaram qual o herói da história que mais admirava, respondeu ser D. Sebastião. Todavia, emendando o poeta, um dos actuais mentores do pensamento português no-lo apresenta como um fanfarrão mentecapto. Não, mocidade! Quem tem razão não é o racionalista, mas o poeta visionário».
Sérgio comenta: «Atacado assim com tal rudez [noutros passos do texto de Malheiro Dias] (pois foi o meu Amigo que me atacou [...] e vendo-o espalhar doutrinas falsas que suponho perniciosíssimas, resolvi justificar o que eu dissera, pondo ao alcance da Mocidade [no volume O Desejado, Lisboa, 1924] os documentos em que me fundara ao enunciar os juízos que me impugnou»... (5).
Ora pois. Assim a obra de Sérgio, ao que vemos, se articula dialècticamente ao viver social português: parte dele para, em retorno, influir sobre ele. E influir como? por exemplo, pondo embargos ao espalhar de ideários ineptos que considera perniciosíssimos, desmontando-os, desmistificando-os, mostrando ao mesmo tempo a sua nocividade. Porém, isto não por gesto fortuito, por simples jogo de espírito gratuito de intelectual agressivo, mas por consciência da responsabilidade social, para que o meio português profundamente viciado se transforme e, transformado, torne inoperantes esses ideários e impraticável a sua proliferação.
Sérgio não está longe de pensar, se é que não pensa mesmo, que foi erro grave da doutrina dos materialistas sensistas franceses do século XVIII, e que influíu em autores portugueses, o terem geralmente visto uma só face da questão ao acreditarem que os homens são apenas produto das circunstâncias e da educação e que, desta maneira, os homens modificados são produto de circunstâncias diferentes e de urna educação diferente, esquecendo pois a outra face, o lado activo: isto é, que as circunstâncias são transformadas precisamente pela acção dos homens e que o próprio educador precisa ser educado, como alguém disse. Dá-se que a coincidência da modificação das circunstâncias e da actividade humana a concebe Sérgio à sua maneira, como prática educativa. Se o educador está deseducado pelas condições do ambiente, há que educá-lo, entende Sérgio. A reeducação do educador é o seu escopo.
Ressentindo o embate das condições existentes no país no momento em que escreve, mas não as suportando, não as aceitando passivamente nem se deixando pois modelar por elas, antes bem ao contrário reagindo a elas com extremo vigor, Sérgio sempre buscou resolutamente que haja influição dos seus escritos sobre as condições que os suscitaram, através da modificação da intelectualidade, desta maneira a obra sergiana imbricando dialècticamente na realidade nacional a que sempre se reporta e que, em definitivo, reflecte.
E porquê dialècticamente? Porque não há aí determinismo num sentido só, de tipo mecânico, que vá directamente ou tão-só da realidade social à obra escrita para a determinar ou tão-só da obra escrita à realidade social para influir nela. Há interacção constante, permanente, viva acção-recíproca. Porque falar então de reflexo, de processo de reflexão da prática social material pela prática ideal (individual-social) que é a acção de pensar a realidade? Precisamente para bem marcar a dependência real do pensador e da sua obra em relação à existência social em que se esteia. Por outras palavras, para melhor fazer compreender que é fundamentalmente falsa a tese (idealista) da intemporalidade ou a-temporalidade da produção ideológica (na ocorrência da obra filosófica), expressa, por exemplo, por um Bergson, ao dizer que se uma filosofia aparece como relativa à época em que o filósofo vive, não é isso frequentemente senão uma aparência que procede do facto dessa doutrinação se manifestar através das ideias já feitas de que dispunha. «Le philosophe - dizia Bergson - eût pu venir plusieurs siècles plus tôt; il aurait eu affaire à une autre philosophie et à une autre science; il se fût posé d'autres problèmes; il se serait exprimé par d'autres formules; pas um chapitre, peut-être, des livres qu'il a écrits n'eût été ce qu'il est; et pourtant il eût dit la même chose» (6). De maneira alguma. É perfeito desafio ao bom-senso, como bem se vê (7).
Interessa agora considerar um segundo problema, pois (como acentuámos atrás) não basta dizer que a obra de Sérgio reflecte a existência social portuguesa. Nela se reflectem dialècticamente, contraditòriamente, as contradições mesmo da realidade social que ela tem por propósito estudar para, numa acção em retorno, contribuir para a sua transformação. Eis o segundo ponto, que completa o primeiro: porque cremos nós que a obra de Sérgio reflecte contraditòriamente a existência social portuguesa?
Antes de mais, o seguinte: um problema primordial para fixar a análise ideológica justa de uma obra é o do conteúdo essencial da época a que se reporta essa obra, e que ela de uma ou de outra maneira reflecte.
Os fundamentos da sua obra assentou-os António Sérgio nos últimos anos do antigo regime monárquico e na quinzena de anos que durou a república burguesa liberal. A maior parte dessa obra escreveu-a ele contra ventos e marés, na pátria e por duas vezes em terras de exílio, já no período de domínio da burguesia anti-liberal. Se no primeiro período histórico deixara publicar as suas Notas sobre os «Sonetos» e as «Tendências Gerais da Filosofia» de Antero de Quental, onde esboça a sua filosofia e indica alguns dos temas característicos do seu idealismo crítico, é no segundo período acima referido que publica o primeiro volume dos Ensaios; justamente um dos mais ricos e representativos de toda a série e - pormenor revelador - embora concebido e composto longe do país, são nacionais todos os temas de que nele cuida, e acham-se eles estruturados por forma que permita ao autor traçar as grandes linhas da problemática que o concerne e fixar as suas opções fundamentais. Volume esse precedido e seguido de alguns opúsculos capitais: o Problema da Cultura e o Isolamento dos Povos Peninsulares (1914), as Considerações Histórico-Pedagógicas (1915), o Bosquejo da História de Portugal (1922 e 1923), a Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a questão de O Desejado (1925) e, por último, o Seiscentismo, em 1926. Desfecho natural, por assim dizer, tanto desses opúsculos como do decisivo ensaio de interpretação não romântica do texto de Zurara que é a Conquista de Ceuta (no volume de 1920) e bem assim da preciosa Antologia dos Economistas Portugueses (1924), é já esmagada a democracia burguesa que vem a público, em 1929, a célebre Historia de Portugal, da Labor, em espanhol. No mesmo ano aparece também o segundo tomo dos Ensaios; e nele, a abrir, este ditame de Nietzsche: «...Quero [...] por todo o futuro resgatar este presente!» e a fechar, numa página em que não se repara, um verso de Rostand: «C'est Ia nuit qu'il est beau de croire à Ia lumière!»
Na noite, pois, escreveu Sérgio o maior da sua obra. E é facto essencial. Mas não é menos essencial o facto (e até bem pelo contrário) que em tudo o que Sérgio anteriormente escrevera, como em tudo o que procede dele depois, é sempre um mesmo e um só combate. É que na sociedade portuguesa apenas uma parte da superestrutura mudara então, a base conservara fundamentalmente as suas estruturas, não modificara em suma a sua natureza.
Subjectivamente - para Sérgio -, é sempre o combate do mesmo contra os mesmos. Objectivamente, a obra inteira de Sérgio insere-se num «bloco histórico» que tanto ao nível da base como ao nível da consciência social correspondente é, no essencial, sensivelmente o mesmo. Pode-se dizer, quanto a nós, que a unidade fundamental que se evidencia na obra de Sérgio, a permanência do seu corpo de ideias não é estranha a este facto. Mais: tudo leva a crer que essa firme unidade de doutrina reflecte precisamente, no pensamento de Sérgio, a permanência nas condições sociais portuguesas do essencial, do que do ponto de vista sociológico é verdadeiramente estrutural, a saber, as relações de produção.
Mas entendamo-nos. Nada deixa supor, segundo cremos, que qualquer outro que Sérgio, de entre os ideólogos burgueses, em qualquer momento avançasse a sua crítica dos sucessos de Outubro de 1910 e dos que imediatamente se lhe seguiram até o ponto de reconhecer apenas à revolta republicana o carácter de revolução burguesa, mas não realmente «popular». Todavia, nada permite afirmar (bem ao contrário) que Sérgio, mesmo mais tarde, fortalecidas as suas convicções socialistas, sob a pressão natural dos acontecimentos, aceitasse a ideia de que «a condição primordial de toda revolução popular real» é a demolição, a destruição do aparelho burocrático e militar estatal existente e a sua substituição por outro criado nas novas condições (como demonstrava a crítica dos acontecimentos de 71 e do 18 Brumário). Ora, não partindo de uma tal posição de princípio (que aliás não era sequer compreendida pelos responsáveis portugueses do movimento operário e socialista desse tempo, imbuídos de proudhonismo e marcados pela influência anarquista de Mikhaíl Bakúnine) era natural que Sérgio não chegasse a concluir, sem sombra de equívoco, que é forçoso reconhecer como primeira evidência o facto que a implantação da República foi tão-só, objectivamente, um movimento político dirigido essencialmente contra uma fracção da classe burguesa, contra uma fracção da grande burguesia que detinha o poder, por parte de camadas e categorias sociais da mesma classe burguesa, mas cujos interesses, aspirações, reivindicações não eram exactamente os mesmos, e que, embora tenha tido o apoio decidido de camadas populares (pequena-burguesia urbana e rural e o operariado) sem dominante proletária, não representou de facto, socialmente, urna revolução popular real, no sentido marxista do termo. Isto, «porque a massa do povo, a sua imensa maioria» (os camponeses pobres e o proletariado, mas sem preponderância deste), que não estava ainda suficientemente evoluída para ter uma consciência dos seus interesses próprios, «não interveio de um modo visível, activo, autónomo, com as suas reivindicações económicas e políticas próprias», como será dito mais tarde.
Do nosso ponto de vista, a apreciação de Sérgio, com o que nela há de ideològicamente justo, situa-se antes ao nível da apreciação burguesa radical, senão socialista burguesa, mas da burguesia esclarecida, consciente dos vícios históricos que no passado entravaram já o seu próprio desenvolvimento económico, social e cultural, tendo-a impedido de criar, em devido tempo, uma grande indústria e uma investigação científica correspondente, ou de elaborar uma ideologia que exprimisse politicamente os seus interesses de classe então avançada. Após 1910, Sérgio não pertence a essa categoria da burguesia que se considera satisfeita com as conquistas políticas que marcavam o fim da monarquia, e que se empenhava agora a suspender o movimento nas suas direcções económica e social, ainda quando estas não iam além dos interesses próprios de certos estamentos da classe média. António Sérgio, ao que pensamos, não tinha pròpriamente razões para inclinar ao compromisso. Num sentido, a sua posição é clara, nítida, lógica.
Ideològicamente, na verdade, a doutrina de Sérgio não exprime um compromisso: nem está com o republicanismo burguês nem está com o socialismo proletário. Defende o «liberalismo político», mas combate o «liberalismo económico». Diz proceder dos «homens de 71» e sobretudo de Antero, e outrossim de Proudhon, o «mestre» comum em questões sociais, mas reconhece que Antero e os homens da sua geração (como Eça de Queiroz e Oliveira Martins) «não nos deixaram para a construção uma ideia concreta que se aproveitasse», pois «o revolucionarismo deles se mostrou por essência sentimental e abstracto, romântico, passional, milagreiro, vago» (são as suas palavras), e reconhece também que Proudhon e Antero - e justamente sobre a questão fundamental: a económica - não chegaram a atingir a necessária nitidez de ideias. Não obstante tudo o que escreveu em contrário (por razões que se compreendem, aliás - veremos quais), Sérgio no fundo não parece iludir-se no que respeita ao socialismo pequeno-burguês e contra-revolucionário de Proudhon e ao romantismo social que é o socialismo quimérico .e hesitante de Antero, expressão manifesta, um e outro, do ponto de vista do pequeno-burguês (8). Ora, apesar de tudo isso, Sérgio considera-os - exagerando decerto (9) - como seus mestres.
Se é bem verdade que «há socialismo e socialismo», o de Sérgio é decerto um socialismo: não só estigmatiza com vigor e com sinceridade as classes dirigentes como se pronuncia por um sistema democrático de educação que supere «a distinção obsoleta de classes liberais e de classes mecânicas», pela reforma agrária e pela transformação dos meios de produção em propriedade social, ainda que, em sua opinião, não deva realizar-se pelo poder do Estado. Não é pròpriamente um socialismo utópico no sentido em que o são os de Saint-Simon, de Fourier, de Tchernichévski ou de Owen, quaisquer que sejam os elementos de utopia que se nele discriminem. Não é tão-pouco um socialismo pequeno-burguês, regressivista e utópico, no sentido em que o epíteto de «pequeno-burguês» se ajusta ao socialismo de Sismondi, ao de Proudhon ou ao de Lassalle. A afirmação da identidade de interesses dos pequeno-burgueses e do proletariado, bem como a convicção de que a pequena indústria é o tipo de produção exemplar, é o que caracteriza, como se sabe, o socialismo pequeno-burguês - doutrina não apenas conservadora mas reaccionária. Este socialismo era o de Proudhon, e, em geral, o dos proudhonianos, não o de Sérgio -, ainda quando haja muito nele de proudhonismo (embora talvez menos, de facto, do que nos ele inculca).
Para o dizer de um golpe, é o de Sérgio um socialismo reformista burguês, com o seu quê de análogo àquele socialismo da classe média (a que se referia Herculano numa carta, que Sérgio citou (10) e que, a seu ver, se impunha à burguesia esclarecida realizar - se quisesse evitar o outro. Burguês, mas não pretensamente operário nem pretensamente marxista como o da social-democracia da Internacional Operária. Burguês e não proletário, porque Sérgio recusa categòicamente a ideia segundo a qual a luta entre classes (cuja existência só está ligada a determinadas fases históricas de desenvolvimento da produção) conduz, necessàriamente, à ditadura de classe do proletariado como transição necessária para a supressão das diferenças de classe em geral e para uma sociedade sem classes. Burguês ainda, na medida em que não rompe concretamente com a burguesia como classe, antes, objectivamente, contribui para consolidar a sociedade burguesa, intervindo como um moderador e um travão no processo de desintegração das relações de produção capitalistas, e de reestruturação de uma sociedade da qual a burguesia está excluída como classe dirigente. Burguês, mas não pequeno-burguês: nem diviniza as contradições nem alega o intento de conciliar as contradições (uma e outra coisa fez Proudhon). Mas é a categoria mesma de contradição que Sérgio contesta, com tudo o que ela implica. Proudhon, que nunca compreendeu a dialéctica (nem a idealista hegeliana nem a materialista) tinha uma «inclinação natural» pela dialéctica, como já se disse algures. Sérgio repudia-as a ambas.
Bem vistas as coisas, a doutrinação de Sérgio fundamentalmente não exprime o espírito pequeno-burguês: espírito de compromisso, de oscilação entre a burguesia e o proletariado, o capital e o trabalho, a conservação e a revolução, a reacção e o progresso, o idealismo e o materialismo. Não quer isto dizer que Sérgio, anàlogamente aos representantes ideológicos da pequena-burguesia, não creia estar acima de todo o interesse de classe, acima do antagonismo de classes em geral, e não incline, como eles, à subestimação senão à negação dos laços que ligam os intelectuais e as instituições culturais aos interesses materiais de certas classes e categorias sociais. E no entanto, se a sua crítica à governação da República exasperou tantos não será justamente porque ela contrariava aqueles sectores da burguesia vivendo de interesses estabelecidos, interessados em não tocar nas estruturas económicas existentes já no período monárquico, desviando toda a atenção para outras questões que Sérgio, com razão ou sem ela, mas, no geral, com razão, reputava secundárias ou até artificialmente criadas?
Se bem julgamos, as exigências de Sérgio estavam em contradição com os interesses (incluídos os ideológicos) das camadas dirigentes da burguesia, preocupadas com a agravação de um problema: a chamada «questão social», o «conflito do trabalho com o capital», como então se dizia, e que apesar da multiplicação dos incidentes, das greves económicas e até da greve política, das lutas de classes, em suma, que alguns dos seus doutrinários se obstinaram em negar, e exactamente nos mesmos termos, então como em 1879, mesmo se em plena República, as camadas populares se insurgiam e, como os grevistas de Almada, escreviam nas paredes: «Viva a Revolução económica. Basta de fome!».
Mas ocorre perguntar: as exigências de Sérgio, na sua crítica da incúria governativa no plano social e económico, seriam elas realizáveis nas condições históricas do tempo, e, sobretudo, dada a forma essencialmente reformista (11) que propunha, seriam elas de resto conformes então às aspirações políticas e sociais das massas populares, das categorias sociais susceptíveis de as traduzir na prática? A resposta deixa-a talvez entrever Sérgio ao anotar por esta forma a reivindicação operária a que aludimos, e que ele referira: «Houvessem eles [«os revoltosos de Almada», como os acoimou] empregado o termo «revolução» num sentido criador, e teriam escrito o comentário de uma história de oito séculos, e a condenação das revoltas políticas e burocráticas em que nos temos anarquizado, sob o mando da paixão, da inconsciência e do charlatanismo» (12). O social-democratismo de António Sérgio, onde se exprimem reivindicações democráticas e revolucionárias positivas de mistura com elementos de subjectivismo e típicas ilusões pequeno-burguesas, é um socialismo reformista burguês. É na aliança da burguesia nacional e das camadas populares, mas sob a direcção do escol burguês, que ele confia para o ressurgimento do país. Posição, como bem se está vendo, infinitamente mais próxima, sem dúvida de Proudhon, que de Marx e Lénine.
Objectivamente, o essencial aqui é não perder de vista a característica principal. E esta está, quanto a nós, na significação exacta a dar à crítica de Sérgio ao republicanismo burguês. Ela permite determinar justamente até onde vai Sérgio, para além dos republicanos burgueses. Fundamentalmente, como dissemos, acusa-os Sérgio de só terem quebrado a tradição nos seus aspectos superficiais e não a quebrarem, como convinha e se tornava inadiável, no que é operante e fundamental, para que fossem eliminados de vez os vícios básicos de que enfermava, e enferma, a Nação; isto é, se atacassem de raiz os males profundos (de natureza social, económica, e não política) as causas reais, e não meramente os seus efeitos.
Quanto a nós, entrevê-se aqui, nesta maneira de pôr o problema, precisamente um dos aspectos que revelam o seu utopismo, consequência do seu idealismo político. Como Antero e os socialistas reformistas, Sérgio, na sua crítica do republicanismo burguês toma, unilateralmente, a posição que lhe é diametralmente contrária. Queremos dizer: aceita, como os republicanos burgueses, a separação do económico e do político, mas, ao contrário deles, não poucas vezes parece insistir ou insiste mesmo exclusivamente no económico em detrimento do político, parecendo não ter em conta, ou não tendo mesmo em conta (por via de regra, mas não sempre), o carácter dialéctico da relação entre eles (13). Ora, a compreensão dialéctica da relação entre a economia e a política, da acção mútua entre ambas na prática social, traduz-se neste caso, muito precisamente (o que não se verifica geralmente em Sérgio na sua crítica - em parte justa, a nosso ver, mas unilateral - do unilateralismo dos republicanos burgueses (14) ), no reconhecimento da necessidade objectiva da primazia da política sobre a economia: as transformações políticas radicais são condição necessária da satisfação dos novos interesses económicos fundamentais, das transformações económicas radicais. Isto, porque as relações políticas reais são a expressão concentrada da economia.
É possível, é de certo modo explicável, dadas as circunstâncias, pelos motivos que todos sabemos, que alguns só tenham visto ou até só vejam ainda, apesar do recuo, certos exageros, na crítica feita por Sérgio ao conteúdo doutrinário (ou à filosofia social, se se preferir) da propaganda da República burguesa e da maneira como os seus mais conhecidos ideólogos e estadistas, os dirigentes que realmente influiram, entenderam realizar essa sua revolução política. Diga-se que nunca Sérgio, aliás, nem qualquer outro doutrinador responsável, quis negar evidentemente que tenha havido aspectos positivos insofismáveis na obra da República e que esta constituíu sem dúvida um decisivo passo em frente, um indubitável progresso social em relação à monarquia, a qual, como é bem sabido, assentava nas camadas mais corruptas e retrógradas da burguesia e da «aristocracia» parasitária, e ademais apoiada pela hierarquia católica. Não há dúvidas a este respeito, ainda que, claro, mesmo hoje, as opiniões estejam nalguns casos particularmente divididas quanto à determinação dos elementos positivos desse balanço (por exemplo tudo o que toca à política de participação na primeira guerra imperialista). Porém, não é menos certo que a República democrático-liberal consolidou os privilégios da burguesia, portuguesa e estrangeira (15), e tanto em Portugal como nos territórios africanos (16). Apesar de certas concessões fundamentais aos trabalhadores (sobretudo o direito de greve, reconhecido pelo Governo Provisório, e a adopção do dia de 8 horas de trabalho, em 1919, primeira vitória política do proletariado português contra a economia política da burguesia), não se elevou de maneira sensível o nível de vida do nosso povo: o nível económico ou o fisiológico, ou o cultural. Não é menos certo, em última análise, que a «os males profundos de natureza económica» (em que Sérgio sempre insistiu fundamente (17) ) não foram achadas aquelas mesmas soluções que poderiam comportar, por esse então, as estruturas capitalistas da sociedade portuguesa. A mesma omnipotente oligarquia, nota Sérgio, continuou a praticar os mesmos abusos, e acaso até os agravou (18). À luz destas ideias, a atitude de Sérgio nos anos que precederam como nos que se seguiram imediatamente a 1910, sob certos aspectos assemelhava-se muito, como ele próprio disse, à de Antero, o que possivelmente fez imaginar a uns tantos que ele se achava não além mas aquém dos doutrinários republicanos. Porém, o facto, segundo cremos, é que Sérgio, ideològicamente, se achava ao fim e ao cabo para além de Antero ou de qualquer outro dos intelectuais socializantes de 71 ou de 52 (19). Adversário do «liberalismo abstracto e capitalístico» (mas adepto do «socialismo liberal»), Sérgio pronunciou-se pela propriedade social dos meios de produção e de troca e pela planificação económica (a que, em 1924, quando esta expressão não era ainda usual, chama, na Antologia dos Economistas Portugueses, «submeter a vida económica à direcção intelectual»).
Utopista (para alguns um «visionário», um sonhador»), não tendo em muitas ocasiões o sentido político exacto, prático, da conjuntura, frequentemente se deixando iludir na apreciação dos homens, mais «práticos» e menos «idealistas» do que ele, e não poucas vezes levado por isso mesmo a tomar posições que um ou outro dos seus amigos, por razões várias, desaprovaram, Sérgio, ao que nos parece, não raras vezes assumiu, em contrapartida, posições realistas, justas, quanto aos problemas ideológicos. Posições que nem sempre eram do agrado dos que, nos arraiais republicanos, passavam por seus correligionários - a começar algumas vezes pelos próprios «seareiros» (20), no entanto congregados e animados fundamentalmente, no período ideològicamente mais rico e significativo da Seara Nova, o dos anos 30, pela sua acção doutrinal e política.
É aqui que supomos estar a contradição fundamental. Não pròpriamente na obra de Sérgio, ainda quando certas contradições se manifestam, mas na relação entre essa obra e os que deviam ser normalmente os seus leitores mais interessados. E essa contradição fundamental - e por ele ressentida como tal desde o princípio - é uma contradição permanente. Para nós, é isso a expressão, o reflexo, nos seus aspectos essenciais, e não apenas acidental ou fortuito, do agravamento das condições contraditórias em que tem decorrido particularmente a vida portuguesa neste século.
O princípio motor da criação de Sérgio, se assim se pode dizer, é o protesto contra o ambiente intelectual que veio encontrar na sua terra. Este facto determina a importância social do escritor. Sérgio representa por um lado o desejo de romper com o presente, e por outro de reatar com o passado. Decerto não com o passado que é responsável deste presente, mas precisamente com a linha de tradição cultural que a ter-se desenvolvido teria conduzido a uma situação presente bem diversa. Mas teria de facto? Afigura-se-nos duvidoso. É que aqui também António Sérgio «idealisa».
Face à incompreensão ou à hostilidade dos contemporâneos a quem a singularidade e o inconformismo dos seus juízos choca profundamente, Sérgio abona-se com os juízos de algumas personalidades já prestigiosas do passado ou susceptíveis de o devirem: «quem a boa árvore se chega, boa sombra o cobre», diz um rifão citado por Antero. É assim que invoca, recuando no tempo, Antero e Oliveira Martins, e Herculano e Mousinho, e mais para trás a ilustre falange dos estrangeirados do século XVIII, dentre os quais avulta o Luís António Verney. (Mas que conta ainda nas suas fileiras, como recordou Sérgio, Ribeiro Sanches, Luís da Cunha, Alexandre de Gusmão, o Cavaleiro de Oliveira, Monteiro da Rocha, Manuel do Cenáculo e vários outros). Ora, invocando-os com esse propósito (21) (tal como o fez no campo filosófico com um Kant, com um Descartes, com um Platão, mas o facto é particularmente sensível nos casos de Antero de Quental e de Oliveira Martins), não são, bem ao cabo de contas, um Antero e um Martins «reais», mas um Antero «ideal» e um Oliveira Martins «ideal» ou seja, acentuando e desenvolvendo o que neles Sérgio descortina de mais conforme à ideia que ele próprio se faz deles -, do que eles seriam se tivessem sido fiéis a si mesmos, ao que porventura havia neles de melhor - que Sérgio gostaria de poder considerar como precursores por excelência dos jovens de hoje.
Tal como o seu Herculano «ideal». Isto é: um Herculano que sustentaria a doutrina que seria - do ponto de vista de Sérgio - «a mais consentânea com o génio íntimo, com a mentalidade inata de Alexandre Herculano» (22). Desta maneira, no espírito de Sérgio, a atitude crítica de Herculano para com o liberalismo económico encontrava raízes no «racionalismo kantista»; ou seja, na «orientação racionalista, que procurava na estrutura da consciência - num a priori - os princípios directores da vida ética (e portanto as normas da vida política)» (23). Essa atitude de Herculano «a sistematizar-se em doutrina» - diz Sérgio - «daria um socialismo idealista e cristão, exaltador da pessoa, como foi afinal o do próprio Antero» (24). Explicitando o pensamento de Sérgio: as atitudes de Herculano e de Antero - ou mais exactamente: as atitudes projectadas por Sérgio sobre Herculano e Antero - sistematizando-se em doutrina dão ... o socialismo idealista de António Sérgio. O «Herculano» de Sérgio é como o seu «Platão»: um neo-kantiano de feição sergiana (25).
A admitir este proceder, a este respeito duas observações nos competirá fazer: uma, é que Sérgio exalta e de certo modo propõe aos jovens como mestres portugueses dois autores (Antero e Martins) nos quais, por um lado, engrandece ao máximo os aspectos positivos (ou, pelo menos, que ele considera como tais); mas por outro lado, a sua lucidez excepcional de crítico não pode deixar de pôr em evidência, e com motivo pleno, todos os seus aspectos negativos. Mas aqui, aqui justamente, sobressai a contradição: os aspectos negativos postos a nu nas personalidades intelectuais de Anrero e de Martins são tais e de tal gravidade, e tão perfeitamente marcados pelo crítico implacável, que já não é possível aceitar, sem contra-senso, a outra face, aquela precisamente que Sérgio - paradoxalmente - mais parece querer inculcar; isto é, o serem eles mestres de pensar. Apenas Herculano sai incólume, e é de justiça. A segunda observação é a seguinte: a que vem então essa exaltação de Antero e de Martins como pensadores e doutrinários, como precursores por excelência? Como pode Sérgio, homem das ideias claras e da coerência do pensamento, da justa inflexibilidade do juízo crítico, avançar este ditame: «No fim de tanto batalhar de ideias, Antero de Quental e Herculano levantam-se do pó como dois fortes» (26)? Vá por Herculano, claro está, pela razão já dada. Mas Antero?
Bem sabemos que aos que (como Raul Proença) não entenderam o sentido exacto das suas palavras, Sérgio fez observar que disse isto e só isto, a saber: que no fim de tanto batalhar de ideias Antero se levantava do pó como um forte, como um forte por conseguinte no batalhar de ideias tão-só; isto é, na honradez e na coerência do seu pensar, no seu senso crítico, na probidade mental de que deu exemplo. E Sérgio remata: muito superiores (Antero e Herculano, pois é dos dois que tudo isto é dito), «muito superiores ao que nos é dado fruir nos demais publicistas do nosso século XIX» (27). Pois é: justamente no «batalhar de ideias», no «senso crítico» e na «coerência do pensar» que ela implica, é que o Antero doutrinário, «filósofo», e pensador social - em razão da justeza inteira das críticas mesmas que Sérgio lhe fez - não pode, quanto a nós, ser dado como exemplo. E com maioria de razão, é bem de ver, muitíssimo menos ainda Oliveira Martins. Então? Que mesmo como prosador de ideias Antero seja muito superior aos demais pensadores do século XIX (Com a excepção de Herculano) decerto não oferece dúvidas: mas onde estão os demais? Por isso mesmo que ninguém ousa a sério, sem «arrière-pensée», mencionar um Oliveira Martins - o inspirador dos desvairos «teóricos» de Junqueiro (como Sérgio demonstrou) - ou um insignificante Sampaio Bruno, ou um inqualificável Teófilo Braga, pois não é verdade? Mas, a admitir que não avulte nenhum verdadeiro mestre de pensamento, entre nós, ao findar o século XIX que fazer? Haverá que inventá-lo? Pois acaso será sempre preciso desenterrar «ancestros» - «espectros», em suma (para retomar as expressões de Sérgio) - e dá-los como «modelos»? Ora, o «sergismo ideal» - como de resto o «sergismo real», por via de regra - inculca principalmente uma salutar reacção contra a superstição das tradições, contra o passadismo.
A Raul Proença que lhe contestara (por razões diferentes das nossas) a justeza da sua apreciação sobre Antero (e Herculano), afirmando: «Não curo agora das condições; curo dos factos», António Sérgio não teve dificuldade em revelar a inconsistência da objecção: não só não é justo nem racional não se curar sempre das «condições», como os «factos» são o conjunto das «condições» e só por um proceder inteiramente arbitrário se separam os «factos» das «condições» (28). Para nós justamente, para quem «a verdade é sempre concreta» - o que significa que se cure sempre das circunstâncias - o ponto está em indagar das condições (das condições sociais entende-se, pois é da significação social de Antero na sociedade do seu tempo e em relação à nossa, que cuidamos, deixando a outros o estudo, por certo interessante mas diferente, da pessoa de Antero) que fizeram com que um homem como Antero, com os seus dons e com a sua inteligência de excepção que a obra poética revela, e também com a inteireza de carácter de que sempre se tem dito que a sua vida dá testemunho, não tenha sido afinal nas batalhas ideológicas do seu tempo o «forte» que Sérgio «idealizou».
Mas aqui se nos depara um problema que concebemos estreitamente ligado ao anterior: que circunstâncias levaram António Sérgio não só a ter idealizado Antero, mas a tê-lo idealizado pela forma como o fez? Por outras palavras: que representa, para Sérgio, o anterismo «ideal»? Que significa do ponto de vista da análise social das ideias o anterismo «ideal» sergiano?
Sugerimos aqui o seguinte: um problema que se punha com particular acuidade nos meios intelectuais, no começo do século, era o problema da tradição. Os homens de 71 por um lado, e por outro os nacionalistas neo-garrettistas da «geração de 90» tinham de certo modo escolhido as suas tradições respectivas. As opções de Sérgio são desde o seu primeiro escrito (anterior à República) no sentido da continuidade do que ele entrevia como obra renovadora, de inspiração europeizadora e socializante, na intervenção dos «insurreccionistas» das Conferências democráticas do Casino. Sérgio procura, pois, engastar a sua doutrinação numa tradição de pensamento. Ora, não é decerto um acaso se os dois autores portugueses para quem vão em primeira linha as simpatias de Sérgio, a saber: Antero e Herculano, são muito justamente aqueles que são o primeiro alvo dos ataques de Teófilo.
Exaltando Herculano, o velho liberal prestigioso, sobretudo Antero, poeta revolucionário, democrata e socialista liberal -, é de boa guerra - Sérgio alveja indirectamente os conservadores burgueses republicanos que têm em Teófilo o seu ideólogo, e ao mesmo tempo o próprio Teófilo que já Antero impugnara certeiramente. Ora, Teófilo era aos olhos da maioria o representante principal da ideologia republicana. Criticando-o - pelo que ele representava - e isto tanto em 1914 como em 1921, como sobretudo em 1918 num artigo da Pela Grei que, estando Teófilo ainda vivo, levantou cóleras e protestos, e indignações furiosas, Sérgio não só indispunha contra si uma grande parte do que havia de opinião pública republicana como alienava bom número de leitores e restringia assim - momentâneamente - o campo da sua influência.
Amigo de Antero (e, aparentemente, pelo menos, dizendo-se seu correligionário) Oliveira Martins, autor de uma Súmula Legislativa da Futura Revolução Portuguesa que já em 1873 insiste na questão económica minimizada pelo programa de Teófilo para os republicanos (1878), pode ter aparecido a Sérgio como outro aliado natural no debate ideológico (29): «um novo Mousinho» lhe chamou, que procurou infundir uma expressão concreta à reorganização da sociedade portuguesa pelo socialismo. Tanto mais que Antero neste ponto era de nenhum préstimo, como Sérgio deixa entender.
A atitude de hostilidade para com o partidarismo republicano e para tudo o que ele representa nos seus diferentes aspectos - nomeadamente a carência de um pensamento político concreto, de uma linha ideológica consequente - é o denominador comum das posições de Antero, de Oliveira Martins e de Sérgio. Da mesma maneira que uma parte da «geração de 71» invocava Herculano como um mestre, Sérgio, por sua vez, avança ora os nomes de Mousinho da Silveira, de Herculano e de Antero, ora de Antero e de Oliveira Martins ora, mais frequentemente, tão-só o de Antero, para ele a figura ideal e representativa: o moço insubmisso que perguntara: «Mas, exmo. senhor, será possível viver sem ideias? Esta é a grande questão», como mais de meio século depois da «Questão coimbrã» havia de perguntar: «Mas, exmos. senhores, será possível governar sem ideias? Esta é que é a grande questão».
Mas se há verdade nisto, nem por isso deixa de se nos deparar aqui uma das contradições porventura mais desconcertantes de Sérgio: por um lado, o mais lúcido espírito crítico denunciando inflexivelmente as insuficiências, defeitos e incapacidades de que dão mostras algumas das figuras mais em evidência do que é considerado o escol intelectual da nação, qualquer que seja o horizonte ideológico de que procedam; por outro lado, tratando-se de Oliveira Martins e de Antero, há da parte de Sérgio uma atitude de retraimento. Ê verdade que a crítica nem sempre é menos acerada ao fustigar Martins, mas é também verdade que as consequências lógicas dessa mesma crítica não são tiradas, como o foram por exemplo, e muito justamente, em relação a Guerra Junqueiro e a Teófilo Braga.
No entanto, Sérgio nem por isso deixou de admitir que há motivos para duvidar que a concepção «socialista» proudhonianesca e Martiniana - «o socialismo de Martins é o do Proudhon seu mestre» - «signifique de facto uma destruição completa do actual regime de «competição mercantil» (30). Mas não só. Sérgio que dá Proudhon como um mestre não pode deixar de reconhecer que «Proudhon é já de si confuso» (31). E todavia uma como que ternura particular detém Sérgio, amortece a crítica e, num movimento de compensação, levanta o que há pouco abaixara. Porque o facto é este: o que surpreende na atitude de António Sérgio a este respeito não é apenas que ele exagere a apreciação positiva, não é que ele saliente os pontos fracos e os pontos fortes que há naturalmente na obra de Martins, como na de qualquer um. Mas mostrando acharem-se em Oliveira Martins tantos dos defeitos mais característicos que ele sempre verberou nas falsas elites nacionais, não hesite a despeito disso de o apontar como um dos seus «mestres» mais dignos (32).
A contradição de Sérgio a respeito de Oliveira Martins, se bem nos parece, não é fortuita, mas sim a expressão das condições contraditórias que caracterizam a vida portuguesa - e tanto a do tempo em que Sérgio realizou a sua obra, como a do tempo em que Martins escreveu a sua e que a sua obra reflecte. A contradição no juízo de Sérgio acerca de Oliveira Martins, de este ponto de vista, exprime o estado de espírito e a situação de uma classe que vê escapar-se-lhe das mãos a direcção do movimento político e ideológico. As ideias políticas de António Sérgio, o seu idealismo político e social, são o testemunho desta época da vida histórica portuguesa. Sobretudo da profunda crise política e ideológica da República.
Se aqui visamos certeiro, Sérgio vê em Antero de Quental e em Oliveira Martins sobretudo dois escritores de ideias que, afirmando inculcar doutrinas «revolucionárias» e, mais concretamente, «socialistas», ao gosto proudhoniano e lassalliano (tão conforme às acanhadas condições sociais e políticas da época no país), seriam susceptíveis de prevenir ou interromper a passagem ao marxismo das novas gerações portuguesas.
Não é isto por forma alguma suposição gratuita. Pois que esta é de facto a razão profunda da sua exaltação da doutrina social de Antero, não o terá inculcado Sérgio inequivocamente, ao escrever, com variantes de redacção, em 1933, 1934 e 1959, um significativo ensaio sobre o socialismo de Antero, onde este ponto é, com efeito, progressivamente acentuado? Sérgio primeiro pronunciou-se assim: «O carácter que hoje se nos antolha mais útil, mais oportuno, no pensamento social de Antero, é o de ser uma espécie de correctivo ao que há de materialista e de autoritário, de excessivamente mecânico, exclusivista e simplista, na corrente do socialismo que tende a prevalecer no nosso tempo» (33). Do ponto de vista de Sérgio, o interesse maior do socialismo de Antero, hoje, é o de ser um socialismo idealista, liberal, não-estatal, não-comunista, «aplicação - ou corolário - de concepções religiosas e cristãs» (34) e, ter, como tal, a feição de encarar as questões económicas numa perspectiva essencialmente moral, e de basear o progresso no esforço moral. É o de ser um socialismo que se propõe «atingir a virtude da maioria pela acção da virtude de minorias de escol» (35). Pois que Antero condenava a ideia (que Sérgio diz ter seduzido tanto «o materialismo marxista» - o que é manifestamente inexacto quer tratando-se do «materialismo de Marx» (36) quer dos «socialistas materialistas» (37) - tanto do tempo de Antero e da I Internacional como do tempo de Sérgio e da III Internacional) «de esperar a reforma da sociedade de um fatal [sic] e espontâneo [sic] desenvolvimento das instituições económicas actuais, o pendor a considerar o progresso social à luz duma concepção puramente mecânica) [sic] (38). Numa palavra: o de ser um socialismo que se situa «no polo oposto ao da concepção marxista» (39), proudhoniano em suma, numa época (1871-1872) em que «declinava já a popularidade da inspiração idealista e proudhoniana, em pró do materialismo de Carlos Marx» (40).
Assim nos diz Sérgio. Ora pois; visto o socialismo de Antero a esta luz, o papel «porventura mais útil, mais oportuno» que lhe incumbe - na perspectiva em que Sérgio se coloca - é ao fim de contas o de poder servir «para compensar na juventude portuguesa de hoje a tendência dominante para Carlos Marx» (41).
Sérgio, quer-nos parecer, buscou salvar a todo o preço dois - ao menos dois - heróis da cultura nacional recente. Face ao «culto da tradição» dos nacionalistas regressivistas da chamada «geração de 90» e dos que, na república ou contra ela os continuavam (como um Teófilo Braga e um António Sardinha), para Sérgio importava então sobremaneira fazer intervir na campanha ideológica aqueles «precursores legítimos» (a expressão é de Sérgio) que representassem a outra tradição; a saber: a «tradição revolucionária» portuguesa. (Por isso mesmo que há em cada nação, duas nações, duas tradições, duas culturas). Ora, segundo Sérgio, «das mais antigas e resplandecentes das tradições de Portugal - é a dos universalistas cosmopolitas», é a do estrangeirismo. Pois bem. Desses heróis recentes da cultura em Portugal, António Sérgio foi levado a trazer à primeira linha, e em reacção contra a gente de 90, contra os nacionalistas integrais de 910 e contra os «saudosistas» da Águia, o órgão da «Renascença Portuguesa» (1911-1912), aqueles mesmos contra os quais reagiram os reaccionaristas do nacionalismo estético e político. Isto é: os «insurreccionistas estrangeirados» de 71, que continuavam o «estrangeirismo» dos «iluministas» da era das luzes.
De entre os homens de 71, Sérgio via avultarem aqueles que, não cedendo aos refluxos de tendências (exemplificado no John Bull, de Ramalho Ortigão, de 1887, nos dois últimos romances de Eça de Queirós e no seu artigo A Rainha, de 1889), se singularizaram na sua época por aliarem a uma formação ideológica burguesa profissões de fé de índole socialista, ainda quando, pelo que toca a um deles, contraditadas pelos factos, sem remissão possível, como é o caso de Oliveira Martins; o de Antero, como se viu, demanda explicações, mas é facto que ele está indiscutivelmente ligado, com José Fontana (o suíço do Tessino Giuseppe Fontana (42) ), à criação da secção portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores. Quando menos, por esse facto pertence ele à corrente do pensar socialista em Portugal.
Em resumo, pois: a haver razão no que pensamos, não é sem motivos ponderados, e por ele mesmo confessados - «Talvez assim [...] nos queiram ouvir...» -, que, definindo a «tradição de pensamento» (43) que melhor se coaduna com o seu próprio pensar no domínio da ideologia e da política, Sérgio declara: «Se quisermos aí [na gente de 71] um precursor legítimo, ela nos dará o seu maior homem: o socialista Antero de Quental» (44). E compreende-se. Como se compreende também - à luz das motivações que indicámos - que ele declare: «Antero é o escritor português de maior actualidade» (45), mas sem que tenhamos de anuir - e pelas razões dadas - ao seu juízo.
Disse Sérgio: «Qualquer doutrina, partido ou escola contém elementos e numerosas faces onde há reflexos do que já passou» (46). Assim cremos também. Com efeito, ainda pelo que concerne a esta querela dos Antigos e Modernos (tão importante para a análise social do sistema ideológico sergiano) se vê como nele se reflecte contraditóriamente a realidade social portuguesa; ainda aqui a obra de Sérgio é a expressão das condições contraditórias dessa realidade.
Temos a convicção que talvez nenhuma declaração de Sérgio reflita melhor - de certo ponto de vista - o particular da sua situação ideológica (revelando singularmente ao mesmo tempo o que nela é fonte permanente de embaraço para a maioria dos seus leitores) do que estas palavras que, transpondo os dizeres de Pascal, ele aplicou a si mesmo: «Não mostramos a nossa grandeza indo-nos colocar numa posição extrema, mas situando-nos nas duas ao mesmo tempo, e preenchendo o espaço que medeia entre elas» (47). É esta de facto uma definição perfeita da posição sergiana. Ora, não parece que ela tenha sido sempre devidamente compreendida. Escreveu ele: «Nas minhas afirmações, porém, são numerosos os leitores que apenas vêem uma das faces, e não a síntese das duas (correlativas e complementares) que geralmente me caracteriza» (48).
Na sua obra não se reflectem, para que assim digamos, os interesses estreitos de uma camada, de uma classe determinada ou de um determinado grupo social delimitado. A complexidade e a riqueza da sua obra não são redutíveis a uma característica de classe elementar. Quer isto dizer que ela se acha desligada do quadro concreto da luta de classes e de fracções de classes e das relações de força da sociedade? Decerto não. A melhor prova dá-a precisamente o facto de ele ter sido o primeiro escritor português não pròpriamente a reconhecer que poucos países há, como o nosso, em cuja história seja tão visível, de ponta a ponta, o influxo do económico (embora certamente ninguém antes de ele o tenha posto em relevo como o fez Sérgio), mas o primeiro a sublinhar com um tal vigor a importância decisiva, nos momentos decisivos de toda a história portuguesa, dos antagonismos e das lutas de classe, e até das lutas armadas de classe identificadas (como na insurreição burguesa do século XIV) com uma luta nacional pela independência contra um Estado estrangeiro e contra a classe que, no interior do País, era favorável à intervenção da classe social estrangeira correspondente. Reconhecê-lo não é esquecer nem minimizar as reservas dos especialistas quanto à natureza real da arrumação das forças de classe ou no que respeita aos benefícios fundamentais de natureza económica colhidos na revolução pelas classes que nos campos se levantaram contra a nobreza feudal (49). Mas as insuficiências que a análise de Sérgio apresenta sob esse aspecto (aliada a uma interpretação marcadamente idealista do condicionamento económico, como já dissemos e dando neste ponto razão a Sérgio contra os críticos e partidários superficiais que o não souberam entender), Procedem justamente, segundo cremos, da posição ideológica reformista de Sérgio. Têm por conseguinte uma marca de classe.
Ao que temos por mais razoável, no caso de Sérgio o problema não é o de o considerar do ponto de vista de uma classe ou até de uma camada social, das características exteriores deste ou daquele grupo ou categoria social, mas o de analisar o conjunto da obra que escreveu do ponto de vista da relação de todas as classes, do ponto de vista dos problemas fundamentais do contexto social e dos quadros ideológicos e políticos em que essa sua obra se insere. Interessantes indícios a este respeito podem encontrar-se ao observar de perto o aprofundamento de certos temas em ligação mais ou menos estreita com o agravamento das contradições sociais e ideológicas, o interesse dominante por um ou por outro aspecto dos problemas sendo não tanto função de inspiração ou de curiosidades pessoais mas principalmente das condições históricas do momento. Facto que assumiu particular relevância tratando-se, como dissemos, de uma obra essencialmente polémica como a de Sérgio, sempre fortemente solicitada pelas circunstâncias.
As modificações sofridas por certos textos em edições sucessivas, progressivamente salientando melhor certos aspectos em que anteriormente insistira menos, e tratados depois por uma forma ideològicamente mais nítida, não são de toda a evidência puramente casuais mas reflectem justamente essa agudização das contradições sociais. Ponhamos exemplo. A maneira por que Sérgio exprime a sua posição - ou melhor: oposição - em relação ao marxismo não parece estranha a certas particularidades circunstanciais, ainda quando a sua oposição de princípio seja constante. Veja-se o modo como Sérgio se definiu em diferentes circunstâncias em relação à concepção materialista da história. Porém, repare-se que se trata apenas do modo como se exprimiu, acentuando ora mais ora menos certos aspectos - donde resultou em parte, mas apenas em parte, proceder de aí o embaraço de uma maioria considerável dos leitores, como dissemos. Mas claro que Sérgio não teria dificuldade em provar - produzindo afirmações de diferentes épocas e inclusive das menos recentes - que só o leitor desatento ou pouco versado na matéria podia alguma vez ter visto nos seus escritos traços de autêntico materialismo histórico (50). Mas não há dúvida que certos passos, mesmo independentemente das intenções de Sérgio, podiam de facto facilitar a confusão. Precisamente aquelas passagens em que o autor mais se afasta da interpretação tradicional da história e nas quais se opõe aos historiadores tradicionalistas. Ao contrário, quando responde à acusação dos que o dão como materialista histórico ou a objecções dos que se dão eles mesmos como tais, Sérgio muito naturalmente põe em relevo o que radicalmente o afasta do materialismo, mesmo histórico. Só não perceberam isto aqueles que, por uma ou outra razão, não souberam elevar-se da leitura fragmentária e dispersa dos textos de Sérgio às ideias directrizes que a todos anima, ao que é de facto, indisputàvelmente, um corpo de ideias perfeitamente estruturado; numa palavra, uma doutrina, que propusemos se chame - e Sérgio acordou - idealismo crítico. Acordando nós, por nossa parte, quando ele disse: «É isto doutrina que eu aplico a tudo, sem distinguir disciplinas» (51). Assim é de facto. Só por comodidade de exposição, para arrumação aparente de temas, dividimos nós aqui um todo indiviso em idealismo filosófico, idealismo histórico, idealismo político. A doutrina é uma mas no primeiro caso, ela é expressa sobretudo do ponto de vista da teoria geral do conhecimento, do problema fundamental da filosofia e trazendo ao primeiro plano os problemas filosóficos das ciências da natureza; no segundo caso, exprime-se principalmente do ponto de vista da problemática relativa às ciências sociais; e, no último caso, do ponto de vista da prática pedagógico-política e da ideologia política. Três aspectos complementares e inseparáveis de uma só doutrina - o idealismo crítico sergiano.
Pelos problemas de que trata e pelo modo como os trata, a obra de António Sérgio exprime tendências sociais determinadas, está ligada a fenómenos de desenvolvimento histórico determinados. É a atitude objectiva do autor perante os problemas que caracterizam a situação histórica do país, perante o ambiente histórico geral e as condições particulares em que cria a sua obra, que permite situar esta no sistema das relações sociais e definir a sua significação social, ideológica. No caso de Sérgio, e pelas razões que apontámos, a complexidade das relações entre o escritor e a classe a que ele pertence ideológicamente (ideológicamente e não por nascimento, claro) é sobremaneira patente. Embora a sua obra tenha particularmente raízes numa classe determinada, na consciência social que a exprime e na ideologia que a define, é a realidade portuguesa deste século na sua complexidade que nela se acha reflectida. Nela se reflecte a heterogeneidade social da classe burguesa.
É por certo insensato dizer que Sérgio é um escritor tipicamente pequeno-burguês, representante da ordem capitalista, ao mesmo título que o foram um Oliveira Martins e um Teófilo Braga. Toda a obra de Sérgio testemunha na verdade da sua hostilidade ao conservantismo pequeno-burguês: quando denuncia a deformação corriqueira, caricatural do jacobinismo, quando reage por exemplo contra os malefícios da tradicional resistência ao progresso técnico, à industrialização do país, quando reage contra a tendência dos nacionalistas da gente de 90, que desprezando as vantagens do capitalismo moderno, rnido embora, preconizavam o regresso às condições do precapitalismo (52). Porém, não parece menos certo que na medida em que hostiliza abertamente, do ponto de vista ao mesmo tempo filosófico e político, o materialismo contemporâneo, Sérgio aproxima-se sensivelmente das correntes pequeno-burguesas que na social-democracia (sobretudo alemã e austríaca) tendiam para Kant, para o neo-kantismo, para a filosofia crítica. De toda a maneira, não é tão-pouco verosímil pensar que ele exprime adequadamente a ideologia ou mesmo o estado de espírito da camada social culta da pequena e média burguesias que constitui decerto, entre nós, nestes últimos decénios, a parte mais considerável da inteliguéntzia e em particular da categoria dos homens que têm por profissão ocupar-se da cultura, ou dos que, à margem duma actividade profissional diversa, produzem a cultura. De aí procede precisamente, pelo menos em boa parte, não só o seu isolamento de facto entre os intelectuais, vindos todos eles pràticamente das classes médias, mas ainda o característico, a singularidade da sua posição no contexto ideológico. É o que faz a força e a fraqueza da doutrinação de Sérgio. É urna das contradições essenciais que marcam a significação social da sua obra, e urna das razões também dos limites da sua projecção. E neste ponto perguntamos: mas será esse desencontro, essa desinteligência ou desajustamento do homem de escol e do seu público compreensível a pleno se não se considerarem na sua totalidade dialéctica os dois termos em relação um com o outro?
O facto é que a doutrinação de Sérgio no seu conjunto não aparece como a expressão exacta dos interesses ideológicos de nenhuma camada particular nem de nenhum grupo social definido português nos sessenta e poucos anos deste século. Não são, pois, tanto as contradições internas de uma qualquer dessas camadas que se reflectem na obra de Sérgio, mas as contradições externas que opõem, que têm oposto entre si essas mesmas camadas e grupos sociais que formam a classe burguesa. Demais, a ideologia de Sérgio no seu conjunto não corresponde a nenhuma força política organizada - com uma excepção talvez, e mesmo assim momentânea: a do grupo doutrinal «Seara Nova», em determinada altura. Não a sustenta nenhuma força social definida.
Burguês (embora de origem aristocrática: visconde Sérgio de Sousa, título e nome de que não usa, de que nunca usou), António Sérgio manifestou a sua discordância com a orientação dos políticos da burguesia, orientação que considerava meramente formalista, sem profundo conteúdo económico-social. Ora, os burgueses republicanos não parece terem no geral compreendido as discordâncias de Sérgio, republicano e burguês. Tanto mais que, pela sua classe - «é que eu não nasci do lado do povo» (53) -, por toda a sua formação, pela sua cultura, pelo seu aristocratismo intelectual - o ideal aristocrático das pequenas minorias, a denominada aristocracia do espírito - Sérgio não podia tão-pouco achar satisfação nas posições demasiado frustes e sectárias assumidas pelos que então representavam os interesses da classe operária, débil ainda e politicamente pouco consciente (54). Os socialistas constituíam um partido oportunista, a reboque dos políticos burgueses e dos interesses da burguesia republicana. Os sindicalistas revolucionários, de tendências anarquizantes, guerreavam a um tempo contra os socialistas e contra os republicanos, favorecendo o sentimento de hostilidade das massas populares, fomentando greves, prestando mesmo, como em 27 de Abril de 1913, o seu apoio à acção golpista de Machado Santos. «O certo é que - nas palavras de um dirigente operário, - a República não afectara os interesses dos grandes proprietários agrícolas, nem tão-pouco os da banca e da grande indústria. Os capitalistas reconhecendo que a incapacidade dos dirigentes dos partidos monárquicos e o descrédito a que a realeza tinha chegado já não convinham aos seus interesses de classe dominante tinham, em boa parte, aderido ao Partido Republicano Português. Esta decisão, por parte da burguesia mais activa e ousada, é que fundamentalmente pesava no comportamento e acção dos órgãos oficiais e dirigentes da República. A República - diz ainda esse dirigente operário -, significava o prolongamento do domínio da classe capitalista, o seu reforçamento, e nunca o seu desaparecimento. A principal dificuldade da grande burguesia consistia em ter a sua classe dividida ideològicamente: dum lado, os republicanos; do outro lado, os monárquicos».
Denunciando implacàvelmente o que ele entende serem as gravíssimas insuficiências da acção dos governantes resultantes tanto dos choques de interesses e das intrigas das facções como dos excessos da improvisação dos quadros políticos, da indeterminação dos programas das facções políticas do novo regime, Sérgio encontra, por assim dizer, no plano teórico o que é, no terreno prático, «o descontentamento crescente entre as camadas populares da pequena burguesia e do proletariado», pois, diziam, «não era essa a República com que tinham sonhado». Descontentamento que logo se manifestara numa primeira greve (a dos corticeiros de Almada) decorridos apenas dois meses de governo republicano, seguida de outras como a greve geral de 1912 esmagada por uma repressão governativa brutal. Mas enquanto «o que fundamentalmente indispunha a classe operária contra o governo da República era a falta do cumprimento das promessas» de reformas sociais em benefício das massas trabalhadoras (55), promessas feitas pelos dirigentes republicanos a troco da intervenção efectiva da classe operária na instauração da República, Sérgio, por sua parte, é consciente do descalabro económico do país e da correlativa opressão das camadas populares. Reconhecendo o imenso atraso, não só do povo, mas até da elite directriz, devido a «uma péssima educação de séculos resultante de uma corrupta orientação económica» (56), entendia que a tarefa principal da acção governativa e a mais urgente, não era a famigerada e falsíssima «questão religiosa», mas a fundamentalíssima questão social. Numa palavra: a realização das transformações sociais democráticas e a completa liquidação das causas do atraso cultural do país (57). Em 1924, nas Notas Preambulares da Antologia dos Economistas, dizia ele o seguinte: «Enquanto demorarmos [a realizar a reforma agrária] poderá clamar-se afoitamente que não houve revolução em Portugal, pois se não percebe democracia que o não seja na organização do crédito, nem no regime da propriedade». E esclarecia: «cumpre sublinhar isto. O essencial da democracia não é o Parlamento, nem a eleição: é sim a democratização do crédito, do trabalho, da higiene, da propriedade»; é a democracia social, económica, não a democracia política, meramente formal (58). Sérgio indicava igualmente que a república dos partidos republicanos carecia de verdadeira ideologia revolucionária democrática (59). Aos seus olhos (como aos de Antero) não passava de uma forma política dos conservadores burgueses: alegam ser o partido do povo (dizia já Antero em 1880) e só são o partido da burguesia.
Ora bem. Se insistimos neste ponto, é que ele é, de facto, revelador: antes de tudo, revelador dos quadros ideológicos e políticos em que se inscreve a obra sergiana. Revelador da atitude de Sérgio perante a República liberal: atitude que lembra imediatamente certos aspectos da posição de Antero pronunciando-se em nome dos socialistas da região portuguesa da I Internacional contra a orientação restritamente política dos dirigentes e ideólogos burgueses republicanos (60), e entre eles o doutrinário Teófilo Braga.
Ora o certo é que Sérgio não divergia dos republicanos por ser menos republicano do que eles, por ser monárquico (consoante a estocada, a «insinuação da facadinha» dum publicista verrinoso). Divergia por se querer mais verdadeiramente, mais construtivamente democrata do que eram eles, repugnando-lhe aquele «abstracto republicanismo, estreitamente capitalístico e burguês». Por considerar como Mousinho da Silveira, o liberal, e como os socialistas, que urgia ir logo direito ao que mais importa, que era mais necessária uma alteração radical, profunda, das estruturas sociais do que uma simples mudança institucional. E não apenas isto mas ainda que, afora o haver homens que faziam política com mais ou menos talento, com mais ou menos habilidade e esperteza, importava que houvesse, enfim, um pensamento político concreto, criador, em Portugal (61).
A irritação que logo de início suscitou a posição de Sérgio é bem reveladora, na verdade, da incompreensão da maioria dos ideólogos da República perante este aspecto importante da ideologia sergiana. E não só reveladora da incompreensão dos ideólogos mais influentes como de grande parte da massa dos seus prosélitos de diferentes partidos e naturalmente, em primeira linha, do partido democrático que constituía - de facto - o mais forte esteio da grande burguesia conservadora e republicana. Reveladora também das dificuldades que no terreno ideológico encontrava e tem encontrado a burguesia portuguesa como classe dirigente, classe socialmente e econòmicamente subdesenvolvida (por razões históricas precisas que vêm de longe, como tantas vezes Sérgio - depois de Antero e incomparàvelmente melhor que Antero - intentou mostrar) (62), classe culturalmente atrasada por consequência e, em tantos casos, ideológicamente incapaz (como Sérgio não poucas vezes administrou a prova, desmascarando os mentores abusivos, desmantelando os mitos). Classe de facto incapaz, neste último período da sua história, de se elevar a um pensamento teórico coerente, à medida dos problemas que vêm da prática da vida, que a vida nacional levanta, e que chegados à maturidade exigem solução. E não há aqui que estranhar. Como se sabe, os interesses da burguesia, as condições materiais do seu domínio de classe constituem precisamente o conteúdo da república burguesa. De resto, dado o carácter eminentemente polémico da doutrinação de Sérgio, a sua riqueza intelectual contrastando com a indigência mental das pseudo-elites (que ele detesta e que o detestam), - o seu nível de excepção, numa palavra, - Sérgio, irritando os «intelectuais» sem cultura autêntica e sem verdadeira inteligência que não procuram a inteligibilidade das coisas, dificultava mais ainda a compreensão exacta das suas posições. De toda a maneira, os escritos de Sérgio são hoje por certo, no seu conjunto, o testemunho mais eloquente de um vasto sector das lutas ideológicas portuguesas neste século. Neles se reflecte, pois, de variadas formas e em sumo grau, a crise profunda da ideologia burguesa: suas dúvidas e indecisões, suas inércias, suas incoerências, contradições e insuficiências. (Incoerências, contradições e insuficiências aliás que ele próprio contribuiu sem dúvida, directa ou indirectamente, para tornar evidentes). Mas ao mesmo tempo também o que nela aponta já ao futuro, criada com a crise geral do liberalismo português uma situação irreversível.
Queira-o ou não, Sérgio é tributário da burguesia como classe. Mas quer-nos parecer que, num sentido, ele é sobretudo tributário da burguesia na sua passada fase ascendente, da burguesia como classe revolucionária, económica, social e culturalmente progressiva e progressista - mas principalìssimamente como classe revolucionária europeia, estrangeira, pois a portuguesa - consoante transluz, segundo cremos, nos escritos de Sérgio e, efectivamente, na história - teria abortado com o liberalismo, nos começos do século XIX, não tendo jamais conseguido levar ao fim a sua revolução político-económica. Em razão da sua situação histórica classe opressora, mas também oprimida, aliando a independência política à dependência financeira e diplomática. De aí as tentativas sucessivas de reatar com a Europa moderna burguesa e capitalista; de aí a simpatia declarada de Sérgio pelas «ilustres plêiades estrangeiradas», consoante as palavras de que ele próprio usou. De aí finalmente o considerar-se ele, como vimos, o iniciador, nas actuais letras portuguesas, do «movimento de justiça» para com o estrangeirismo. Quanto a nós, esta é a raiz social da postura ideológica de Sérgio. De aí, no fundo, a singularidade da sua situação: burguês progressista olhado «com um certo espanto ininteligente» (a expressão é de Antero) ao mesmo tempo pelos burgueses conservadores e «de direita» e pelos pequeno-burgueses anarco-liberais. Talvez lhe não desquadrem de todo estoutros dizeres que Antero escreveu também sobre Herculano: último representante duma geração, em quem o génio português reverdeceu ainda neste século com uma seiva antiga (63).
A obra de Sérgio é à medida do interesse que ele sempre consagrou, numa perspectiva da burguesia radical esclarecida, aos grandes problemas da cultura nacional. Objectivamente, ela é a expressão do último combate ideológico da burguesia progressista em terra portuguesa.
Utopia o seu idealismo político-social? Por certo (64). E isso precisamente na medida em que, pelas suas posições idealistas, Sérgio tem por via de regra sobrestimado o papel das aspirações subjectivas, mesmo de inspiração generosa, mas quanto desgarradas das condições objectivas, ou ainda que a realidade impugna. Não obstante, seria preciso ainda entendermo-nos quanto ao sentido do seu utopismo.
Decerto não no sentido de ter sido vã a sua luta (65). Não, não foi sem préstimo a obra que realizou. Antes perdurável. Mesmo aqueles que, com lisura, com franca e honesta sinceridade, aliás respondendo nisso ao seu apelo de ir além dos pressupostos filosóficos dos seus escritos e das linhas directrizes que dentro de eles acharam e quiserem acrescentar-lhe a crítica, por uma parte considerável é ainda a um tal Mestre que lho ficarão devendo, e é a sua lição de disciplina mental, de continuidade, de fidelidade, que continuam. Como poderão eles não recordar então as palavras do enciclopedista e materialista d'Alembert sobre o grande Descartes: «Les armes dont nous nous servons pour le combattre ne leur en appartiennent pas moins parce que nous les tournons contre lui»?
Sem embargo das ilusões manifestadas e das desilusões sofridas, não poucas das batalhas que travou, num meio frequentemente desfavorável senão hostil, são momentos importantes no esforço da clarificação ideológica nacional, no quadro social e político do radicalismo e democratismo burgueses e pequeno-burgueses em Portugal. A incompreensão muitas vezes, as hesitações, o desinteresse, a animosidade, mas também, e quantas vezes, o mais vivo entusiasmo, real, incontestável, conforme as épocas, caracterizam o acolhimento que tem sido até os dias de hoje reservado à sua vasta, variada e relevantíssima obra. Nas suas variações, esse acolhimento traduz no fim de contas, a impaciência e a instabilidade de camadas e grupos sociais cuja ideologia, de uma maneira ou de outra, queira-o ou não, nela se acha reflectida. Ele que tantos ódios tem frequentemente suscitado - «mas também com amigos, felizmente, é facto» (66) -, pôde certa vez escrever num texto memorável que cumpre um dia incluir nas suas Obras: «Foi na prisão que vi realizada a verdadeira união nacional».
Quem poderá hoje, descurando certas condições de ambiente e história em que se inserem a vida e a obra de Sérgio, limitar-se a recusar simplesmente, sem perspectiva histórica, o que pode haver, ou o que há, de utópico - na acepção nobre do termo - a do «ímpeto quixotesco de tentar o impossível» (67) - a da arrancada heróica e sorriso olímpico, «menos prudente, às vezes, a actuar do que a escrever» (68) - na atitude de o que, em pleno palanfrório da «errada e cega monarquia» lusitana, crendo «nas admiráveis possibilidades da nação portuguesa, enoitecidas nos meandros da sua história» (69), soube sempre erguer-se em riste contra incapazes e charlatães, e partir em liça contra o obscurantismo de passadistas e irracionalistas de toda a sorte, contra sonambúlicos «Espectros» do «Reino Cadaveroso» (70)?
António Sérgio é o mais alto representante do humanismo progressista burguês em Portugal. Mas a sua obra ultrapassa largamente os quadros de condições sociais retardatárias. António Sérgio não é só um altíssimo escritor de ideias, o maior das nossas letras. Como Herculano, no dizer de Antero (71), é um grande homem na acepção completa destas palavras.
Paris, 1 de Novembro de 1964.
(*) Vasco de Magalhães-Vilhena foi apresentado a António Sérgio quando ainda adolescente e aluno do liceu, tornando-se seu discípulo durante alguns anos. Embora os seus caminhos inteletuais se tenham apartado de uma forma decisiva, o pensamento e a acção cívica do seu antigo mestre e amigo seriam por ele recorrentemente visitados, com demarcação clara mas com repeito e até afeto: António Sérgio e a Filosofia, Edições Cosmos, Lisboa, 1960; António Sérgio. O Idealismo Crítico e a Crise da Ideologia Burguesa, Seara Nova, Lisboa, 1965 (onde se inclui este ensaio); António Sérgio. O idealismo crítico: génese e estrutura; raízes gnosiológicas e sociais; estudo de história social das ideias, Colibri, Lisboa, 2013 (um volume póstumo organizado por Hernâni Resende). Sucedeu algo semelhante com outros inteletuais marxistas da geração neo-realista (Jofre Amaral Nogueira, Mário Sacramento), para além daqueles com quem Sérgio polemizou (António José Saraiva, Bento de Jesus Caraça). Contudo, a análise de Vasco de Magalhães-Vilhena ganhou destaque como sendo a tomada de posição mais completa e acabada do marxismo português (o que na altura valia por dizer: o PCP) sobre o autor dos Ensaios.
_________________ NOTAS:
(1) Compreenda-se bem o que queremos dizer: o espírito polémico existe pràticamente em todo escritor de ideias, que escreve sempre pensando contra alguém; simplesmente, ele aparece em Sérgio com um relevo excepcional; é determinante de todo o seu modo de pensar.
(2) Ver: Ensaios, I, Rio de Janeiro-Porto, 1920, p. 9; a páginas 432 Sérgio insiste, repetindo a cita. Anos mais tarde, como que num eco a estas palavras de Antero, não exprimiria ainda António Sérgio o seu próprio sentimento ao escrever a propósito de outrem: «...um homem magoado por a mais dolorosa de todas as dores - aquela que nasce de nem sequer ter sido compreendido por aqueles poucos a quem especialmente se dirigia»? (numa nota bibliográfica, não assinada, mas que sabemos de sua autoria, na Seara Nova, XII, n.º 358, 1933, p. 351).
(3) Na Tréplica a Carlos Malheiro Dias sobre a questão de o Desejado, Lisboa, 1925, pp. 7 e segs..
(4) Outros mais tarde, noutras polémicas contra Sérgio, avançarão «argumentos» do mesmo teor; invocando o intuicionismo bergsónico, por exemplo. É que a batalha de Sérgio contra a negação da inteligência, contra o irracionalismo, bem vistas as coisas, é uma só. Repare-se no trecho final da Tréplica: «Insisti na controvérsia, porque no âmago de tudo isto (além do problema moral de agora [...]) há o problema maior da Grei: a luta para a ressurreição do Espírito Crítico, - ausente desta pobre terra desde a era do Seiscentismo, que converteu o nosso país... no reino que foi cantado em O Reino da Estupidez. Sim, a REFORMA DA MENTALIDADE: para nós-outros, portugueses, é esse o problema fundamental: Avant donc que d'écrire apprenons à penser! (Boileau)» (p. 73).
(5) Sabe-se como a polémica terminou: Malheiro Dias acabou pràticamente por se retratar reconhecendo finalmente que o rei Sebastião que ele dera a princípio por modelo à juventude era bem um «ferrabrás belicoso», «desvairado», de «arrebatamento delirante». No post-scriptum da Tréplica Sérgio remata: «Na 3.ª edição do meu Bosquejo, em vez das palavras que me censurou: «fanfarrão, e «mentecapto» - porei as suas: «ferrabrás» e «delirante». E acabou-se a questão» (p. 72).
(6) Henri Bergson, La Pensée et le mouvant, Paris, 1934. pp. 141-142. Sublinhado nosso. Cf. ainda pp. 143 e 152.
(7) Para compreender melhor as razões da nossa recusa de semelhante tese e das suas consequências, veja-se o que escrevemos, ainda que sem tocar em todos os aspectos essenciais da questão, no estudo Filosofia e História todo ele orientado no sentido da crítica das concepções idealistas da filosofia e da sua história, inserto no I vol. do Panorama do Pensamento Filosófico que dirigimos para as Edições Cosmos, Lisboa, 1956, sobretudo pp. 63 e sgs.
(8) Cp., por exemplo, Antero de Quental, Prosas, vol. II, Coimbra, 1926, pp. 139, 182, 187, 191-192 e outros lugares, e António Sérgio, Ensaios, vol. IV, Lisboa, 1959, pp. 181-182.
(9) Convém recordar este juízo justíssimo de A. Sérgio sobre Antero: «Não há dele [Antero] uma página de reflexão rigorosa, de análise apurada, de ensaísmo estrito»... (Ensaios, vol. V, Lisboa, 1955, p. 171). E ainda este outro sobre o tentame anteriano de conciliar na filosofia o idealismo e o materialismo: «Tudo isso, em nosso entender, é doutrina muito vagamente congeminada» (nota de Sérgio na sua edição crítica dos Sonetos, de Antero de Quental, Lisboa, 1943, p. 115). Ver ainda Ensaios, VI, Lisboa, 1946, p. 24. Ora dado isso, se pergunta: como pode então ser ele «um Mestre [ ... ] cuja prosa e vida, para tantos de nós, nos dão sobretudo uma formação interna», como também diz? (Ensaios, V, p. 170). Em definitivo, pensamos, - como cremos que seja a exacta opinião de Sérgio Em torno da «ilusão revolucionária» de Antero, in Seara Nova, XIII, n.º 406-408, Lisboa, 1934, p. 369) -, que Antero, tão «cheio de contrastes e fraquezas», sem nunca ter tido aqueles «anos de estudo e reflexão» que lùcidamente requeria um ano antes da crise, irreparável (em carta a Oliveira Martins, em Novembro de 1873) não era um pensador no sentido estrito, no rigor do termo.
(10) Numa das Nótulas Soltas na Seara Nova, XII, n.º 357, Lisboa, 1933, p. 331. Cf. Sobre o socialismo de Antero, ibid. n.º 326, 1933; Ensaios, IV, Lisboa, 1959, p. 181. Ao contrário de Herculano, porém, Sérgio não só não vê benefício no atraso industrial português como não pensa um instante sequer que a industrialização seja um mal inevitável. Acerca do Discurso sobre a Introdução das Artes, de Ribeiro de Macedo, de 1675, mas impresso cerca de 1813 no Investigador Português e depois publicado em volume em 1817 - novamente reeditado por Sérgio, em 1924, na Antologia dos Economistas Portugueses, pp. 241-325 - A. Sérgio observa: curioso que ainda então se tornasse necessário vir demonstrar que desenvolver a indústria não era um dano para a riqueza pública (op. cit., pp. XLIV-XLV). Nunca Sérgio valorizou, como Sampaio Bruno, a pequena-burguesia; nunca, como ele, se referiu a «aquelas camadas, beneméritas, da população social a que manda o uso designar pelo nome colectivo de: pequena-burguesia» ou escreveu neste tom: «Esta gente, cuja tradição heróica, desde as comunas medievais, é altamente honrosa a bem da causa da liberdade humana, acha-se, mercê das consequências remotas da tecnologia moderna, em uma situação quási desesperada, que aos seus membros aproxima das condições estreitas do proletariado estreme...» (A Ideia de Deus, Porto, 1902, p. 82).
(11) Como exemplo ver, além de outros trechos mais conhecidos: «A reforma agrária [...] do nosso país virá [...] sem precisão de o convulsionar. O dever do homem de Estado - escreveu Disraeli - é fazer por meios pacíficos o que faria pelos violentos uma revolução» (Antologia dos Economistas Portugueses, Lisboa, 1924, p. XXXVII). Ver ainda e principalmente tudo o que respeita aos projectos cooperatistas sergianos.
(12) Considerações Histórico-Pedagógicas, Porto, 1915, p. 72.
(13) Históricamente, foi este, como se sabe, o erro básico dos que, levados pelo esquematismo sectário do «determinismo económico», do «economismo», não se elevaram à compreensão de que os interesses essenciais, decisivos, e em particular o interesse económico essencial das classes, só podem ser satisfeitos por verdadeiras revoluções políticas: a conquista do poder político pela nova classe fundamental e seus aliados. Negando a importância da revolução política burguesa e da liberdade política burguesa, os socialistas portugueses, por seu lado, antes e logo depois de 1910, não conceberam que o caminho que conduz ao socialismo passa pela democracia, pela liberdade burguesa. O atraso no desenvolvimento capitalista do país - por 1910, mais de 60% dos portugueses viviam da agricultura (cf. Armando Castro, Cinquentenário da República e cinquenta anos de evolução económica portuguesa, in Seara Nova, n.º 1378-1380, Lisboa, 1960, p. 261) - era evidentemente um terreno favorável à aceitação e à persistência de doutrinas socialistas retardatárias que, renunciando a toda análise científica da realidade, não ligavam as aspirações de transformação à luta conduzida por uma classe determinada. O socialismo do Partido Socialista Português, fundado em 1875, o socialismo de Antero, idealista e liberal, proudhonista e bakuninista, como o socialismo de Fontana, caracterizam bem o modo de pensar que reflecte as condições de existência da pequena-burguesia. Antero como Fontana representam na história do movimento socialista português o oportunismo dos proudhonianos, dos lassalianos e dos «aliancistas» de Bakúnine que veiculavam no seio da classe operária as ideias de abstenção política e de colaboração de classe, deste modo dificultando e retardando também a passagem das camadas não proletárias da sociedade às posições ideológicas da classe operária (ver nota adiante).
(14) Particularmente revelador a este respeito afigura-se-nos ser o que A. Sérgio, com evidentes propósitos práticos imediatos, escreveu nos prolegómenos da Antologia dos Economistas Pougueses, Lisboa, 1924, pp. 1 e segs.; repare-se por exemplo, e sobretudo, nas pp. V-VIII e XLIX-LII. No entanto - é justiça dizer-se - Sérgio, quanto a nós, viu justo ao escrever: «…o que leva às revoluções (não é de mais repeti-lo ainda) não são as «doutrinas subversivas»: é a Economia do país, abandonada às forças cegas, ao condicionamento das energias físicas, onde a inteligência não intervém. Modificar a estrutura económica; submeter a vida económica à direcção intelectual [...]: eis o problema da nossa política»... (pp. XII-XIII, sublinhado por nós). Isto, isto precisamente, foi o que o republicanismo burguês - que não obstante, como Sérgio também o disse (Viver com Ideias, in Seara Nova, XVII, n.º 531, 1937, p. 44) «contava nos seus inícios algumas ideias de verdadeira reforma», - nunca verdadeiramente compreendeu, entre nós, por incultura política. Tê-lo compreendido, tê-lo dito com esta nitidez, uma vez ainda, em 1924, é um mérito incontestável de António Sérgio, um elemento positivo real da sua obra.
(15) Recorde-se que, consoante o testemunho de João Chagas - que presidiu ao primeiro governo constitucional - a República foi acolhida com interesse e até certo ponto com simpatia nos grandes meios da finança internacional, os quais viam nela o regime da porta aberta aos capitais estrangeiros. O facto seduzia João Chagas, convencido de que Portugal precisava fazer-se comanditar, abrindo largamente o país aos capitais estrangeiros, e neste sentido solicitava um jornalista da Capital para que o jornal espalhasse estas ideias (Carta de João Chagas a Câmara Reys, com data de 16 de Fevereiro de 1912: na Seara Nova, XVII, n.º 525, Lisboa, 1937, pp. 411-412).
(16) Vejam-se, por exemplo, as bases orgânicas da Administração civil colonial: leis orgânicas n.os 277 e 278, de 15 de Agosto de 1914.
(17) Desde todo o princípio da sua obra; a expressão citada é da 2.ª edição do tomo 1 dos Ensaios, Coimbra, 1949, p. 277.
(18) Explicações de um amador de ideias, in Seara Nova, XIII, n.º 410, Lisboa, 1934, p. 28.
(19) De Oliveira Martins não haveria sequer que falar: «tinha opiniões de político estreito acêrca da ordem social», como escreveu A. Sérgio (Ensaios, V, Lisboa, 1936, p. 287; cf. p. 296: «Oliveira Martins, tão acusado de variar [...] já em 78 [...] falava com o maior desdém dos ‘homens do boné frígio’») e é, na verdade, o menos que dele se pode dizer. Mas nesse caso, como falar então (como também faz Sérgio) do socialismo de Oliveira Martins? Sobre a «espantosa versatilidade» e oportunismo políticos de Oliveira Martins, sobre a sua compromissão com a oligarquia financeira, ver: Manuel Zimbro, Oliveira Martins desconhecido, in Seara Nova, XXVII, n.º 1092, 1948, pp. 145-147, e Flausino Torres, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins e a República, ibid., XL, n.º 1404-5, 1962, pp. 224-229 e 254. - A respeito dos homens de 52 que introduziram as ideias socialistas no país, encetando assim - eles, e não os ideólogos de 71 - sem embargo de todas as suas limitações, um novo capítulo na história das ideologias em Portugal, convém ver o ensaio inovador de Victor de Sá, sob o título A «Geração de 52», in Perspectivas do Século XIX, Lisboa, 1964, pp. 197-217; consultar também a importante documentação relativa à primeira imprensa socialista em Portugal, recolhida no mesmo volume, pp. 69-195.
(20) Veja-se a nota de Sérgio, não assinada, na Seara Nova, XIV, n.º 435-436, pp. 55-56, sob o título A «Seara Nova» e a Acção Política.
(21) Por exemplo nas Considerações Histórico-Pedagógicas, Porto, 1915, p. 39 e nos Ensaios, I, Rio de Janeiro, 1920, p. 395 (= I, Coimbra, 1949, p. 412), para só citar as referências mais antigas. Do primeiro destes textos - capital para a compreensão da génese do pensamento sergiano - data efectivamente a «corrente universalista» nas letras portuguesas contemporâneas, bem como a reabilitação da grande pléiade «estrangeirada» da segunda metade do século XVIII.
(22) Prefácio de A. Sérgio à sua antologia de Alexandre Herculano publicada com o título Sobre História e Historiografia, Lisboa, ed. «Seara Nova», 1937, p. 14.
(23) Op. cit., p. 14; cf. pp. 93 e 97.
(24) Op. cit., pp. 15-16.
(25) Històricamente, a hipótese do kantissno herculaniano acha-se afastada em definitivo desde Adolfo Coelho: Alexandre Herculano e o Ensino Público, Lisboa, 1910. Na verdade, um só texto de Herculano chega para provar que, muito ao contrário de Antero e de Sérgio, ele se pronunciava pelo transcendencismo, e contra o imanentismo em moral, designadamente o kantiano: «A educação moral [...] não deve nem pode ser senão a que nos oferece a religião. No catecismo religioso está para ela toda a moralidade possível [...] A moral da filosofia [...] é formosa mas é gélida e insensível: vêmo-la, passamos e esquecêmo-la. A moral filha da fé […] vêmo-la e não a esquecemos. [...] O evangelho é mais claro e preciso que os volumes escritos de todos os moralistas filósofos desde Platão até Kant; a moral que não desce do céu nunca fertilizará a terra» (A. Herculano, Opúsculos, VIII, 5, Lisboa, s. d., pp. 153-154).
(26) Ensaios, I, Rio de Janeiro-Porto, 1920, p. 53; I, Coimbra, 1949, p. 107 e 456.
(27) Ensaios, I, 1949, p. 456.
(28) Op. cit., p. 457.
(29) É de notar que a publicação, em 1931, das Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins (cf. Ensaios, III, Lisboa, 1932, pp. 415-417) trar-lhe-á inegàvelmeate novos elementos que reforçam e abonam as suas opiniões anteriores, quer pelo que respeita ao radicalismo dos republicanos, quer no que concerne à posição ideológica e à situação valorativa de Martins. Foi o próprio Sérgio (op. cit., p. 416) quem dessas cartas extractou o seguinte passo: «A sua atitude - escreve Antero dirigindo-se a Oliveira Martins - é excelente: socialista e não demagogo. É preciso acentuá-la desde já fortemente, pois é nesse terreno que se deve dar batalha aos democratas ariti-dinásticos, republicanos, vermelhos, que lhe hão-de cair em cima. Mas nesse terreno V. é inexpugnável, enquanto que é esse o lado mais fraco deles e onde se patenteiam mais as contradições e o vazio dos nossos republicanos» (Cartas Inéditas, Coimbra, 1931, p. 110). Justa ou não (e ajuizamos que não), esta apreciação de Antero resume cabalmente, quanto a nós, a posição de Sérgio sobre este ponto. Vejam-se a este respeito: a Introdução aos Dispersos de Oliveira Martins, que Sérgio publicou em 1932 (pode ler-se agora nos Ensaios, V, Lisboa, 1955, pp. 21-103) e as introduções a dois outros volumesde Martins, a saber: Portugal e o Socialismo (Lisboa, 1953, pp. VII-LXXX) e Teoria do Socialismo (Lisboa, 1952, pp. IX-XIX). Reimpressas nos Ensaios, VIII, Lisboa, 1958: a primeira, pp. 189-256 (sob o título Sobre o socialismo de Oiveira Martins), e a segunda, pp. 257-266. A completar com o que é, talvez, o estudo mais crítico de Martins por Sérgio: as Glosas sobre o miguelismo de Oliveira Martins no «Portugal Contemporâneo», nos Ensaios, V, 1955, pp. 273-317. Consoante afirma aí o «socialismo catedrático» de Martins é decepcionante e frágil, e adaptado a ser aRma de um capitalismo cauto, paternalista e hipócrita, - na aparência progressista, mas no essencial estático» (p. 317). E Sérgio remata com esta afirmação que decerto surpreende: «no pensar de um Mouzinho […] é que encontramos os germes de um socialismo autêntico, o ímpeto inicial para a libertação do obreiro» (p. 317). Pela nossa parte diremos só que a fraqueza deste juízo transluz já na escolha, no emprego não casual, do termo impreciso de «obreiro». Ambíguo, o termo de «obreiro» dissimula a distinção da classe operária da massa dos trabalhadores, não sublinha o papel do proletariado como produtor dos bens materiais da sociedade capitalista, como se sabe ideia essencial de um socialismo não-utópico, não-burguês. (Não esqueçamos que em Herculano - Cf. Opúsculos, IV, Lisboa, MCMI, p. 185 - a palavra «obreiro» aparece ligada a proprietário).
(30) Ensaios, VIII, Lisboa, 1958, p. 201; cf. p. 231 onde Sérgio se refere ao conservantismo de Proudhon e ao seu «programa pequeno-burguês-mutualista».
(31) Ibid., p. 205; cf. p. 230.
(32) Confessamos não perceber como é que um homem com a lucidez excepcional de António Sérgio pôde tomar a sério esse monumento de mentalidade teofilesca que constituem os dois tornos de Oliveira Martins, Teoria do Socialismo e Portugal e o Socialismo. Sérgio exalta as qualidades estéticas do artista Martins. Mas não foi Sérgio quem, com razão plena, disse tantas vezes a quem o ouvia, que as asinices de um Junqueiro eram um impedimento para que se admirasse a obra «artística» do dito Junqueiro? Pois haverá na literatura portuguesa - Teófilo e Junqueiro incluídos - páginas mais destrambelhadas, mais idiotas, mais pedantescamente asnáticas do que as que escreveu Oliveira Martins - por exemplo no começo de Portugal e o Socialismo (pp. 19 e sgs. da edição publicada por Sérgio, Lisboa, 1953) sobre o que ele chamou «a Ideia moderna»?
(33) Sobre o socialismo de Antero, in Seara Nova, XII, n.º 362, Lisboa, 1933, p. 24. Cf. Ensaios, IV, Lisboa, 1934, p. 193; IV, Lisboa, 1959, p. 173.
(34) Ensaios, IV, 1934, p. 194; IV, 1949, p. 174. Cf. Seara Nova, n.º 362, 1933, p. 24.
(35) Seara Nova, n.º 362, 1933, p. 25; =Ensaios, IV, 1934, p. 198; =IV, 1959, p. 177.
(36) Seara Nova, n.º 362, pp. 24, 26 e 27; Ensaios, IV, 1934, pp. 193, 196, 204, 206; IV, 1959, pp. 173 e 175.
(37) Ensaios, IV, 1934, p. 197; IV, 1959, p. 176.
(38) Seara Nova, n.º 362, p. 24; =Ensaios, IV, 1934, p. 196. Na 2.ª edição do t. IV, 1959, p. 175, o termo de «mecânica» é substituído pelo de «naturalista».
(39) Seara Nova, n.º 362, p. 24; =Ensaios, IV, 1934, p. 196. Na 2.ª edição do t. IV, 1959, p. 176, está: «no polo oposto ao das concepções mecanistas».
(40) Seara Nova, n.º 362, p. 26; =Ensaios, IV, 1934, p. 204. Na 2.ª ed. do t. IV, 1959, p. 12, o termo de «idealista» e de «materialismo» são suprimidos no passo citado no texto. A passagem em questão acha-se agora assim redigida: «…declinava já a popularidade da inspiração voluntarística proudhoniana, em pró da influência de Carlos Marx». Da mesma forma, na p. 184 desta 2.ª edição desaparecem os termos de «idealista» e de «materialista» usados nas duas redacções anteriores deste ensaio para qualificar os socialismos respectivamente de Antero e de Marx.
(41) Assim redigida, esta frase, com que, em 1959, fecha o estudo de Sérgio Sobre o socialismo de Antero na 2.ª ed. do t. IV dos Ensaios (p. 185) não se encontrava nas versões de 1933 e de 1934. - Há aqui um ponto que se nos afigura particularmente obscuro. Dá Sérgio como uma superioridade do socialismo anteriano, moral e idealista, sobre o socialismo marxista, científico e materialista, o facto daquele, ao contrário deste, condenar a ideia «de esperar a reforma da sociedade de um fatal e espontâneo desenvolvimento das instituições económicas actuais». Ora, esta ideia não só não é de forma alguma marxista, mas o seu oposto, como ela é precisamente a de Antero (apesar de um texto que cita Sérgio), a que prevalece indisputàvelmente nos escritos de Antero. Esta é a ideia dominante de Antero: «O programa político das classes trabalhadoras, segundo o socialismo, cifra-se em uma só palavra: abstenção. Deixemos que esse mundo velho se desorganize, apodreça, se esfacele, por si, pelo efeito do virus interior que o mina» (O Que é a Internacional, in Prosas, II, Coimbra, 1926, p. 191; da mesma maneira, no Portugal perante a Revolução de Espanha, ob. cit., p. 57, é ele ainda quem exclama: «Admirai a força irresistível das leis económicas!») Como se vê, Antero identifica aqui abusivamente «o socialismo» com as seitas bakuninistas e proudhonistas; e tanto mais abusivamente quanto é certo que o bakuninismo e o proudhonismo eram tendências minoritárias no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores (alinhando para mais os internacionalistas portugueses com a maioria) tendo além disso a primeira destas tendências sido denunciada públicamente por actividade fraccionária, cisionista, inclusive em Portugal. Por exemplo: na Conferência Internacional de Londres, em Setembro de 1871, onde foi produzida documentação, abundante e irrefutável, comprometedora para Bakúnine e para os aliancistas, na Circular enviada pela secção de Madrid da Aliança à secção de Lisboa, com data de 1 de Junho de 1872, e uma vez mais no Congresso de Haia, precisamente, o qual decidiu a publicação do dossier relativo à Aliança e expulsou Bakúnine. (Curioso, no artigo de Antero há um passo muito semelhante a um outro da intervenção do delegado aliancista espanhol Morago). Ora Antero, buscando produzir visivelmente o efeito contrário, ou seja, que estas tendências eram o socialismo da Internacional, dá, quer no seu artigo acima citado sobre a Internacional, quer no que reservou em especial ao Congresso de Haia, uma visão completamente desfigurada dos factos. Nomeadamente a transcrição truncada que faz do que ele chamou os considerandos dos Estatutos da Internacional não só não tem por base o Estatuto definitivo aprovado pelo I Congresso em Genebra (1866), mas sobretudo, baseando-se aos Estatutos provisórios, não toma em conta o texto exacto dado a público em Londres, em fins de Novembro de 1864. De facto, a versão dada por Antero (Prosas, II, pp. 182-184) não é feita sobre o «texto oficial obrigatório», mas calcada sobre uma tradução francesa publicada em Janeiro de 1865 - singular coincidência - pelos proudhonianos do Comité parisiense - tradução que em pontos particularmente importantes (por exemplo o parágrafo 3 do «Preamble») desfigurava sem pejo e intencionalmente (reconheceram-no depois) o texto original (assinado de resto por Fontana em Londres). Isto, como sublinhavam fortemente quer o apêndice ao Regulamento administrativo da A. I. T. quer as resoluções (§ IX) adoptadas na Conferência Internacional da A. I. T, em Londres, em 1871, que Engels assinara como secretário para Portugal, e nas quais se estipulava também (§ XVI), além de ratificar a expulsão do grupo de Bakúnine, que todas as secções nacionais se devem conformar com os estatutos e com as decisões do Congresso. Pode perguntar-se: desconheceria Antero tudo isto, ele que contribuíra para a fundação da secção portuguesa da A. I. T.? Desconheceria ele também que o princípio da abstenção da classe operária em matéria política era um princípio fundamental não da A. I. T., mas da Aliança bakuninista, que era afirmando que «todo poder político é urna fonte de depravação [...] e urna causa de servidão» que Bakúnine e os seus «aliancistas» fomentavam as lutas internas na Internacional (designadamente através da secção espanhola - cf. carta confidencial de Bakúnine a Mora, de 5-IV-1872 - e da secção portuguesa - cf. carta confidencial de Bakúnine a Fontana - e procuravam, em nome do «autonomismo» e do «anti-autoritarismo», suprimir a direcção do movimento operário internacional? Poderia ele desconhecer ainda que Portugal esteve representado no Congresso de Haia, e o que é mais, que o seu representante, Lafargue (que também representava uma Federação madrilena) defendeu aí a linha da Internacional, que Antero parece ignorar? E ainda que Lafargue interveio na discussão do problema político (cf. a elucidativa carta de Lafargue a Engels, datada de Lisboa, 8 de Agosto de 1872; in F. Engels, Paul et Laura Lafargue, Correspondance, vol. III, Paris, 1959, pp. 490-491, e bem assim o artigo de Lafargue sobre a solidariedade operária, no Pensamento Social, de Lisboa, n.º 23, de 10 de Agosto do mesmo ano, nas vésperas do V Congresso) justamente para combater o apolitismo anarquista, as ideias bakuninistas e proudhonistas que sustenta Antero sobre este ponto, e que a intervenção do delegado Lafargue teve a inteira aprovação da Federação Portuguesa? E se nada disso desconhecesse? E como poderia de resto desconhecer? Senão veja-se: Lafargue estivera com a sua companheira Laura Marx em Lisboa, na primeira semana de Agosto, seguindo de aí directamente para o Congresso, pouco tempo antes por conseguinte do artigo de Antero. Além de isto, Lafargue escrevia por essa ocasião no Pensamento Social (que era como que o jornal dos internacionalistas portugueses): o artigo em que se explica a luta de classes no número de 11 de Maio de 1872 é de sua autoria, assim como o artigo anti-proudhoniano intitulado Organização, publicado em Março, e ainda o relativo à solidariedade operária do n.º 23, de 10 de Agosto, isto é dois números antes do artigo de Antero sobre o Congresso. Não é tudo. Lafargue conhecia os redactores do jornal membros da secção portuguesa: «des hommes excellents quoique proudhoniens» - carta a Engels, de 27-IV-1872; «en Portugal ils [os internacionalistas] son très intelligents malgré leur proudhonisme» - carta a Engels, de 29-17-1872. Ademais, conhecia nomeadamente Antero: «un garçon très intelligent et très dévoué» - ibid.). Como explicar então que Antero, que participava do Pensamento Social, no artigo (tão pobre de ideias claras, tão incongruente, tão inexacto, e até contraditório com outras suas tomadas de posição) que aí publicou (no número de 6 de Outubro de 1872) sobre o Congresso de Haia, passe em silêncio, nem mais nem menos, a participação de Portugal (e da Espanha) no V Congresso? Participação que marcava precisamente a integração do movimento socialista português (e espanhol) no movimento socialista internacional. O certo é que os dois artigos de Antero sobre a Internacional traduzem uma insuficientíssima formação ideológica e política e uma impressionante carência de elementos informativos sobre o movimento socialista. Ora pois. À pergunta: a que vem tudo isto?, responderemos que tudo isto que aqui deixamos apenas apontado esquemàticamente concorre para que pensemos que «o socialista Antero de Quental», herói do anterismo sergiano, mesmo curando das «condições» que Proença (criticando Sérgio de maneira infeliz) isolava arbitràriamente dos «factos», mesmo tendo em conta o acanhado do ambiente social português - «o condicionamento do pequeno-burguesismo anarquista», - não nos parece, bem ao cabo de contas, ser aquele «forte» no batalhar de ideias, que Sérgio vê levantar-se do pó como um «precursor legítimo» do pensamento socialista contemporâneo. Mas é verdade que o que a Sérgio interessa ideológicamente não é o Antero histórico, o que realmente viveu, o Antero de facto, mas o Antero ideal e idealista, sergiano em suma, para servir de vantajoso «correctivo» ao socialismo científico predominante, no debate ideológico dos nossos dias.
(42) Contràriamente ao que tem sido indicado, não foi em Portugal que o suíço italiano Giuseppe Fontana (1840-1876), conhecido entre nós por José Fontana, aderiu ao movimento socialista. Tendo emigrado para Inglaterra depois da revolução de 1848 em Itália, pertenceu aí ao Conselho da «Associazione di Mutuo Progresso» dos trabalhadores italianos residentes em Londres, submetida à influência de Mazzini e tendo Garibaldi por presidente honorário. Foi Fontana quem, na sessão de 3 de Janeiro de 1865, apresentou o pedido de filiação desta associação à Internacional. Com efeito, durante a sua estadia em Londres, e antes de ter vindo para Portugal, Fontana foi, de 12 de Outubro de 1664 (por proposta de L. Worff) a 4 de Abril de 1865, membro do Conselho Central da Associação Internacional dos Trabalhadores e secretário correspondente para Itália (The Minute Book of the General Council of the I. W. M. A., pp. 5-6 e 42-43 do manuscrito), G. P. Fontana, na qualidade de «Honary Corresponding Secretary for Italy», foi um dos oito signatários - o quarto na ordem, imediatamente depois de Karl Marx «Honary Corresponding Secretary for Germany» - do Inaugural Address of the Working Men's International Association, redigido por Karl Marx e aprovado por unanimidade ao mesmo tempo que os Provisional Rules of the Association pelo Conselho Central na sessão de 1 de Novembro de 1864 (The Minute Book, pp. 8-9 do manuscrito). (Indique-se incidentemente que a tradução portuguesa foi publicada juntamente com a do Prefácio do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels pelo Pensamento Social, de Antero de Quental e José Fontana, nos n.os 44-46 (16 de Fevereiro - 2 de Março de 1873; saiu a conclusão do Prefácio no n.º 47, de 9 de Março. Sobre a tradução portuguesa do Manifesto de Marx e Engels, ver o que dissemos atrás). A demissão de Fontana tornou-se efectiva por não ter sido resolvida a seu contento a complicada querela que originara a sua carta de demissão e de quatro dos seus camaradas italianos do Conselho. O facto é importante, pois tratava-se de um gesto de solidariedade para com um republicano burguês, o advogado Henri Lefort, do jornal L'Association, ligado ao grupo de emigrados pequeno-burgueses franceses em Londres, e membro da secção de Paris da A. I. T. - a mesma secção de orientação proudhoniana que publicara em Janeiro de 1865 uma tradução francesa falsificada dos Estatutos provisórios da A. I. T., tradução que, corno dissemos acima, pudemos apurar ter servido de base às citações de Antero no seu opúsculo O que é a Internacional (a menos que Antero se servisse de uma tradução dessa tradução). Estes factos que, apesar da sua importância, nunca vimos mencionados nos estudos sobre Antero de Quental nem na biografia de José Fontana (cf. a última em data: César Nogueira, Notas para a História do Socialismo em Portugal (1871-1910), Lisboa, 1964, pp. 59-64, e 332-334) pudemos estabelecê-los compulsando o Minute Book e outros documentos do Conselho Central da Associação Internacional dos Trabalhadores no período da sua constituição como organização mundial (1864-1866).
(43) A este propósito, é do maior interesse a leitura atenta do Prefácio da 1.ª ed. do t. 1 dos Ensaios, Rio de Janeiro-Porto, 1920, p. 9-59 e, sobretudo, pp. 42 e segs.; 2.ª ed., Coimbra, 1949, p. 69-112, e, sobretudo, pp. 98 e segs. Cf. Antologia dos Economistas Portugueses, Lisboa, 1924, esp. pp. VI e L.
(44) Ensaios, I, 1920, p. 53; I, 1949, p. 107.
(45) Sobre Antero, in Seara Nova, XII, n.º 365, Lisboa, 1933, p. 66.
(46) Ensaios, I, Rio de Janeiro-Porto, 1920, p. 46; I, Coimbra, 1949, p. 101. Sublinhado nosso.
(47) Ensaios, III, Porto, 1932, p. 417. Convém notar que este passo intervém justamente numa explicação da sua posição ideológica e política nas contendas da República.
(48) Nótulas. Crítica de papel-de-tornsol, in Seara Nova, XIV, n.º 442, Lisboa, 1935, p. 152. Ver ainda a Seara Nova, XVIII, n.º 554, 1938, p. 169.
(49) Veja-se o estudo fundamental La Révolulion bourgeoise de 1383 et ta réaction aristocratique, no suplemento ao volume colectivo Le Féodalisme, Paris, 1963, pp. 1-25 e, sobretudo, pp. 6-13. Por sua vez, Armando Castro deverá analisar este problema na quinta parte da sua importante obra em curso: A Evolução Económica de Portugal dos Séculos XlI a XV, de que estão publicados 2 volumes (Portugália Editora, Lisboa, 1964)
(50) Da mesma maneira, não tem qualquer sentido o supôr-se que as Épocas de Portugal Económico (Lisboa, 1929) - o livro que Lúcio de Azevedo foi levado a escrever sob a influência da introdução da Antologia dos Economistas Portugueses, de Sérgio - representam urna verdadeira visão materialista da história portuguesa.
(51) Isto nos dissera Sérgio, por estas mesmas palavras, nessa ocasião. Mas também as escreveu ele replicando aos que já então o não compreendiam sobre este ponto, na sua Resposta a uma consulta, in Seara Nova, XIV, n.º 466, Lisboa, 1936, p. 156.
(52) Cf. Ensaios, I, 1920, pp. 47-53; I, 1949, pp. 102-107. - Ou ainda, por exemplo, quando exalta a significação da fala do «Velho do Restelo» nos Lusíadas - «lanço supremo da épica», «o qual condena aquele próprio feito que a epopeia camoneana se propõe cantar». Assim escreveu A. Sérgio (numa nota da sua edição dos mais belos trechos de Os Lusíadas, Lisboa, ed. Sá da Costa, 1940 p. 65), enquanto um Norton de Matos, por sua banda (preconizando, em 1937, um certo número de medidas que seriam adoptadas mais tarde), lamenta as muitas vezes que os homens da sua geração tropeçavam, como ele diz, «nas vociferações do velho do Restelo», e estima ademais que esse «episódio se projecta como uma enorme sombra sobre toda a epopeia» (Norton de Matos, O nosso modo de ver, in Seara Nova, XVII, n.º 500-3, Lisboa, 1937, pp. 307-309).
(53) Explicação dum Amador de Ideias, in Seara Nova, XIII, n.º 410, Lisboa, 1934, p. 29.
(54) Convém reler. «Talvez pudesse o operariado chamar à reforma os «intelectuais»: chegámos a crer na possibilidade da realização de tal fenómeno. Por má sorte, porém, surgindo a maximalismo pela revolução russa e fazendo-se o operariado bolchevique, o retraimento da burguesia tornava-se inevitável e suspicaz; e por nossa parte, nem queríamos servir o proletariado no seu radicalismo prematuro (arrojando à inépcia dos governantes o nosso justíssimo protesto), nem os políticos da burguesia, que podiam armar em «defensores da ordem», depois de usarem na oposição os piores processos dos desordeiros, e fazendo eles próprios a desordem pela sua oligárquica governação.» (Ensaios, I, Coimbra, 1949, p. 109; com algumas variantes na 1.ª edição Rio de Janeiro-Porto, 1920, pp. 54.55).
(55) Ver: Azedo Gneco, Reclamações Operárias, 1910 (tese apresentada ao Congresso Nacional do Partido Socialista Português, em Maio de 1910).
(56) Considerações Histórico-Pedagógica, Porto, 1915, p. 51.
(57) Convém lembrar que em 1915 a revista Pela Grei, fundada e dirigida por Sérgio, publicou um programa geral de reformas económicas e educativas. Releia-se também o Programa Mínimo do grupo «Seara Nova» (constituído em 1919) no n.º 12 da revista, em Abril de 1922.
(58) Antologia dos Economistas Portugueses, Lisboa, 1924, pp. XXXVI e 346; cf. pp. 361-371. E ainda: «Até hoje [1924] não empreendeu a República as reformas fundamentais» (p. XLIX). Como se vê, a posição de Sérgio quanto ao regime da propriedade contrasta fortemente com a do republicanismo burguês definida entre outras nas passagens que transcrevemos de Henriques Nogueira, de Trindade Coelho e de Teófilo Braga, e outrossim com a do socialista Antero de Quental.
(59) Da pobreza dessa ideologia, mesmo para as condições da época, pode hoje inteirar-se o leitor não só percorrendo o calamitoso livro já citado de Teófilo Braga (o qual apesar de tudo é um caso extremo de indigência mental, embora sintomática dada a grande ressonância que teve: «un sot trouve toujours un plus sot qui l'admire»; confira-se o volume de Teófilo aparecido desta vez com o título de História das Ideias Republicanas, Lisboa, 1912), como ainda consultando o superficialíssimo capítulo III da História do Regímen Republicado em Portugal, publicada e dirigida por Luiz de Montalvor, capítulo da autoria de Joaquim de Carvalho sob o título: «A Formação da ideologia republicana» (vol. I, Lisboa, 1930, pp. 161-256). Não nos ocorre, porém, que Sérgio alguma vez tenha apontado que essa ideologia, segundo o testemunho mesmo dos seus doutrinários representativos (Henriques Nogueira, Teófilo Braga...) era anti-revolucionária. Senão veja-se: Henriques Nogueira, pitorescamente designado na História do Regímen Republicano em Portugal como «o primeiro português que descobrira a questão social» (vol. I, p. 229), preconizava que esta se resolvesse «de uma forma simultâneamente anti-revolucionária e prática, isto é, com base nos móbeis do individualismo e no sentimento indestrutível da propriedade» (ver op. cit., pp. 229-230; cf. p. 231). É justo reconhecer também que, neste ponto, as opiniões de Antero (em retraimento, como vimos, às de Sérgio) não divergiam sensivelmente das dos republicanos burgueses: o seu revolucionarismo era mais aparente que real. Pois que queria na verdade Antero? Simplesmente, que a burguesia renovasse a sociedade eliminando (como sonhava Proudhon) os seus «lados rnaos». Segundo Antero, impunha-se à burguesia «uma bela missão no século XIX». Fora derrubado o feudalismo, mas o povo continuava no estado de indiferença e de incapacidade política a que o reduziram em acção convergente a monarquia absoluta e o parasitismo aristocrático. Assim, tornada «a igualdade um direito popular e ao mesmo tempo um perigo para a civilização» - são as palavras mesmo de Antero -, «incumbia à burguesia, assumindo uma espécie de ditadura filosófica, aproveitar-se deste interregno para guiar a multidão ao encontro do seu direito, para estabelecer sem grande abalo a passagem da antiga incapacidade para a nova soberania, encaminhando, ilustrando, moralizando, fazendo-se, enfim, não classe dominadora mas simplesmente classe iniciadora» (Portugal perante a revolução de Espanha, in Prosas, II, Coimbra, 1926, pp. 69-70). Nem mais: simplesmente isto. E outro passo (nas Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Três Últimos Séculos, op. cit., p. 139) explicita que o objectivo da «revolução social» que ele concebe «longe de apelar para a insurreição, pretende preveni-Ia, torná-la impossível», pois este é o revolucionarismo de Antero, despido da fraseologia revolucionária de que, por vezes, retóricamente, se reveste. Então, o tom é este: «A burguesia, cada vez mais distanciada da realidade contemporânea, mostra ainda nisto a sua decadência: incapaz de estudar e compreender, prefere sonhar, e acredita piamente nos sonhos que a sua ininteligência lhe sugere. Pois sonhe embora, se isso lhe pode adoçar as amarguras da última hora, os factos seguirão todavia o seu curso natural obedecendo às leis necessárias da evolução humana, e não às ilusões interessadas que a incapacidade, o medo ou um errado cálculo inspiram aos profectas de um mundo condenado, e que já agora morrerá na impenitência final» - O Congresso da Internacional na Haia, in O Pensamento Social, n.º 25, Lisboa, Outubro de 1872. Curiosamente, este artigo (no qual se tem pretendido ver a mais nítida afirmação do «espírito revolucionário» de Antero e a prova mais evidente do seu «marxismo») não foi recolhido na edição das Prosas. Porém, transcrito por J. Bruno Carreiro: Antero de Quental. Subsídios para a sua Biografia, vol. II, Lisboa, 1948, pp. 300-304. O facto insofismável é que só o completo desconhecimento do texto mesmo do Inaugural Address e dos Provisional Rules of the Working Men's International Association, redigidos em inglês por Marx, em 21/27 de Outubro de 1864 e publicados em Londres em Novembro de 1864 (ver Karl Marx, Selected Works in two volumes, vol. II, Moscow, 1935, pp. 432-445; cf. K. Marx-F. Engels, OEuvres choisies eu deux volumes, vol. I, Moscou, 1964, pp. 393-406) pode levar alguém a dizer que Antero fez seus os princípios da Internacional e as palavras de Marx no preâmbulo dos Estatutos provisórios. (A versão francesa deformada, a que anteriormente nos referimos, feita pelos proudhonianos do «Comité parisien» da A. I. T. em 1264, pode ler-se agora, em elucidativo confronto com a tradução francesa exacta dos Estatutos provisórios e dos Estatutos definitivos, no volume de Jacques Duclos, La Première Internationale, Paris, 1964). Só por ignorância total da literatura marxista se pode também pretender vislumbrar «fraseado de sabor marxista» nas prosas de Antero. O facto irrecusável é que estas não revelam o mais leve contacto com as ideias marxistas. De aí precisamente o interesse de Sérgio pelo socialismo de Antero.
(60) Ver: Antero de Quental, O Congresso da Internacional na Haia, in O Pensamento Social, n.º 25, Lisboa, 1872. Repare-se na opinião de Teófilo Braga definindo a posição do republicanismo burguês contra o movimento operário: «Acima das questões do salário, e das horas de trabalho, e do domínio dos instrumentos de transformação [Teófilo queria certamente dizer: a posse dos meios de produção] está o problema do Individualismo» ... (Soluções Positivas da Política Portuguesa, Parte III, Lisboa, 1879, p. 313). E ainda: «As emoções socialistas [sic] atrazaram a reorganização política deste país; [...] embaraçam a sua solução considerando a República como uma forma política dos conservadores burgueses» (op. cit., p. 315).
(61) Cf. Aclarando, in Seara Nova, XII, ri.º 366, Lisboa, 1933, pp. 82 e 93; a última cita acha-se na mesma revista, ri.º 356, 1933, p. 318. Ver ainda A propósito dos dizeres dum jornalista, ibid., n.º 353, 1933, pp. 260 e 272; Viver com ideias (Extracto de uma conferência feita em Coimbra há uns quinze anos), ibid., XVII, ri.º 531, 1937, pp. 43-44,-e, naturalmente, o Prefácio da 1.ª edição dos Ensaios.
(62) Com efeito: ...«o mal do constitucionalismo português não foi o de introduzir o liberalismo económico (o que era fase necessária do nosso processo histórico, onde a parte de Mousinho é de fulgor sem par), mas sim o de nos trazer uma estrutura liberalista em que teve de predominar o capitalista passivo, - esterilizador, parasita, - com ausência da mentalidade do capitalista empresário, criador de riqueza (e portanto também da do inovador crematístico): um capitalismo caracterizado pelo ocioso rentista, pelo intermediário pantagruélico, pelo vampirismo do agiota, pelas aventuras corruptoras dos jogadores da Bolsa […] desse desvio da rota tinha culpa o ambiente da tradição histórica, - a força de inércia, em suma, a orientação de espírito daquele antigo regime que se pretendeu cassar, sustentado pelas Índias e logo depois pelo Brasil» (Ensaios, VIII, Lisboa, 1958, p. 229).
(63) Antero de Quental, Prosa, vol. II, Coimbra, 1926, pp. 296 e 297.
(64) De uma entrevista de António Sérgio com um jornalista do Primeiro de Janeiro, e reproduzida pela Seara Nova (XVIII, n.º 500-503, Lisboa, 1937, pp. 372-373) recortamos as seguintes linhas: segundo cremos, elas ilustram bem o nosso convencimento de que em política, o «idealismo crítico» de Sérgio - o seu «socialismo idealista» - se traduz finalmente num utopismo: «Hoje já não há motivos de natureza exterior - motivos reais, materiais, de facto, - para que haja lutas, preocupações, angústias. Houve-os, mas já não há; só nos podem agora levar à luta as nossas cegueiras e as nossas paixões. - O que falta? - Falta que queiramos de facto compreender. Houvesse um esforço de inteligência lúcida, boa vontade para entender os factos, e teríamos todos a felicidade e a paz. […] Faltavam-nos de todo as condições materiais para um verdadeiro reinado social do Cristo. Hoje, porém, tudo mudou; a «luta pela vida» é urna ideia obsoleta, que vigora ainda porque os homens a querem - e querem-na ainda porque são cegos; porque resistem a compreender este grande facto, a saber: a transformação total das condições económicas pela técnica científica dos nossos dias. A «luta pela vida» foi necessária: hoje, porém, já o não é; vencemos os obstáculos materiais ao Espírito; o triunfo do Prometeu é definitivo e total; e, se a luta pela vida não é precisa, todas as lutas entre seres humanos não passam de mal-entendidos entre mentecaptos». É preciso, segundo Sérgio, «uma nova organização espiritual da nossa vida» para pôr termo ao mal do desemprego que «há-de ser cada vez maior, enquanto se não organizar de uma maneira científica a distribuição do trabalho e a distribuição dos produtos». Em suma, «há que organizar racionalmente a vida», nas palavras mesmas de Sérgio.
(65) Pese muito embora ao pessimismo e ao amargor que transluzem, por exemplo, a pp. 66-67, 447-449 e 456-459 da 2.ª ed. do I tomo dos Ensaios, que é de 1949.
(66) Ensaios, I, Coimbra, 1949, p. 457.
(67) Ensaios, VIII, Lisboa, 1958, p. 245.
(68) Tréplica sobre a Questão de O Desejado, Lisboa, 1925, p. 21.
(69) Considerações Histórico-Pedagógicas, Porto, 1915, p. 9.
(70) Cf. Ensaios, I, Rio de Janeiro-Porto, 1920, p. 163 (=I, Coimbra, 1949, p. 203); II, Lisboa, 1929, pp. 19, 229.
(71) Antero de Quental, Prosas, vol. II, Lisboa, 1926, p. 296; cf. A. Sérgio, Historia de Portugal, Barcelona, 1929, p. 175.
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