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A unidade da Ciência
Vasco de Magalhães-Vilhena
A análise, mesmo sumária, da natureza e do objecto da Ciência ficaria incompleta se não se indicasse o problema da unidade da Ciência, ao menos nas suas linhas mais gerais (1).
Ao analisar-se a história do pensamento científico podem acentuar-se traços característicos, tendências dominantes no seu desenvolvirnento. É uma a tendência para a diferenciação crescente; é outra a tendência para a unidade.
É coisa sabida terem as mais antigas ciências uma origem comum e terem-se as outras sucessivamente desprendido do conjunto até assumirem relativa autonomia. É coisa sabida, também, haver na história do pensamento científico certos momentos em que, quer os cientistas, quer os que, não realizando directamente trabalho científico, têm por tarefa o estudo dos processos de conhecimento em ciência, procuram levar a cabo um esforço de unificação em que os aspectos contraditórios do universo da ciência sejam superados e as leis particulares englobadas em leis mais gerais. Já, porém, menos vezes se tem atentado no facto destas duas tendências se não desenvolverem isoladamente ao longo da história da ciências, mas constituirem aspectos complementares de um só processo.
A ciência, à medida que amplia o campo de análise dos eventos naturais e sociais, e precisamente para que deles possa obter um mais adequado conhecimento, dissocia o objecto de estudo, decompõe-no em séries diversas de fenómenos e fragmenta as suas actividades.
Quanto mais a consciência humana se eleva e o homem se distancia das formas rudimentares de que partira, quanto mais amplia a sua representação do desenvolvimento da natureza e da sociedade como processo traduzível em leis e o âmbito da sua descrição do mundo se enriquece e alarga, tanto mais se acentua a divisão do trabalho na ciência e é maior o número de disciplinas ocupadas com parcelas do processo universal único. A diferenciação das ciências corre paralela ao alargamento dos conhecimentos.
Mas justamente porque a ciência, parte integrante da história da humanidade, é, como Hyman Levy disse,
«um aspecto do esforço humano para obter segurança e certeza num universo em perpétua transformação»,
aos homens não podem bastar conhecimentos parcelares. É a realidade total que se procura. A unidade dos ramos diversos do saber, exigida já pela pura especulação, é condição básica também dos próprios progressos em cada um dos campos de pesquisa de determinada série de fenómenos. Razão por que se disse haver na história da ciência momentos em que os esforços se congregam para ir além dos aspectos contraditórios, conservando e destruindo, conservando o que neles havia de rico e de fecundo, destruindo o que neles era entrave à elevação a um nível superior.
Foi a época de Newton um desses momentos. Afirmando uma conexão entre a aceleração de um planeta e a sua distância do sol, Newton enunciou uma simples lei - um sistema de equações diferenciais - que, generalizada, não rege apenas o movimento de todos os planetas mas ainda o de todos os corpos celestes. Assim a ciência dos séculos XVII e XVIII, construindo o edifício da mecânica clássica - de que esta teoria de Newton é pedra angular - realizara uma prodigiosa síntese das correntes heliocentrista, atomista e infinitista vindas da Grécia antiga e superara as respostas de Ptolomeu, Copérnico e Kepler - cada uma mais simples e mais rigorosa do que as que a precediam (2) - ao problema da conexão da posição de um corpo celeste e do instante do tempo em que ocupa a posição.
É a nossa época um outro desses momentos.
Surtas teorias novas para fixar e exprimir as novas experiências, retomadas outras correntes de pensamento que o triunfo de Newton havia arredado, sofreu a ciência nos anos que vão decorridos no nosso século transformação profunda. E problemas semelhantes ao de Newton surgiram. Hoje, também, os homens deparam no Universo da Ciência com leis contraditórias, leis não ainda suficientemente gerais, «descrições complementares» da realidade.
Quanto mais, com os progressos científicos que se sucedem como consequência e causa necessárias das revoluções industrais da máquina a vapor e da electricidade, se ampliaram os conhecimentos das diferentes «regiões» do real, mais os investigadores se afastaram da visão unitária a que se havia chegado e que Newton, mais do que qualquer outro, contribuíra para construir.
O acentuar de um dos traços dominantes desta revolução científica a que estamos assistindo, a ideia da unidade do real (real identificado aqui como mundo natural e mundo social), veio dar de novo todo o relevo ao problema da unificação da ciência.
A) UNIDADE DO REAL
Não se pode dizer que seja uma concepção inteiramente nova esta da unidade do real. Já havia animado os espíritos dos que, na Jónia, tinham dado nascimento à ciência e à filosofia. Depois dos atomistas, Aristóteles já dela se ocupara na sua teoria dos quatro elementos e aos próprios alquimistas medievais e renascentistas esta ideia não era estranha. Mais perto de nós fora já preocupação grande de Descartes e sobretudo de Spinoza, de Diderot e de Kant. De Diderot é a frase célebre:
«só há uma substância no universo, no homem, no animal».
E de Claude Bernard são estas palavras:
«O ser vivo não constitui uma excepção à grande harmonia natural que faz com que as coisas se adaptem umas às outras, [...] É um elemento do concerto universal das coisas, e a vida do animal, por exemplo, não é mais do que um fragmento da vida total do universo».
Desde o tempo de Newton a noção da matéria sofreu profundas modificações. Tendo ainda exercido directa influência sobre Dalton, o passo famoso do Opticks (3) conservou depois, apenas, significado histórico:
«Afigura-se-me provável - dissera Newton - que Deus ao Princípio formara a Matéria com Partículas sólidas, maciças, pesadas, impenetráveis, dotadas de movimento. [...] As Mudanças das Coisas corpóreas devem apenas ser atribuídas às várias Separações e nova Associação e Movimento destas Partículas permanentes».
E Dalton, anos decorridos, fora mais longe:
«não só todas as coisas corpóreas são constituídas pela associação, separação e movimento de partículas permanentes, como ainda o número desses elementos simples é limitado».
Daí à lei periódica dos elementos de Mendéliev, não seria longo o caminho a percorrer. Em 1869, dez anos depois de publicada A Origem das Espécies, de Darwin, o químico russo anunciou a sua tese da evolução dos elementos: se estes estão ordenados segundo os seus pesos atómicos, formam uma progressão - afirmara. As diferenças qualitativas entre os elementos químicos têm por causa diferenças quantitativas na sua composição.
«A descoberta de Mendéliev representa um regresso parcial à concepção newtoniana, mas num plano mais elevado [...]. Todos os elementos químicos têm diferenças qualitativas porque são combinações quantitativamente diferentes - estruturais - de uma única substância».
Assim, a unidade do real é afirmada. Assim se quebram as barreiras entre a física e a química: uma e outra estudam séries conexas de fenómenos de um só processo universal.
A própria passagem do mundo a que chamam inorgânico para o mundo considerado orgânico é uma transição deste tipo, consequência do desenvolvimento das contradições internas inerentes a todos os fenómenos da natureza, luta de elementos contrários, rotura do equilíbrio num certo ponto nodal definido e passagem a um tipo qualitativo diverso, a um fenómeno totalmente novo. Do aparentemente inanimado ao universalmente tido como dotado de movimento não há solução de continuidade. A descoberta recente de Stanley (1935) continuada por J. D. Bernal - o isolamento da proteína-vírus do «mosaico do tabaco» - e os estudos ainda mais recentes de Levaditi (1938) sobre os cristais vivos assim o confirmam. E assim, por pressão de interesses económicos e industriais, acentuou-se nos últimos anos o carácter relativo da oposição tradicional entre os domínios do inanimado e do orgânico. Desde a síntese da ureia por Wöhler, há pouco mais de um século, a ciência não dera maior passo para a visão unitária do real. Em Julho de 1939, num belo ensaio sobre a estrutura da matéria, Bernal fixou com precisão o estudo do problema e assinalou as perspectivas notáveis que se oferecem para os anos que se aproximam:
«Estes desenvolvimentos não são de qualquer modo finais [...]. O que foi já conseguido neste século foi unificar completamente a física e a química. O que eram leis químicas autónomas e inexplicáveis são agora consideradas como leis físicas de um nível mais elevado. O próximo passo será uma unificação similar da biologia, e isto já se principiou» (4).
B) UNIDADE DE LINGUAGEM
Se o real é uno, como grande número de cientistas é inclinado a admitir, se a realidade do homem e a realidade do mundo físico não são separáveis,
- «a realidade só é múltipla para os nossos processos de investigação»,
Henri Wallon disse-o não há muito - porque se não verifica hoje ainda inteira unidade no conhecimento? porque se não superam as «descrições complementares» da realidade? Numa palavra, o que impede a unidade da ciência?
A resposta dada por alguns é aparentemente simples: porque a unidade da linguagem científica não é ainda um facto. E na sua aparente simplicidade levanta esta resposta complexo problema.
Tem sido, como se sabe, preocupação dos que cuidam de matemática alargar consecutivamente o seu domínio à medida que novas dificuldades vão surgindo. Para solucionar certo número delas, ampliaram os matemáticos, por vezes a grande número de anos de intervalo, o âmbito do campo numérico. Assim, ao longo da sua já longa história, a matemática tem visto alargados os seus domínios e os investigadores dos mais variados ramos da ciência têm podido utilizá-la como instrumento poderoso e como a mais adequada das linguagens (5). Em certo sentido, pode mesmo dizer-se que a história da ciência se caracteriza nos tempos modernos pela sua consecutiva matematização. Justamente na época actual, ao que parece, está-se de novo num desses momentos em que o aparelho de que se dispõe é insuficiente para traduzir na «ordem das ideias» a «ordem das coisas». Por isso, mas não só por isso, se fala de «crise das matemáticas».
Daqui um problema grave que aos cientistas de hoje se pôs. Quanto mais com o desenvolvimento das revoluções industriais se alargaram os conhecimentos científicos, mais os homens se afastaram da concepção unitária do real. E quanto mais minuciosa era a pesquisa de determinada série de fenómenos, maior era também a especialização e, por conseguinte, maior era a diferenciação das linguagens próprias de cada ciência.
Assim, em dado momento, e quando justamente como consequência singular da diferenciação das ciências que permitira mais rigorosa análise de cada categoria particular de fenómenos a ideia da unidade do real assentou em mais firmes bases, os homens de ciência verificaram a impossibilidade em que se encontravam de exprimir numa só linguagem os fenómenos relativos às zonas diversas do processo universal.
Situando a presente crise das matemáticas na crise da ciência geral e particularmente na crise da física que na primeira década deste século se acentuou, um autor frisou o facto de que da solução desta crise depende em larga escala a possibilidade de desenvolvimento das ciências naturais, da técnica e da própria matemática. E depende também, e talvez em não menor escala, a questão da unidade da ciência.
Durante os séculos XVII, XVIII e XIX, a par do incremento geral da civilização moderna e de certo modo como sua consequência, o mais poderoso dos instrumentos da matemática, a análise, desenvolveu-se em estreito contacto com as ciências naturais, a física e a mecânica. Alguns dos seus primaciais capítulos, tais como análise de tensores, cálculo de matrizes e teoria dos valores próprios, foram mesmo em grande parte criação de físicos. Os fenómenos de mecânica, de termodinâmica, de electromagnetismo e até de química, eram considerados como processo contínuo e expressos analiticamente.
No entanto, um certo número de descobertas levadas já a efeito no século em que vivemos e entre as quais avultam a do «quantum» de energia de Planck e a da mecânica ondulatória de Louis de Broglie, Heisenberg e Schrödinger, quebraram esta «harmonia de continuidade». A física, teve de se constatar, não pôde proporcionar-nos um desenvolvimento analítico consistente de todos os fenómenos.
E não apenas isto, a impossibilidade de realizar a síntese do contínuo e do discontínuo, de ondas e corpúsculos - o que já é capital - mas ainda a impossibilidade de transpor a lacuna entre o cálculo de probabilidades e o resto das matemáticas (no dizer de um autor, pela incompreensão da unidade da regularidade estatística e da regularidade dinâmica), entre as diversas teorias e os instrumentos de cálculo.
Esta incapacidade para elaborar uma descrição adequada do mundo material, isto é, do mundo que existe independentemente da nossa consciência, é, ao que a muitos se antolha, o traço mais saliente da crise das matemáticas contemporâneas e uma das dificuldades maiores a superar para a unificação da ciência em geral e para a unificação da linguagem em particular.
Estes os maiores escolhos, estão os de natureza propriamente matemática. De outros cumpre agora falar, porém, de carácter mais lógico e filosófico, se bem que, evidentemente, em relação íntima com os precedentes. Trata-se do que se poderá designar por tendência formalista e abstractizante das matemáticas. Quer dizer, aquela tendência, hoje tão visível, comum a muitas das ciências que tenham atingido um alto nível de desenvolvimento, ou melhor, à maneira como essas ciências são em geral tratadas, de perda de todo contacto com a realidade concreta a que deveram origem e a que, no fim de contas, se aplicam. A tendência para considerar as matemáticas isoladamente - um mundo fechado sobre si próprio e as suas entidades como entidades puramente lógicas, cujo aparecimento é apenas resultante de um «dinamismo inerente à razão». E tem-se já salientado a lacuna que nesta maneira de considerar as matemáticas separa o ponto de vista histórico do ponto de vista lógico. Prende-se, porém, esta questão a outra mais geral e de complexidade maior: a dos fundamentos da matemática.
Tem a sua história este problema. Foi em fins do século passado que a solidez dos fundamentos da matemática pareceu abalada aos olhos dos cientistas. Tinham então aparecido trabalhos de repercussão notável sobre a teoria dos conjuntos e sobre a ideia de infinito (que um Gauss desterrara das matemáticas), e os paradoxos de Cantor haviam causado impressão profunda. Um movimento científico-filosófico toma então vulto: é a concepção geral da natureza da matemática que está em jogo. A discussão generaliza-se, desde os formalistas como Hilbert aos intuicionistas como Weyl e Brouwer, passando pelos trabalhos decisivos de Frege, Peano e seus continuadores. É, porém, em 1910 que a questão atinge singular acuidade. É o ano em que Bertrand Russell e A. N. Whitehead dão à estampa o primeiro dos três volumes dos Principia Mathematica, obra extraordinária de quase duas mil páginas, e cuja influência se fez grandemente sentir. Nela repousa, pelo menos de certo modo, quer para se lhe opor quer para a tomar como estímulo, uma boa parte da filosofia científica contemporânea; por exemplo, a que se filia no Tractatus Logico-Philosophicus do discípulo de Russell, Ludwig Wittgenstein. Nela se retoma e se apresenta, se é possível, com maior relevo, a tese de Boole: as matemáticas tratam de operações consideradas em si próprias - independentemente das matérias diversas a que podem ser aplicadas. Foi o que Russeli fixou em frase pitoresca, hoje famosa:
«A Matemática pode ser definida como a disciplina em que nunca se sabe do que se está a falar nem se o que se diz é verdade».
Nesta tendência para considerar o mundo dos conceitos matemáticos «como um mundo de universais rígidos e imutáveis», para considerar-se as matemáticas como um mundo fechado sobre si, apenas com fortuitas relações com o resto da ciência e com a realidade, tem-se visto, por vezes, um dos mais graves escolhos para a unificação da ciência.
O método axiomático, tanto como o do intuicionismo - um e outro são de tendência acentuadamente formalista - não dão do problema uma visão total: focam-no apenas por uma das suas facetas. Pondo a claro aspectos das relações existentes entre as abstracções matemáticas, um e outro não esgotam a questão. Deixam ainda margem a outras modalidades de investigação.
«Podemos construir teorias nas quais pontos e linhas são permutáveis e os números são símbolos; mas - escreveu D. J. Struik - todas as teorias devem remontar finalmente até à origem de imagens abstractas de pequenos corpos reais e dos números como imagens, de relações entre coisas reais da natureza. As diferentes teorias matemáticas tendem a acentuar tão-só certos aspectos dos pontos e números, mostrando a infinita riqueza até de tão simples abstracções da realidade» (6).
Não procurando o objecto da investigação matemática no mundo da experiência, detendo-se nos puros símbolos, o método axiomático acentua a lacuna entre o lógico e o histórico. E assim dificulta a compreensão das relações entre a matemática e os outros domínios do conhecimento. Isolando-a, forçando-a a perder o contacto com zonas da realidade, quebra-lhe alguns dos mais concretos laços por que as matemáticas se prendem às outras ciências e, através delas, ao conjunto das formas múltiplas por que se manifesta a energia humana. Assim esta tendência formalista e abstractizante sustentando, com os neopositivistas, nomeadamente Hans Reichenbach, que as matemáticas, certas mas desprovidas de conteúdo, são tautologias que nada podem afirmar sobre a realidade, vasto dicionário de sinónimos, dando-nos apenas regras de sintaxe úteis para a formulação das leis da natureza, ou afirmando, como Couturat (7), que a matemática é uma ciência «abstracta», não porque abstraia da maior parte das propriedades dos objectos da experiência mas porque, não se referindo a nenhum objecto particular e aplicando-se a todos os objectos possíveis, é uma ciência «formal» e «pura» que apenas considera a forma dos objectos e as suas relações, encaminha-se no sentido de um formalismo perigoso e levanta graves escolhos ao desenvolvimento da ciência unificada. E, por outro lado, obscurecendo com um isolacionismo forçado a compreensão do que é talvez a verdadeira natureza das matemáticas, sua história, problemática e métodos, dificulta o conhecimento da forma como foram obtidos os progressos do passado e torna; portanto, menos fácil a realização de novos progressos que permitam superar, a impossibilidade de exprimir numa linguagem única as séries diversas de fenómenos em que, com a diferenciação das ciências, se fragmentou o processo universal único.
Desta maneira abstractizante e formalista de pôr o problema dos fundamentos da matemática - puros símbolos, entidades lógicas consideradas em si, deduzindo-se umas das outras a partir dos grandes princípios lógicos mediante determinadas regras operatórias - resulta o modo como alguns dos que seguiram Russell encaram a questão da unidade da ciência. Põem-na principalmente em função da unificação da linguagem científica (8). Para os que assim pensam, o problema da unidade da ciência é, acima de tudo, um problema de carácter lógico.
Assenta este critério essencialmente numa distinção entre ciências formais - as matemáticas e a lógica - e ciências empíricas. Destas, o lugar primacial é atribuído à física, que retoma a sua antiga amplitude: ciência geral da natureza.
As relações entre as ciências empíricas e as formais são estabelecidas por forma singular: às últimas, compete a criação dos quadros abstractos do pensamento, vazios de conteúdo intrínseco; às primeiras, o preenchimento desses quadros. Deste modo, a experiência ocupa um lugar particular no processo do conhecimento. Como para Kant (o formalismo contemporâneo, ao menos nalguns dos seus sectores, é de nítida inspiração kantiana), há algo que é logicamente anterior ao conhecimento e que é a sua própria condição. Para o filósofo das três Críticas, esse anterior são as formas puras da sensibilidade e do entendimento. Para os neopositivistas, empiristas lógicos como eles a si próprios se chamam (9), e de um modo geral para os formalistas, o anterior à experiência e o que a torna possível são os quadros lógicos que, nada tendo em si mesmos, como o molusco de que fala Einstein, tudo podem receber e ordenar.
Numa nota à Crítica da Razão Pura e mais tarde nos Prolegómenos, Kant dissera - evidentemente exagerando (entre um e outro havia pelo menos Descartes e Leibniz) - que desde Aristóteles a lógica não dera um passo. É uma verdadeira revolução «aristotélica», permita-se-nos o termo, que os logísticos ambicionam - se bem que proclamando, como Russell, que um pensamento é são na medida em que se afasta do aristotelismo.
A ideia essencial da revolução logística? Em breve síntese esta (10): matemáticas e lógica são as ciências das «formas», dos quadros, das relações - e nisto se aproximam; mas enquanto a lógica foi estéril, a matemática, ainda que nem sempre logicamente impecável, foi de uma fecundidade rara - e nisto se afastam. Porque não uni-Ias intimamente - como disse Abel Rey - a ponto de tornar a lógica fecunda e de dar à matemática um rigor lógico, realizando simultaneamente o sonho de Descartes de uma mathesis universalis, ciência única porque ciência de todas as relações, e a aspiração de Leibniz de uma caractéristique universelle, ciência que dê a todas as outras a sua linguagem definitiva?
Nisto reside justamente, ao que se afirma, a importância máxima da lógica simbólica para a unidade da ciência: é a mais completa tentativa até hoje realizada para a criação de um sistema único de expressão.
E as matemáticas? As matemáticas, tal como foi amplamente desenvolvido pela «Escola de Cambridge» e por Whitehead e Russell em particular, são apenas um ramo da lógica simbólica, sistema de expressão mais vasto. A matemática é somente a ciência das relações de quantidade; a lógica simbólica, representando com um pequeno número de convenções mesmo as mais complicadas proposições da matemática, abrange todos os tipos possíveis de relações, inclusive as que sempre ficaram excluídas do cálculo por não matematizáveis. É assim uma álgebra não numérica, como afirmou Whitehead, a mathesis universalis que Descartes pretendera, enquanto a matemática tradicional é apenas a matemática das relações quantitativas.
Continuando a tradição da sua directa antepassada, a lógica formal - a que é de certo modo um regresso, se bem que num plano mais elevado - na medida justamente em que aspira a ser a propedêutica de todo o conhecimento, a logística, no entanto, como por alguém foi notado, tem muitas probabilidades de não vir a ser mais do que «uma lógica geral da expressão». Simplesmente na logística a expressão não se pretende ajustar à linguagem corrente mas a todas as sinuosidades e precisões da linguagem científica (Abel Rey).
A logística, ou lógica simbólica, como por vezes indiferentemente se lhe chama, seria assim o sistema único de expressão da ciência unificada.
Como reduzir, porém, todos os conhecimentos a uma ciência unitária?
Ainda aqui é o problema da expressão que está em causa. A resposta dada à pergunta pelos empiristas lógicos que seguem Carnap e Otto Neurath (Russell, por exemplo, não se conta nesse número), é esta: pela adopção de um meio universal de expressão, de uma língua científica única, rigorosamente adequada, para a construção da qual a lógica simbólica serve de modelo, e que, evitando as transposições de sentido entre a linguagem corrente e a linguagem da ciência e as linguagens particulares de cada uma das ciências, seja um sistema absoluto de referência para todas as regiões da realidade.
A primeira dificuldade está agora precisamente em saber qual o sistema de referência a adoptar. Rudolf Carnap desenvolveu o sistema a que deram o nome de fisicalismo. Consiste este na ideia de que os conceitos da ciência unitária devem participar sempre do destino dos conceitos básicos da física. Mais concretamente: que a ciência na sua totalidade é física e que a «linguagem fisicalista» é a linguagem unitária da ciência unitária.
Já em 1931 Carnap dissera: todos os domínios da investigação são somente partes de uma ciência unitária: a física. Mais recentemente Carnap pormenorizou a sua posição. Desgraçadamente - disse - não foi realizada até hoje completa unidade de leis. A construção de um tal sistema homogéneo para o conjunto da ciência será - afirmou Carnap - objectivo de um futuro desenvolvimento. No entanto, o facto de que se tenha alcançado uma unidade de linguagem é já de importância prática considerável. Essa unidade de linguagem, obtida pela redução a uma base comum de termos de todos os ramos da ciência, é a condição preliminar necessária para a unidade das leis e, consequentemente, para a unidade da ciência.
C) UNIDADE DE MÉTODO
Não têm sido estes evidentemente os únicos caminhos seguidos, nem serão, talvez, ao que a muitos se afigura, os mais adequados.
A unidade da ciência envolve necessariamente a questão do método. Russell disse-o claramente:
«A unidade da ciência [...] é essencialmente uma unidade de métodos» (11).
É característico do movimento lógico-analítico o ter acentuado a parte formal do problema da unidade da ciência. Justamente porque o seu pensamento orientador se encontra expresso, entre outros trechos, no passo de Russell: em matemática nunca sabemos de que se está a falar nem se o que se diz é verdade, e naqueloutro, em que afirma que a lógica é o que há de fundamental na filosofia e que à lógica se reduzem as matemáticas. Os que seguem esta orientação insistem na ideia da separação de conteúdo e forma e num tipo particular de combinação dos princípios lógicos e do cálculo matemático, permitindo estabelecer, por tradução em pensamento formal, enunciados de alcance considerável, válidos, por tradução inversa, para o pensamento provido de conteúdo.
Em primeiro lugar: a separação de conteúdo e forma. Ciências formais, as matemáticas e a lógica não têm «objecto». («Objecto» em sentido estrito). São apenas sistemas de proposições auxiliares, como diz Carnap, e destituídas, portanto, de conteúdo intrínseco. Nisto reside a impossibilidade, que o positivista vienense reconhece, da redução da lógica e das matemáticas a quantidades no espaço-tempo, i. e., à física. Nisto mesmo se radica a distinção entre ciências empíricas e formais. As primeiras, como Carnap disse (12), consistem em juízos sintéticos estabelecidos nos diferentes campos do conhecimento factual; as segundas, em juízos analíticos estabelecidos pela lógica e pelas matemáticas. Temos assim ciências formais para um lado e ciências empíricas para outro. Mas porque umas têm «objecto» e conteúdo e outras não e porque justamente as que o não têm são somente sistemas de proposições auxiliares, em nada esta distinção afecta a unidade da ciência, como se pôde ler algures.
Com a doutrina do fisicalismo, Neurath e Carnap cuidaram do problema da unificação da linguagem das ciências empíricas e da própria unidade das ciências empíricas. É das ciências formais que cuida essencialmente o «movimento lógico-analítico», e, através delas, ocupando-se antes de tudo da questão do método - questão sobre que a moderna lógica fez incidir uma nova e intensa luz, como Russeil acentuou - que procura realizar a unidade da ciência.
Como atingi-Ia porém? Pela criação de um meio universal de expressão, de um método perfeitamente adequado para a expressão total da realidade. Esse método é, para estes autores, a lógica simbólica, meio de expressão de um domínio mais amplo do que a matemática, por isso que a engloba como um caso particular.
Durante anos, uma e outra foram consideradas campos de estudo por completo separados. Filiava-se a lógica nas ciências filosóficas e a matemática nas ciências naturais. Hoje tal separação, dizem, não faz sentido. É puramente artificial e só por motivos históricos se explica. É de todo impossível efectuar entre elas uma separação radical. Grande parte da matemática moderna aproxima-se de um modo evidente das fronteiras tradicionais da lógica e a lógica moderna é quase toda ela simbólica e formal. A lógica fez-se matemática e a matemática, lógica - assim o disse Russell (13).
Ambas são ciências das relações: a matemática, das relações de quantidade; a lógica simbólica, de todos os tipos possíveis de relações. Por isso se diz que a primeira é um caso particular da segunda.
Há na lógica, segundo Russell e Whitehead, proposições que se não podem decompor, constituindo como que um «datum» de todo o sistema, e outras que podem decompor-se. São as primeiras as proposições atómicas, aquelas cuja verdade ou falsidade apenas empiricamente pode ser conhecida (14); às segundas, aquelas cuja verdade pode ser universalmente conhecida sem evidência empírica (15), chamaram proposições moleculares. E isto afirmando, deparou-se-lhes um duplo problema: como se podem formar a partir das proposições atómicas as proposições moleculares? e na proposição molecular que relações de proposições atómicas são possíveis?
Cinco são as relações descobertas e consideradas por Russell como fundamentais e irredutíveis: negação, disjunção, conjunção, implicação e equivalência. H. M. Scheffer, de quem se fala em termos de grande apreço na introdução dos Principia Malhematica (edição de 1925), mostrou depois que as duas primeiras relações de Russell - a negação e a disjunção - não são de facto irredutíveis, mas que podem ser reduzidas a uma só: incompatibilidade.
As cinco relações fundamentais que, segundo Russell, permitem dispor as proposições atómicas nas proposições moleculares, são expressas por determinados símbolos logísticos. Com eles se pode operar como com os símbolos da álgebra. É uma pura questão de cálculo. Assim se obtêm as formas lógicas, que a linguagem corrente é incapaz de rigorosamente exprimir porque as suas formas sintáxicas são demasiado gerais, e que, tal como as formas algébricas, podem ser preenchidas por quaisquer variáveis. Inteiramente formal, verdadeira mas incapaz de fornecer conhecimento não-tautológico, vazia de conteúdo intrínseco, consistindo
«em estabelecer relações entre elementos cujas propriedades ficam em princípio completamente fora da área que se considera, sendo por assim dizer pensadas sem conteúdo»,
a lógica simbólica, quadro universal das relações, apto a tudo receber e ordenar, permitindo exprimir tudo o que é, com exclusão dos falsos problemas e dos problemas sem sentido, acomoda-se a todos os factos da experiência. De inspiração acentuadamente matemática como toda a ciência natural e a sua metodologia dos tempos modernos desde Leonardo da Vinci, Galileo e Descartes, assemelhando-se à análise combinatória da álgebra, é a lógica simbólica, a um tempo,
«ciência de uma ordem particular de objectos, investigados em si e por si mesmos como um mundo fechado e à parte»
e
«meio de conhecimento de uma realidade que não é ela própria».
Na medida precisamente em que é um sistema universal de expressão apto a enunciar todas as relações quaisquer que elas sejam entre todos os factos quaisquer que eles sejam - de certo modo a ciência das equações lógicas que Leibniz pretendera comparável à ciência das equações algébricas - é a lógica simbólica, na opinião dos seus adeptos, uma propedêutica a todo o conhecimento.
Assim pela unidade do método - o método lógico-analítico, de que o primeiro e acabado exemplo, no dizer de Russell (16), se encontra nos escritos de Frege - o logicismo realiza, ou pensa realizar ou contribui para realizar, a unidade da ciência.
D) UNIDADE DAS LEIS
Unidade do real, unidade da linguagem científica, unidade do método, são, sem dúvida, problemas importantes deste problema mais geral: a unidade da ciência. Mas não são os únicos. Outras questões há também a considerar. Esta, por exemplo: a da unidade das leis.
Tem sido preocupação constante dos que cuidam de filosofia, de ciência, de teoria geral da ciência ou filosofia científica, o alargamento dos esquemas gerais do conhecimento.
É fácil mencionar ao longo da história da ciência, ocasiões em que a uma intensiva fragmentação de actividades, acompanhada de uma particularização da realidade em zonas distintas e da criação de aparelhagens simbólicas e conceptuais peculiares e, portanto, em princípio intransferíveis, se sucederam tentativas e esforços múltiplos de unificação. De unificação das várias regiões em que, por necessidade de investigação, a realidade foi parcelada e de unificação também das diversas sub-linguagens empregadas em cada um dos ramos da ciência. Neste conjunto de esforços, lugar de relevo fundamental é reservado à criação de leis de carácter mais amplo do que as anteriormente formuladas e que, superando os seus aspectos contraditórios, mantendo o que neles é fecundo e aniquilando o que é entrave a futuros desenvolvimentos, as englobe como casos particulares.
Em toda actividade científica há, por assim dizer, quatro momentos essenciais. Consiste o primeiro na chamada recolha dos dados: a observação e a experiência. O segundo consiste na definição dos conceitos de que a ciência se ocupa e no enunciar das leis a que estes obedecem. Consiste o terceiro em deduzir consequências a partir das leis formuladas. O quarto consiste ou em modificar as leis já enunciadas, para assim se manter a concordância com os novos dados, i. e., com os novos resultados de novas observações e experiências, ou em «salvar» as leis, como fez por exemplo Poincaré com o princípio de conservação da quantidade de movimento unindo-o ao da conservação da energia (17). A isto justamente, numa observação feliz, se chamou um dia a «vida e morte das leis», capítulo essencial da vida da ciência.
Da diferenciação das ciências, do parcelamento das suas actividades e da consequente criação de linguagens válidas apenas para exprimir determinadas categorias de fenómenos, resultou necessariamente encontrarem-se os cientistas perante vários tipos de leis. Vários tipos de leis dificilmente unificáveis dentro de cada um dos ramos particulares da ciência e vários tipos de leis mais dificilmente ainda unificáveis por pertencerem uns a umas ciências, por exemplo as chamadas ciências da natureza, e outros a outros, como por exemplo as ciências sociais.
Em todos os tempos e em todos os ramos da ciência se têm realizado esforços para a unificação de leis contraditórias. O próprio desenvolvimento de cada uma dessas ciências assim o exige e, consequentemente, o desenvolvimento da ciência, isto é, o desenvolvimento das ciências como um todo exige a unificação e generalização das leis de cada domínio particular.
No problema da unidade das leis há, portanto, duas questões. Primeira: a unificação das leis de cada um desses domínios particulares. Segunda: a unificação das leis das várias ciências.
Convém exemplificar. A segunda questão compreende, entre outras, a unificação das leis da física e das leis da biologia, das leis das ciências da natureza e das lei das ciências da sociedade pela unificação da psicologia e da biologia, da psicologia e da sociologia. Compreende a primeira questão, entre outras, as seguintes: a unificação das leis da mecânica e da electrodinâmica (como se sabe obra de Einstein), a generalização do princípio de relatividade da mecânica clássica (obra também do físico alemão) e depois, ainda pelo mesmo, a generalização do princípio de relatividade restrita e também a construção maxwelliana da teoria electro-magnética da luz, a unificação dos dois tipos de leis físicas: daquelas para que a ordem do tempo tem decisiva importância com as que são válidas mesmo quando a ordem do tempo é reversível.
A obra de Einstein em nossos dias, como pouco antes a de Clerck Maxwell, como a de Newton no século XVII, é exemplo luminoso do esforço de unificação e generalização das leis, tarefa essencial para a unificação da ciência.
Num estudo publicado não há ainda muitos anos, Einstein analisou o tema. Procurou justamente mostrar por que caminhos enveredou o espírito humano para chegar a uma base conceptual da física, logicamente tão unida quanto possível. Não é isso precisamente o que aqui se quer apontar, mas o que torna possível para o conjunto da ciência a unificação de descrições «complementares», isto é, daquelas descrições que nos permitem representar certos aspectos dos fenómenos estudados mas não a totalidade dos aspectos desses fenómenos, e do que torna possível o ordenamento das leis segundo a sua complexidade e extensão, dentro do domínio de cada uma das ciências e do conjunto da Ciência.
O que torna possível uma tal unificação é, por um lado, o facto de o cientista acreditar que a natureza
«é um sistema extremamente coerente cuja estrutura pode ser expressa em leis muito simples e, por consequência, muito gerais»,
e, por outro lado, a própria natureza do edifício científico: aquilo a que Einstein chamou a «estrutura estratificada do sistema».
É este um ponto decisivo do problema.
Através da luta eterna do espírito inventivo do homem para chegar a uma compreensão mais perfeita das leis que «governam» os fenómenos - disse Einstein no livro famoso que escreveu em colaboração com Leopold Infeld (18) - numerosas são as tentativas do pensamento humano para encontrar a conexão entre o mundo dos fenómenos e o mundo das ideias, ideias que correspondam à realidade do nosso mundo.
O objectivo da ciência é a compreensão e a ligação mais completa possível das impressões dos sentidos em toda a sua multiplicidade. A este fim pretendem os cientistas chegar com o emprego de um mínimo de «conceitos primários», i. e., ligados directa ou intuitivamente a impressões dos sentidos, e de relações. Nisto consiste, segundo Einstein, a procura de toda a possível unidade lógica da representação do mundo.
Nos seus primeiros estádios de desenvolvimento, a ciência pouco mais possui do que o que é próprio do pensar comum. Tal nível, porém, não satisfaz o espírito científico. E isto precisamente porque o conjunto de conceitos e relações assim obtido carece por completo da necessária unidade lógica. Falta-lhe aquilo a que Einstein também chamou a simplicidade lógica dos alicerces, condição indispensável de um pensar científico. Para pôr termo a esta deficiência, criam os cientistas um sistema mais pobre em conceitos e relações do que o pensamento comum e que tenha os «conceitos primários» e as relações da «primeira camada» como relações e conceitos derivados logicamente. Devido ao facto destes conceitos da «segunda camada» já não estarem directamente ligados a complexos de «dados sensoriais» (se bem que seja erróneo supor-se a sua inteira independência), este novo «sistema secundário» possui uma maior unidade do que o primeiro.
Esforço posterior para se chegar à referida unidade lógica impele à construção de um «sistema terciário» de relações e conceitos, menos ricos do que os anteriores, e de que se deduzem os conceitos e relações da «camada secundária» e daí, indirectamente, os da «primária». Assim prosseguindo, conseguem-se formar sistemas cada vez com maior unidade e pobreza de conceitos de base lógica, compatíveis ao mesmo tempo com a experiência. Se com este esforço continuado de gerações se chegará a atingir um sistema definitivo, é coisa que se não sabe. Mas mesmo duvidando, os cientistas mostram-se animados pela esperança de que a suprema meta é alcançável. O essencial, porém, é o esforço ininterrupto realizado para apresentar a multiplicidade de proposições e conceitos próximos das impressões dos sentidos, i. e., dos sensa, como logicamente derivada de uma base o mais reduzida possível de conceitos e relações fundamentais, livremente elegíveis.
O conjunto das «camadas» de que se falou corresponde aos progressos particulares realizados sucessivamente na luta pela unidade de base através da história da ciência. Sob o ponto de vista da meta final a atingir - disse ainda Einstein concluindo o seu pensamento - as «camadas» intermédias têm significação apenas temporária e desaparecem no fim como se tivessem sido destituídas de importância. Mas para a ciência de cada momento histórico estas «camadas», que não estão de modo algum claramente delimitadas, representam resultados parciais problemáticos que reciprocamente se apoiam e reciprocamente se ameaçam.
É assim o Universo da Ciência: construído pela inteligência a partir da realidade que se busca tornar inteligível, variável de época para época, sofrendo permanentes modificações, sujeito a contínuos ampliamentos. E nesse consecutivo arranjo de quadros, em que a natureza estratificada do edifício desempenha, como Einstein mostrou, importante papel, reside a tarefa essencial da actividade científica e uma das dificuldades maiores a superar para a unificação da ciência: o reajustamento continuado de teorias e experiências, a formulação de novas leis em que os factos recentemente descobertos se exprimam, a fusão de leis até então tidas por contraditórias, a
«perfeita adequação das leis umas às outras até à visão unitária do universo das representações».
E) UNIDADE DO CONHECIMENTO
Sob outro ângulo pode ser, todavia, considerada a unidade da ciência. Se esta envolve a existência de uma linguagem unificada, como alguns pretendem, a unificação das leis e a questão do método, de uma metodologia comum aos vários ramos em que se particularizou o processo do saber, a unidade do método e a unidade das leis, bem como a unidade da linguagem, implicam, por seu turno, a unidade do conhecimento.
Afigura-se necessário acentuar isto. Quer a análise da unidade científica quer a da unidade das leis, quer ainda a da unidade do método, se bem que de importância incontestável - e incontestada - não são, todavia, por si só bastantes. Há que considerar a unidade do conhecimento. É aqui que convém insistir.
Posto em face da natureza que pretende conhecer para a dominar e a que no fim de contas pertence, tem o homem manifestado pelas mais diversas formas a sua energia, desde a primitiva utilização da pedra bruta ou do ramo de árvore que empunha como prolongamento do seu próprio corpo às mais ricas e prodigiosamente complexas formas de pensamento. Ciência e filosofia, técnica, mitologia, religião e arte, no fundo nada mais são do que respostas várias a uma mesma necessidade fundamental: dominar material e intelectualmente as forças da natureza e as suas próprias forças humanas.
Assim, desde o início, a unidade do conhecimento se evidencia. As formas diversas de que se reveste têm a dar-lhes coesão um objectivo comum. E não apenas isto. Todas têm a mesma raiz: a actividade social considerada como uma totalidade, a unidade do sujeito humano colectivo e da natureza.
É um facto, afirma-se algures, que o homem se situa numa dada escala do universo, com um dado organismo, determinadas relações imediatas, certas determinações mecânicas, biológicas, etc.. Esta situação objectiva, disse-se, determina o ponto de partida concreto do conhecimento e da acção.
«O primeiro sentido da prática social é, portanto, a interacção do homem e da natureza: o homem, ser da natureza, e actuando sobre ela sem que por isso se isole ou se evada da interdependência universal. [...] A actividade prática social, luta do homem e da natureza, é determinação criadora. O homem humaniza a natureza humanizando-se. Cria as condições de satisfação dos seus desejos - e neste esforço cria necessidades e desejos humanos que retornam à natureza para se satisfazer. Neste nível, a actividade prática compreende as relações complexas dos homens entre eles e consigo próprios».
É neste estádio de desenvolvimento, e como consequência destas relações, que o homem cria as suas múltiplas manifestações do pensamento.
Numa primeira fase, distinguira-se do animal pelo trabalho simples: pela produção e utilização do fogo e pelo fabrico de utensílios. Depois, pelo trabalho social, consequência do trabalho simples e do pensamento que começava despertando, o homem afirmara a sua realidade própria. Dera nascimento, primeiro a umas, depois a outras das formas de actividade de natureza mais complexa do que as que primitivamente esboçara. E à medida justamente em que caminha neste sentido, vai tornando possível, a par de outros motivos, uma divisão do trabalho social:
«A divisão do trabalho - disseram-no um dia - só se tornou uma realidade a partir do momento em que a separação do trabalho material e intelectual aconteceu. Desde esse instante, a consciência pôde realmente parecer algo mais do que a consciência do mundo real e da acção sobre esse mundo. Logo que a consciência começou realmente a conceber alguma coisa, sem que essa alguma coisa fosse uma verdadeira representação, encontrou-se pronta a libertar-se das conexões com o mundo e a tornar-se uma teoria pura»,
separada da acção concreta quotidiana. É esta divisão social do trabalho que mais tarde virá a reflectir-se na distinção clássica de actividades práticas e conhecimento teórico - distinção tão perigosa para a unidade da ciência - que a estrutura esclavagista de Atenas - teorizada por Platão e Aristóteles (19) - consolida, o mundo romano mantém e a modernidade herdaria dos tempos ditos «medievos».
A esta primeira divisão, cuja origem vamos encontrar nos antagonismos sociais do antigo oriente e depois da Grécia, vieram juntar-se as diferenciações resultantes da própria extensão e complexidade do objecto de análise: a natureza e a natureza humana.
Os pormenores deste vasto processo em que não só a natureza é compartimentada em «zonas» diversas consoante as várias categorias dos fenómenos, mas em que o próprio ser humano é destacado da natureza (de que o «separa» o seu pensamento (20) e a que o une o trabalho de suas mãos), são conhecidos. Se se alude a ele, foi apenas para recordar coisas que se afigura não poderem ser esquecidas ao considerar-se o problema da unidade da ciência. Mal andam, talvez, aqueles que ao cuidar deste aspecto da questão não tomam em conta o facto de que se o conhecimento hoje se encontra fragmentado, dividido em domínios por vezes julgados contraditórios e por vezes até tidos como incompatíveis, se deve isso não à incompatibilidade dos vários sectores do saber - há uma unidade incontestável do conhecimento fundada tanto na unidade do real (de que a unidade da vida mental é um aspecto) como na unidade do conhecimento e das demais regiões do real que o conjunto da actividade humana fundamenta - mas a razões quer de natureza histórica (como os antagonismos sociais da antiguidade causadores do tão discutido divórcio do cérebro que pensa e da mão que executa) quer ainda a razões de necessidade e comodidade do trabalho. Sendo tão vasto o objecto de estudo e tão premente a necessidade de o encarar nos seus mais variados aspectos, necessariamente os homens parcelariam as suas actividades. E nisso não há que ver inconveniente. Os perigos de um. tal parcelamento revelam-se apenas a partir do instante em que, isolados uns dos outros, os cientistas que se ocupam de determinada categoria de fenómenos perdem de vista os motivos reais de uma tal diferenciação de actividades, quer tomando a parte pelo todo, quer não tendo em conta que os seus trabalhos e investigações são somente uma parcela do vasto conjunto de investigações e trabalhos sobre o processo universal que é uno e cujo parcelamento apenas dadas circunstâncias de natureza histórico-social ou conveniências de repartição de trabalho, justificam. Escusado é quase dizer que alguns dos traços característicos da nossa civilização, muitos deles vindos já dos tempos antigos, tornaram possível que tal acontecesse e que tal continue acontecendo. Os excessos do individualismo, ainda hoje tão acentuados, são um desses traços; a divisão social do trabalho que sucedeu ao desaparecer da economia artesã, dissociando as actividades, primeiro na manufactura, depois na grande indústria, é outro.
Mas nem sempre é deste aspecto que se cuida. Quando muitas vezes se fala de unidade da ciência, entende-se por isto a organização num todo dos resultados obtidos pela ciência. Isto é, de facto, um problema que não pode ser descurado. Mas não é o único - nem talvez o principal. Há também um sentido humano e cultural da unidade da ciência (21). Visto a esta luz, já não é a unidade da ciência um problema do ordenamento dos resultados obtidos, mas da forma como estabelecer sólidas conexões, como unificar os esforços para atingir os resultados. Considerada por este lado, a unidade da ciência é um problema que transcende em importância a questão de carácter mais técnico da unificação dos resultados das várias ciências (22).
Procurar conseguir uma unidade da linguagem científica, seja através do logicismo, do fisicalismo ou de uma ampliação do aparelho matemático, é tarefa admirável. E os estudos feitos nesse sentido não ficarão certamente perdidos. E perdidos não serão também os esforços para a criação de uma metodologia comum às várias zonas do saber. Mas o problema da unidade do conhecimento, questão mais vasta ainda do que a da unidade da ciência e de que esta é tão-só um capítulo, mas capítulo de importância máxima, há que considerá-lo, ainda, por outros prismas. Há, em primeiro lugar, que atentar no seguinte: na própria unidade dos problemas, na correlação dos assuntos. Qualquer que seja o domínio em que se investigue, sempre o cientista se encontra a braços com questões em que não pensara sequer tocar e que a muitos respeitos estão para além do campo estricto da sua especialidade. Os problemas, releve-se a imagem já banal, são de facto como as cerejas: puxa-se um e logo os outros vêm atrás. Já o nosso D. Francisco Manuel de Melo escrevera:
«Quem com bom juízo considere esta máquina das coisas, as verá tão semelhantes, atadas e dependentes umas das outras, que lhe não parecerão muitas, mas uma só.»
Como diria tolamente qualquer Monsieur de La Palice,
«tudo se liga com tudo... e reciprocamente».
Tudo de facto se prende, se relaciona e encadeia. E isto não apenas em cada momento histórico, mas na própria sucessão dos momentos históricos. Nesta dupla unidade dos problemas assenta, por um lado, a unidade do conhecimento. Mas, de outra parte, há que considerá-la a partir dos seus próprios fundamentos. E estes constituem-no a unidade da razão humana, a actividade social encarada como uma totalidade: aquilo a que em grego se chamou a πϝάξις.
Mais do que uma questão de linguagem ou de método ou de ordenação dos conhecimentos obtidos, a unidade da ciência, no seu aspecto prático, é essencialmente um problema de organização do trabalho científico - o que evidentemente tem implicações que vão para além do âmbito restrito da ciência. Mas isso é já outro ponto.
O primeiro passo para a unificação da ciência, para a superação da sua compartimentagem, é o reconhecimento das raízes sociais e da função social do movimento científico.
Nesta ordem de ideias, várias são as dificuldades a vencer, para que a unidade da ciência possa ser alcançada.
Há, em primeiro lugar, que superar os antagonismos e contrastes que tornaram possível e mantêm a rígida separação da teoria e a da prática científicas. Na sua unidade reside precisamente a acção criadora: não se identificando, ambas se excedem reciprocamente. Foi neste sentido que um autor pôde dizer:
«a unidade da ideia teórica (o conhecimento) e da prática é justamente a unidade na teoria do conhecimento».
Mas quem diz unidade da teoria e da prática científica diz unificação das numerosas actividades em que foi repartido o processo do saber, diz unificação dessas actividades consideradas como um todo.
________________ NOTAS:
(1) Para uma análise mais pormenorizada do problema, veja-se: Magalhães Vilhena, Unidade da Ciência, Coimbra, 1941, pp. 73-75. [NOTA DO EDITOR] Não tivemos acesso a esta obra do autor, pelo que resolvemos fazer respresentar esta sua linha de investigação pelo capítulo que ele próprio lhe dedica (capítulo XXIII, ponto 5) no seu Pequeno Manual de Filosofia, que teve uma primeira edição em 1942. A 4.ª edição, que aqui utilizamos (Sá da Costa, Lisboa) é de 1974. Este Manual (que, com as reedições, deixou de ser “pequeno”) teve alguma influência clandestina na formação inteletual de várias gerações de inteletuais democratas, inclusivamente nas Forças Armadas.
(2) cf. Max Planck, The Universe in the Light of Modern Physics, Londres, 1937, p. 64.
(3) Isaac Newton, Opticks, 2.ª edição, pp. 375-376.
(4) J. D. Bernal, The Structure of Matter, in Modern Quarterly, vol. II, n.º 3, Londres, 1939.
(5) Pelo que respeita a este ponto, pode ver-se, por exemplo, Tobias Dantzig, Le Nombre, langage de Ia science, trad., Paris, 1931.
(6) D. J. Struik, Concerning Mathematics, in Science and Society, vol. I, New York, 1936.
(7) Louis Couturat, Les Principes des Mathématiques, Paris, p. 208.
(8) Claro está que é ponto fundamental a discutir se as matemáticas são apenas uma linguagem, i. e., se nelas não há algo mais do que uma forma verbal e se os enunciados da matemática se deduzem ou podem ser deduzidos dos princípios lógicos com auxílio de métodos de fundamentação próprios da lógica. Sobre isto, veja-se o nosso volume Unidade da Ciência, Coimbra, 1941, pp. 42 e segs..
(9) Sobre o neopositivismo ou empirismo lógico pode ler-se em português um belo e penetrante estudo de Delfim Santos, Situação Valorativa do Positivismo, Berlim, 1938.
(10) Cf. Abel Rey, De Ia pensée primitive à Ia pensée actuelle, in L'Outillage Mental, Encyclopédie Française, vol. 1, Paris, 197, pp. 18-3 a 18-4.
(11) Bertrand Russell, On the Importance of Logical Form, in Encyclopedia of Unified Science, vol. 1, Chicago, 1937, p. 41.
(12) Rudolf Carnap, Logical Foundations of the Unity of Science, in vol. cit., p. 45.
(13) Cf. Bertrand Russell, Introduction to Mathematical Philosophy, 1919, cap. XVIII. Há tradução francesa: Introduction à Ia philosophie mathématique. Paris, 1928.
(14) Principia Mathematica. vol. 1, 1925, pp. XVII-XVIII.
(15) Idem.
(16) Bertrand Russell, Our Knowledge of the External World as a Field for Scientific Method in Philosophy. Londres, 1926, p. 7.
(17) Cf. Paul Langevin, in Science et Loi, Cinquième Semaine Internationale de Synthése, Paris, 1934. p. 117.
(18) Albert Einstein e Leopold Infeld, L'Evolution des idées en Physique, trad., edição Flammarion, Paris, 1938 - livro fundamental cuja leitura vivamente se recomenda.
(19) Cf. Pierre Maxime Schuhl, Philosophie et machinisme, Paris, 1947, esp. pp. 3 e seg.
(20) Cf. Vieira de Almeida: «Toute connaissance est l'indice do ce fait: que l'homme agit en spectateur d'un univers d'où il semble s'evader par le connaître» (Opvscvla Philosophica. in Revista da Faculdade de Letras, t. IV, n.os 1 e 2, Lisboa, 1937, p. 13).
(21) Cf. John Dewey, Unity of Science as a Social Problem, in International Encyclopedia of Unified Science, vol. 1, n.º 1, Chicago, 1938, p. 32.
(22) Idem, p. 33.
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