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Bebel
Sampaio Bruno (*) Afirmei-lhe, caro amigo, que a provável vitória franco-russa teria como consequência, na humanidade geral, uma religiosização aderente, segundo a misticidade eslava; na fracção alemã da espécie civilizada, redundaria numa assinativa crise social, análoga à exibida com os sucessos trágicos da Comuna de Paris, mas revestindo aspectos incomparavelmente mais vastos, pela extensão e pela intenção.
Havendo-me, implicitamente, congratulado com as duas previsões, inteiramente com a primeira, parcelarmente, pelo sentido, com a segunda, careço de justificar, explicativamente, uma e outra.
A um homem de progresso parece contraditório o regozijo por um incremento de religiosidade. O reparo seria de molde a produzir-se, se o misticismo eslavo se caracterizasse como o espanhol. Por um alheamento desdenhoso das condições terrenas. Pelo contrário, porém, ele é o transporte aos domínios activos de uma fé altruísta; ele é a moralização, a positivação da caridade. Assim, em vez de abater os estímulos pela inércia resignada, pelo desconsolo que deixa ao mal o campo livre, refugiando-se na esperança extraterrestre, ele converge no sentido de fraternizar as relações, estabelecer constitucionalistamente a justiça.
É um traço da raça, que se apercebe mesmo nas aberrações dessa energia psíquica. Manifesta-se até onde o tradicionalismo, recuperando-se, faz, degenerativamente, prevaricar os propósitos de que, com lealdade ingénua, se procedeu. Aflora nas manifestações cosmopolitas, nas intervenções internacionalistas do Estado russo. Por exemplo na Santa Aliança, execrável nas suas consequências. Mesmo então. Até aí. Tal a força lídima da essência do movimento.
Com efeito, por fim, foi o produto necessário do desequilíbrio místico de Alexandre I esse facto da Santa Aliança, se bem que, na sua humilhação dos poderes da terra perante a majestade do Verbo redentor, inicialmente germinasse no coração do rei da Prússia, tocado de pânico pelas jornadas apocalípticas de Lutzen, de Dresda, de Bautzen. Todavia, amadureceu no cérebro nevoento do moscovita, conforme se depreende da mesma conversa havida a este respeito com o bispo evangélico prussiano, o Dr. Eylert, em 1818.
Gasta a sua generosa alma por todas as emoções; sentindo, no abortamento sucessivo dos seus vastos planos, o ludíbrio do destino irónico dos grandes espíritos que o acidente fez falhar; perseguido pelo grito interior de uma consciência exigentíssima, que lhe criava um injusto remorso, Alexandre penetrou-se da necessidade de fazer as pazes com Deus, lançando-se no bem com uma ,fúria de arrependimento e dando à sua bela inteligência enganada, mas sedenta e alta, na esfera sem limites das afeições religiosas uma vasta compensação.
Entendendo a fundo os abusos que excitavam o descontentamento das nações, o imperador esperou que, durante o espaço de uma longa paz, cuja necessidade se fazia geralmente sentir, os govemos europeus, reconhecendo a urgência de empreender as reformas reclamadas pelas condições dos tempos, de tal se viessem seriamente a ocupar. Para atingir este alvo, carecia-se de uma tranquilidade profunda; e, como o tumultar dos acontecimentos, que se haviam sucedido durante perto de trinta anos, a toda a gente parecia haverem em muito enfraquecido as antigas ideias de ordem e subordinação, o russo pensou reavivar o extinto critério, por um apelo solene à religião.
Fora o caso do atavismo dos primeiros princípios revolucionários, para que, pelo céptico ensino de Catarina, encontrara na alma do seu principesco aluno o terreno idonearnente afeiçoado o seu preceptor César Laharpe. Era o que levava Napoleão, como o vemos do Memorial de Santa Helena, a inscrever o imperador moscovita sob a sua sintomática etiqueta favorita de ideologia. Isto produziu aqui resultados em extremo benéficos, visto que a vaga filantropia de Madame de Krudener soprou as chamas bruxuleantes mas avivadas por esse sopro socialista que tonifica a moral cristã. De modo que, ainda mesmo que a origem da ideia da Santa Aliança se não fundamentasse na sugestão desta mulher notável, forçoso é convir, com Schnitzler, na parte que ela teve na redacção do acto destinado a pôr semelhante ideia em prática.
A influência da singular propagandista, inevitável desde que a crise do incêndio de Moscovo precipitara o, nobremente enfermo, espírito do imperador nas consolações da fé, bálsamo perene, exerceu-se num sentido humanamente útil. Acompanhou a causa da civilização, pois que, não podendo negar-se esse domínio, desde que se teve sob o exame as afirmativas de Empytaz, quaisquer que fossem as subsequentes flutuações do espírito do monarca, no momento inicial se consignaram princípios que o obrigaram a consentir em factos de capital transcendência revolucionária. Assim o estabelecimento dessa célebre espécie de areópago anfictiónico em que a simples pluralidade dos sufrágios pronunciaria, na corrente utópica do abade de Saint.Pierre, sobre as medidas a tomar, em comum, para a manutenção da tranquilidade geral.
Foi urna reivindicação da Revolução Francesa; a aplicação aos negócios internacionais da Declaração dos direitos do homem; o empolgamento, pelas ideias novas, dos soberanos, despedidos para o desconhecido. Uma ideia que já se supôs honrosa para Lafayette, brotou, depois de 1814, de um cérebro russo; destarte se inaugurou na política geral a era dos princípios. Todos o sentiram; e Metternich, o representante da velha diplomacia tortuosa, sem fé nem lei, precipitou-se na batalha, a reconquistar o autocrata infiel.
Com efeito, a obra deste, como o distinguiu o talento de Proudhon, equivalia a nada menos do que a um juramento à Revolução, prestado na presença da Santíssima Trindade.
Posto isto, toda a reacção ulterior vinha viciada; inquinara-lhe, à nascença, o sangue o vírus demagógico. Assim se explica esse longo período de reivindicações nacionais, continuamente vitoriosas pelas concessões, morosas mas indeclináveis, do regímen parlamentar e da liberdade civil aos povos em fermentação.
Nos mais adiantados em cultura as exigências foram crescendo; e então naquele onde a tradição iconoclasta estava proximamente viva, nem mesmo a contemporização orleanista bastou.
Uma simples intriga constitucional, em torno da magna questão do sufrágio, serviu a reabilitar a doutrina proscrita, espalhando no fumegante terreno das barricadas os destroços do trono burguês.
Tarde ou cedo, o sólio, outramente sólido, dos Romanov voará pedaços; e não contribuirá, pouco, para esse civilizante efeito, precisamente esse misticismo em que eles se estribam, do qual o seu alto representante extraiu a interferência da Rússia nos negócios, interiores mesmo, do Ocidente, pela Santa Aliança e que, sem embargo, mina surdamente, a todo o instante, a serenidade majestática, como se vê pelo proselitismo dissidente dos cismáticos autonomistas do raskol.
Mas a tendência do misticismo russo não fica acanhadamente local, ainda; desborda a fronteira; a religiosidade russa é ao mesmo tempo humanista, pelo género, universalista, pelo espírito.
Humanista, demonstra-o o materialismo da intelliguentia (éo nome que se dá na Rússia aos indivíduos cultos e, por extensão, ao sistema das ideias civilizantes, revolucionárias). O critério de positividade não conduz ali, porém, ao cepticismo indiferentista que o macula, na prática social, entre os ocidentais. Nunca a palavra nobre de Feuerbach, segundo a qual os materialistas pela ideia sejam os idealistas pelo facto, teve uma compreensividade tão vasta. Abarca mais do que uma nacionalidade inteira; abarca toda uma raça. O maravilhoso movimento do niilismo, martirológio de ateus, é demasiado recente para que seja preciso recorrer a difusas comprovações. Não bastaria até citar-lhe mais do que o prelúdio pacífico, nesse movimento admirável que se denominou a descida ao povo.
Indo, na verdade, em todas as direcções, para evangelizar as massas, chamando todas as almas à grande obra da redenção da pátria e do género humano, os novos apóstolos deixavam a ociosidade, o luxo, os prazeres e partiam-se a viver a dura vida do aldeão edo operário, aceitando todas as humilhações, todos os sofrimentos, para trabalhar no santo alvo da regeneração moral e social.
Pareceu que se assistia à eclosão de uma religião nova, não só a melhor como a mais humana que jamais houvesse existido. Foi o paroxismo de uma crise sentimental permanente. Ele define o tom, simultaneamente místico e.positivo, da raça. Ele mostra o feitio humanista da sua religiosidade intrínseca. O moscovita que usa do criptónimo de Stepniak caracteriza-o perfeitamente nestes termos:
«Ao apelo dos iniciadores, as almas levantam-se na vergonha e na dor da sua vida passada. Abandona-se a casa, as riquezas, as honras, a familia; cada um se lança no movimento com uma alegria e um entusiasmo, uma confiança como se não experimenta senão uma vez na vida, como se não torna a encontrar quando se perdeu. Já não é um movimento político; aquilo tem mais o carácter contagioso e absorvente de uma revolução religiosa. Porque o propósito não é somente o de atingir um fim prático, tem-se um sentimento profundo e íntimo do dever, uma aspiração individual para a perfeição moral.»
Assim intensivo, esse misticismo é igualmente extensivo. Historicamente, arrebata já na sua engrenagem os ramos governativamente independentes da raça. O considerável movimento sérvio, bem próximo do triunfo, e que produziu, ao lado dos Marcowitch, tantos apóstolos eloquentes, tantos militantes e mártires heróicos, participa da mesma ideia social. Ora, haurida, parte na tradição revolucionária francesa, Malon constata que parte foi também directamente bebida nas fontes russas, em Petersburgo mesmo. Mas não se limita o messianismo à já imensamente vasta proporção eslava; pretende absorver até ahumanidade inteira. No aspecto restritamente político, de imposição nacionalista, com o tipo reaccionário, todos lhe sabem da existência, sob a etiqueta do pan-eslavismo. Na categoria superior do revolucionarismo, além da participação individualista das personalidades eminentes russas no movimento ocidental, ele couraça as fúrias pandestrutivas do anarquismo e espalha o terror na civilização europeio-americana. Dessarte, concretam-se as prédicas fulminantes de Bakunine, ditador em Dresda, cantonalista para Cartagena.
A vitória franco-russa importará, na Alemanha, um anabaptismo munsteriano em largo, porque o descrédito do Império, fraccionado, rompendo a malha férrea da disciplina prussiana, facultará as condições idóneas para a reivindicação armada dos ideais sociais adiados, pela força maior das presentes circunstâncias. Não será acusar o patriotismo da democracia alemã; por meias palavras, ela o diz desde agora. Não aguarda, para sair, de vez e francamente, a campo, senão o êxito da colossal peleja. Porventura, se Ihe prefigura um desastre; porque não se acredita que pense que, num triunfo, lhe seja lícito contra-arrestar a glória marcial dos exércitos, as energias da soberania assim avolumada e radicada.
Com efeito, aos olhos do sociólogo, o grande acontecimento moderno na Alemanha não está nas vitórias militares dos seus governos, as quais não passam de acidentes sem alcance estrutural, sem corolários próprios nos destinos gerais da humanidade. Reside na criação do partido socialista; isto é, no advento, por ele, da massa nacional à vida pública consciente, de que por séculos nem sequer se deu conta.
Quase à nossa época corresponde esse sucesso memorável na história da civilização do povo alemão, a saber: a primeira aparição do socialismo na Alemanha debaixo da forma exigida pelas circunstâncias e condições desta nação. Não foi nenhum alemão de pura raça quem deu forma e corpo a esta nova tendência num povo que o hostil, impaciente Leixner, que não tem papas na língua, taxa de submisso, servil e falto de iniciativa, por ter vivido, havia largos séculos, governado por inumeráveis tiranetes e logo depois sob a tutela de governos centralizadores, pequenos e grandes, sempre, porém, despóticos.
O primeiro chefe da tendência socialista na Alemanha foi Fernando Lassalle (1825-1864), filho de pais judeus, homem de grandes dotes e de vasto saber, idolatrado pelas associacões operárias das localidades onde esta classe era mais inteligente e que Lassalle soube aumentar com extraordinária rapidez, graças à sua inteligência superior e génio industrial e ao seu conhecimento da gente com quem tratava.
O novo movimento dirigia-se, no fundo, se bem que não abertamente, contra o Estado, as religiões, o matrimónio e as classes poderosas. Para agrupar e organizar a classe obreira e dirigi-la a uma acção comum, em sentido avançado, contra o espírito feudal e de castas dominante em toda a nacão, era mister atacar o governo de uma maneira subtil, mas legal e permanente. E para coligar o povo neste sentido, o mesmo Leixner, cuja dissimulada origem também israelita transparece na repugnância que manifesta, a todo o passo, pela monogamia, julga, ele, que era necessário excitar o seu entusiasmo, difícil e tardio, com a apetitosa isca das questões e contendas religiosas e da nova guerra contra o matrimónio e as classes ricas.
Varado num duelo galante, caiu Lassalle; todavia, o movimento estava iniciado. Outros chefes se colocaram à sua frente; e, ainda que, ao começo, lenta e fleumaticamente, seguiu o seu curso, estendendo-se sem cessar.
Hoje é um potentado formidável, manobrando com o rigor disciplinar de uma hoste. Arrancou a máscara, sob que se encobrira na timidez. Venceu, pelo sacrifício, as monstruosas leis de excepção com que Bismarck tentou destruí-lo. Dispõe dos círculos eleitorais de cidades mercantis como Hamburgo, políticas como a mesma capital do Império. Os seus votantes registam-se não por centenas de milhares, mas por milhões. Eles dirigern-se com um espantoso espírito de conjunto, sob a direcção de cabecilhas, prestigiosos pelo talento e pelo sacrifício. Destes, os mais notáveis são Liebknecht e Bebel. O primeiro, pela origem e pela cultura, mais idealista e humanitário; o segundo, prático, contracto, no tipo especialista e restrito que o socialismo tomou depois da insurreição de Junho. Antigo operário, já do período militante de 1848, Bebel começara, como, igualmente, o seu distinto companheiro, se bem que mais anonimamente e em companhia menos ilustre. Ambos se referem doutrinalmente de Karl Marx, que é o mestre incontestado de todo o movimento, ainda nas suas divergências episódicas.
Como Lassalle, Marx é também de origem judaica, filho ou neto, não me ocorre, de um rabino. E é curioso como a investida temerosa que ameaça o capitalismo procede da raça, conspurcada, na opinião, pelo pretendido culto exclusivo do dinheiro.
As perseguições históricas, encerrando-lhe a actividade no, só permitido, modo único do mútuo, puderam transformar um povo originariamente agrícola numa gente de tráfico e usura, conforme o estabeleceu Michelet. Confrontando Jules Baissac as prescrições atrozes do Êxodo e do Deuteronómio, contra as infracções religiosas e as suas tolerâncias a favor de crimes naturais, insistiu no processo que estatui que, se um homern ferir o seu escravo ou a sua serva de tal sorte que eles possam sobreviver somente um ou dois dias, esse homem não será punido, porque os comprou com o seu dinheiro. E conclui aquele que, primariamente, vê no processo formativo das divindades a antecedência do telurismo sobre o siderismo (o que, à face do Veda, é mais do que contestável) conclui, galhofando, que «como se vê, Jeová era já cheio de condescendências para com o deus Mamão, destinado a suplantá-lo».
Como quer que seja, pelo socialismo o judaísmo reabilita-se do capitalismo.
Talvez pelo efeito da curiosa separação que Leixner faz entre judeus e judeus. Na raça israelita diz ele que há dois elementos muito distintos, provavelmente desde a sua origem, graças ao seu isolamento de outras raças; um nobre, inteligente e elevado, que produziu em todas as épocas génios admiráveis que honram a humanidade, e o outro cruel, vingativo, insensível, rapace, cobiçoso, arteiro, falaz, execrável e rasteiro, que explica o singular fenómeno do desprezo e ódio que manifestaram a esta raça todos os povos antigos e modernos com os quais os judeus hão tido e têm contacto.
Salvo melhor juízo, esta classificação tem o defeito de provar de mais. Porque a divisão de perversos e honrados, estúpidos e finos, parece ser geral entre todos os povos e em todas as gentes. Mitiga o azedume Leixner, asseverando que aquele maligno carácter desaparece, segundo o prova a experiência moderna, ali onde as leis dão a essa raça direitos iguais aos dernais habitantes, quando, como sucede, no nosso século, particularmente em França, os mesmos judeus renunciam ao seu isolamento e se fundem, mais ou menos, com a população. Porém, na Alemanha, adita, não se chegou ainda a esta amálgama ou fusão parcial.
A carência da fusão, que se não operou, entre os diversos factores étnicos de um agregado político pode privá-lo, como nos sucedeu a nós, de elementos de proveito e honra, na verdade. Sem sair da aludida França, para ela foi, nos tempos passados, a glória de um Montaigne, que, por sua mãe, Lopes, poderia muito bem haver ficado nosso, caso não fôssemos tão ciosos da pureza do nosso sangue e tão atreitos à integralidade da nossa fé. Para ela é hoje a notoriedade do talento de Mendés, dos Mendes do consistório, de prisco refúgio, de Bordéus, esse erótico Sr. Catulo, com o qual, nos meus primeiros dias de Paris, alguns jornais daí, mordidos não sei por que amiga tarântula, me atribuíram falsamente as vantagens de relações, se orgulhantes, todavia não existentes, no meu justo anonimato, naturalmente.
Mas, onde a fusão se não operou também, precisamente nessa Atemanha, furiosa de anti-semitismo, como a Rússia, é que a acção judaica, por Lassalle e Marx, se exerceu no corpo nacional, subordinando e orientando as camadas profundas da população.
Deixando, por agora, o tema que não veio senão incidentalmente ao caso, cumpre recordar que o nome de Karl Marx se tornou bruscamente conhecido do grande público europeu, quando, começando a amortecer-se o terror de que estremeceram, se sobressaltaram as almas, ao chamejar dos incêndios da Comuna de Paris, se tratou de indagar dos antecedentes históricos que haviam arremessado à peleja as multidões operárias federadas.
Relembrou então a imprensa conservadora que havia sido o refugiado de Londres o fomentador da Internacional, utopia formidável cuja estrutura firmara na codificação da lei orgânica de um estatuto sábio. E, com o andar dos tempos, cremos que chegou mesmo à suspeita de que o agitador acumulava as suas funções de promover a desordem com as qualidades de um pensamento filosófico, elevado e original.
Mas correram longos anos primeiro que a ciência oficial demoradamente se dispusesse a ocupar-se das especulações críticas do alemão estranho. Finalmente, no Colégio de França o conspícuo Sr. Leroy-Beaulieu não se dedignou de perorar sobre o novo socialismo, chamado colectivista, e cuja sistematização pertence ao internacionalista odiado. Esses discursos foram reunidos num volume, péssimo no critério que o domina, péssimo nos reparos técnicos que pretende opor à critica marxiana, mas que contém, aqui e ali, em que pese ao seu contraditor Jules Guesde, Saint-Just barbudo, observações, de detalhe, judiciosas e algumas com um, até, não ponderado alcance.
Entre nós, as doutrinas de Marx são quase desconhecidas e o livro fundamental do socialista presta-se dificilmente aos nossos entendimentos, pelo carácter aridamente abstracto que possui, agravado pela germânica falta de ordem na dedução lógica das matérias.
Com efeito, depois da grande efervescência política e social, exacerbada pela revolução de Fevereiro de 1848, em largo jeito determinada pelo extraordinário desenvolvimento que em França tomara durante os últimos anos do reinado de Luís Filipe o socialismo, chamado por Engels utópico, para o diferençar do moderno socialismo, ou socialismo científico, não mais até nossos dias se produziu doutrina digna de menção no campo das teorias, sem uma razão lógica, oriundas do mal-estar das sociedades modernas e especialmente das suas classes trabalhadoras. As reclamações operárias circunscreviam-se à área restrita das suas questões de salário e o problema das suas condições parecia teimosamente querer confinar-se no terreno restritco da greve e da associação de resistência, em que a cooperação predispõe para a luta aberta. Nesta zona acanhada se limitara o esforço do operariado inglês e o exemplo dos êxitos das trades britânicas animava os salariados nas suas esperanças, ao mesmo tempo que os afastava de todas as teorias gerais, que em 1848 não os tinham conduzido a resultado algum positivo.
Ninguém se lembrou mais das colónias comunistas de Cabet, das oficinas nacionais de Marie, da organização do trabalho proposta por Louis Blanc; e o crédito gratuito de Proudhon, malferido da polémica com Bastiat, fora dormir um sono de esquecimento, de parceria com o falanstério fourierista e com as práticas cultuais da renovação religiosa que Augusto Comte, para a alta especulação filosófica, viria a trazer da sua, em parte, funesta convivência com Saint-Simon.
Entretanto, a economia política, ciência essencialmente francesa e inglesa, atravessava a fronteira do Reno e instalava-se nas universidades alemãs, onde professores inexperientes, mas chocados da falta de generalidade que encontravam nas suas proposições, forcejavam audaciosamente por lhe rasgar horizontes que os seus criadores nem sequer haviam entrevisto. Deste esforço resultou que, progressivamente divergindo dos lemas clássicos, os professores alemães chegaram, de dedução em dedução, a organizar para o ensino um corpo de doutrina, mais ou menos heterodoxa, nos seus cambiantes infinitos, a que se chama o socialismo de cátedra. Por motivos cuja consideração não pode permitir-se aqui, esta nova heresia económica entrou no conselho dos ministros, orientou a política de Bismarck, em quem a influência do grande agitador Lassalle é evidente aos olhos menos atentos, e encontra-se, mais ou menos, disseminada pelas medidas governativas nos diversos estados europeus, qualquer que seja a forma política por que se rejam.
Do mesmo par e passo, a nova doutrina corria as fileiras da massa trabalhadora e hoje é o seu lema de combate em toda a parte, condensando-se e definindo-se com o nome, já agora consagrado, de colectivismo.
Esta teoria de reorganização social fora primitivamente exposta por Karl Marx e Friedrich Engels num manifesto, datado de Londres, e que tivera pouco curso. Esse manifesto não encontrara ainda o vocábulo idóneo; cognomina-se como do partido comunista. De resto, os marxistas nunca aceitaram de bom grado a designação de colectivismo. Preferem chamar-se comunistas científicos.
Quanto à doutrina, enunciada já no livro de polémica, por Marx escrito contra Proudhon, e que este deixou, decerto não por o desconhecer, sem resposta, parece não ter influído soberanamente na conduta da Internacional (em cujo programa incidiu a acção, pelos franceses, do desvio mutualista proudhoniano) e que se limitou na prática ao fomento da greve, como indirectamente no Creusot. Nem também influiu nos actos da Comuna de Paris, que, pelo particularismo das circunstâncias históricas em que houve de governar, teve de se circunscrever, quase exclusivamente, no terreno meramente político.
Mais tarde, Karl Marx desenvolveu-a no seu célebre livro O Capital, de que, em vida de seu autor, não chegou a aparecer mais que um volume. E um ex-ministro austríaco, Schaeffle, tentou extrair-lhe os corolários de uma prática aplicação. Procurou desenhar-nos as linhas gerais, pelo menos, do arranjo social do Estado colectivista futuro; explicar-nos o seu modo de funcionamento. Marx ficara-se na dialéctica da doutrina, na análise de que emergira o sistema.
A crítica económica do alemão procede de um conceito metafísico geral sobre o universo. Renovando o pensamento de Heractito e na corrente da interpretação hegeliana, Marx frisa-nos o carácter da instabilidade da fenomenologia.
Este conceito, sobre si, não produz mais do que as declamações moralistas que mergulham, no seu último estádio, a actividade na indiferença transcendente, peculiar na essência do génio filosófico da grande família humana a que pertencemos e que tipicamente constitui o budismo.
Nas mãos de Marx frutifica, porque Ihe adita analiticamente a noção de filiação; e o seu esforço crítico consiste em descobrir, pois, o processo de desdobramento dessa fenomenalidade instável, buscando nas condições do estado anterior, pelas próprias energias desse momento, o modo especial do estado subsequente. Assim, precedeu e acompanhou a teoria da evolução nos domínios biológicos, que, teoreticamente, se reduz a isto.
O campo das investigações do filósofo é, porém, particularmente a história e, mesmo aí, em breve se confina na zona especial da economia. A maneira por que nestes terrenos exemplifica a certeza da sua concepção geral assombra, pela argúcia e pelo singular testemunho que a marcha dos sucessos na produção parece conferir-lhe.
A ordem crítica, com que aponta o desdobramento das formas da produção, desde a manufactura domiciliar até ao aparecimento da grande indústria, confirma as presunções; e, sem se inquirir da inopinada revelação do motivo do ganho industrial, por Marx atribuído meramente ao processo que condensou na sua célebre lei do trabalho não pago, afigura-se a todo o leitor independente que a forma do desenvolvimento económico se assemelhará, na sua linha geral, ao estabelecido pelo critico, caso não se entre em exame e debate com considerações de diversa natureza.
Estas exactas observações e belas descobertas atraíram as atenções de todos os pensadores para a obra de Marx, livro fundamental, destes que ilustram período. É, todavia, de uma leitura difícil, escrito irregularmente, ora com uma gravidade difusa, logo com violências de sectário; aqui circunspecto, como lhe cumpre, além com jovialidades indiscretas. Aliás incisivas, como esta definição de preço: «o preço é a amorosa piscadela de olho que ao dinheiro lançam as mercadorias» (pág. 46 da versão francesa de Joseph Roy).
Moroso e árido, o preciso e móbil espírito francês entendeu dever contraí-lo num resumo, conscienciosamente.feito por Gabriel Deville. Vulgarizou-se logo este hábil apanhado; por módicas quatro pesetas o vende em espanhol o prestante Fernando Fé, à carrera de S. Jerónimo. Deville reduziu, aclarou, elagou as notas, onde no texto primitivo se encontra tudo. Desde os acerbos estenderetes infligidos à falsa claridade do ingénuo sofista Bastiat até aos mais impresumíveis informes sobre assuntos a que, só com verbos latinos intraduzíveis, os fellare, os irrumare, dos poetas da decadência, é Iícito aludir (pág. 319).
O trabalho de Marx abre por um exame delicado da ideia de valor; e o seu método, inteiramente dedutivo, torna-o, por vezes, quase inintelígivel, tão extraordinariamente subtil é a sagacidade analítica do seu autor. Espalhado desde logo na primeira tradução francesa, ele desorientou os entendimentos. As réplicas não apareceram senão reservadas, a medo, e de detalhe. Assim Litré contenta-se com pôr à obra a etiqueta de metafísica. Maurice Block e Paul Janet preocupam-se da exactidão de pontos secundários. Recentemente, um dissidente da economia clássica, Laveleye, aventura poucos, mas judiciosos, reparos; e o trabalho mais consciencioso, mais vasto e mais cuidado, de Leroy-Beaulieu, não frisa, a meu parecer, o ponto essencial da contenda.
Todavia, o próprio Karl Marx conheceu o lado vulnerável da sua dialéctica e por um destes movimentos espontâneos de probidade mental deixou-o, se bem que a correr, assinalado numa das suas páginas.
Um dos reparos feitos à obra de Marx por Leroy-Beaulieu parece-nos inteiramente fundado, e é que ela não segue uma ordem regular, lógica e constante no seu desenvolvimento. A abundância de notas, as divagações críticas, históricas e políticas a que o autor se abandona, embaraçam ainda mais o leitor atento, já abalado pelas passagens, que se não justificam, assunto para assunto, de ordem inteiramente diferente.
Todavia, o trabalho de Leroy-Beaulieu ressente-se do mesmo defeito, que complica a pretensão do crítico francês em compendiar no seu exame todas as variedades do colectivismo moderno. Malon enumera nada menos de nove concepções diferentes do colectivismo, que se exibem na ordem seguinte: a) colectivismo enfitêutico, proposto em 1826 por Bernardino Rivadavia, presidente da República Argentina; b) colectivismo industrial, teorizado em 1836 por Constantino Pecqueur; c) colectivismo colinsiano, preconizado, a partir de 1850, por Colins; d) colectivismo internacionalista, que teve por principal propagador César de Paepe; e) colectivismo revolucionário, formado por simples acentuação do precedente; f) colectivismo marxista, diferindo do anterior, em que é mais objectivo; g) colectivismo anarquista, puramente destrutivo das forças governamentais e jurídicas burguesas; h) colectivismo agrário, cuja ideia inicial, na sua forma exclusiva, cabe a James Mill, de que o representante actual mais caracterizado é Henry Georges e que foi aceite integralmente por Alfredo Russel Wallace, parcialmente por Stuart Mill e Herbert Spencer; i) colectivismo reformista, de que o mais ilustre chefe, se não o promotor, é o próprio Malon e que, tendo na devida conta a evolução capitalista, se reivindica do conceito, de senso comum, de que não seja úrgico esperar que o capitalismo acabe de pauperizar o proletariado e de proletarizar a pequena burguesia industrial, comercial e agrícola, para só então depois obrar socialmente.
Quanto a Leroy-Beaulieu, ele perde um tempo infinito na análise de vários socialistas, muito especialmente de Lassalle, que, todavia, não passa de um vulgarizador, por vezes incorrecto, de Karl Marx, que é o primeiro a queixar-se das infidelidades do seu propagandista.
Abandonando toda a questão embrulhada e confusa de derimir a ideia de valor, que Karl Marx distingue em valor de troca e valor de uso, temos que o escritor parte da ideia de que as leis da economia política não têm o carácter irredutível de leis naturais, as mesmas em quaisquer condições sociais, mas sim elas dependem e representam o condicionalismo histórico das épocas em que forarn registadas. Para Karl Marx, esta compreensão vai tão longe que ele empenha-se em assegurar que a lei da população de Malthus não tem carácter algum de generalidade, pelo facto de que cada um dos modos históricos da produção social tem também a sua lei de população própria, lei que se não aplica senão a ele, que passa com ele e não tem por consequência senão um valor histórico (pág. 278-279).
A este ponto de vista chega Marx pela influência do princípio de senso comum que, como disse, antes do evolucionismo (que não é mais do que a sua demonstração, como disse também) Hegel transformou em conceito filosófico. Tudo o que existe no complexo do universo é uma modalidade fugitiva da substância eterna. O fenómeno é transitório; ele precede um diverso e segue outro diferente. Se, pois, na socieclade moderna existem as condições da criação e da distribuição da riqueza tais quais elas se patenteiam, nada nos garante que essas condicões sejam eternas, que elas se não transformem noutras, como as actuais são já a derivação evolutiva das que as precederam historicamente. O exame das condições do trabalho nas sociedades anteriores a esta, com a análise das presentes, conduzir-nos-á, conseguintemente, à compreensão do ulterior modo de ser económico das sociedades humanas.
Nada, quanto a nós, mais justo do que esta maneira de raciocinar, e isto torna a obra de Marx, escrita aliás num ponto de vista realmente metafísico, concorrente e solidária com todos os trabalhos em que a ciência do século, a sociologia, lentamente se esboça.
Com efeito, nas suas mais vastas generalizações, as leis da economia política nada apresentam de definitivo, permanente, estável. O domínio de que se ocupa a ciência reveste aspectos diversos, de tempo para tempo, de povo para povo; portanto, a lei que regula o fenómeno tem de variar consoante o número e a disposição dos elementos que conjuga. Seria o mesmo para as leis físicas, se o mundo material estivesse sujeito às flutuações a que está afeito o mundo moral. E, mesmo na fixidez césmica, a lei nada tem de absoluta, condiciona-se. As leis da economia política são como as leis da astronomia e as leis da física; elas pressupõem uma modalidade social, umas condições do meio económico tais ou tais, sem o que elas não poderão verificar-se, como não se verifica a lei das ondulações sonoras no recipiente da máquina pneumática.
Tanto isto é assim que a economia liberal, vendo no fenómeno da concorrência, subordinado à sua lei da oferta e procura, as condições do desejado equilíbrio social, reagiu sempre contra o regímen do monopólio, que, pela artificial mudança das condições do meio económico, não permitia a essa lei o exercer-se. Depois, e concorrentemente, os fenómenos que a economia estuda são tão complexos que há infinitas probabilidades de que uma lei, mesmo das verificadas para um momento social, seja incompleta, não compreenda senão partes integrantes, deixe de fora parcelas.
Nesta corrente de ideias, Comte não considerou, sobre si, a economia como uma ciência cabal; incluiu-a no conjunto orgânico da sociologia; não a hierarquizou especialmente.
Os factos confirmam as presunções; e a célebre lei da oferta e procura, que apresenta, ao parecer, certa generalidade e que era o grande cavalo-de-batalha dos economistas, acabou por ser interpretada como uma tautologia dialéctica, como não representando senão uma única e mesma coisa, dois diferentes aspectos de um mesmo facto. E isto foi visto por um dos mais façanhudos conservantistas do ensino, por Cairnes, nesse mesmo livro em que, segundo Sofia Raffalovich, exprimiu, com muita sensatez, o perigo do socialismo.
Karl Marx, porém, partindo do ponto de vista enunciado, segue logo a examinar a génese industrial, deixando para depois a análise do facto da simples troca.mercantil, que ele, com razão, desdenha na consideração do aumento do capital social. Ora, estudando o desenvolvimento industrial, depois de abandonar a fase primitiva, em que o produto se gasta pelo próprlo produtor, Marx regista a marcha desse produto, desde que ele passa a ser, na sua tecnologia, aliás exacta, não valor de consumo, mas valor de troca, quer dizer criador de capital.
O desenvolvimento da indústria percorre, ao que Marx extrai do exame histórico, os regímens sucessivos do ofício, da manufactura e da fábrica. Na primeira fase, que, de resto, se confunde sensivelmente com a segunda, o trabalhador possui, ele mesmo, os instrumentos do trabalho e adquire a matéria-prima, que tem de transformar em valor social, exemplo a arte do sapateiro, do funileiro, etc.. Na segunda, continuando a possuir os instrumentos do trabalho, a divisão deste estabeleceu-se já de modo que numa mesma oficina os operarios têm de cooperar para a final execução do produto. Na terceira fase, que é a em que, atrás da Inglaterra, todos vamos entrando, o operário não usufrui mais senão da sua força de trabalho, dos seus braços, e os elementos outros de produção estão na posse de uma classe nova de indivíduos, detentores do capital e que fornecem ao trabalhador as condições de existência, alugando-lhe, por um salário determinado, o seu labor numa fábrica que lhe não pertence.
Karl Marx procede agora, de resto com todos os socialistas do século, a retirar deste facto as consequências sociais que dele derivam. A introdução crescente do maquinismo na indústria, quer fabril quer agrícola, terá o efeito, mais ou menos afastado, de dividir a sociedade humana em dois grupos, naturalmente antinómicos. De um lado ficarão os que não possuem senão o seu trabalho a oferecer ao regímen da fábrica; do outro, os que, pela aquisição do capital, subordinarão a si os que salariam. Como esta situação será e é já hoje intolerável, cumpre resolver o problema de modo que um regímen de castas, uma degradada, a outra ociosa, não venha a reproduzir-se real e efectivamente, através de todas as ilusões da igualdade civil e política. A maneira prática que encontra a solução desejada é o que se chama o colectivismo.
O colectivismo não é, diz-se, o comunismo clássico; ele não tem em vista tornar cada indivíduo na sociedade humana igualmente proprietário do fundo comum da riqueza; ele não persegue a utopia da legislação de Licurgo, tal qual ela se imaginou antes dos estudos de Fustel de Coulanges. Simplesmente, o colectivismo retira da mão da classe capitalista a posse abusiva da terra e do subsolo, das florestas e dos maquinismos industriais. Transforma o regímen da produção numa função da colectividade social, representada no Estado, e garante o direito de propriedade individual mas meramente pelo que serefere aos produtos. Todo o valor criado é um valor de consumo, nunca um valor de troca; o comércio desaparece e a acumulação capitalista não mais se opera, como origem de futuros desequilíbrios tais como aquele de que as sociedades modernas sofrem.
Todo o colectivismo, como ideia orgânica de remodelação social, está aqui, nas suas linhas gerais; o que falta são minudências de análise ou conjecturas de execução que não têm que ver essencialmente com a teoria.
Como disse, Schaeffle procurou fazer o que poderíamos chamar o programa político desta doutrina económica, estabelecendo a maneira prática de tornar efectiva tal aspiração, sobre que Marx abundantemente raciocinara.
Compreende-se sem esforço que todo o trabalho do ministro austríaco é inútil para desfazer, de uma maneira satisfatoriamente completa, as inúmeras dificuldades que espontaneamente nascem da questão mesma.
Em primeiro lugar, Schaeffle teve de distinguir com nitidez entre os instrumentos de trabalho que teriam de se reportar propriedade colectiva e aqueles que não poderiam, sem absurdo, ser compreendidos em semelhante categoria. Com efeito, instrumentos de trabalho existem que, pela sua natureza, se furtam à consideração de uma aplicação social em seu funcionamento, como seja a máquina de costura, mais primitivamente a simples agulha de coser. Para estes, Schaeffle abre uma excepeão e aceita que eles continuem de posse individual, contanto, acrescenta, que se não empreguem fora das necessidades de consumo do seu próprio possuidor.
Dizer isto parece ser cair no escolho de todas as organizações sociais que se não entregam ao simples jogo das energias individualistas, sem atritos e sem restrições. Parece uma reintegração dos projectos subjectivistas, pessoais, do socialismo utópico. Como se jamais houvera uma sociedade organizada como um banco, sobre um estatuto preconcebido; e como se o cérebro de um só homem, por mais potente, pudera substituir-se à multiforme invenção colectiva, irradiante de miríades de tipos anónimos!
Parece equivaler a assinalar na organização social que se sonha a necessidade de uma vigilância policial, tanto mais odiosa quanto ela iria incidir sobre os mais íntimos e mais mesquinhos episódios da vida individual.
Leroy-Beaulieu insiste, em longas páginas, nas inextricáveis dificuldades da realização do projecto de Schaeffle; e, a propósito, encontra, por vezes, situações em que o revoltante e o cómico se entrelaçam.
Mas não devemos iludir-nos com esta crítica, fácil porque se exerce sobre concepções do arranjo futuro que não são adequadas ao critério, que herdámos, das coisas. Com este mesmo é que, todavia, intervimos para o exame de condições em que, pelo contrário, se pressupõe que ele não tem cabida. Assim, na sociedade colectivista, a categorização dos instrumentos de trabalho para a apropriação, ou individual ou colectiva, está naturalmente indicada, na espécie, pelo tipo mesmo desses instrumentos, no processo histórico, pela seriação do seu aparecimento. Também, essa sociedade não careceria de vigiar se o detentor um instrumento de destino familiar o aplicaria abusivamente a uma função social. Primeiro, porque esse aparelho, rudimentar ou restrito, se supõe que a não comporta. Segundo, porque todos os que necessitassem de um exemplar desses o possuiriam de próprio, fabricando o produto, sem ter por que buscá-lo fora. Terceiro, e principalmente (e é onde naufraga toda a tarefa de Leroy-Beaulieu) porque a sociedade colectivista não está, por hipótese, sujeita ao facto da concorrência, substituída então pela solidariedade. Portanto, raciocinar como o faz o economista é sair das premissas, exorbitar dos dados do problema, transportar o debate.
Assim, podemos dispensar-nos de acompanhar a morosa tarefa, aliás notavelmente conduzida pelo publicista francês, a este respeito, cuja importância confessemos, com Leroy-Beaulieu, capital. Mas, bem percebido, no sentido do possível entendimento do processo de transformação do actual modo histórico de produção e repartição. Quanto ao programa de Schaeffle, em si mesmo, ele evidentemente que não pode oferecer-se mais do que por uma colecção de conjecturas, todas, mais ou menos, fantasiosas. Nem a Schaeffle nem a ninguem é dado conceber a integralidade dos tipos vindouros das formas sociais em via de elaboração.
Neste critério, circunscrevendo o debate no perímetro acanhado de uma simples carta, afigura-se-me que todo o plano do sábio austríaco se apercebe consideravelmente suspeito, desde que se repare em dois pontos únicos. Um concernente à sua execução; o outro interessando às suas consequências ulteriores, mesmo só na esfera particular da indústria e sem falar do comércio (onde a expropriação capitalista, pelo grande bazar, começou, todavia, também) nem das artes liberais (onde ela é impossivel, quase em absoluto). Se o génio autonomista de um arquitecto pode ser deslocado pela convergência salariada de uma corporação de mestres-de-obras, as receitas de um médico serão sempre de lavra exclusiva e própria.
Ora, dando de barato que o programa cle Schaeffle, ou outro com o mesmo objecto, seja o mais justo e racional possível, pergunta-se qual a maneira de o realizar socialmente.
Aqui, duas soluções se apresentam: ou a transformação das condições actuais da sociedade económica se realiza por um processo pacífico ou se opera pela via revolucionária.
O socialismo moderno encontrou-se neste dilema, desde que tentou fazer a construção integral da nova doutrina, e logo se fraccionou em escolas diversas, orientando-se, finalmente, por um ou outro dos critérios expostos.
Os operários franceses, como em geral os seus colegas de todo o mundo, num congresso há poucos anos levado a efeito em Marselha, opinaram, franca e rasgadamente, pela via revolucionária; e, como corpo político, habilmente têm procurado produzir as condições em que favoravelmente pudessem tornar concreta a teoria adoptada. É assim que os seus delegados ao conselho municipal de Paris não se cansam de reclamar, esterilmente, a reconstituição das guardas nacionais, com um intuito que seria pueril pôr ern relevo.
Os socialistas doutrinários, os professorais, os místicos, os Katheder-socialisten da Alemanha e os publicistas de análogo tipo em Franea, receando, com fundados motivos, as eventualidades imprevisendas, sempre terríveis, de uma colisão armada, empenham-se em encontrar um compromisso que esclareça a situação.
Este compromisso pacífico não pode ser fornecido senão por uma de duas variantes. Ou a remodelação colectivista se decreta pelo Estado e deve a sua existência à energia dos homens de governo; ou ela segue o caminho inverso, parte de baixo para cima e procede da transformação sucessiva das condições do salariado na própria fábrica, quer pelo consenso de patrões e operários, quer pela iniciativa filantrópica dos primeiros, quer pela imposição dos segundos, graças ao meio coercivo da greve ou pela criacão, independente, da associação cooperativa de produção.
Quanto à solução governativa, tem acariciado, mais ou menos, as vaidades de alguns imperantes, como se deu, em plano similar, com Napoleão III e hoje se observa, depois do chanceler, no autocrata da terra alemã. As condições, porém, da existência dos governos, que pouca força própria representam, antes não passam dos símbolos dirigentes da média da cultura e da normalidade das condições das sociedades sobre que Iegislam, mostram à evidência que seria quimérico esperar-se que governo algum pudesse jamais tentar sequer um plano de tão vastas proporções. Limitam-se, pois, a umas tímidas medidas de concessão, sem rasgo aí mesmo, sem amplitude fecunda. São elas concernentes ao regímen interior das fábricas, ao trabalho dos menores, à higiene das habitações do proletariado. Não contentando perfeitamente a ninguém, não têm dado ensejo a que se desdobrassem, como cumpria, em mais audaciosos propósitos. Pelo que se refere à iniciativa pacífica de patrões e de operários, solidários ou não, o tentâmen abortado das combinações de 1848 em Franca levou Lassalle a cobrir de injúrias Schultze-Delitsch que organizara, com mais tino e fruto, na Alemanha um movimento de tal natureza.
Resta-nos, pois, a considerar a solução revolucionária, que, apesar de tudo, é, nas premissas, a mais sensata e racional.
É curioso que seja Karl Marx quem se encarregue de fornecer aos reaccionários elementos para a refutar. Se bem que nem sempre fossem coerentes os princípios espalhados nos seus trabalhos doutrinais. E, aqui, felizmente que são incompletos, especiais e especiosos, em grande maneira inexactos.
No exame pessimista, mas tão sagaz, verdadeiramente admirável, por ele feito, das consequências, sobre a população trabalhadora, do actual regímen de fábrica, Marx, depois de mostrar como a introdução do maquinismo na indústria destrói no operário o virtuosismo profissional, que era uma das formas da cultura estética da classe trabalhadora, assinala, detida e longamente, a degradação progressiva do proletariado, confinado dias inteiros e sucessivos em mesteres automáticos e não determinando, para o seu encéfalo, a mudança de impressões, repetidamente as mesmas, senão nos abusos de excitantes e de narcóticos.
Se, pois, o regímen industrial em que as sociedades modernas se engolfam cada vez mais tem como consequência a inferioridade (moral e intelectual) progressiva e indeclinável da população fabril, como se poderá compreender, da parte dessa população degradada, um esforço de reivindicação que, para classes mais favorecidas, o exame histórico não aponta já com facilidade?
Como o frisei acima, a consideração de onde procede este obstáculo não é, contudo, felizmente, pelas grandes linhas gerais, exacta. Esta degenerescência mental, moral e estética procederia da degradação das condições de existência, mercê da indeclinabilidade do processo capitalista que exige que o salário, em quaisquer condições, não exceda o restritamente necessário para a simples conservação animal do salariado. Esta lei terrível, a ser rigorosamente exacta, bastaria para condenar sem remissão o mundo actual. E, se não pudesse ser corrigida nos scus efeitos, mitigada noseu exercício, a economia política teria lavrado a sentença condenatória que o dinamitismo, carrasco lógico às suas ordens, não faria senão a sua obrigação em executar. Esta é a lei chamada, pelo imaginismo literário de Lassalle, a lei-de-bronze. Procede, como se sabe, da economia clássica, se bem que o socialismo fosse quem se apressasse a pô-la em destaque, como a sua integral justificação. Forma o núcleo da teoria do fundo dos salários e foi Ricardo quem a trouxe para a evidência e lhe deu todo o relevo. Ricardo fixa um momento fundamental na evolução da ciência. Com ele, ela atinge o seu máximo de desenvolvimento, no crescimento graduado do embrião a gestacionar desde Adão Smith. «Ricardo forneceu a espinha dorsal da ciência económica», escreve Odysse-Barot. Decerto; mas uma espinha dorsal cuja rnedula, purulenta, amolecia. Já ele próprio começou a suspeitar que o ser nado era teratológico; e o seu discípulo, continuador, vulgarizador, Stuart Mill, esse, acabou em reconhecer que o monstro não era viável. Assim neste a economia política capitula, fala, confessa, enfim, a sua impotência; e o socialismo principia a obter o domínio na esfera espiritual da ciência.
Ora, Ricardo reputava como impossível um melhoramento da sorte do maior número; considerava como o seu ideal um estado de coisas em que os salários atingissem o minimum necessário para impedir o trabalhador e a sua família de morrerem de fome. Derivou, no exame da distribuição, esta consequência trágica Ricardo, estudando as condições do trabalho agrícola e estabelecendo a sua célebre teoria sobre a renda. A questão da renda paga pela terra e das leis que regulam esse pagamento tinha, havia mais de um século, preocupado os economistas, quando Ricardo, em 1817, resumiu, sob forma positiva, as ideias já emitidas por Adão Smith, o doutor Anderson e outros, dando ao mundo uma teoria da renda que foi imediatamente aceite como a verdadeira e que depois se qualificou como a grande descoberta da época. Frisa esta teoria que a proporção, a quota-parte do proprietário tende constantemente a crescer, à medida que decresce a produtividade do trabalho. Do que resulta uma tendência à absorção final de toda a produção pelo proprietário da terra e a uma desiguaIdade, sempre crescente, das condições. Isto por o poder do trabalhador em consumir as utilidades que produz diminuir constantemente e o do proprietário de as reclamar corno renda ir sempre crescendo. Adita que semelhante tendência a que diminua a remuneração do trabalho e a que se aumente a proporção do proprietário se encontra em relação com o acréscimo de população e se pronuncia tanto mais fortemente quanto a população cresce mais depressa. Finalmente, constata que cada melhoramento na cultura tende a retardar a elevação da renda, enquanto que, pelo contrário, cada obstáculo ao melhoramento tende a aumentá-la. De onde esta consequência necessária, a saber que os interesses do proprietário e do trabalhador estão constantemente em oposição, elevando-se a renda à medida que o trabalho docai, decaindo o trabalho à medida que a renda se eleva.
Esta teoria repousa, contudo, sobre a asserção errónea de que a cultura se ataca primeiro aos solos ricos, passando, pelo seu esgotamento, sucessivamente para os menos férteis. Ora, o harmonista Carey demonstrou que é precisamente o contrário. Repudiando as teorias da renda e da população, no seu tempo admitidas por quase todos os economistas, como formando a base de todas as doutrinas da escola que tem o descaroável impudor de se chamar liberal, Carey opôs ao de Ricardo o seguinte sistema: - A humanidade não chegou a comandar à natureza, que a dominava de começo, senão crescendo em número e aumentando o poder dos seus instrumentos. Obrigada a pedir subsistências à terra, ela, ao princípio, apanhou os frutos espontâneos; depois revolveu o solo nos lugares mais fáceis, nos terrenos magros, situados no flanco das colinas.
É muito mais tarde, quando a população se tornou mais densa, quando os instrumentos foram aperfeiçoados, que ela desbastou o fundo dos vales, onde estão os terrenos mais férteis, mas atravancados de arvoredo espesso, cobertos de pântanos e não podendo ser postos em cultura senão com muitos esforços e vias de comunicação prévias.
A hipótese de Ricardo segundo a qual a cultura começou pelas terras gordas para passar, de camada em camada, a terrenos de segunda, terceira qualidade resulta, pois, manifestamente faisa.
Esta refutação não é só uma das partes mais originais da obra de Carey. É o que Ihe dá a razão de ser; e as reticências de G. Schelle não se fundamentam na exacção dos elementos críticos. Diz Schelle que à hipótese de Ricardo sobre a formação histórica da cultura, Carey substituiu uma outra, só mais consentânea com os factos que se passavam, sob os seus olhos, num país novo, em que os terrenos férteis eram em quantidade quase ilimitada. Mas conclui: «não é de forma nenhuma certo que esta hipótese seja conforme a todos os factos e que os arroteamentos hajam seguido a mesma ordem em todos os tempos e em todos os lugares».
À face disto, parece que Schelle cita de citação e que nunca viu o livro fundamental de Carey. Com efeito, todo o capítulo IV do primeiro volume dos Princípios da Ciência Social é consagrado ao exame explicativo da teoria da renda de Ricardo. E a refutação não se faz exclusivamente pela lição da marcha da colonização nos Estados Unidos.
Alarga compreensivamente; e aqui reside a sua garantia. Assim, funda-se tambem na marcha da colonização no México, nas Antilhas e na América do Sul; na Inglaterra; na França, na Bélgica e na Holanda; na península escandinava, na Rússia, na Alemanha, na Itália, nas ilhas do Mediterrâneo, na Grécia e no Egipto; enfim na Índia.
Na verdade, os mesmos socialistas hoje reconhecem a falsidade, nos seus termos absolutos, da minaz lei-de-bronze. A simples inspecção da realidade histórica, de relance, dispensa-nos de investigações miúdas. A possibilidade das associações de classe, fundadas e sustentadas pela quotização dos salariados, demonstra a sem-razão dessa lei, tomada como fórmula geral, incontraditável, regulando, sobranceira, a fenomenalidade económica.
O próprio Ricardo contemporizara já, dizendo que a tendência à diminuição na remuneração do trabalho é contrabalançada, em um certo grau, pelo acréscimo de riqueza, o qual permite um aperfeiçoamento na cultura. E, no domínio aplicativo do industrialismo fabril, Karl Marx assegura (pág. 270) que o progresso constante da acumulação capitalista deve, tarde ou cedo, trazer uma alta gradual dos salários. Mill havia tido já vistas mais sãs e mais elevadas do que Ricardo, chegando a conclusões diferentes, sem suspeitar, todavia, do princípio do minimum pousado com Ricardo, mas acrescentando-lhe um elemento esquecido ou desconhecido por este. O minimum, para Mill, não deve ser puramente físico; é modificado pelas mudanças que se operam no carácter moral dos a quem diz respeito, nos seus costumes, nos seus hábitos, nas suas necessidades materiais e imateriais. Há para cada classe, portanto, uma certa média de conforto e de bem-estar abaixo da qual ela não pode viver. Boa média essa a do operário. Mill (assim seja!) assegura que ela tende constantemente a elevar-se.
Mas, em qualquer dos dois casos, como é que se imagina levar a efeito essa revolução integral, única, nova na história? Nova, porque compreende a humanidade de fora a fora, na política, na religião, no amor, nos costumes: tudo dependente, segundo a hipótese basilar da doutrina, do peculiarismo das leis da economia social e estas (é uma das ideias originais e próprias de Marx) condicionadas pelas formas técnicas da produção. Nova, porque é uma revolução sintética, organizadora, construtiva. Coisa também nova na história, onde as revoluções, como o viu Buckle, são mais para destruir organizaeões tradicionais do que para criar outras.
E, entretanto, o povo dos sofredores continuará sofrendo, na expectativa de um acontecimento que nunca chega!
Este determinismo social, que faz dos homens simples factores de um desenvolvimento genérico, é perfeito na independência analítica de um sistema filosófico; mas parece seco como aspiração de um corpo político, a qual cumpria que fosse, o mais possível, imediata.
De resto, e dentro dessa fria, pura análise, qualquer das soluções indicadas tem (este é o ponto essencial) o inconveniente gravíssimo de serem prematuras; elas significam uma impaciência que é legítima, porque quem espera desespera, tanto mais se espera no infortúnio, mas que, teoricamente, a mesma doutrina não autoriza.
Sendo, no seu desenvolvimento abstracto, o colectivismo uma doutrina de evolução, como é que Schaeffle se adianta com um plano mais de homem de partido do que de homem de ciência; com um projecto de reconstituição social, sugerido pelo desdobrar previsto de condições económicas, funestas a uma grande parte da humanidade mas que não concluíram ainda o seu trabalho de génese da situação fixada, em que a transformação que se deseja aparecerá naturalmente como o último termo de uma série, simplesmente seguindo uma marcha histórica em via de ulteriormente se completar?
O mesmo Marx, por vezes inconsequente, não desdenhou este ponto que aqui levamos dito, quando, a pág. 211 do seu livro, reconheceu que a única via real por que um modo de produção e a organização real que Ihe corresponde marcham para a sua dissolução e para a sua metamorfose é o desenvolvimento histórico dos seus antagonismos imanentes. «Esse é o segredo - exclama - do movimento histórico que os doutrinários, optimistas ou socialistas, não querem compreender.»
Estabelecer isto equivaleria, a querer-se ser rigorosamente lógico, à quietude na expectativa. Não se compreende a intervenção sem a integral eclosão desses antagonismos. Ela dispensa-a mesmo, ou antes será ela que a determina.
Quer dizer, a doutrina marxista não se coaduna legitimamente com uma acção prática. É um processo histórico que segue a sua marcha.
Que vem fazer, intrometendo-se-lhe a meio a iniciativa sectarista, que procure impedir, demorar, desviar, avançar um desdobramento, específico, de si?
Há contradição entre Marx filósofo e Marx político. Mas esta contradição é geral em todos nós, modernos. Procede do enigma do livre arbítrio, da necessidade da coexistência da lei social com a actividade pessoal.
Se a história é, toda, fatalidade, a conclusão da conduta é o indiferentismo. Mas isto é absurdo, pela própria lição concreta da história. Se a história é, toda, liberdade, a lei reguladora não pode existir, ela não é ciência então. Mas isto é absurdo também, pelo exemplo da unanimidade convergente das grandes massas para objectivos independentes da consciencização individual.
No proudhomesco, aristotélico meio-termo é que está a solução. O homem nem é fatal, como o grave inerte; nem é livre, conforme o anjo de suas quimeras. Tem uma liberdade condicionada, como a do pássaro na gaiola.
Portanto, pode intervir nos acidentes de uma evolução, cujo conjunto lhe escapa à influência. Qual o lavrador aproveita para o seu moinho a queda de água cuja corrente compacta, de massa, não pode desviar e o arrastaria.
Quanto à outra consideração que me sugere o plano de Schaeffle, refere-se, como disse, às consequências ulteriores da sua efectividade; e ela não compreende só o programa do ministro austríaco, mas ainda diz respeito a toda a doutrina colectivista em geral.
Desde o momento em que a inversão do regímen presente para o regímen proposto se leve a efeito, claro que ela compreende o progresso fabril tal qual o encontrara no momento histórico em que essa metamorfose, por qualquer processo, se ultimou. Ora, pelo próprio conceito hegeliano, de onde partiu Karl Marx, não se pode considerar o desenvolvimento das artes industriais como havendo atingido em tal momento o seu término nem que então tenha proferido a sua última palavra a aplicação tecnológica da ciência à indústria. Salvo se se aguarda pela natural passagem de um modo de ser da producão para outro, o que não se percebe, de resto, como sucedera, visto que, no momento anterior, havia capitalistas e salariados e os primeiros não se dissolveram de per si nem se supõe que os exterminasse uma revolucão não produzida.
Seja como for, organizado, todavia, socialmente, o trabalho, não se compreende também facilmente como o progresso dos processos possa continuar a exercer-se, nem como da massa, igualmente trabalhadora, igualmente subordinada a um regímen que cristalizou em um sistema institucional de Estado, a iniciativa do génio individual, sem sugestões nem incentivos, haja de produzir-se num sentido de melhoria.
Esta dificuldade, gravíssima, porque ela representa nada menos do que a pressuposição, fundada, do imobilismo na sociedade colectivista, sentiu-a, muito ou pouco, Lassalle, procurando furtar-se ao seu simples anúncio com motivos de ordem sentimental, que, nestas esferas, são a marca iniludível da impotência das doutrinas.
Dir-se-á que tal progresso é inútil, porque a sociedade se satisfaz com o que tem e como está? Mas isto é a China, em total. Dir-se-á que tal progresso continua possível? Mas como? Desde que a conceba b diferente de c existente, quais os meios de concretizar a sua concepção? De onde lhe virão os recursos para a efectivar? Do Estado? Mas se o Estado se estabeleceu (antes dessa concepção) como a perfeita concretização já da felicidade justa?!
Enfim, não se entende. Pelo menos, eu não entendo. À d'autres. O moderno colectivismo não se preocupa, porém, demasiado, com a exposição dos seus programas práticos nem com a maneira de resolver as dúvidas que os tentâmens de tal género levantam nos espíritos. Ele encerra-se, mais especialmente, na acusação da economia clássica, que, por assim dizer, torna responsável dos males sociais que justamente o indignam.
No seu facciosismo, não deixa de ter razão. Como quase todas, ou antes todas as ciências cognominadas de morais, a economia tem-se indecentemente posto ao serviço dos privilegiados e dos abusivos. Considerando a miséria como urn facto eterno e irremediável; fazendo-a de instituição divina; justificando-a, com Malthus, porque nem todos tenham naturalmente talher à mesa do banquete cósmico, a economia beatifica os possidentes, fornece-lhes a paz da consciência. Aos outros reputa-os como carne a explorar; para eles não tem senão os inacreditáveis conselhos da resignação. Que os vitimados se aguentem num desespero, que é para ela a ordem final, teleológica. Mesmo que esterilmente os lamente, a sua compreensão especialista das coisas faz os homens para a riqueza, não esta para aqueles. Assim, termina por ser uma resenha gráfica.
Ora, o comunismo, disse-o, altamente, Augusto Comte, não comporta outra refutação do que a resolução do problema que ele propõe. Tudo o mais é areal. E a economia política esquece que só se legitima se for uma ciência de aplicação. Restritamente descritiva, não passa de uma especulação ociosa. É até tão ímpia, em face do mal contra que não pode, como o seria a patologia se se não resolvesse em terapêutica.
Não que o colectivismo apareça como uma altruísta, generosa reivindicação moral. Pelo contrário, desconfiado das abusões humanitaristas do socialismo primitivo, ele faz gala de estreiteza e ufana-se de um glacial desdém pelas grandes palavras do direito e da justiça humana. Confina-se no mundo dos interesses materiais e daí não quer sair.
Ultimamente, espíritos rasgados do socialismo contemporâneo buscam alargar os horizontes. Com o título de integralismo, arejam a doutrina; abrem janelas, que dão para todas as formas do desenvolvimento humano.
Pode ter-se uma ideia perfeita desta tendência pela leitura do livro de Benoit Malon, ocupado do socialismo integral. É a explanação objectivista daquela latitudinária definição de Littré, quando ensinou que o socialismo seria o complexo das ideias e aspirações tendentes a avocar à média da cultura económica, mental, moral e estética, os indivíduos ou as classes desprovidas dessa cultura.
Mas qui trop embrasse peu étreint, professa o provérbio. Assim o socialismo seria tudo e todos seriam, mais ou menos, socialistas.
Apesar, todavia, dos seus embargos à sentimentalidade, o colectivismo apercebeu-se da urgência de um conceito generalista, de carácter humanitário e filosófico. A verdade moral domina o mundo; e Malon, em cuja doce fisionomia, quando recebi a honra de trocar com ele algumas palavras, eu pude ver, como toda a gente que o trate, o incoercível resplendor de uma moralização ingénita e profunda, Malon náo é mais do que o representativo de uma necessidade comum.
Toda a doutrina desta natureza precisa, realmente, de se estear, além das simples considerações históricas, económicas e políticas, numa base de direito humano, buscando na moral uma sanção.
O génio de Karl Marx foi ferido desta indeclinável exigência; e, assim, encontrou para a teoria a base, que lhe faltava, na sua interpretação do modo de formação do capital.
Segundo ele, depois da forma primitiva da troca do produto pelo produto, quando o indivíduo chegou a criar valores a mais do que aqueles de que carecia, transformou naturalmente esses valores em matéria negociável. A mercadoria apareceu e, com ela, o seu símbolo, o dinheiro. A troca pode representar-se, portanto, pela seguinte flecha:
D – M - D,
onde D representa o dinheiro e M a mercadoria.
Este facto simples de troca, em que entre os elementos constitutivos não há diferença, não aumentaria a riqueza, evidentemente; ela cresce, por isso que o símbolo se transforma, pela cobiça do que tem menos necessidade na transacção, em este outro:
D – M - D',
onde D' = D+AD.
Esta é a forma primitiva da criação do capital, de onde procede e onde se funda o modo grosseiro da aquisição da riqueza pela tesaurização, que Marx espia até à sua degenerescência em mania caracterizada (pág. 64).
Dado o núcleo de capital, para sua constituição Karl Marx não entra em linha de conta nem com a economia, nem com a iniciativa, nem com o trabalho individual, factores, de realidade, inapreciáveis, na sobrecarga do grande processo histórico, em geral, conexo e vasto. Eruditamente, parte o filósofo a investigar-lhe as origens do desenvolvimento em razões de ordem histórica, examinadas na Inglaterra, onde o seu livro foi escrito, como sejam a expropriação da população dos campos, os donativos régios e o regímen colonial. Finalmente, surge a invenção da máquina de vapor, que modifica, rápida e completamente, o processo do trabalho.
Entrando este em regimen de.fábrica, resta saber como é que, nesta ordem de produção, se forma o coeficiente A, que representa a acumulação capitalista.
Karl Marx começa por o encontrar na exploração do trabalho dos menores e das mulheres pelas oficinas e na prolongação desmesurada das horas de trabalho.
Todavia, estes factores desaparecem breve da consideração, por isso que os esforços dos filantropos conseguern introduzir nas fábricas inspectores que vigiam a execução de leis tendentes a coibir o abuso do emprego, nos mesteres industriais, de menores que não estão no caso de se adaptarem ainda a tais espécies de serviço e por isso que a greve dos interessados reduz progressivamente o número das horas de trabalho. Esta última vantagem, porém, para Marx é quase nula, visto que a ela responde o aperfeiçoamento técnico, que, no trabalho reduzido, o intensifica.
Qual é, pois, a origem do lucro em indústria? Aqui vem a grande acusação moral do colectivismo.
A economia clássica diz que o contrato entre patrão e salariado é inteiramente bilateral. Por a de trabalho, recebe o salariado x de dinheiro. Isto não passa de um sofisma, assevera Marx; e assevera-o, fundando-se no que segue:
A riqueza social aumenta dia a dia, e aindústria fabril não se exerce em pura perda. Ora, a simples troca não cria riqueza. E, sem considerar, porque se integre na reprodução, o ágio imposto ao comércio pelo industrial, Marx, tão-só, explica a formação do capital industrial porque o salariado, quando recebe x de dinheiro, não restitui a de trabalho, mas sim a + b, sendo b o excesso de trabalho que ele executa, sem por isso ser pago. Este excesso é que faz, segundo Marx, o lucro industrial. A esta descoberta, que fundamenta em longas considerações, é que ele chama a sua lei do trabalho não pago, e onde depara com a génese da acumulacão capitalista moderna.
Desejaria, caro amigo, desenvolver este ponto, que é ao mesmo tempo, o fundamental e o mais interessante. Mas isto levaria extremamente longe; e cuido que a escabrosidade do assunto haverá já até aqui aborrecido os seus leitores. Limito-me, pois, a este tópico, cuja demonstração remeto para a pág. 43, antecedentes e seguintes do livro de Marx: - O operário ganha por um dia de trabalho suponhamos 500 réis. 500 réis correspondem a um produto realizado numa hora de trabalho. Ao cabo dessa hora, o operário nada deve ao capitalista. Daí até ao fim do dia de trabalho está (exploração capitalista) a transformação da força viva do trabalho em mais-valia. Ou seja, o incremento sobre o capital constante mais o capital variável, determinando o lucro, divergente da mera reprodução de capital, improdutiva. Assim, na forma capitalista da produção, o trabalho, isto é (abstracção feita da terra), a riqueza, distribui-se segundo o esquema:
1.a parte: Trabalho útil para o trabalhador:
Tempo de trabalho necessário ou Trabalho necessário.
2.ª parte: Trabalho útil para o capitalista:
Tempo extra ou Hipertrabalho.
Do que tudo, a taxa da mais-valia será representada pela proporção:
Tempo de trabalho extra. ___________________________ Tempo de trabalho necessário.
Equivalente à fracção:
Hipertrabalho. ___________________ Trabalho necessário. A taxa da mais-valia é, pois, a expressão exacta do grau de exploração da força de trabalho pelo capital, ou do trabalhador pelo capitalista.
Toda esta parte da obra de Karl Marx é que é a nova, realmente imprevista e conduzida com um maravilhoso poder dedutivo.
Para Marx, como para Mill, a crítica tem de impor-lhe os direitos de originalidade, que, ao contrário de outros, ele dissimula o mais que pode, reportando-se sempre à autoridade de predecessores. Pertence aos que citam com abundância, parecendo excesso de pedanteria o que é tímido escrúpulo de probidade mental.
Todavia, a descoberta de Marx não tem senão uma importância de ordem moral e jurídica. Ainda que a lei encontrada não fosse exacta, desde que se haja assinalado, na forma dita, a evolução económica das sociedades, o antagonismo de condicões sociais, fundamentalmente diferentes, entre os homens formularia o problema no plano em que ele se apresenta. As reivindicações em favor do proletariado antecedem, desde os três iniciadores (Saint-Simon, Fourier e Owen), pelos epígonos (Leroux, Blanc), semelhante descoberta.
Os economistas perturbaram-se todos; ela vinha fundamentada com razões, ainda hoje, ao parecer, inatacáveis; e só depois de longo trecho é que os reparos comecaram de surgir.
Afigurou-se-lhes, primeiro, que os corolários que dela extraíra Karl Marx não eram exactos. Leroy-Beaulieu propôs-se, com certa feliciclade, o demonstrar, pela estatística, que a consequência registada, de uma sobrepopulação miserável, era falsa. E Laveleye, reconhecendo que a Iei fora deduzida partindo da definição de valor que certa parte da economia tradicionalista, principalmente por Bastiat, banal pioneiro nas peugadas de Carey, unicamente referira ao trabalho, recomeçou pela emenda de definições imperfeitas.
Pela minha mísera banda, não me prendo, por agora, com o lado restritamente económico da polémica. Farei simplesmente notar que o abusivo excesso de trabalho sobre o salário representa, no mesquinho condicionalismo moral da actual normalidade social, o serviço prestado pelo capital ao trabalho em o tornar efectivo. Assim, a dificuldade desloca-se, e a questão toma um aspecto diverso.
Bem sei que Karl Marx considera o capital como matéria inerte, susceptível de amortização mas não de lucro. Inerte é, contudo, também, o trabalho sem o capital. Coagulação de trabalho, trabalho-trabalho e trabalho-capital são interdependentes. Simplista, em absoluto, aquela é, porém, uma proposição que se não demonstrou. Inteiramente errónea por isso que ela representaria o não-aumento da riqueza social e, nas suas consequências mais ou menos remotas, reintegraria em foros de debate a quimera da gratuitidade do crédito.
O mesmo Karl Marx se apercebeu, como já o dissemos, desta fragilidade, inquestionável, da sua teoria; confessou-a de passagem, refugiando-se no conceito jurídico de que na colisão de dois direitos, iguais e contrários, quem resolve é a força.
«Há aqui, portanto - escreve (pág. 101) - uma antinomia, direito contra direito; ambos trazem o selo da lei que regula a troca das mercadorias. Entre dois direitos iguais quem decide? A Força.»
Posto isto, o terreno, que se procurou, da justiça nas relações dos homens escapa debaixo dos pés; reentrou-se na fatalidade histórica e o humanitarismo apaixonado cedeu o lugar às frias previsões sociológicas.
Poderemos abalançar-nos a conjecturá-las?
O quadro do desenvolvimento económico traçado por Marx é um elemento a mais para que a dúvida nos desponte no espírito.
Com efeito, na evolução dos tipos de produção (e, portanto, do arranjo político-económico conexo) a passagem do regímen cooperativo para o estádio da grande fábrica é determinado por quê? Por uma causa intercorrente; embaraçadora, mas, nas suas origens, estranha ao sistema mesmo do processo industrial. Isto é, a curiosidade científica, que, num motivo todo didáctico, procura dar emprego à força do vapor de água.
Quer dizer, se, quando a máquina de vapor não era sequer concebível, um filósofo elaborasse, segundo uma filiação evolutiva, as conjecturas prováveis do modo de ser económico-político dos momentos subsequentes da história civilizada, que são o nosso presente, ele não poderia imaginar, em maneira alguma, o tipo capitalista-salariado da actualidade.
Então, antes do que a de solidariedade pelo trabalho social, lhe surgiria a ideia da liberdade pelo trabalho individualista. Foi o que aconteceu em França, onde a Revolução pensou bem fazer, espalhando ao vento as compressivas peias das corporações de ofícios.
Assim também, quem nos diz a nós que, entrementes que se rascunham projectos de organização da sociedade colectivista futura, pressupondo a permanência da forma de produção.maquinaria, esta não se altere tão constitucionalmente que à socialização do trabalho venha, novamente, a suceder a individuação deste?
Com efeito, se, como membro do trabalhador colectivo, o trabalhador parcelar se torna tanto mais perfeito quanto é mais limitado e incompleto, conforme o assegura Marx (pag. 152), o que aliás sucede na forma de produção individuada, se não para com o mester, pelo menos para com a cultura geral do obreiro, nele confinado, e o que não ocorre, na grande produção, para os chefes de serviço; com efeito, se o sistema das máquinas automáticas, recebendo o movimento por transmissão de um autómato central é, segundo o mesmo Marx (pag. 165), a forma mais desenvolvida do maquinismo primitivo - quem será bastante ousado a pretender que por aí fiquemos? Quem pode certificar-nos de que a especulação científica, esgotada nesse sentido, não desvie noutro e nesse não abra expedientes resgatadores da actual servidão, que faz do homem um mero apêndice do aparelho?
Isto não são quimeras. Ainda ignoramos ao que chegaremos quando saibamos multiplicar idoneamente a ligeira força mecânica da corrente eléctrica. E o cinemático Reuleaux encerra o seu estudo crítico sobre a teoria geral das máquinas supondo que os maquinismos irão agora numa curva descensional, analítica, não sintética, parcelarizando-se, tornando-se aptos ao ofício domiciliar. Daí deduz a resolução da questão social.
Mesmo quem nos indica que de outras ciências, que aparentemente nada têm que ver com esta ordem de debates, não procedam condições inteiramente novas de sociabilidade? Facilitando a vida? Contribuindo a química e a biologia para reduzirem, aproveitarem, embaratecerem a alimentação, etc.?
Seja como seja, quanto as presunções sociais, elas devem computar-se numa relatividade curta, num âmbito estreito.
Tais quais elas se podem, pois, tentar, numa ciência de assunto tão complexo e de organização tão balbuciante ainda, quer-nos parecer que o desenvolvimento do trabalho segue, com efeito, a linha de marcha que lhe registaram Karl Marx e Schaeffle, que as sociedades tendem a revestir o feitio industrial, que Herbert Spencer crê suceder à fase militar, ainda hoje em plena expansão; mas quer-nos parecer também que a intervenção dos maquinismos, o reaproveitamento das forças físicas, numa palavra, a tecnologia industrial conduzem, progressivamente, a uma eliminação crescente do labor humano, à substituição da consciência na manufactura pelo automatismo e, portanto, à redução do proletariado, tal qual ele aparece nas primeiras fases, imperfeitas, do industrialismo.
O mesmo Marx estabelece que a produtividade da máquina tem por medida a proporção segundo a qual substitui o homem (pág. 169).
Com o pequeno motor, que começou nos nossos, últimos, dias, essa substituição não se faria a bem do parasitismo capitalista, mas em proveito do tempo necessário (reduzido) ao trabalhador autónomo.
Como consequência, os perigos assinalados, longe de se desenvolver, dissolver-se-ão; os salários crescerão na proporção em que, elevado o trabalho humano à dignidade de director e vigilante de maquinismos complicados, as funções subalternas se vão esgotando; e, depois de crises, dolorosas sim, mas passageiras, a população tenderá a equilibrar-se, desde que, na diferenciação nervosa das ocupações, o poder prolífico diminua, corrigindo deste modo a famosa lei de Malthus.
Ela já não pretende ser só um facto económico, apesar dos vivos, agudos reparos, infelizmente detalhados pelo método, sempre duvidoso, da estatística, mas que, ainda que nesse tipo, largamente expendeu, até hoje sem definitiva réplica, Tchernischewski, em quem Karl Marx se fundamenta. A sua ambição subiu. Mistifica-nos como sendo uma verdade mais geral, de ordem biológica, depois do aproveitamento, que encontrou nos grandes trabalhos de Darwin, que acolheu a explicação, errónea, de envolta com o facto, ininterpretado.
Mas, sem que se careça de discutir este ponto, assim, se verão justificadas, a este último lance, as ilações pela primeira vez tocadas por Stuart Mill, que Clémence Royer desenvolveu seguidamente e a que Herbert Spencer deu uma forma final, ampla e magnífica.
Todavia, nem Mill nem Spencer nern o mesmo Darwin, nenhum viu nesta consideração a contradição implícita que põe em xeque, por absoluto, a mesma lei de Malthus, de que procedem.
Na verdade, com a diferenciação nervosa, mais geralmente com a ascensão evolutiva, diminuição de poder prolífico. Logo (e com efeito, pela observação directa) com a homogeneidade nervosa, mais geralmente com a descensão evolutiva, aumento de poder prolífico. Mas esta homogeneidade nervosa, esta descensão evolutiva é o que precisamente constitui o que, genericamente, a economia politica chama as subsistências. Portanto, a população abate sempre, ainda que, em absoluto, aumente, na relação das subsistências, que a excedem. A crise não é, pois, natural, de produção; mas social, de distribuição.
Os animais inferiores pululam; os vegetais, inferiores em organização aos mesmos seres vivos rudimentares, assumem adentro do trabalho humano proporções, mais e mais, consideráveis, pela extensividade e intensividade da cultura, pela proibição do desperdício dos adubos, pela constituição, tardia mas crescente (aproveitando a concorrência de todas as demais) da agricultura como uma ciência, a última a desenvolver-se em fecundas aplicações, em desrotinárias audácias.
Isto é, a lei de Malthus, afirmando que os tipos humildes da organização tendem a diminuir e os superiores a aumentar, afirmando que a forma da matéria no mais elevado ultrapassa no número a forma no menos elevado, não somente desmente a botânica, no contraste da alga e da dicotiledónea, a zoologia, no contraste do infusório e do vertebrado, mas é a contradição mesma de todo o darwinismo, o pólo oposto da teoria evolutiva, que nos amostra a positiva escolha, diminuída, dos tipos sucessivamente diferenciados, isto é, superiores. Eis o que Carey frisa pitorescamente, estabelecendo que tal lei equivale a dizer que enquanto o homem cresce pelos algarismos 1. 2. 4. 8. 16. 32, as batatas e as couves, as ervilhas e os nabos, os arenques e as ostras não crescem senão na proporção das cifras 1, 2, 3, 4.
Seja como for, resumindo e condensando, o facto é que as vastas especulações de Marx assinalam época na ciência e que mesmo cumpre, prosseguindo no seu método investigativo, dar-lhes uma generalização de que o economista se absteve, porventura propositadamente.
Dotou-nos, com efeito, o socialista de sugestões da mais alta importância e não é levianamente que o criminalista Ferri aventurou a palavra de que a concepção sociológica de Marx destaca afinal com uma pujança que deixa a perder de vista a disposição anárquica de elementos sem ligação íntima com que Spencer procurou definir a ciência social.
Nesse propósito, quem tente tarefa de tal magnitude deverá, quanto a nós, alargar a base do edifício; pois que o engenhosíssimo crítico, exactamente nos primeiros momentos da sua elaboração sistemática, reduziu, com erro, o alcance da sua teoria, por um proconceito advindo do particularismo das suas preferências de estudo. Referimo-nos ao que se chama a sua concepção materialista da história.
Pela necessidade do unitarismo classificante no espírito analítico, esta é desenrolada das iniciais condições económicas, de onde derivariam a religião, a política, os costumes, as leis civis, as maneiras do pensamento. Para Engels, como para todos os apologistas, isto representa uma, quiçá a fundamental, das descobertas de Marx, quando realmente não passa de um dos pontos fracos da teoria. Aos olhos da crítica serena assume a responsabilidade dessas abusões especiosas com que se malogra o exame.
A redução da complexidade do fenómeno social a um tipo único de factores, de que os outros todos são corolários, contradiz a correlação dos elementos, a seu turno causas e efeitos. Põe na ciêneia um critério simplista que se não coaduna com a mesma complicação da estrutura observada. Partir de baixo para cima, da economia para a religião, como Marx, ou em sentido contrário, desta para aquela, como Comte, conduz às mesmas ilusões, diminuindo uma área imensa e desfibrando um tecido conectivo.
Este erro dialéctico torna-se evidente quando capacidades notáveis, se bem que medianas, o estreitam até dimensões minúsculas, como no caso de Buckle, com respeito ao modalismo psíquico peninsular. Mas, ainda que transparente, o engano é da mesma natureza e, para o desfazer, urge aproximar a análise das suas origens mais remotas.
Marx reduziu tudo, porém, ao jogo dos interesses materiais postos em alarme. Sem embargo, pôde Malon fazer uma resenha de grandes transformações na vida da humanidade determinadas por móveis ern fora do condicionalismo económico, influindo modificadoramente neste mas dele não procedendo. Essa resenha, aos lusitanos, interessa-os duas vezes, pela parte que nela ocupa o exemplo do efeito económico da anexação política de Portugal a Espanha, determinando, com a hostilidade da Holanda, o advento na Europa Central da forma colonial da acumulação mercantil.
Mas o mesmo Malon, apesar de bem encarreirado, deixou-se ainda influir pelo conceito marxiano, crendo irrefragavelmente no seu corolário (que o reintegra por completo) segundo o qual o processo histórico se contém exclusivamente na luta das classes.
E, todavia, essa luta de classes deriva de um facto mais geral, sem o qual ela é inintelígivel: a hostilidade das variedades étnicas da espécie. Não se compreende a constituição de classes dentro de um agrupamento homogéneo; porque qualquer banda guerreira teria a medir-se, para a usurpação, com equivalentes que lho não sofreriam. Assim, as desigualdades profundas, radicais, extremas pressupõem a preliminar guerra de raças, hierarquizadas pela diferenciação evolutiva.
Na Índia, a quarta casta, aquela cuja mistura com as demais inflinge a irremissível decadência, a segregacão implacável, distingue-se das outras pela sua constituição física; difere igualmente pelo que caracteriza as famílias humanas, pela linguagem. Benfey e Burnouf advertem-nos de que não há nenhuma relação entre os dialectos usados nas classes inferiores da Índia e o sânscrito. Segundo Lassen, os çudras eram a população primitiva da península; as outras castas vieram de fora. Nos livros sagrados, só os çudras são qualificados de casta cuja cor é negra (Bhâgavata Purana, II, 1, 37). E Elphinstone diz que os çudras se extremam ainda hoje por tal forma das castas superiores que se não pode explicar esta diferença senão por uma origem diversa.
O autor anónimo do livro The Norman People divide em três nações a nação inglesa. O terço preponderante é normando; os outros dois compõem-se de elementos anglo-saxónios, celtas e dinamarqueses. É o conflito destas raças sobrepostas e esmagadas sucessivamente que, buscando elas recuperar-se, forma o fundo dos conflitos históricos.
Na França, Amadeu Thierry considerou a reivindicação de 93 como uma desforra inconsciente dos gauleses, antigos possuidores do solo, contra a raça franca espoliadora.
Assim, a palavra de guerra social importa o mesmo carácter e o mesmo sentido que se lhe dá num período memorável da história romana. De facto, não designa (como causal originária, quaisquer que sejam as modificações trazidas pelo percurso histórico, mitigando as condições, equiparando os direitos, integrando os vencidos, enriquecendo alguns dos esbulhados) senão uma luta de nação para nação e de raça para raça.
Para preencher lacunas como buracos, para rebater arestas de aparente contradição, este lance precisava de vastos esclarecimentos. Mas é tarde de mais para um, somenos, esboço. Limito-me a notar que Marx teve a ideia de que a classe industrial podia bem emergir da prepotente tirania de vencedores. A república de Platão, em tanto, pelo menos, que a divisão do trabalho aí figura como princípio constitutivo do Estado, não é, diz ele, senão uma idealização ateniense do regímen das castas egípcias (pág. 159).
Claro se torna, mas convém dizê-lo, para prevenir imputações caluniosas, que a objecção parcelar ou mesmo a refutação total de uma doutrina socialista não implica, em maneira alguma, o desconhecimento quer da substituição da actual ordem político-económica por outra futura, mais racional e mais justa, quer da necessidade, para o proletariado, de, desde agora e a todo o instante, procurar tornar efectivas as suas aspirações mais urgentes, de realização imediata e prática.
Francamente, pesa-me, como a todo o entendimento comezinho e terra-a-terra, que se perca um tempo precioso no exame e na propaganda de doutrinas de carácter tão complexo, de feitio tão completamente integral que, salvo fanatismo, se não podem supor aproveitáveis em benefícios próximos. Principalmente, se, como o marxismo, essas teorias são uma previsão histórica, indiferente, doutrinalmente, aos males patentes, considerados filosoficamente como as condições indispensáveis de organizações superiores. Assim se apresenta o modo de produção capitalista como uma necessidade histórica para transformar o trabalho isolado em trabalho social (pág. 145). Mas, enquanto a socialização do trabalho não chega, vai-se morrendo de frio e de fome.
Por isso, julgo mais bem aconselhados aqueles que se reduzem às reclamações possíveis na ocasião. Agora, a regulamentação do serviço dos menores; logo, a reivindicação da higiene das fábricas; enfim, o princípio salutar chamado dos três oito; a observância do descanso dominical. E imenso que há a lucrar nesta ordem, prática, mesquinha, se o querem, mas útiI, que é o que importa.
Na Alemanha, porém, mais se aguarda de uma acção de conjunto, fulminante. Espera-se pela guerra, depois de se haver esperado pelas profecias da súbita paralisação dos negócios, mercê do atravancamento dos mercados pelo excedente de produção. Os cálculos repetidos de Marx, a este respeito, foram falhando, uns atrás dos outros. Pela abertura dos mercados coloniais, pelos mil acidentes das crises, monetárias, fabris, agrícolas, que vêm dando folga a uns, enquanto outros gemem. Mas impedindo a acção internacionalista, indispensável a uma remodelação integral. Só possível, ou isolado um povo por uma muralha, inexpugnável, de inultrapassáveis fronteiras; ou associados todos num tipo colectivo comum. Depois de Marx, as conjecturas de Engels, neste plano, não tiveram melhor êxito.
Assim, espera-se o desastre da guerra. Então se apurarão as contas. Não protegerá a desculpa de Marx, o qual, no seu fatalismo evolutivo, estabelece judiciosamente que, tomando as coisas no seu conjunto, nada depende da boa ou má vontade do capitalista individual. A livre concorrência impõe aos capitalistas as leis imanentes da produção capitalista como leis coercitivas externas (pág. 116).
As massas, oprimidas eexploradas, é que não podem sujeitar-se a este desapaixonado critério. O choque deve, pois, ser formidável.
O que resultará?
Lástima que, entre tanto heroísmo e tão belos exemplos de sacrifício, absolutamente previsíveis, na tremenda hipótese, se mescle, como sempre ocorre, como ocorreu em Paris em 1871, a desvirtuar, pelos excessos a frio, esse excedente maléfico das populações que, no seu tipo urbano, é, em parte, uma criação também da injustiça capitalista.
E, todavia, esses mesmos sabem bater-se, sabem morrer. No livro reaccionário, intitulado Les 73 journées de la Commune, exclama-se, a seu respeito: «São alegres, porque são valentes. É isto o que aflige, o que consterna. Esses miseráveis são heróicos.»
Tão verdade é que, se a ocasião faz o ladrão, ela cria também o génio e a santidade.
Mas a sociedade burguesa actual não cura de sacrificar as suas condições. Enriquece. Goza. Julga-se eternamente segura. Porque, para os proletários, quando sublimes, tenha o Sr. de Gallifet e, quando infamcs, para eles use do Sr. Deibler.
(*) José Pereira Sampaio (1857-1915) nasceu no Porto, filho do proprietário “maçon” de uma padaria na Rua do Bonjardim. “Bruno” é um pseudónimo acrescentado ao seu nome original, em homenagem a Giordano Bruno. Cresceu num meio dominado pelas ideias liberais. Com 17 anos apenas publica o seu primeiro livro, Análise da crença cristã, inspirado por Pedro Amorim Viana. Conclui estudos humanísticos no liceu e matricula-se em Medicina na Academia Politécnica do Porto, não prosseguindo, porém, nesse curso, por problemas de saúde. Sempre foi um homem doente e diminuído fisicamente. Membro do diretório do Partido Republicano Português (PRP), fundou os semanários O Democrata e O Norte Republicano, bem como o juronal diário A Discussão. Redigiu com Antero de Quental e Bazílio Teles os Estatutos da Liga Patriótica do Norte, em reacção ao ultimato inglês de 1890. Implicado na revolta republicana de 31 de Janeiro de 1891, parte para um exílio em Paris, com João Chagas, aí se mantendo por dois anos. Na capital da luz, aproximou de autores socialistas como Benoît Malon e Jules Guesde. Foi aí que entrou em contacto com as ideias de Karl Marx, cabendo-lhe a honra de ser o primeiro português a estudá-las de uma forma sistemática, dando conta desse esforço num ensaio curiosamente intitulado Bebel (dirigente da social-democracia alemã), incluído nas suas Notas do Exílio. É ainda em Paris que o seu pensamento ganha difinitivamente contornos de misticismo deísta, mantendo-se porém fiel ao liberalismo democrático. De regresso ao Porto em 1893, torna-se crítico do positivismo e afasta-se gradualmete do PRP, continuando porém a escrever artigos de propaganda republicana no jornal Voz Pública. A sua rebeldia e inconformismo valeram-lhe uma atrabiliária agressão à bengalada por parte de Afonso Costa, na Rua Sá da Bandeira. Opõs-se à ditadura de João Franco, mas também ao regicídio. É nomeado oficial conservador da Biblioteca Pública Municipal do Porto, cargo em que é confirmado depois pelo regime republicano, ao qual adere mas com distanciamento. Apela à reconciliação nacional e ao sufrágio universal, em artigos nos jornais A Pátria e Diário da Tarde. Mantém-se no seu cargo de bibliotecário, ocupado em pesquisas, até à sua morte precoce, na sequência de uma operação cirúrgica. Entre as suas obras, avultam Análise da Crença Cristã (Porto, 1874), A Geração Nova (Porto, 1886), Manifesto dos Emigrados da Revolução Republicana Portuguesa de 31 de Janeiro de 1891, com prefácio de Sampaio Bruno e Alves da Veiga (Paris, 1891), Notas do Exílio. 1891-1893, (Porto, 1893), O Brasil Mental. Esboço crítico (Porto, 1898), A Ideia de Deus (Porto, 1902), O Encoberto (Porto, 1904), Portugal e a Guerra das Nações (Porto, 1906), A Questão Religiosa (Porto, 1907), Portuenses Ilustres (Porto, 1907-1912), A Ditadura. Subsídios Morais para o seu Juízo Crítico (Porto, 1909), O Porto Culto (Porto, 1912). Sobre a sua vida e circunstâncias, consultar-se-á com proveito, de Ana Catarina Pinto, Pedro Maia e Sara Rocha, Sampaio Bruno. Há várias coisas desconcertantes neste escrito: o título, a forma epistolar e as considerações de geo-política espiritual com que se inicia. Não há dúvida, porém, de que o assunto é Marx. Bruno leu atentamente o volume I de O Capital, na edição francesa, bem como o resumo de Gabriel Déville, pelo menos. Algumas das objeções que formula são comuns em comentadores burgueses seus contemporâneos. Outras, mais ousadas, entram pelo campo especulativo da ficção científica e ainda hoje se lêm com muito interesse. De resto, Bruno afirma-se favorável à emancipação do proletariado e à superação histórica do capitalismo.
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