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Sejamos marxistas
José Carlos Rates (*)
O Partido Comunista Português foi criado por simpatia para com a Revolução Russa e constituído na sua quase totalidade por antigos anarco-sindicalistas. Daí o facto de em mais de três anos de existência o PC não ter feito educação comunista, tal como preceitua e entende a IC. Muitos filiados do PC não têm o menor rebuço em proclamar o seu anarquismo, sem se aperceberem do abismo profundo que separa as duas ideologias - a marxista e a anarquista - e sem sentirem que as teorias de Moscou se baseiam nas doutrinas do grande mestre que foi Carlos Marx.
O facto é que existe um antagonismo profundo entre o comunismo marxista e o comunismo anarquista, senão na finalidade, pelo menos nos meios de atingi-Ia.
Estas duas tendências opostas hão-de inevitavelmente chocar-se na revolução que nos espreita.
Os anarquistas partem do princípio de que são os homens e as ideias que produzem os acontecimentos; nós, os marxistas, partimos do princípio oposto, isto é, estamos convencidos que são os acontecimentos que arrastam os homens e fazem brotar as ideias.
Para os anarquistas, a Revolução francesa será obra dos enciclopedistas, de Voltaire, de Rousseau, de Marat, de Danton e de Robespierre. Para nós, os marxistas, a Grande Revolução tem origens bem mais profundas. É o triunfo de uma classe cujas condições materiais de desenvolvimento se vinha operando desde há séculos. O trabalho servo não comportava, já em 1789, as necessidades do consumo e do comércio. A Revolução tornou-se por isso inevitável.
Decerto, a nossa filosofia da história não indica que é inútil a acção humana, que essa acção se deva excluir. O que nós queremos é que essa acção corresponda aos factos materiais existentes para não resultar ineficaz.
Os marxistas fazem brotar o comunismo não como um produto das suas imaginações mas como uma consequência necessária dos seguintes factos: 1.º - A evolução capitalista conduz à concentração das forças económicas e estimula as invenções científicas que utiliza para aumentar a produção; 2.º - A concentração das forças económicas faz nascer o proletariado cujo antagonismo de interesses com os seus exploradores gera o agrupamento das forças rivais e a luta de classes; 3.º - O desenvolvimento das forças produtoras exige a extensão dos mercados, quer para colocação dos produtos excedentes, quer para o fornecimento de matérias-primas; 4.º - A necessidade de expansão do capitalismo cria o imperialismo, ou seja a absorção pelos Estados mais vigorosos dos Estados mais débeis; 5.º - As tendências imperialistas dos Estados mais vigorosos chocam-se, arrastando guerras, crises e devastações cujas consequências determinam o exacerbamento da luta de classes e a aparição duma nova forma social - o comunismo.
Da mesma forma que o capitalismo não saiu de um jacto do feudalismo, sendo mister que a burguesia se apoderasse revolucionariamente do poder para assegurar as suas conquistas anteriores e prosseguir em novas conquistas, assim tambem o proletariado terá de proceder. O comunismo, isto é, o consumo à vontade, só é realizável depois de intensificar ao máximo os meios de produção, de dar todo o desenvolvimento à maquinaria moderna e o possível aproveitamento às riquezas naturais, coisas estas que o capitalismo não pode fazer por se oporem aos seus interesses. De facto, o capitalismo só tem interesse no aumento de produção até ao limite da capacidade de compra que se manifesta nos mercados. Uma superprodução além dos limites daquela capacidade, é-lhe prejudicial porque leva à paralisação das forças de produção e por consequência à restrição da possibilidade dos lucros.
Para os anarquistas não há que ter em conta estes factores. O homem por si só fará tudo. É verdade que eles se contradizem quando aceitam o determinismo e preconizam que é necessário modificar o ambiente para modificar o indivíduo. Frequentemente nós ouvimos dizer aos anarquistas que o proletariado poderia ter conquistado a sua liberdade completa em 1789 se não se deixasse guiar pelos Danton e Robespierre.
Ora os anarquistas sabem tão bem como nós que não há liberdade política sem liberdade económica. Como poderia o proletariado nesses tempos conquistar a liberdade completa se o proletariado nem como classe existia, por assim dizer? Lyon, que era então o maior centro manufactureiro, não contava mais de 80 000 operários; Paris tinha 16 000; Bordéus e Marselha menos ainda. Onde estava o elemento propulsor e factor da revolução, como a concebem os anarquistas? E não existindo ainda a máquina a vapor, como tornar efectivas a abundância e a circulação dos produtos que asseguram a todos o maior bem-estar?
E ainda mais: - o comunismo é essencialmente internacionalista. Desde que subsistam as barreiras fiscais subsistirão as rivalidades económicas e por consequência os exércitos.
Com que apoio externo contaria em França, em 1789, uma revolução que se abalançasse a suprimir todo o direito de propriedade privada, se a simples queda do feudalismo concitou contra a França a Europa inteira? A Inglaterra? Mas a Inglaterra dos fins do século XVIII não tinha proletariado. Era um país agrícola e comerciante. É nos princípios do século XIX, com a descoberta do vapor e o desenvolvimento da maquinaria, que ela pode dar aplicação aos seus vastos e ricos jazigos de hulha e ferro, convertendo-se de país agrícola em país industrial.
Estes factos essenciais não os querem os anarquistas tomar em consideração. E eles são tudo.
Para os anarquistas, a Revolução é o corolário da revolução psicológica dos povos. A educação é tudo. E eles, olhando as massas, vendo o seu atraso mental, não acreditam, não podem acreditar no triunfo da Revolução. Mas as massas sindicais acreditam na Revolução e actuam nesse sentido! É que não são anarquistas, muito pelo contrário, são comunistas sem o saberem. Só a filosofia marxista nos faz ver a inevitabilidade da Revolução, só ela nos dá a fé que é indispensável para remover montanhas.
Sejamos marxistas!
(*) José Carlos Rates (1879-1945), marinheiro e operário conserveiro setubalense foi um dos mais destacados e dinâmicos dirigentes sindicalistas da primeira geração. Teve presença interveniente no I Congresso Sindicalista e Cooperativista (Lisboa, 1909), no I Congresso Sindicalista (1911) e no congresso de criação da União Operária Nacional (Tomar, 1914). Em 1912, como membro da Comissão Executiva do Congresso Sindicalista, encabeçou a "tournée" de propaganda pelos campos alentejanos e também no Norte e ilhas. Foi duramente reprimido pela sua militância sindicalista revolucionária, tendo sofrido penas de prisão e deportação em África. Colaborador assíduo na imprensa operária ('O Sindicalista', 'A Batalha', 'O Comunista', etc.) foi também um ensaísta prolífico. Embora o seu pensamento tenha hoje um interesse apenas histórico, deixou alguma obra teórica: O problema português: os partidos e o operariado (1919), A ditadura do proletariado (1920), A Rússia dos sovietes (1925), e Democracias e ditaduras (1927). Tendo-se mantido desde muito cedo uma certa distância em relação ao anarquismo, após a Revolução de Outubro aderiu aos princípios do bolchevismo e foi um dos fundadores, em 1921, do Partido Comunista Português. Em Novembro de 1922, foi escolhido por Jules Humbert-Droz, então delegado em Portugal do Comintern, para liderar o partido, tornando-se o seu primeiro secretário geral. Visitou a Rússia revolucionária em 1924, sendo após isso que escreveu o livro ‘A Rússia dos Sovietes’. Completou alguma formação marxista, podendo certamente dizer-se que a sua concepção do materialismo histórico era esquemática e mecanicista, o que não era incomum entre dirigentes comunistas do seu tempo. Acabaria por ser expulso do partido, por desviacionismo às directivas políticas da Internacional Comunista, no 2.º Congresso do P.C.P., em Maio de 1926. Dedicou-se depois ao jornalismo e acabou por aderir à União Nacional salazarista em 1931, onde aliás não fez carreira de vulto. Cantava o fado e, no final da sua vida, escreveu ficção. Mais detalhes sobre a vida deste homem podem ser encontrados na sua nota biográfica em três partes publicada no Almanaque Republicano.
O presente artigo foi publicado no nº 4 do quinzenário ‘O Comunista’, de 15 de Julho de 1923. Representa, porventura, o primeiro testemunho claro de encontro entre o marxismo e o movimento operário português da I República. |
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