A Rússia dos Sovietes. Introdução (*)

 

 

 

José Carlos Rates

 

 

A Rússia, desde há sete anos, é, antes de tudo, um vasto laboratório de experiências socialistas. As teorias dos revolucionários russos foram, nas suas grandes linhas, confirmadas pela experiência, porque eles haviam previamente formulado essas teorias, combinando-as com a prática da luta proletariana. No campo exclusivamente revolucionário, tudo foi previsto admiravelmente. Mas, depois da frase destrutiva da revolução, era preciso entrar na fase reconstrutiva. E aqui, as soluções foram surgindo pelo estudo directo de todos os problemas, pela correcção e rectificação de muitas tentativas, pelo dissipar de algumas ilusões. Infatigavelmente, prosseguindo os fins, os revolucionários russos não desesperaram nunca, anulando ou torneando os obstáculos que atravancavam o caminho para o socialismo. O trilho é hoje absolutamente seguro, embora todos nós saibamos que se vai no início da jornada. A vitória definitiva do socialismo já não oferece dúvidas.

 

O que é o socialismo?

 

O socialismo é uma doutrina que predica a posse e o usufruto dos bens, dos meios de produção, de circulação e de troca, pela colectividade. Dentro desta definição geral cabem diversas escolas. Há escolas chamadas impropriamente socialistas, as dos individualistas Stirner, Tucker, Mackay, etc., que estão em absoluto desacordo com a fórmula por nós dada acima. Estes pensadores são anarquistas no bom sentido da palavra. O anarquismo colectivista de Bakunine e o anarquismo comunista de Kropotkine negam em economia o que afirmam em política. O anarquismo é essencialmente individualista. Desde que se estabelece, mesmo por acordo ou contrato, uma fórmula societária com direitos e deveres, restringe-se a liberdade individual, isto é, nega-se o anarquismo. O anarquismo, assim compreendido, nada tem com o socialismo, opõe-se-lhe.

 

Se considerarmos o socialismo como o postulado do amor do próximo e da vida em comum quase pode afirmar-se que o socialismo é tão antigo como a história da humanidade.

 

Na Idade Antiga há quem veja na legislação de Licurgo, nas teorias de Pitágoras e de Platão, nos programas de Viscelino, de Licínio e dos Graco, outras tantas manifestações socialistas. Na igreja cristã, desde os apóstolos a Leão XIII, transitando pela experiência dos jesuítas no Paraguai, quer-se ver ainda o socialismo. Houve mesmo dentro do cristianismo algumas seitas que se não limitaram à propaganda teórica mas que recorreram à rebelião armada para fazer vingar os seus ideais de renovação social, talando os campos e apossando-se das terras, invadindo as cidades e assenhoreando-se delas. Estão neste caso os anabaptistas, chefiados primeiro por Thomas Munzer e depois por Jean Seyde e que tanto pânico causaram na Alemanha, no século XVI. A sua linguagem violenta não diferia da dos mais extremos revolucionários dos nossos dias.

 

«Descendemos todos do mesmo pai», diziam eles. Donde vem, pois, a diferença de classes e de bens? Porque jazemos na miséria, enquanto que outros vivem na abundância? Não temos nós direito aos bens que, pela sua natureza, devem pertencer a todos? Entregai, ricos do século, entregai, usurpadores cúpidos, entregai os tesouros de que indevidamente vos chamais senhores.

 

Durante a Idade Média vemos surgir uma copiosa literatura em que há simultaneamente uma crítica impiedosa das sociedades desse tempo e onde se esboçam soluções de novas organizações sociais. O poder discricionário dos reis e dos nobres, a censura e execração da Igreja contra toda a propaganda revolucionária, impediam os escritores e filósofos de expor abertamente o que pensavam. Tornearam-se os obstáculos. Adoptou-se então para a divulgação de doutrinas novas a prática de recorrer-se a viagens hipotéticas a países hipotéticos também e com viajantes não menos hipotéticos.

 

São muito conhecidas A Utopia, de Thomas Moore, e A Cidade do Sol, de Campanela, mas é vastíssima a bibliografia deste género. Há, sobretudo, duas obras-primas desta literatura a que não queremos deixar de fazer uma maior referência. Trata-se de As Viagens de Gulliver, de Jonatham Swift, e Télémaco, de Fénélon, ambos padres.

 

O primeiro, com uma ironia superior e acerada como lâmina de punhal, descreve os costumes de Liliput. O rei decreta sobre a maneira dos seus subditos quebrarem os ovos e escolhe os seus ministros entre os mais ágeis saltadores, o que simultaneamente o diverte pelas quedas a que os força. É levar a soberania do poder ao cúmulo do ridículo! É soberba e inigualável de intenção crítica aos factos históricos anteriores a conversa de Gulliver com os espíritos no país de Glubedrudibo. Lucrécia, interrogada sobre a vingança que tirara em si própria pelo crime de outrem, responde: «Os historiadores, com receio de me darem por fraca, endoideceram-me.» César, na presença de Bruto, confessa: «Todas as minhas boas acções estão abaixo do feito de Bruto, que livrou Roma da minha tirania.» E é uma dissecação mordaz, mas sempre elegante e fina, dos reis, dos nobres, das fraquezas humanas, enfim, de todos aqueles cuja glória repousa no crime e que a história aponta como autênticos heróis e grandes homens. Finalmente, na ilha dos Cavalos, os habitantes que dominam, que cavalos são, não dão ao homem a categoria de ser racional, tão espantosamente inferiores lhes parecem os seus hábitos morais. E quando Gulliver descreve os costumes da sua pátria, a Inglaterra, um dos cavalos exclama estupefacto:

 

«Pois quê! Toda a terra não pertence a todos os animais e não têm um direito igual aos frutos que ela produz para seu alimento? Porque é que há homens privilegiados que colhem esses frutos com exclusão dos seus semelhantes? E se alguns pretendem um direito mais especial não devem ser precisamente aqueles que, por seu trabalho, contribuem para tornar a terra útil?»

 

Neste período estão delineados os fins de toda a sociedade organizada, segundo o pensamento de Jonatham Swift, humorista tão forte e profundo como Cervantes e tão desgraçado como ele, pois terminou os seus dias num hospício de doidos.

 

Fénélon, o arcebispo de Cambrai, põe na boca de Adoam esta descrição do país de Betica:

 

«Todos são livres, todos são iguais. Não se conhece entre eles outra diferença mais do que a que os sábios velhos granjeiam por sua experiência ou a que merece a atilada sabedoria de alguns mancebos que ombreiam com os velhos consumados em virtudes. Esses países nunca foram inquietados com os cruéis e malignos temores da fraude, da violência, do perjúrio, dos pleitos, nem da guerra. A sua terra nunca foi tinta com o sangue humano.»

 

Esta obra foi escrita para educação de um príncipe a quem estava reservado, um trono e que uma morte prematura fez ocupar por Luís XV, o mais devasso dos Capetos que reinaram em França.

 

O século XVIII, o século da Grande Revolução, viu surgir uma plêiade numerosa de pensadores e filósofos de tendências socialistas. Muitos dos discípulos de Jean-Jacques Rousseau manifestaram essa inclinação. Morelly e Mably advogam abertamente o comunismo. Alguns dos convencionais célebres arengaram às turbas como o não fariam melhor os nossos anarquistas de hoje.

 

Brissot exclama:

 

«Ninguém tem o direito de apropriar-se seja do que for com exclusão dos outros. A propriedade é um roubo.»

 

Claudio Fauchet (1), o padre Fauchet, interroga:

 

«Quem é o celerado que desejaria ver continuar um regime infernal onde se contam por milhões os miseráveis e por dúzias os insolentes que nada fizeram para tudo possuírem?»

 

Saint-Just, o implacável Saint-Just, troveja:

 

«Que direito têm na pátria aqueles que nada fazem?»

 

Mas é sobretudo em Babeuf, no seu Manifesto dos Iguais, que encontramos uma melhor precisão de ideias.

 

«Nada de propriedade individual das terras; a terra não pertence a ninguém. Nós reclamamos, nós queremos, o gozo em comum dos produtos da terra: os frutos são de todos.»

 

Eis a definição de princípios elaborada por Babeuf:

 

«1.º - A natureza dá a todos um direito igual ao gozo de todos os bens.

2.° - O fim da sociedade é defender esta igualdade, pelo concurso de todos e para gozo comum.

3.º - A natureza impôs a cada um a obrigação de trabalhar; ninguém pode, sem cometer crime, subtrair-se ao trabalho.

4.º - Os trabalhos e gozos devem ser comuns.

5.º - Há opressão todas as vezes que um se esgota pelo trabalho e lhe falta o preciso, enquanto que outro nada na abundância sem fazer coisa nenhuma.

6.º - Ninguém pode, sem cometer crime, apropriar-se exclusivamente dos bens da terra e da indústria.

7.º - Na verdadeira sociedade não deve haver pobres nem ricos.

8.º - Os ricos que não querem renunciar ao supérfluo em favor dos indigentes são inimigos do povo.

9.º - Ninguém pode, por acumulação de todos os meios, privar outrem da instrução necessária para a sua felicidade: a instrução deve ser comum.

10.º - O fim da revolução é destruir a desigualdade e restabelecer a felicidade comum. As instituições sociais não devem deixar a ninguém a esperança de poder um dia vir a ser mais rico, poderoso e instruído do que qualquer dos seus iguais.»

 

Era possível o comunismo nos fins do século XVIII? É desnecessária a interrogação.

 

Muitos destes precursores iam ao socialismo por um combate incessante ao progresso da técnica industrial, que se esboçava então. Este socialismo que caminha às arrecuas, semelhando o caranguejo, frutificou e frutifica ainda por desgraça nossa. Os anarquistas, um grande número, pelo menos, advoga a pulverização dos meios de produção e de troca, exaltando a comuna livre como organismo tipo de base múltipla - administrativo, de produção e de distribuição (2), Não é a primeira vez que anarquistas com um curso superior vêm publicamente defender o regresso às comunas primitivas ou da Idade Média (3).

 

A todos aqueles construtores de sociedades socialistas que precederem ou que viveram durante a Grande Revolução faltou o instrumento essencial de actuação - o proletariado, que tinha de ser em nossos dias o grande propulsor do socialismo. Bem se pode dizer que há 135 anos o proletariado não existia em França como classe perfeitamente definida. Lião, que era então o maior centro manufactureiro, não contava mais de 80000 operários; Paris tinha 16000; Bordéus e Marselha, menos ainda (4). A burguesia, essa sim, tinha os seus interesses e objectivos bem definidos e determinados.

 

Quando em 1789 a burguesia trava o seu duelo de morte contra os privilégios da realeza, da nobreza e do clero, não faz mais do que defender os seus interesses económicos, comprimidos por aqueles privilégios. Já vinham de longa data as tentativas de emancipação da burguesia. A constituição das cidades livres, na Alemanha do Norte, as comunas dos séculos XI e XII e a tentativa de Estêvão Marcel, em França, são outras tantas etapas que assinalam o esforço da burguesia para sacudir um jugo que lhe vergava os ombros.

 

A descoberta da América, o conhecimento dos mercados da África, da Ásia e da Oceania, exigindo a expansão dos negócios mercantis, forçaram os burgueses a ver os inconvenientes do trabalho servo na agricultura e os defeitos das corporações dos misteres na manufactura dos diversos artigos. A burguesia carecia da multiplicação dos meios de troca. Pouco a pouco, lentamente, tropeçando a cada passo com os privilégios das classes dominantes, a burguesia foi modificando as condições de produção, mas, a breve trecho, reconheceu que lhe era indispensável a conquista do poder político, não só para alargar a passo rápido as suas conquistas no terreno económico como para assegurá-las de uma maneira definitiva. E nós vimos então como só depois da conquista do poder político a burguesia se consolida como classe dominante, como centuplica as suas forças e meios de acção, como cria, enfim, todas as condições a um triunfo sólido e duradoiro. É preciso não perder de vista esta experiência histórica.

 

Consolidando a sua posição como classe dominante, modificando as condições de trabalho, desenvolvendo-o e concentrando-o, a burguesia criou o proletariado, um proletariado cada vez mais numeroso que, pouco a pouco, por um contacto cada vez mais íntimo, aguilhoado pelas mesmas misérias e necessidades, retoma com a burguesia exploradora a mesma luta que esta mantivera durante séculos com as classes privilegiadas do período medieval.

 

É este facto novo, o aparecimento do proletariado, que não desconhecem já os escritores socialistas que vêm depois da Revolução Francesa.

 

Saint-Simon, que inicia a sua vida literária em 1802 com as Cartas de Genebra e em quem se reconhece uma das melhores cabeças do seu tempo, encara já a Revolução Francesa como uma luta entre duas classes - a nobreza e a burguesia - e afirma que a política não é senão a ciência da produção. Depois vieram Carlos Fourier, Victor Considérant, Robert Owen, Godwin, Proudhon.

 

Todos estes pensadores tinham um ponto de vista comum. Eles procuravam a melhor das organizações sociais possíveis, a organização social por excelência. E qual a base dessa organização? Quais eram os princípios sobre os quais se pretendia construir o edifício novo?

 

A natureza humana. Eram utopistas ainda porque procuravam uma organização social perfeita partindo de um princípio abstracto.

 

«Para resolver o problema de uma organização social perfeita ou, o que vem a dar na mesma, a melhor de todas as legislações possíveis - diz Georg Plekhanov -, é preciso um critério com o auxílio do qual nós possamos comparar as diversas legislações. E esse critério é preciso que tenha um carácter essencial. Não se trata com efeito de uma legislação que tenha algo de relativo, que não dependa por coisa nenhuma da relação de tempo e de lugar. É-nos forçoso portanto fazer abstracção da história, porque tudo aí é relativo, dependendo das circunstâncias, do lugar e do tempo. Mas, abstraindo da história que fica para guiar-nos na pesquisa da melhor das sociedades? Fica a humanidade, o homem em si, a natureza humana, de que a história não é senão o reflexo das suas manifestações. Eis, pois, um critério determinado. A legislação perfeita, a melhor de todas as organizações sociais, será aquela que melhor corresponda à natureza humana» (5).

 

Plekhanov demonstra com muita facilidade e brilho a invalidade de uma tal base. A natureza humana é mudável não só no tempo e no lugar, ela diferencia-se no mesmo período histórico e no mesmo agregado social consoante a posição que o indivíduo ocupa em relação às condições materiais de existência. Cada classe terá uma concepção muito sua da melhor organização social. E assim, servindo-se do mesmo princípio, a natureza humana, justificar-se-á a ordem de coisas existente e até o regresso a fórmulas anteriores de organização social. E, de facto, os contraditores do socialismo apoiam-se precisamente nas deficiências e imperfeições da natureza humana para contestar a possibilidade do socialismo.

 

Bakunine, Kropotkine, Grave e outros divulgadores do anarquismo prometeram inicialmente desviar-se dos métodos metafísicos para justificar a sua doutrina, mas é facílimo deparar nos seus escritos com as ideias motrizes da Liberdade, da Justiça, da Razão e toda a demais fraseologia cediça e gasta dos democratas. Ora o reinado da Razão iniciado pelos discípulos de João Jacques deu a sociedade burguesa. Eles, os teóricos do anarquismo, pretendem, é certo, de quando em vez, escapar aos princípios abstratos reconhecendo umas vezes que a influência do meio é uma lei natural que em todos deixa sentir os seus efeitos e que é preciso portanto modificar o meio para criar um indivíduo novo, mas voltam logo à metafísica, querendo, pela educação, criar o tipo novo que modifique a sociedade. A influência da educação é muito relativa e esperar que ela, por si só, prepare os espíritos para um novo estado de coisas é condenar o proletariado a ultrapassar os limites das suas condições materiais de resistência. Ele perecerá inevitavelmente de miséria, à espera do reinado da igualdade anarquista que exige uma preparação impossível. Ao proletariado de hoje interessa o que ele pode realizar ou ver realizado imediatamente. Felizmente para ele, são factores mais positivos, que não o estado de perfeição da natureza humana, que determinam transformações sociais.

 

Foi Hegel, um filósofo alemão, quem primeiro considerou a História um processo submetido a leis, tal qual como se aplicava já no seu tempo para o estudo das ciências naturais, pela sucessão de causas e efeitos, dependendo-se reciprocamente; foi ele um dos primeiros que buscaram o móbil do movimento histórico sem considerar a natureza humana como factor determinante.

 

Todavia, mesmo com Hegel, subsistia a pergunta: «Qual é a causa oculta que produz o movimento histórico da humanida?» Porque Hegel, apesar de tudo, era um idealista, isto é, via objectos e os movimentos do mundo real como reflexos da inteligência, em vez de olhar as manifestações intelectivas como consequências do mundo real e vivo.

 

 

 

 

(*) Este texto contitui o prólogo ao livro ‘A Rússia dos Sovietes’, Livraria Editora Guimarães e C.ª, Lisboa, 1925, publicado na sequência da visita do autor à União Soviética no ano anterior. Este livro foi reeditado em 1976 pela Seara Nova com prefácio de César Oliveira.

 

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NOTAS:

 

(1) Não confundir com outro padre da mesma época, Fouché, que foi ministro da polícia com Napoleão I.

 

(2) Francisco Quintal. Tese apresentada na Conferencia Anarquista realizada em Lisboa em 1924.

 

(3) Campos Lima. Artigo publicado em A Batalha de 10 de Fevereiro de 1924.

 

(4) Jean Jaurés, História Socialista.

 

(5) Georg Plekhanov, Anarchisme et Socialisme, pp. 13-14.