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Marxismo (*)
José Carlos Rates
O que Hegel não conseguira resolver de uma maneira definitiva, isto é, fixar as causas que determinam o movimento histórico da humanidade, ia resolvê-lo outro filósofo alemão, Karl Marx.
Examinemos os diferentes pontos da sua doutrina.
Concepção materialista da história
Para a produção social dos seus meios de existência, os homens entretêm relações determinadas, necessárias, independentes, da sua vontade, relações de produção que correspondem a um certo grau de desenvolvimento das forças económicas de produção. O conjunto destas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superstrutura jurídica e política e à qual correspondem diversos modos do pensamento social. O modo de produção da vida material determina em geral o desenvolvimento da vida social, política e intelectual. Não é, pois, a maneira de pensar do homem que explica a sua maneira de viver mas, pelo contrário, é a sua maneira de viver que explica a sua maneira de pensar.
Num certo grau do seu desenvolvimento, as forças materiais de produção entram em conflito com as relações de produção existentes ou falando a linguagem jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais aquelas forças tinham evoluído até então. Estas relações, que eram antes as formas do desenvolvimento das forças produtivas, convertem-se noutros tantos obstáculos. Entra-se então num período de revolução social (1).
Se queremos achar as causas determinantes de tal ou tal metamorfose ou revolução social, será preciso buscá-las não na cabeça dos homens, no seu conhecimento superior da verdade e da justiça eternas, mas na metamorfose dos modos de produção e de troca, numa palavra, é preciso buscá-las não na filosofia, mas na economia da época estudada. Quantas vezes vemos nós na história uma convicção irresistível apoderar-se das inteligências de que as instituições sociais existentes são irracionais e injustas, que o que era obra da razão se tornou um absurdo, que o que era um benefício se converteu num grande mal? Que significa este fenómeno? Que, lentamente, silenciosamente, os métodos da produção e as formas de troca sofreram metamorfoses com as quais se não coaduna mais a ordem social adaptada a condições económicas anteriores e já gastas por isso mesmo. Se este ponto de vista é verdadeiro, segue-se que as novas condições económicas devem também conter em si, num certo grau mais ou menos desenvolvido, os meios de aniquilar as incongruências constatadas. É preciso, portanto, aplicar o espírito humano não a inventar aqueles meios mas a descobri-los nos factores materiais da produção dada (2).
Já nos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada em 1864, se dizia:
A sujeição económica do trabalhador aos detentores dos meios de produção é a causa principal da sua servidão e de todas as formas de miséria social, envelhecimento intelectual e dependência política.
E por isso se concluía que:
A emancipação económica da classe operária é o grande objectivo a que todo o movimento político se deve subordinar como meio.
Esta concepção materialista da história tem naturalmente os seus contraditores. Saverio Merlino diz: «Admitindo que as necessidades de vida material tivessem determinado a associação humana, há muito tempo que a complicação crescente das relações sociais teria feito desaparecer a subordinação da estrutura social ao factor económico e teria mudado a causa em efeito, em interdependência. É por isso que, hoje, pelo menos, se a evolução económica determina a constituição do Estado e da família, a evolução do pensamento e das crenças religiosas, que são derivantes, reagem sobre a constituição económica» (3).
Ora nós, os marxistas, não afirmamos que em determinados períodos históricos não haja uma interdependência entre os dois fenómenos, a constituição económica e a constituição política, pelo contrário. Todo o regime social novo é mais ou menos harmónico com as suas bases económicas, sendo o seu reflexo. O trabalho da Revolução Francesa e dos anos que se lhe seguiram foi precisamente uma obra de adaptação política, jurídica e religiosa ao novo estado de coisas económicas criado e que implicara já a destruição de facto do feudalismo e das corporações dos misteres. Há evidentemente, até um certo ponto, uma interdependência entre o sistema político e o sistema económico, e é isso precisamente que nós afirmamos. Essa interdependência, porém, não quer dizer que a economia se não sobreponha à política. Como Marx, nós dizemos que a anatomia da sociedade burguesa se estuda na sua economia política. No fundo é sempre o factor económico que acaba por dominar o factor político. O que nós vemos dia a dia, hora a hora, é as forças económicas evoluírem independentemente dos sistemas políticos. O vapor, a máquina, a electricidade, surgiram não por força de decretos. A legislação ocupou-se destes assuntos muito posteriormente, isto é, quando já eram factos consumados e reconhecidos. Mas nem sempre a legislação acompanha a evolução económica e sobretudo as reformas que a técnica impõe. As constituições políticas dos Estados fundamentam-se nestes dois princípios: garantia do direito de propriedade e liberalismo económico. Todavia, há muito que estes dois princípios estão em luta com os progressos da técnica e com os interesses colectivos. Durante a guerra as necessidades imperiosas das colectividades levaram os governos responsáveis a vibrarem golpe sobre golpe nestes princípios fundamentais das constituições políticas. A mobilização de fábricas e oficinas, a requisição de viaturas, animais e géneros, a fixação de preços, etc., que são senão ataques aos princípios do direito de propriedade e do liberalismo económico? Mas não era necessária a acção do Estado; a própria evolução capitalista anula de facto, com o trust, com o cartel, com o consórcio, etc., o liberalismo económico. A evolução do pensamento e das crenças religiosas reagem sobre a constituição económica - diz Merlino. É exacto. Mas não têm o poder de modificá-la, pelo contrário, sofrem as modificações que o modo de ser económico impõe.
Frequentemente nós ouvimos dizer que a escravidão desapareceu como uma consequência da irradiação do cristianismo. Nada de menos verdadeiro. A escravidão subsistiu ao lado da Igreja durante séculos, o que não quer dizer que ela a sancionasse. E que a moral cristã foi impotente para dominar os factores materiais que determinaram a acção humana de outras idades, prova-o o facto de os nossos primeiros navegadores, todos cristãos dos de melhor quilate, que iam à descoberta das terras desfraldando ao vento a cruz de Cristo, se entregarem ao tráfico dos escravos. O escravo converteu-se em servo adstrito à gleba do senhor quando para este deixou de constituir um valor de troca para ser simplesmente um valor de produção. A igreja cristã tem vivido séculos acompanhando todas as formas sociais. E porquê? Porque realiza constantemente um trabalho de adaptação. Era absolutista com Gregório VII, Inocêncio III e Bonifácio VIII; fez-se democrática depois da Grande Revolução e pretende ser socialista depois de Leão XIII. É o que se pode observar presentemente na Rússia. A Igreja pretendeu opor-se inicialmente ao novo estado de coisas, e reconhecendo por fim que tentava uma batalha sem êxito procura hoje adaptar-se o mais possível à nova organização social.
Teoria da mais-valia, acumulação de capitais e concentração das forças económicas
A apropriação, pelo capitalista, do trabalho não pago é a forma fundamental da produção capitalista e da exploração dos operários que é inseparável dela. O capitalista, mesmo pagando a força do trabalho pelo valor real que, como mercadoria, tem no mercado, extrai todavia dela mais do valor que é necessário para adquiri-Ia e esta mais-valia constitui, no fim de contas, a soma dos valores donde provém a massa do capital sem cessar crescente, acumulado nas mãos das classes possuidoras (4).
Desde que uma parte da sociedade açambarcou os meios de produção, a outra parte, a quem incumbe o fardo de trabalho, é obrigada a acrescentar ao tempo de trabalho preciso para o seu próprio sustento um excesso de que não recebe nenhum equivalente, o qual se destina a enriquecer os possessores dos meios de produção. Como usufruidor de trabalho não pago que, pelo seu crescente aumento de valor, de que é a fonte, todos os dias acumula mais nas mãos da classe proprietária os instrumentos de dominação, o regime capitalista ultrapassou, em poderio, todos os anteriores regimes de trabalhos forçados (5).
Exemplifiquemos:
Suponhamos que o capitalista realizou nas suas fábricas um movimento global de negócios na importância de 5000 contos. Admitimos que essa importância se distribui do seguinte modo:
Matérias-primas..........................................2100 contos Salários........................................................1800 » Gastos gerais................................................500 » Conservação do material.............................100 » Lucro (parte relativa à manutenção do capitalista) ...............................................200 » Lucro (excedente ou mais-valia).................300 » ____________ 5000 contos
É evidente que fazemos aqui uma distribuição arbitrária. Mas que a importância de cada rubrica se restrinja ou alargue, isso não tira de modo algum o valor ao nosso raciocínio. Uma parte do lucro destina-se à manutenção do capitalista com os seus gozos e comodidades, como compensação do seu esforço e da sua direcção, a outra, a mais-valia, acumula-se e converte-se em nova fonte de exploração do trabalho humano, pelo alargamento das oficinas, pela introdução de novos maquinismos, pela fundação de empresas novas, etc., etc. E este movimento produz-se incessantemente no caso do lucro verificado. É o que se chama a acumulação dos capitais, que difere da concentração dos mesmos capitais que se realiza pela constituição das sociedades por acções, obrigações de companhias, depósitos bancários, etc.
Porém, o capitalista criou por si novos aumentos de valor. Pondo na mesma oficina muitos operários a trabalhar no mesmo acto de produção, ou em actos de produção diferentes mas que se relacionam, ele aumentou o valor global da produção de cada um dos operários, isto é, faz que 20 operários juntos produzam mais do que 20 operários isolados, da mesma forma que a força de ataque de um esquadrão de cavalaria difere profundamente do total das forças despendidas por cada um dos cavaleiros. Chama-se a isto dar ao trabalho a forma cooperativa. Mas não ficou por aqui o capitalista. A seguir à forma cooperativa ele instituiu a manufactura. Cada operário fazia dantes a mercadoria completa, executando, uma após outra, as operações necessárias. O capitalista, em vez de fazer executar as diversas operações por cada um dos operários, confia cada uma dessas operações a um só operário e este, à força de repeti-Ia, adestra-se cada vez mais, duplicando a sua produção. Cada operário contribui com determinada operação para a conclusão da mercadoria. De produto individual de um operário independente executando uma porção de operações diversas, a mercadoria torna-se um produto social de uma reunião de operários que executam constantemente a mesma operação parcial (6).
Depois veio a máquina, a indústria concentrou-se mais ainda, surgiram o cartel e o trust, pondo em perigo a pequena fábrica.
O grande capital de hoje - diz Marx - obteve a sua origem da destruição das pequenas propriedades, nas quais o trabalho e a propriedade privada estavam realmente associados e nas quais o trabalhador era também o verdadeiro proprietário dos seus meios de produção e do produto do seu trabalho. Esta forma, equitativa em si, da propriedade privada, na qual o trabalhador era o livre proprietário dos meios de trabalho por ele manejados, esta forma tinha o grande defeito de fragmentar os meios de produção e este fraccionamento trazia, por consequência, o prejuízo à sua produtividade e aos seus meios de acção. A pequena propriedade tinha que desaparecer por este defeito, e tudo o que resta dela desaparece dia a dia pelo constrangimento poderoso do grande capital agrícola e industrial (7).
A propriedade privada, adquirida pelo trabalho pessoal e baseada, por assim dizer, na união do indivíduo independente e isolado com as condições do seu trabalho particular, tem sido suplantada pela propriedade privada capitalista baseada na exploração do trabalho de outrem.
Desde que este processo de transformação destruindo as pequenas propriedades decompôs suficientemente a velha sociedade; desde que os antigos trabalhadores individuais foram convertidos em proletários, isto é, em trabalhadores separados dos seus meios de produção; desde que os meios acessórios de trabalho foram convertidos no grande capital moderno, a luta do capitalismo foi ainda mais longe: o grande capital, na sua segunda fase de desenvolvimento, combateu o próprio capitalista pequeno.
Graças à concentração contínua dos meios de produção nas grandes indústrias, um capital delas mata muitos outros; mas, ao mesmo tempo, no domínio do grande capital privado, desenvolveu-se, igualmente e simultaneamente, a forma cooperativa do trabalho numa escala sempre crescente, a aplicação da ciência à técnica, a transformação dos meios de trabalho pessoal em meios de trabalho que não podem ser empregados senão socialmente e o entrelaçamento dos povos na rede do mercado universal.
Em resumo, a concepção marxista apoia-se sobre a ideia fundamental de que a transformação da propriedade pessoal em propriedade capitalista e da propriedade capitalista em propriedade social tem por factor determinativo a superioridade produtivista do capitalismo sobre a pequena produção e do socialismo sobre a produção capitalista (8).
O conflito entre o regime de produção, o regime de propriedade e a luta das classes
Já vimos como a produção se transformou de uma série de actos individuais em uma série de actos sociais. Esta revolução operada quanto à produção não atingiu de modo algum a distribuição. O capitalista, tendo conjugado e combinado as acções dos operários para a produção das mercadorias, dispôs, ele só, da mercadoria acabada e lançou-a no mercado, recolhendo os benefícios. À reciprocidade de esforços na produção não correspondeu a reciprocidade dos benefícios na distribuição. Era o resultado da concentração dos meios de produção nas mãos do capitalista, enquanto que aos produtores não restava outra riqueza que a sua força de trabalho. Este antagonismo entre produção social e apropriação capitalista transformou-se no antagonismo entre proletários e burgueses.
Em toda a indústria onde os novos métodos - a cooperação e a manufactura - foram introduzidos, eles não suportaram mais a seu lado nenhum dos antigos métodos de exploração. Por toda a parte os ofícios medievais foram destruídos e transformados. Assistiu-se a uma batalha impiedosa a que as antigas formas de produção sucumbiram sem mercê. Era - como diz Engels - a concorrência vital darwiniana transplantada da natureza para a sociedade com uma violência exasperada.
Porém, uma vez arredados definitivamente os antigos métodos, a luta prossegue entre os novos directores da produção. Cada industrial, para não cair na ruína, é forçado a aperfeiçoar constantemente os seus maquinismos que restringem cada vez mais os preços da mão-de-obra e que tornam possível o menor custo das mercadorias.
Com a introdução intensiva da maquinaria, a produção desenvolve-se anarquicamente sem ter em conta a capacidade de compra manifestada nos mercados. Em certa altura, os stocks acumulam-se nas fábricas sem encontrarem saída. Dá-se então a paragem brusca do trabalho. Legiões inteiras de trabalhadores são lançados na rua e na miséria, precisamente no momento em que se verifica uma superprodução. Os operários sofrem a fome porque se produziu a mais. Simultaneamente verifica-se que aperfeiçoamento do maquinismo quer dizer eliminação do trabalho humano, o que dá lugar à criação de um exército operário de reserva, disponível, quando a indústria trabalha intensivamente, imobilizado, quando vem a crise da superprodução. Este exército de reserva garante ao capitalista a possibilidade de fazer descer os salários até um nível mais baixo cujo poder de aquisição não basta aos gastos de conservação do operário e sua família. O capitalista sofre também com as crises vendo-se obrigado nalguns casos a vender por menos do custo de produção. Com estas crises a moeda, que é o meio de troca, desequilibra-se, trazendo novas complicações.
Então, passada a crise, assiste-se a uma nova concentração das forças económicas, outras pequenas indústrias são absorvidas e eliminadas. O trust e o cartel dominam cada vez mais. A lei da concorrência, que é um dos fundamentos da economia burguesa, é por assim dizer anulada, pois o restrito número de produtores capitalistas de uma mesma mercadoria tem toda a possibilidade de impor os seus preços por uma combinação prévia. Poderia ainda, em tais casos, valer a produção estrangeira das mesmas mercadorias. Mas, nesta altura, o Estado intervém a título de auxiliar as indústrias nacionais e inicia a política proteccionista, isto é, barra a entrada das mercadorias estrangeiras pela elevação dos direitos fiscais. Por outro lado, os serviços de comunicação e transportes aperfeiçoam-se. Criam-se serviços novos de informação, de modo a conhecer-se com maior exactidão a situação dos mercados, por mais longínquos que sejam. Mas não é impunemente que se opera este trabalho de concentração das forças económicas. O proletariado cresce com a concentração das forças económicas e toma mais exacto conhecimento da sua situação, das suas necessidades, das suas possibilidades de defesa. E a luta trava-se entre capitalistas e proletários, recrudescendo com o andar dos anos e de par e passo com o processo de concentração. A sociedade aparece-nos como uma mecanismo social constituído pelas classes cujos interesses antagónicos reflectem ideias e paixões diferentes que servirão à elaboração de um novo método de ser social. Esquematicamente a situação é esta: concentração das forças de produção nas mãos de um pequeno número de capitalistas que lutam entre si no mercado económico; unificação das noções e dos sentimentos no proletariado que vai crescendo continuamente; luta entre as duas classes fundamentais da sociedade - proletárias e capitalistas. Resultado final: expropriação dos capitalistas e apropriação comum pelos trabalhadores dos meios de produção.
A ideia do Estado
Para construir a sociedade comunista - dizia há pouco Ricardo Louzon - é indispensável que o proletariado se torne senhor dos órgãos de força, em dono do poder político, o que lhe permitirá por uma vez repelir e jugular os ataques da classe adversa e construir a sociedade nova.
O erro capital dos anarquistas é supor, é julgar, que basta destruir o Estado burguês para que a sociedade comunista surja por si própria. A violência não tem somente um valor destrutivo; é tão indispensável para edificar como para demolir.
Mas o erro anarquista não é nada ao lado daquele que consiste em pensar que basta instalar-se nos órgãos do Estado burguês para os fazer funcionar ao serviço do proletariado e da Revolução. É o grande título de glória de Karl Marx, primeiro, e de Lenine, depois, terem-se apercebido, o primeiro com a experiência da Comuna de Paris, o segundo com a experiência dos Sovietes, logo no seu início, que a antiga máquina do Estado não poderia ser um instrumento da revolução proletária, senão com a condição de possuir uma estrutura completamente diferente da do Estado burguês.
Um Estado é o produto de uma classe. O proletariado, que é a inversa da classe burguesa, não pode possuir um Estado que não seja a inversa do Estado burguês.
A dominação da burguesia é fundada na astúcia: a classe burguesa criou portanto um sistema baseado na burla. Burla, a soberania do povo, esta soberania que não consiste senão em fazer publicamente o abandono da sua soberania em face do voto; burla, a fiscalização parlamentar, esta fiscalização que consiste em nada saber e não poder estar em condições de verificar o que fazem aqueles que se tem o encargo de fiscalizar; burla, a separação dos poderes que ninguém sabe explicar como se acha realizada.
O Estado burguês tem por papel privar o maior número da sua soberania; o Estado proletário tem por fim impedir que o maior número seja privado desta soberania. Não se pode atingir este resultado com os métodos e os órgãos criados para alcançar um resultado oposto.
Um Estado proletário não pode estabelecer-se senão pela destituição total do Estado burguês, criando uma estrutura própria. Toda a propaganda que deixa acreditar que o Parlamento pode subsistir, embora com o carácter operário, e que um tal Parlamento pode ser o instrumento da Revolução, é uma propaganda social-democrata, é uma propaganda claramente contra-revolucionária.
A destruição do parlamentarismo, a instituição de um Estado onde todo o poder seja directamente exercido por órgãos operários, tal é o fulcro da propaganda revolucionária (9).
No marxismo, a ideia do Estado, mesmo proletariano, não tem um carácter definitivo e perdurável. Não se vai de um salto do capitalismo ao comunismo; as classes não desaparecem subitamente. Há necessariamente um período de transição em que a luta de classes terá o seu termo definitivo. Se hoje nós observamos ainda, aqui e além, sobrevivências do feudalismo, como podemos admitir a subversão total, súbita e repentina, da classe burguesa e da sua ideologia?
Para os comunistas-marxistas como para os comunistas-anarquistas ou para os sindicalistas partidários de que o sindicalismo se basta a si mesmo, o que subsistirá depois não é o Estado, organismo de opressão de uma classe, mas uma administração das coisas. As comunas ligadas federativamente (Kropotkine); os sindicatos unidos local ou nacionalmente (Pelloutier, Pouget, Lagardelle, etc.); os Sovietes indo da freguesia rural à região e da região ao congresso nacional, tudo isto não é mais do que o aparelho necessário e indispensável à prática da administração das coisas.
Os anarquistas, que nunca se deram ao trabalho de ler Marx, falam dele com o mesmo ódio como se se tratasse de um partidário do Estado à maneira de um Guizot.
É indispensável por isso fazer conhecer as concepções de Marx sobre o Estado.
Logo no Manifesto Comunista, publicado em 1847, deparamos com o seguinte trecho:
«Uma vez que desapareçam os antagonismos de classe e que toda a produção esteja concentrada nas mãos dos indivíduos associados, então o poder público perderá todo o seu carácter político. O poder público, na verdade, é o poder organizado de uma classe para oprimir as outras. Se o proletariado na sua luta contra a burguesia se constitui forçadamente em classe, se ele se erige, por uma revolução, em classe dominante e como tal destrói violentamente as antigas formas de produção, ele destrói ao mesmo tempo as condições de existência do antagonismo das classes, ele destrói as classes em geral e por isso mesmo a sua própria dominação como classe.
«Em lugar da antiga sociedade burguesa, com as suas classes e os seus antagonismos de classe, surgirá uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição do desenvolvimento de todos» (10).
Já antes se havia dito no mesmo Manifesto:
«O proletariado servir-se-á da sua supremacia política para arrancar pouco a pouco o capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, quer dizer, do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar o mais rapidamente possível as forças produtivas» (11).
Quer dizer, para Marx, o Estado futuro é o domínio da classe operária. Mas vê-se bem que esta ideia do Estado é admitida para um período transitório. É o que se depreende do primeiro período transcrito e confirmado neste outro:
«Em lugar da velha sociedade burguesa, a classe operária, no decurso do seu desenvolvimento, instituirá uma associação excluindo as classes e os seus antagonismos; não haverá depois nenhum poder político, porque o poder político não é senão a expressão oficial dos antagonismos de classe no âmago da sociedade burguesa» (12).
Criticando a Revolução Francesa de 1848, Marx diz:
«Este poder executivo, com a sua enorme organização burocrática e militar, com o seu aparelho governamental tão complicado, e tão artificial, com o seu exército de meio milhão de funcionários e outros tantos militares, este monstruoso organismo parasitário que cobre como uma lepra todo o corpo da sociedade francesa e lhe veda todos os poros, nasceu na época da monarquia absoluta, quando da decadência do feudalismo.
«Enfim, a república parlamentar, na sua luta contra a revolução, viu-se obrigada a reforçar ao mesmo tempo todas as medidas de repressão e de centralização do poder do Estado. Todas as revoluções têm aperfeiçoado esta máquina em vez de quebrá-la» (13).
Já aqui se fala em quebrar a máquina do Estado.
Em 1870, quando já se falava de uma próxima revolução em França, Marx considerava esse acto como uma tolice ditada pelo desespero. Sabe-se que a Comuna de Paris foi obra dos proudhonianos e dos blanquistas. Todavia, logo que a revolução se tornou um facto, Marx saudou-a com entusiasmo, vendo nela uma experiência histórica de incontestável valor.
Numa carta escrita a Kugelman em 12 de Abril de 1871, isto é, precisamente quando os comunalistas se batiam com os versalheses, Marx dizia:
«Não mudar de mãos a máquina burocrática e militar, como se tem feito até aqui, mas quebrá-la, eis precisamente a condição indispensável de toda a revolução popular eficaz. Nisto consiste a heróica tentativa dos nossos camaradas parisienses».
O que haviam feito os comunalistas que tanto interessava Marx? Ele o diz:
«A Comuna começou por decretar a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo armado.
«A Comuna formou-se com os conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nas diferentes paróquias de Paris. Estes conselheiros eram responsáveis e amovíveis. A maioria compunha-se naturalmente de operários ou de representantes reconhecidos do operariado.
«A polícia, até aí instrumento do poder governamental, foi imediatamente despojada de todas as suas funções políticas e transformada num órgão responsável da Comuna, amovível em todo o tempo.
«O mesmo aconteceu com os funcionários dos serviços de administração. A começar pelos membros da Comuna, os serviços públicos deveriam recompensar-se mediante um salário operário. Todos os privilégios, todas as despesas de representação, foram suprimidos com estes funcionários. A Comuna empreendeu imediatamente o seu dever de quebrar o instrumento de sujeição moral, o poderio do clero. Os magistrados perderam a sua independência aparente. Doravante, eles deviam ser eleitos por um escrutínio público, ser responsáveis e amovíveis.
«A Comuna deveria ser não uma corporação parlamentar mas uma corporação laboriosa, ao mesmo tempo legislativa e executiva.
«Em lugar de decidir uma vez de três em três ou de seis em seis anos, qual seria o membro da classe dominante que deveria representar o próprio povo no Parlamento, o sufrágio universal deveria servir ao povo organizado em Comuna a recrutar todo o seu pessoal.
«O fim consistia em amputar os órgãos puramente opressores do velho poder do Estado e entregar as suas funções legítimas aos servidores responsáveis da sociedade» (14).
Marx é ainda mais preciso nas suas ideias sobre o Estado nos períodos que seguem:
«É a sorte habitual de toda a nova criação histórica, tomarem-na por uma das formas antigas e mesmo mortas da vida social, com as quais as novas instituições não têm nenhuma semelhança. Do mesmo modo, esta Comuna nova que quebra o poder do Estado actual foi olhada como uma tentativa de ressurreição da Idade Média, como uma confederação de pequenos Estados, como uma forma exagerada da antiga luta contra a centralização excessiva.
«O regime comunal daria ao corpo social todas as forças que devora ainda hoje esta excrescência parasitária chamada o Estado que vive a expensas da sociedade e entrava o seu livre desenvolvimento. Nada seria melhor para operar a renascença da França.
«O regime comunal conduziria os produtores agrícolas sob a direcção moral dos produtores das cidades principais de cada região e assegurar-lhes-ia, na pessoa dos operários das cidades, representantes naturais dos seus interesses. A existência mesmo da Comuna determinaria naturalmente a autonomia da administração local, mas não como contrapeso ao poder do Estado tornado desde então supérfluo» (15).
Ouçamos agora Engels na sua polémica com os anarquistas sobre a ideia do Estado e do princípio da autoridade:
«Se os anarquistas - diz ele - quisessem dizer que a organização social futura admitiria a autoridade somente dentro dos limites ditados pelas condições especiais de cada indústria, seria possível chegar-se a um acordo com eles. Mas, nada disso. Eles passam por alto sobre todos os factos que tornam necessária a autoridade e lutam apaixonadamente contra uma mera palavra.
«Porque se não limitam os antiautoritários a gritar contra a autoridade política ou contra o Estado? Todos os socialistas estão de acordo em que o Estado e juntamente a autoridade política devem ser abolidos, como resultado final da futura revolução socialista, quer dizer, que as funções públicas perderão o seu carácter político e serão transformadas em simples funções administrativas, concorrentes a determinados assuntos sociais. Porém, os antiautoritários querem que o Estado político desapareça de um sopro ainda antes de que as relações sociais que deram razão de ser ao Estado tenham desaparecido. Pedem que o primeiro acto da revolução social seja a abolição de toda e qualquer autoridade.
«Já viram esses senhores uma revolução? Inegavelmente, uma revolução é a coisa mais autoritária possível. A revolução é um acto no qual parte da população impõe o seu desejo e a sua vontade a outra parte da população, socorrendo-se de todas as armas contundentes - a bala, a baioneta, etc., isto é, pelos meios mais autoritários. E o partido triunfante vê-se inevitavelmente obrigado a manter a sua supremacia por meio do temor que inspiram as suas armas aos vencidos. Se a Comuna de Paris não tivesse confiado na autoridade da gente armada contra a burguesia, poderia durar mais de um dia? Não poderemos ainda censurar a Comuna por não ter feito um suficiente emprego da sua autoridade? E sendo assim, ou os antiautoritários não sabem o que dizem, e neste caso demonstram somente uma grande ignorância, ou realmente sabem o que dizem e então enganam o proletariado. Em qualquer dos casos, servem à maravilha os interesses da reacção» (16).
Mais recentemente, Bukharine, num estudo intitulado Anarchisme et Socialisme Scientifique, punha assim a questão:
«O comunismo científico vê no Estado a organização das classes dominantes, o instrumento da agressão e do poder. Por consequência, é evidente que para o comunismo a ideia do Estado futuro não pode existir. A sociedade comunista não será, não poderá ser, uma sociedade com Estado.
«O Estado é uma relação existente entre a classe governante e a classe oprimida. A essência do Estado consiste precisamente nesta relação. Se esta relação desaparece o Estado deixa de existir também.
«Poderemos, pois, esquematizar assim as ideias do marxismo sobre o Estado:
«1.° - Consequente com a concepção materialista da história, afirma que a um regime económico comunista, caracterizado pela socialização dos meios de produção, de circulação e de troca, corresponderá um regime de simples administração das coisas, em que se considera apenas a hierarquia da competência, sem atributos políticos autoritários;
«2.º - O período de transição entre capitalismo e comunismo caracterizado por uma luta de extermínio contra a burguesia, anula o Estado nas suas fórmulas históricas mas edifica o poder coercitivo do proletariado, que se arvora em classe dominante, até amoldar as populações à situação de produtores úteis, isto é, até apagar a diferenciação das classes».
(*) Este texto contitui o primeiro capítulo do livro ‘A Rússia dos Sovietes’ (Guimarães e C.ª, Lisboa, 1925). A sua nota mais curiosa é um erro eloquente na exposição da teoria da mais-valia. Para Rates, o lucro do capitalista subdividir-se-ia em duas partes, consoante o destino que este próprio lhe desse: o destinado ao seu próprio consumo e desfrute pessoal, seria a justa remuneração do seu esforço; só a parte destinada à acumulação como capital é que constituiria a mais-valia, proveniente do trabalho não pago ao operário...
____________ NOTAS:
(1) Karl Marx, Critique de l'Économie politique.
(2) F. Engels, Socialisme Utopique et Socialisme Scientifique, p. 72.
(3) Saverio Merlino, Formas e Essências do Socialismo, p. 205.
(4) F. Engels, Socialisme Utopique et Socialisme Scientifique, p. 72.
(5) Gabriel Deville, Bosquejo do Socialismo Científico.
(6) Karl Marx, O Capital, pp. 129-130.
(7) Em Portugal é fácil verificar pela Estatística das Contribuições Directas que o número dos pequenos proprietários e industriais tem aumentado em vez de diminuir.
(8) Emilio Vandervelde, O Colectivismo e a Evolução Industrial, p. 30.
(9) Ricardo Louzon. Artigo em l'Humanité.
(10) Karl Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, p. 38.
(11) Ibidem.
(12) Karl Marx, Misère de Ia Philosophie.
(13) Karl Marx, Le XVIII du Brumaire de Louis Bonaparte.
(14) Karl Marx, Guerre Civile en France.
(15) Karl Marx, Guerre Civile en France.
(16) [Nota do editor] Esta citação de Engels provém do seu artigo Da autoridade. |
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