No caminho da revolução (1)

 

 

José Carlos Rates

 

 

 

O suplemento de O Comunista, que publicámos a seguir à jornada de 22 de Fevereiro (2), foi objecto da mais viva discussão. Nem sempre a sua interpretação foi feliz e acertada.

 

A massa, a grande massa dos explorados, recebeu-o bem, com entusiasmo até. Houve, porém, um grupo de militantes, do melhor que há no nosso movimento operário e social, que viu na nossa atitude uma precipitação, uma leviana apreciação dos acontecimentos, uma temeridade e audácia desmarcadas.

 

A opinião destes militantes, que não pertencem ao Partido Comunista mas acompanham a sua acção, sintetiza-se na seguinte frase, expressa por um deles: Lamentamos não estar de acordo com o Partido Comunista.

 

Merece-nos um especial cuidado a opinião destes camaradas e, por isso, fazendo um sereno exame dos nossos actos, verificamos nada ter que rectificá-los, mas simplesmente que esclarecê-los.

 

A opinião daqueles camaradas fundamenta-se no seguinte:

 

1º - Na impreparação da massa, que é apenas revoltada, para uma revolução profunda de carácter social.

 

2° - Na impossibilidade imposta pelas nossas actuais condições económicas e geográficas.

 

A revolução social é uma peça em muitos actos espaçados, cuja ligação se não obtem por uma linha recta.

 

Numa reunião, em 18, nós dissemos: É preciso cair em massa na manifestação promovida pelas Juntas de Lisboa. Por detrás desse acto pode não estar nada; pode também estar a Revolução. E, na verdade, estava e está a Revolução.

 

O comício da Praça dos Restauradores foi para nós um indício, apenas, mas a jornada de 22 de Fevereiro é já uma revelação que não engana.

 

Quem acompanhou, do seu Início, a manifestação e a sentiu vibrar, quem no largo das Côrtes presenciou as tentativas para forçar as portas do Parlamento e ouviu de milhares de bocas a frase terrível: Vaise lá acima e atiram-se todos pela janela fora, e que tenha a nossa experiência, não pode pôr em dúvida que assistiu ao primeiro acto da Revolução social.

 

Simplesmente, uma Revolução social não é uma revolução qualquer, em um acto e alguns quadros. A Revolução social tem muitos actos, separados por largos intervalos. Entre a tomada da Bastilha e o 10 de Agosto medeiam três anos. O primeiro, é um acto espontâneo da multidão, com guias ocasionais, sem uma directriz social definida, acto que um conjunto de circunstâncias fortuitas coroou de êxito; o segundo, é um movimento disciplinado, preciso, com chefes categorizados, onde se observam as regras estratégicas, concentração ordenada no ponto decisivo, ataque a fundo visando um objectivo definido - a queda da realeza.

 

E, entre os dois actos, que soma de episódios, que série de zigue-zagues, que de hesitações e de desvios, constituindo todo um rico manancial de ensinamento revolucionário!

 

Converter-se em guia da multidão actuante e revolucionária, eis o primeiro esforço a que visa o Partido Comunista

 

A jornada de Fevereiro é, guardadas as devidas proporções, o nosso 14 de Julho. A multidão quer agir, está disposta a todos os sacrifícios. Mas move-se desordenada, sem objectivos precisos. Uma coisa é certa. Ela não confia nos políticos burgueses. Fez a todos um colossal manguito, de muitos milhares de punhos arqueados, não os deixando sequer falar. Este gesto foi espontâneo e simultâneo. A rua é da extrema proletariana - eis a grande revelação e o significado da jornada de Fevereiro, Mas é preciso não ter Ilusões. Não conquistámos ainda o direito de a conduzir, de levá-la ao combate pelas nossas palavras de ordem. Por enquanto, é ela que nos conduz. E preciso não descolar o ouvido do peito do paciente, sentir-lhe as palpitações, arriscarmo-nos com ele, inspirarmos-lhe confiança, para que ele aceite o remédio que urge aplicar no momento preciso.

 

O P. C., propagando e intensificando a palavra de ordem: Pelo governo dos operários e dos camponeses, fez o que lhe competia fazer.

 

É preciso que em todas as manifestações de massas o Partido Comunista surja tomando a dianteira; é preciso que a multidão se habitue a vê-lo e a segui-lo.

 

Só depois de muitas acções parciais ele está preparado para determinar o assalto geral e decisivo.

 

A rua será nossa. Todos os agrupamentos políticos burgueses estão na impossibilidade de reconquistá-la. Eis o factor primordial da Revolução. O que nos disse a manifestação de 22 de Fevereiro foi o seguinte: Tens aqui a matéria prima essencial. Trabalha-a, adapta-a aos fins que tens em vista.

 

E nós a trabalharemos. Repetir-lhe-emos cem vezes, mil vezes: Ao governo dos operários e dos camponeses. E, à força de repetir essa frase, ela panetrará em todos os cérebros como a solução única que convém adoptar.

 

O que o P.C. quer não é fazer de cada manifestante um comunista consciente, o que era pretender o impossível, o que o P.C. pretende, e consegui-lo-á, é converter-se no guia das multidões.

 

Não sendo Portugal um país capitalista, a trajectória da Revolução entre nós não se assemelha à dos países capitalistas.

 

Se aprofundarmos as causas da crise portuguesa, temos de reconhecer que os factos entre nós se não passam como nos países caracterizadamente industriais, cuja trajectória revolucionária Karl Marx tão magistralmente desenhou.

 

De facto, entre nós não houve jamais uma concentração larga das forças de produção, que precipitasse no seio do proletariado os médios e pequenos industriais, os médios e pequenos comerciantes, os médios e pequenos lavradores. Pelo contrário, todo o exame da nossa vida económica leva a uma conclusão oposta. O fenómeno operou-se no sentido inverso, principalmente depois da guerra. Apesar duma sensível emigração dos centros rústicos para os centros urbanos, o proletariado não aumentou.

 

Inversamente, aumentou o número dos pequenos empresários industriais, comerciais e agrícolas.

 

Não houve, nem haverá já, um verdadeiro capitalismo entre nós. As grandes empresas citam-se, todos as conhecem - a Companhia de Portugal e Colónias, a Companhia União Fabril, etc.. E estas mesmas produzem para o mercado interno, para as necessidades caseiras. Nunca, pelo desvio ou afrouxamento dos mercados externos, estivemos a braços com grandes crises de trabalho, com despedimentos em massa.

 

Somos um país que nunca presenceou, nem presenceará, uma crise capitalista, pelo simples motivo de se não ter desenvolvido entre nós um verdadeiro capitalismo. Bem diversa é a situação da Alemanha presentemente, e também dentro em pouco a da Bélgica, a da França e da própria Inglaterra, onde os desempregados atingem cifras colossais.

 

Como nunca tivemos grandes empresas, agrupando milhares de operários, nunca houve entre nós as grandes batalhas de classe. É tudo tão pequeno em Portugal!

 

Em compensação atingimos já a luta política, que é uma forma superior da luta de classes.

 

Corno se chegou a este extremo, sem demora nos pontos intermediários?

 

Porque, não obstante se não terem realizado a concentração máxima das forças de produção e a consequente proletarização das classes médias, estamos perante a catástrofe prevista por Marx?

 

A crise financeira do Estado, insolúvel, arrasta a queda do regime e precipita a Revolução.

 

Se exceptuarmos o período da primeira dinastia, verificamos que a nossa história económica se caracterisou sempre por uma posição deficitária. Temos vivido de tudo. Do comércio dos escravos ou das especiarias, do ouro do Brasil, dos empréstimos, das economias dos emigrantes, da circulação fiduciária, para pagarmos o excesso do que consumimos sobre o que produzimos. O montante das despesas e receitas do Estado excede em muito o movimento global das importações e exportações expressas em moeda. Do montante da circulação fiduciária, 1/4, apenas é desviado para o comércio e a indústria, sendo os restantes absorvidos pelas necessidades financeiras do Estado.

 

O Estado, entre nós, é tudo ou quase tudo. É ele ainda o nosso maior empresário. Há indústrias que só vivem mercê do seu patrocínio; há bancos que funcionam com o seu dinheiro; há empresas que com os seus descuidos realisam os maiores negócios. O caso da Companhia dos Tabacos não é inédito, tem precedentes. E zombam do infeliz, não há pedrada que lhe não atirem, forçando-o a viver de expedientes.

 

Esgotados e experimentados todos os expedientes, surge-nos a crise financeira do Estado, com o seu carácter insolúvel, crise que arrastará a queda do regime burguês e a dissolução do Estado nas suas fórmulas históricas.

 

O Estado vê-se num beco sem saída. Se aumenta a circulação fiduciária precipita a desvalorização da moeda, com todas as suas consequências de desordem social e dificuldades inerentes. Se não aumenta, o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o pequeno lavrador não obtêm descontos bancários, pela rarefacção da moeda, e então liquidam, proletarizando-se, ou obtêm créditos à força da elevação da taxa de juro, o que dá consequentemente a elevação do custo da produção, carestia da vida.

 

É isto o que neste momento se verifica. Empresas que liquidam por deficiências de meios para resistir à crise, classes que precipitadamente se vão proletarisando, aumento dos desempregados, exacerbamento da luta de classes na sua forma superior - a luta política. Crise insolúvel, guerra social levada ao extremo.

 

O governo toma providências sempre morosas e inoportunas. A frota marítima não se vende, os navios apodrecem. Os bairros sociais não liquidam, reduzem-se a escombros. O Parlamento entorpece toda a acção governativa. Crise financeira do Estado, crise do regime político.

 

Mas, vá lá, o governo consegue pôr de parte o trambolho do Parlamento e entra na tarefa legislativa. Para haver dinheiro às mãos, para solver compromissos, para providenciar em matéria do excesso dos preços, é coagido a restringir a actividade bancária, do comércio, da indústria, da agricultura. Novo aspecto da crise - a desconfiança. Êxodo dos capitais. Reflexamente, novo agravamento da crise financeira.

 

A miséria alastra, irradia cada vez mais o seu raio de acção, atingindo e tocando as mais largas e profundas camadas sociais. Vem a descrença nas fórmulas preexistentes de governo, a predisposição para aceitar coisas novas. A multidão ruge e escancara as mandíbulas. As minorias conscientes entram em acção e conduzem-na. Eis a Revolução.

 

Toda a Revolução carece dum mínimo de probabilidades, mas nenhuma dispensa a audácia dos chefes.

 

Vamos responder agora, concretamente, à observação dos nossos camaradas, àqueles que nos dizem, depois da leitura do suplemento de «O Comunista»: - Ides precipitar os acontecimentos. Correis a um desastre certo. A massa não está preparada.

 

Ou nós somos supinamente burros, o que admitimos, ou a manifestação de 22 de Fevereiro teve o condão de embriagar-nos, transformando a côr dos vidros das nossas lunetas, pondo o côr de rosa onde estava o escuro.

 

A massa não está preparada para quê? Para aprofundar a doutrina comunista? E quem pensou em levá-la a esse ponto? Que a massa se manifeste disposta a agir, que ela consinta em se deixar guiar pelo Partido Comunista, eis tudo o que podemos exigir dela.

 

Ora, para levar a massa a este estado de preparação, o que é preciso?

 

Repetir-lhe hoje, amanhã, sempre, a nossa palavra de ordem: - Ao governo dos operários e dos camponeses.

 

E é isto que aqueles camaradas, nossos simpatisantes, julgam uma precipitação, uma temeridade. Não, nunca é cedo para se propagar uma ideia quando se está da posse dela, nunca houve maneira de fazer aceitar uma ideia senão repetindo-a muito.

 

Mas - dirão - o Partido Comunista carece, pelo menos, dum estado-maior, isto é, carece dumas centenas de camaradas que, no momento preciso, saibam o que querem e como querem. Evidentemente. Mas quem conhecia Danton, Robespierre, Saint-Just e a maioria dos homens da Convenção antes de 1789? Não há melhor escola para preparar revolucionários do que a própria Revolução. E nas revoluções caminha-se depressa.

 

A Rússia dá-nos um belo exemplo. O P. C. R. tinha, antes da Revolução de 1905, apenas 2 500 aderentes. Até 1916 conseguiu juntar 15 000 e em 1917, durante o período de Kerensky, agrupou mais 35 000, o que deu ao P. C. R. um total de 50 000 filiados, para uma população de 160 000 000 de almas; e foi com esta insignificante minoria, 3 para 10 000, que Lénine mergulhou no torvelinho da Revolução para surgir vitorioso na crista da vaga.

 

Toda a Revolução carece dum mínimo de probabilidades, mas ai dos chefes revolucionários que cerram os ouvidos ao estribilho de Danton: - Audácia, audácia e sempre audácia.

 

A nossa Revolução proletariana em face da situação internacional.

 

A situação actual da Europa não é ainda propicia a permitir a eclosão dum movimento revolucionário em Portugal, se bem que essa situação se apresente hoje bem mais favorável do que há três anos.

 

Mas jogar com este argumento é supor:

 

1º - Que a Revolução em Portugal atinge imediatamente a sua fase culminante;

 

2º - Que a situação actual da Europa é estável e prometedora ao regime burguês.

 

Ora, estas duas hipóteses não entram nos nossos cálculos, bem longe disso.

 

A Alemanha oferece-nos o exemplo típico do país lançado no turbilhão revolucionário.

 

Veja-se a série de desvios que segue o seu curso revolucionário, desde a tentativa de Liebknecht à de Hamburgo. Em Outubro último, todos dizíamos: - É agora. Não foi ainda. Em vez da vitória, uma retirada sem combate, a ditadura de von Seckt, a interdição do Partido Comunista.

 

E, coisa admirável, o P.C.A. sai desta prova de quatro meses de vida clandestina mais vigoroso do que nunca. Perseguido, sem imprensa, confiscados os seus haveres, ele consegue elevar ao duplo o número dos seus deputados e não há um dia só em que se não opere uma deslocação de forças, quer no terreno político, quer no terreno sindical, a seu favor.

 

Entre a jornada de Fevereiro e o acto culminante da Revolução portuguesa, a quantos desvios não seremos nós forçados, quantas derrotas não nos estão reservadas?

 

Quanto à situação internacional, ela é, por efeito da crise geral determinada pela guerra, o que há de mais instável e movediço. O capitalismo, quer na França, quer na Itália, quer na Espanha, quer na própria Inglaterra, mostra-se incapaz de superar a crise.

 

Nós podíamos citar em reforço das nossas opiniões os testemunhos de Lloyd George, de Smuts e de Nitti, que não podem ser suspeitos de bolchevismo.

 

Mas admita-se o inverosímil, admita-se que o estado da Europa não sofre, proximamente, alterações sensíveis.

 

Neste caso, não querendo recorrer ao levantamento insurreccional, ao proletariado português só lhe restava uma alternativa - a resignação à miséria extrema, com a perda de todas as suas conquistas, o direito de greve, a jornada de 8 horas, etc.. É admissível uma tal resignação nos países latinos?

 

Contra todos os perigos, contra todos os riscos, o Partido Comunista nunca poderia aconselhar uma tal resignação.

 

O Partido Comunista, se tal fizesse, lavraria a sua sentença de morte. Os perigos apontados são prováveis, não são certos e infalíveis. E nenhuma Revolução ainda se lançou que não contasse com perigos prováveis.

 

Certamente, uma Revolução lançada em tais circunstâncias não poderia fazer tábua rasa de todos os compromissos internacionais, não poderia bolir nos haveres dos súbditos estrangeiros. Proceder de maneira diversa seria dar razões jurídicas para uma intervenção armada.

 

Mas não é de espantar que respeitemos os bens dos súbditos estrangeiros. As nossas forças económicas estão de tal modo fragmentadas que, a não ser as indústrias bancária, do seguro, da moagem, dos tabacos, dos fósforos, dos transportes ferroviários e de longo curso, poucas mais oferecem possibilidade de nacionalização. O resto terá de ficar ainda confiado à iniciativa particular, até que se opere o trabalho moroso da sua concentração.

 

O governo dos operários e dos camponeses visa:

 

1º - Concentrar todos os poderes políticos nas mãos dos trabalhadores manuais e intelectuais, camponeses pobres e soldados.

 

2° - Substituir a gestão patronal pela gestão sindical das indústrias.

 

3º - Substituir o comércio particular por um sistema integral cooperativista.

 

4º - Elevar a cultura geral da população.

 

Só o primeiro ponto pode ter uma execução imediata e integral. Os outros são de execução gradual e demorada.

 

A revolução proletariana deparará com dificuldades económicas que terá de superar e vencer.

 

As nossas deficiências económicas?

 

Na verdade, era este o nó górdio da questão até há pouco, quando a Rússia, manietada pelo bloqueio, não estava em condições de fornecer aos outros Estados proletarianos, a formar, qualquer espécie de concurso. Hoje a situação está inteiramente modificada a nosso favor.

 

Os navios russos entram e saem livremente nos portos ingleses e italianos, e não tarda que adquiram a mesma liberdade em relação aos portos de outros países.

 

De positivo, baseando-se nas próprias resoluções do P.C.R., sancionadas pelos congressos pan-russos dos Sovietes, podemos contar com cereais e matérias primas da Rússia e com a manutenção dum comércio regular com a Alemanha, a Inglaterra e a Itália, por intermédio da Rússia.

 

Sem dúvida, as nossas relações comerciais terão de sofrer profundas alterações. Há mercados com os quais não mais poderemos contar. A nossa indústria terá de orientar-se pelas novas directrizes comerciais que lhe forem ditadas.

 

Tudo isto trará, de início, uma perturbação mais ou menos grave. Certas importações terão de evitar-se completamente, para estabelecer o forçado equilíbrio da balança comercial. Dos seis milhões de hectolitros de vinho que se consomem no mercado interno, a maior parte, talvez cinco milhões de hectolitros, têm que ir barra fora a preços de concorrência. E, se mesmo assim não se obtiver colocação para esses vinhos, não haverá remédio senão modificar as culturas, substituindo a vinha.

 

Muito ao contrário duma boa parte dos revolucionários que nunca dedicaram uma hora ao estudo do problema da nossa economia, nós não confiamos no milagre dum ressurgimento económico rápido. Sim, nós sabemos que o nosso país tem vastos recursos latentes, mas sabemos também que só com um trabalho disciplinado de muitos anos e com o dispêndio de largos recursos monetários esses recursos se poderão valorizar.

 

É preciso destruir impiedosamente um certo número de fantasias. Há um bom número de camaradas, alguns até bachareis, que supõem que o simples triunfo político do proletariado trará automaticamente a abastança. Carvão? Não precisamos, temos a energia hidráulica. Horário de trabalho? Não é preciso, a máquina substituirá o esforço humano. Estes e outros erros estão espalhados e enraizados no espírito simplista das multidões e trarão funestas desilusões se os não combatermos a tempo e com severa energia.

 

Há, pois, dificuldades a enfrentar. O dever dos revolucionários é atacá-las, dominá-las, vencê-las. Nenhuma Revolução profunda as deixou de encontrar.

 

Nas batalhas revolucionárias quem se coloca na defensiva perde todas as probabilidades de vencer.

 

Um marechal do Partido Nacionalista, o dr. Ferreira de Mira, escrevia há dias no seu jornal:

 

«Mudou o regime político, mas não mudou o regime social. Constituiu-se uma República burguesa, por vezes com seus quês de demagogia, por vezes com intermitências de autoritarismo. Manteve-se, pois, a burguesia no poder, e é isto o que eu quero notar. Já quem governava nos tempos da monarquia constitucional eram os burgueses, relegados como tinham sido os nobres para a inutilidade da má língua, das touradas e dos estudos de pergaminhos heráldicos.

 

«Vê-se agora que esta burguesia não soube tirar os ensinamentos devidos da revolução que ela própria fizera, e tendo dado lugar a escândalos no tempo da monarquia, quer continuar com a mesma insensatez no tempo da República. Somente a burguesia deve lembrar-se de que, em 1910, teve um meio de salvação, que foi a mudança de forma; esta mudança lhe permitiu continuar no poder. Agora, em 1924, não tem já esse recurso; e quando os seus erros e os seus vícios tornarem inevitável uma substituição do regime existente, o poder sair-lhe-á das mãos».

 

O nosso colega A Internacional, transcrevendo este trecho, comenta assim:

 

«Não há, portanto, salvação possível para a burguesia. Impõe-se a mudança de regime social».

 

E a mesma Internacional, depois de reconhecer que a manifestação de 22 de Fevereiro revestiu o aspecto duma jornada revolucionária, diz:

 

«O caminho consiste, quanto a nós, em não nos precipitarmos, em ganharmos tempo, em não nos abalançarmos decididamente por uma ofensiva, mas sim em mantermo-nos no plano duma defensiva enérgica com todos os que têem interesses idênticos a defender e simplesmente no âmbito desses comuns interesses».

 

Quer dizer: nada de falar em Revolução social, toca a deitar água na fogueira que se ateou.

 

Como nós, no suplemento de O Comunista, fizemos um caloroso apelo a todas as tendências do proletariado para manterem a sua unidade, subentende-se que A Internacional lamenta a perda da coligação republicano-social.

 

Não fomos nós, o P.C., que desfez a coligação, foi a massa, foi a multidão que, sem sugestões de qualquer espécie, não permitiu que um só republicano burguês lhe dirigisse a palavra. Nós não fizemos senão seguir as indicações da multidão. Estamos em boa companhia.

 

O pensamento de A Internacional sabemos nós qual é. Ela considera indispensável gastar os políticos não experimentados. Está bem. Se dependesse da nossa vontade, teríamos amanhã um governo de radicais ou socialistas. Mas descanse A Internacional que o facto há-de dar-se. Nos períodos revolucionários, os governos são autênticos fornos crematórios a reduzir políticos a cinzas. Havemos de ver os radicais, os socialistas e muitos outros naufragarem nesse escolho.

 

A Internacional aconselha-nos, na conjuntura presente, a mantermo-nos na defensiva. Não seguimos o conselho. (...)

 

 

 

O Comunista. - Ano I, N.º 16 (8 MAR. 1924)

 

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NOTAS:

 

(1) Este escrito foi publicado no nº 16 do jornal ‘O Comunista’, de 8 de março de 1924.

 

(2) José Carlos Rates refere-se a um texto, certamente também da sua pena, publicado no n.° 15 (suplemento) de 25 de fevereiro de 1924 de ‘O Comunista’, o qual, pelo seu interesse histórico, reproduzimos de seguida:

 

A REVOLUÇÃO EM MARCHA

 

O Governo de operários e camponeses, tal deve ser a nossa palavra de ordem

 

22 de Fevereiro de 1924.

Camaradas! Fixemos bem esta data! É a mais bela jornada revolucionária a que temos assistido! O povo operário de Lisboa, num total superior a 100 000 pessoas, confiou aos chefes revolucionários operários, sem exclusão de tendências, a missão sublime, mas difícil e perigosa, de o conduzir à Revolução, à sua Revolução.

 

Quem assim o não tiver compreendido, não sentiu pulsar o coração de aqueles 100 000 homens que disseram categoricamente: Da República nada há a esperar! Marchemos àvante.

 

*

 

Quando, há duas semanas, se avolumaram os boatos duma tentativa fascista, duma política favorável aos interesses da alta banca, da moagem, da burguesia enfim, os elementos republicanos da esquerda e as tendências operárias promoveram um comício de protesto a que concorreu cerca de 20 000 pessoas.

 

Viu-se logo que a massa popular estava disposta a afirmar a sua vontade, a ir para diante.

 

O convite das Juntas de Freguesia para a reunião de sexta-feira, 22, mostrou a todos nós que o povo operário de Lisboa, que até há pouco não dava sinais de vida, quer agir, quer a Revolução. Teriam os chefes, os guias do proletariado, sentido este desejo? Serão eles, os chefes, capazes de o levar à Revolução? Existirão, de facto, os chefes capazes de iniciarem essa tarefa formidável? Cautela! O povo operário de Lisboa disse na jornada de 22 que está farto de palavreado; o que o povo quer é obras, obras, obras.

 

A concentração e o cortejo

 

Ainda não eram quatro horas da tarde já a Praça do Comércio se achava completamente pejada de gente, na sua maioria operários que acabavam de largar o trabalho e bastantes mulheres do povo.

 

Os eléctricos que iam chegando à Praça eram assaltados e despejados dos passageiros, tirando-se-lhes os troleys. Esboçaram-se os primeiros conflitos.

 

As mulheres exclamam: No tenham medo, não fujam. E a multidão permanece impassível. As ruas do Ouro, Augusta, da Prata, dos Fanqueiros e da Alfândega estão também cheias de gente, que transborda da Praça do Comércio.

 

A uma janela do ministério das Finanças debruçou-se o presidente do ministério, dr. Alvaro de Castro, e alguns membros das Juntas de Freguesia.

 

Alguém fala.

 

Respondem de baixo: Não queremos paleio, estamos fartos disso. Abaixo a moagem! Abaixo os vigaristas da República! Abaixo os exploradores do povo!

 

A multidão começa a deslisar para a Praça do Município.

 

Surgem duas bandeiras nacionais. Defronte da porta do Arsenal as duas bandeiras são despedaçadas. Como por encanto surge um pendão negro, que dois camaradas ostentam nas pontas de paus.

 

E a mole enorme lá vai, coleando, rua do Arsenal, Corpo Santo, rua do Alecrim.

 

Nos numerosos escritórios comerciais sitos nestas ruas, ostentando tabuletas doiradas, vêem-se muitas pessoas encasacadas. Na multidão há punhos crispados, há ameaças:

 

Malandros! Têm a barriga cheia! Abaixo os exploradores do povo! Viva a Revolução Social. Viva a frenfe única do proletariado. Viva a Rússia Vermelha! Viva a C.G.T. Viva «A Batalha».

 

Os espectadores, lívidos, recolhem apressadamente, cerrando as janelas...

 

Era um espectáculo aterrador.

 

Os carros eléctricos e automóveis, que se encontram na rua, são assaltados e alguns partem-lhe os vidros. Os estabelecimentos que ainda conservam as portas abertas são obrigados a fechar violentamente.

 

E o pendão negro continua a flutuar acima das nossas cabeças.

 

Em frente de A Capital há uma manifestação hostil: Vendidos! Intrujões! Fora a imprensa burguesa.

 

Chegamos em frente de A Batalha.

 

A multidão agita os chapéus numa carinhosa saudação: Viva «A Batalha»! Viva a C.G.T.! Viva a frente única do proletariado! Viva a Rússia Vermelha! Viva o Partido Comunista!

 

Estamos, finalmente, em frente do Parlamento. A multidão estaca. O pendão negro flutua sempre acima da mole humana. Nas janelas há várias caras conhecidas: jornalistas e políticos em evidência.

 

De baixo grita-se:

 

Abaixo o parlamentarismo! Abaixo os vigaristas republicanos! Fora os gatunos de barrete frígio!

 

A uma janela assomam os delegados das juntas Bartolomeu Severino e Dario Nóvoa.

 

Tentam fazer-se ouvir, sem resultado.

 

Surge à mesma janela a figura kaiseriana do dr. Lopes de Oliveira, que esboça algumas palavras.

 

A multidão grita:

 

Isso já foi tempo, menino! De cá não levas nada! Olha a carinha dele! Vai vender pastilhas!

 

O orador recolhe a penates sem ter tempo de impingir o seu conhecido estrilho:

 

É preciso varrer este parlamento como quem varre um monturo.

 

A multidão prossegue:

 

Queres ir para lá? Vai cavar batatas! Abaixo o parlamentarismo! Abaixo os vigaristas da República!

 

O fim da coligação republicano-social

 

Em cima dos ombros da multidão improvisam-se tribunas. Surgem dezenas de oradores. Entre eles, vemos o nosso camarada metalúrgico Carlos Marques, que diz:

 

Do parlamento nada podeis esperar. Se quiserdes ver satisfeitas as nossas aspirações proclamai o governo dos operários e dos camponeses.

 

A multidão aplaude.

 

Fala-se em invadir o Parlamento. Mas dos portões do átrio apenas um tem meia porta aberta, a qual está guardada por 15 polícias. Lá dentro a guarda está formada. O assalto é impossível. Nas janelas do edifício não se vê viv'alma.

 

Mas a multidão compacta não arreda pé, clamando:

 

Abaixo a República burguesa! Abaixo o parlamentarismo! Abaixo os vigaristas da República! Viva o governo operário!

 

Por fim, vendo que a multidão não retirava, um tenente da guarda solicita que alguém fale à multidão.

 

Está ali perto o nosso camarada Alberto Monteiro. Erguem-no em cima dos ombros:

 

Camaradas! Se dentro de oito dias o Parlamento ou o governo não tomarem providências, vamos para os assaltos!

 

E o nosso camarada termina aconselhando a multidão a dirigir-se ao edifício onde está instalada A Batalha, para vitoriá-la. Estava afastado o assalto ao Parlamento.

 

A multidão começa a descer a calçada da Estrela, a caminho de A Batalha.

 

*

 

Deram-se ainda episódios que não têem interesse de maior. À noite, a cidade estava patrulhada e os eléctricos não transitavam.

 

As juntas de freguesia tinham findado a sua missão no próprio Terreiro do Paço. Daí por diante não são elas que dirigem o cortejo. O P.R.R. (?; certamente: PRP, partido republicano português), que esperava colher peixe, viu as redes partidas. Aquela mole imensa de povo, mais de 100 000 pessoas, repeliu toda a esperança na República burguesia, vitoriou apenas a Revolução proletária.

 

Haverá alguém que não tivesse compreendido assim?

 

A coligação republicano-social está desfeita. Persistir em mantê-la, seria trair os 100 000 votos da jornada de 22 de Fevereiro.

 

O povo operário de Lisboa, em assembleia plenária, confiou-nos a nós todos: comunistas, sindicalistas e anarquistas, o seguinte mandato:

 

Fazei a Revolução, a nossa Revolução proletária!

 

Camaradas de todas as tendências: bandeiras partidárias em terra, organizemos a Revolução.

 

O perigo é agora maior.

 

Os republicanos da esquerda, que estavam ontem connosco, devem ter compreendido que têm de evolucionar à direita. Situações claras. Quem é pela República burguesa, radical ou não radical, para um lado; quem é pela Revolução proletária, para outro.

 

Eis a situação.

 

Organizemos a Revolução!

 

Que fazer agora, chefes da Revolução proletariana?

 

Agrupar, disciplinar, coordenar. Formai os batalhões revolucionários para o assalto decisivo. Como? Em Lisboa e Porto far-se-á o recrutamento por freguesias. Três camaradas decididos, cinco ou sete, alistarão todos os camaradas que assim desejarem em cada freguesia, constituindo os conselhos operários. Neles devem participar os operários de todas as tendências.

 

Cada conselho operário criará sub-comissões:

 

a) Para fazer o aliciamento dos soldados e dos marinheiros nos quartéis da freguesia;

 

b) Para controlar as fábricas e as grandes oficinas;

 

c) Para inventariar os estabelecimentos do comércio.

 

São estes os instrumentos mais necessários.

 

Na província, os conselhos operários formar-se-ão por concelhos administrativos.

 

Ponha-se a coordenar os trabalhos destes conselhos operários uma Comissão Central, composta dos camaradas mais competentes e prestigiosos de cada tendência, e dê-se a essa Comissão Central toda a autoridade que lhe é indispensável. Que nenhuma indicação sua deixe de ser cumprida.

 

A condição primária que impõe a Revolução é a disciplina, uma disciplina severa e indefectível. Sem esta disciplina, toda a Revolução é impossível.

 

Depois, que fará a Revolução dos conselhos operários?

 

1º - O armamento do proletariado e a anulação de todos os direitos políticos a quem não exerça funções úteis.

 

2° - Nacionalização das indústrias bancárias, da moagem, dos tabacos e fósforos, dos transportes marítimos e terrestres.

 

3° - Monopólio do comércio externo e da imprensa.

 

4° - Divisão dos latifúndios mal aproveitados por famílias de camponeses.

 

5º - Controlo operário de toda a produção.

 

6º - Estímulo e auxílio directo ao cooperativismo de consumo.

 

7° - Medidas proibitivas do luxo e encerramento das tabernas.

 

8º - Confiscação dos valores reais.

 

9º - Aliança com a Rússia.

 

10º - O estabelecimento dum salário real mínimo, em função do preço das mercadorias.

 

A Batalha, o quotidiano operário, tem nesta conjuntura um grande papel a desempenhar. Ela deve ser o carrilhão tocando incessantemente a rebate, não deixando arrefecer o entusiasmo e o espírito revolucionário de que o povo operário de Lisboa deu tão magnífica prova.

 

Que de A Batalha partam as melhores indicações, que dela emanem os melhores estímulos e ensinamentos revolucionários.

 

Não tenhamos ilusões. Se as outras tendências do operariado recuarem, se se recusarem a cumprir o seu papel de minorias dirigentes, o Partido Comunista não engeitará o mandato de 22 de Fevereiro.

 

Com a jornada gloriosa de 22 de Fevereiro acabamos de assistir ao primeiro acto da Revolução.

 

É preciso fazer subir o pano, de novo, e prosseguir até final.

 

Povo operário de Portugal!

 

Às armas! Abaixo o Parlamentarismo estéril e os governos burgueses!

 

Pela República dos Conselhos Operários!

 

Para a frente, camaradas!

 

ass.: A Comissão Central do P. C. P.