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Geografia e economia da revolução de 1820
Fernando Piteira Santos (*)
Introdução
L'histoire, c'est cela: un moyen de comprendre et, par Ia même, d'agir sur le cours des événements. LUCIEN FEBVRE
Um exame da vida portuguesa no século XX, a análise das coordenadas políticas, económicas e sociais da época em que vivemos, terá de procurar no século XIX, nesses cem perturbados anos de transformação e de luta, a raiz de muitos problemas do presente, a fase de evolução, o termo comparativo, o ponto de partida, de que procede, ou a que se refere, uma longa, contraditória e contrariada evolução. E não só pela simples e reconhecida razão de que o estudo do passado interessa ao presente, mas porque para nós, homens do século XX, o estudo do século XIX apresenta-se com um interesse que excede nitidamente o da proximidade. «A ignorância do passado não se limita a prejudicar o conhecimento do presente; compromete, no presente, a própria acção» - escreveu Marc Bloch (1). E é neste sentido que o estudo do século XIX se impõe: é necessário. Não se pretende simplesmente descortinar «origens», estabelecer «filiações». Não se trata de cair na «ambiguidade» e no «perigo» - estes termos são de Marc Bloch - de explicar os processos pelos seus momentos iniciais, de reconduzir a complexidade dos acontecimentos aos «começos que explicam». Não pretendemos simplesmente estudar o passado imediato, mas considerar a época histórica em que as instituições políticas e as estruturas económica e social adquiriram características particulares que ainda persistem ou de que os aspectos contemporâneos são meros desenvolvimentos (2). É profunda e nítida a diferença entre o século XIX e o século XX: em Portugal, na Europa, nas duas Américas. As transformações que se verificaram são tão importantes, e de tão radicais consequências, que a história política, económica e social da época novecentista só pode ser compreendida tendo em conta os novos factores que nos anos de Oitocentos surgem e que a condicionam.
Se devemos ter em conta advertências como a de Robert Schnerb: «Os traços distintivo do século novo só gradualmente se podem distinguir. Mesmo para o Ocidente, após a era revolucionária e napoleónica, as maneiras de viver e de pensar não são, não podem ser, inteiramente novas.» (3). Também não devemos esquecer que às «continuidades históricas» correspondem, frequentemente, «discontinuidades sociológicas». Novos factores técnico-económicos e novos factores político-ideológicos intervêm. As invenções inglesas, os progressos técnicos; mas, igualmente, as concepções de liberdade civil e de liberdade de comércio que irradiam de França, mais fortemente ainda do que de Inglaterra, porque correm a Europa com as baionetas dos exércitos franceses. Mesmo no período napoleónico os exércitos de França desempenham na Europa um papel revolucionário e transformador. Sob a influência francesa estabelecem-se regimes representativos e generaliza-se a consciência dos direitos do homem e do cidadão. A Inglaterra fornecerá o equipamento industrial; primeiro a máquina a vapor, depois a locomotiva e o carril. Estas influências não se contrariam. A indústria tem as suas exigências. A liberdade pessoal, a liberdade de deslocação, a liberdade de comprar e de vender, e a de livremente escolher uma profissão, tanto favorece a livre actividade do comerciante burguês como a do industrial capitalista que necessita dispor livremente da nova mercadoria: a força de trabalho. A abolição da distância pelo caminho de ferro e pelo navio a vapor, como notou Knowles (4), liquida as barreiras geográficas e proporciona as condições técnicas para a criação de um mercado mundial.
E embora o liberalismo oitocentista repudie expressamente a intervenção do Estado na vida económica, Para os países mais desenvolvidos a criação de um mercado mundial é urna solicitação permanente e irresistível, e cada nação empreende a política mais favorável à expansão da sua produção industrial e do seu comércio. Não se produz para um mercado local, produz-se para um mercado nacional, para um mercado mundial, para um mercado em expansão. E é nesse mercado mundial (ou paramundial) que as consequências das crises económicas passam a repercutir-se. Claro que é na Inglaterra que o fenómeno tem aspecto mais grave no primeiro quartel do século - é assim em 1810, em 1814, em 1815, em 1818 -, porque é também na Inglaterra que a revolução industrial desenvolveu, mais intensamente e mais cedo, a utilização do vapor, o uso do carvão, a fundição do ferro, o progresso das máquinas e ferramentas, da engenharia e da química industrial. À produção artesanal e manufactureira sucede a produção fabril, a grande indústria apetrechada mecânicamente. O desenvolvimento das forças produtivas na indústria não é acompanhado por um desenvolvimento paralelo na agricultura. A estrutura da sociedade pré-liberal não comportava as forças que se libertavam no seu seio. À indústria em franco crescimento tinha de corresponder um comércio livre, a liberdade de tudo vender e de tudo comprar, de vender e comprar em circunstâncias e condições que o comerciante livremente escolhesse ou legalmente impusesse. E o mesmo sopro de liberdade correrá o campo; será do campo que afluirá à cidade a legião dos trabalhadores livres. Livres? Isto é: em situação de serem livremente explorados. A burguesia liberal, em nome da liberdade, não se esquecerá de dissolver as velhas corporações profissionais, de negar aos trabalhadores o direito de associação (5).
Evidentemente, o burguês do primeiros anos do século XIX tem uma ideia diferente da transformação social a que assiste, e da qual é agente. Defende os seus ideais em nome de todos os homens, é a todos os homens que os seus princípios filosóficos se dirigem, não pretende elaborar uma «filosofia de classe». Para ele o interesse da classe burguesa confunde-se com o progresso geral da sociedade, a liberdade identifica-se com o interesse geral do capitalismo, a prosperidade nacional não se distingue do desafogo da sua economia privada. E, já o notou Charles Morazé (6), este burguês não é o mesmo que durante séculos luta com a pretensão de se integrar na hierarquia social existente; o seu objectivo agora não é integrar-se na antiga hierarquia, é substituí-la. Seria interessante investigar a origem desta mudança de mentalidade. A mentalidade não varia apenas em função das épocas, varia também em função das classes, e para classes diferentes tem coeficientes distintos no mesmo momento histórico. Será esta burguesia uma classe diferente da burguesia que pretende instalar-se na ordem social feudal, ou da que coadjuva a concentração do poder real com o objectivo de inserir-se nos quadros da nobreza?
Esta palavra classe é de uma certa imprecisão. A noção sociológica está carregada de implicações polêmicas. Sociólogos com Halbwachs, Sorokin, Gurvitch, não conseguem defini-Ia libertos do complexo da «sociologia marxista». Defini-Ia com reservas mentais que procedem de preconceitos doutrinários, de prenoções, é, como notou Lucien Goldmann, desistir antecipadamente de uma de definição sociológicamente válida, objectiva, científica (7). A noção de classe social implica uma certa função na produção, um certo tipo de relações com os membros das outras classes, uma certa visão do mundo. Ou, nas palavras de Goldmann, uma «consciência possível». Nos seus contornos mal definidos a classe é uma realidade social que o historiador, o sociólogo, o economista, não podem ignorar, «um dado concreto», como diz Joussain (8). E esse dado concreto - a existência de uma burguesia diferente - tem conexão com determinada fase da evolução da economia. A estrutura económica da qual surgira pelo exercício de uma actividade comercial de transporte, fomento de trocas e pelos lucros da usura, o primitivo burguês, não era a estrutura económica do final do século XVIII e dos primeiros anos do século XIX. Esta burguesia é uma nova burguesia. É a burguesia da época capitalista.
Esta palavra capitalista... Marc BIoch (9) considerou capital uma «palavra de usurário e de contabilista», mas reconheceu que desde muito cedo os economistas lhe atribuíram um sentido preciso. Considerou capitalista um «longínquo vestígio do calão dos especuladores nas primeiras bolsas europeias». Mas reconheceu que «o capitalismo, que tem hoje, nos nossos clássicos, um lugar muito mais importante, é inteiramente jovem: ostenta na sua desinência a marca de origem (Kapitalismus)». Considerava a palavra capitalista «uma palavra útil», mas ao malogrado historiador, que nos deixou tantas páginas sólidas e de grande penetração, afigurava-se difícil determinar em relação a que época era legítimo falar de capitalismo em si, de capitalismo com C maiúsculo. E perguntava: «Em que data fixar-lhe o aparecimento? Na Itália do século XII? Na Flandres do século XIII? No tempo dos Fugger e da Bolsa de Antuérpia? No século XVIII, ou no século XIX? Quantos historiadores, quantas certidões de nascimento.» Para os historiadores, sim. E para os economistas? Revelaria um economista a mesma indecisão?
Impõe-se que não confundamos a simples acumulação de capitais, a mera existência de uma riqueza móvel, ou uma actividade comercial em larga escala, ou a produção de mercadorias, com o capitalismo. É um facto que o capitalismo implica a produção de mercadorias e que no capitalismo «todos, ou a maioria dos produtos, tomam a forma de mercadorias» (10), mas a recíproca não é verdadeira: a produção de mercadorias não implica o capitalismo. O artesão também produz mercadorias, mas trabalha com os seus próprios meios, é o detentor dos seus meios de produção. Pode tornar-se um burguês, pode acumular muita riqueza. Não é isso que caracteriza o capitalismo, como estrutura económica, como fase histórica. O capitalismo caracteriza-se pelo facto de os meios de produção serem propriedade de um conjunto de indivíduos, e ser um outro conjunto de indivíduos que, utilizando esses meios, produz as mercadorias. Estas mercadorias produzidas, os meios de produção e a própria força de trabalho, que os trabalhadores trocam por um salário, são mercadorias. As condições históricas da existência do capitalismo não coincidem com a simples circulação de dinheiro e mercadorias. «Só podem surgir quando o proprietário dos meios de produção e subsistência se encontra no mercado com o trabalhador livre que vende a sua força de trabalho» (11). Não é por acaso que, em Portugal, a burguesia que funda o primeiro banco dissolverá as «casas dos vinte e quatro» e anulará os regimentos dos mesteres. Escreveu Oliveira Martins num artigo célebre (12): «Apesar de Portugal ter sido o herdeiro do comércio veneziano do Oriente no século XVI e de, no século XVIII, ter explorado o vasto comércio do Brasil; apesar de ter sido um momento a primeira das nações mercantis e comerciais; apesar de ter no século XIV iniciado um rudimento de banco marítimo com a legislação do rei D. Fernando, e de possuir nas suas Misericórdias rudimentos também de bancos agrícolas; apesar de tudo isso, o primeiro banco nascido entre nós foi-o sòmente em 1822.» E acrescenta: «Foi somente depois do abalo revolucionário de 1820 o nas cortes constituintes de então que se legislava a criação do Banco de Lisboa (Lei de 21 de Dezembro de 1821).» Deste facto não tirou Oliveira Martins todas as consequências. Não o relacionou com a «libertação» do trabalhador e com a abolição das restrições e privilégios tradicionais que se opunham à constituição de um mercado nacional. Oliveira Martins não viu que a simples circulação de mercadorias característica do capitalismo comercial cedia lugar à circulação do dinheiro como capital. Ao circuito Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria sucedia o circuito Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro, em que o capital é o princípio e o fim do processo económico, sendo na expressão D1 - M - D2, D2 maior que D1. Desta sorte se caracteriza o capitalismo que merece a distinção gráfica de um C maiúsculo e que constitui urna época da história económica e social do mundo.
O «abalo revolucionário de 1820»... Oliveira Martins não diz que a criação do Banco de Lisboa foi uma directa consequência da política da burguesia comercial, dos interesses que se jogaram na Revolução. A frase é dúbia: «Foi somente depois do abalo revolucionário e nas cortes constituintes... » Simples indicação de tempo e de lugar. Sempre Oliveira Martins se referirá à Revolução de 1820 em termos restritivos, críticos. Na História de Portugal (13) admite: «Tornou-se moda, para muitos, escarnecer da Revolução de 1820, pela sua fraqueza, pelas suas ilusões, sobretudo pelo seu mau êxito...» Segue a moda, abonando-se com Herculano: «Fez-se uma Constituição pouco mais ou menos republicana, mas inteiramente inadequada ao País. Repetiram-se palavra por palavra, traduzidos em português, ou coisa semelhante, os discursos mais célebres do Choix des rapports, ou as páginas mais excêntricas de Rousseau e de Bentham. O povo espantava-se de se achar tão grande, tão livre, tão rico, em direito teórico: porque na realidade, nos factos materiais, palpáveis, da vida económica, as coisas estavam pouco mais ou menos na mesma.» Escudado na citação de Alexandre Herculano, Oliveira Martins revela o seu próprio pensamento: «Os revolucionários do 1820, imbuídos das quimeras jacobinas que a invasão francesa propagara em Portugal (v. História da Civilização Ibérica), foram nobres; mas - triste força é confessá-lo - foram um tanto ridículos. Cegava-os a idolatria da liberdade; ao mesmo tempo que os acendia o desejo de serem um novo Pombal, uma segunda Convenção. Eram apóstolos, quando a miséria pública não deixava ter ouvidos para dissertações, e só podia ser convencida por factos duros e cruéis. Nem Moura, nem Fernandes Tomás, nem Borges Carneiro, os radicais, os voltairianos, tinham pulso para tanto. O plano das suas reformas, dominado pelos princípios naturais-utilitários da escola de Rousseau e de Bentham, nem por isso deixava de reconhecer as necessidades do País; mas o seu erro foi pensar - era, é ainda o erro da escola - que os povos podem converter-se e mudar de temperamento à voz dos apóstolos, e que a simples evidência da verdade basta para afastar os pecadores dos seus erros, para convencer e levar à abdicação das classes dominantes, e ao domínio das classes escravas e passivas.»
A objectividade dos historiadores tem os seus próprios limites históricos. O Alexandre Herculano citado por Oliveira Martins não é o historiador, é o cartista. Partidário da Carta outorgada, a Revolução de 1820 só lhe merecerá sarcasmos, será contrário à Revolução de Setembro, votará a suspensão das garantias em 1842, na reacção cartista. Oliveira Martins abraçara a ideia de uma política reformadora por intervenção autoritária. Não é contrário ao reformismo vintista, mas não considera associadas à reivindicação da soberania nacional as reformas empreendidas no ambiente democrático das Constituintes. «As cortes suprimiram a antiga legisIação municipal, judicial e fiscal, aboliram as jurisdições senhoriais e eclesiásticas, criaram o júri para as causas crimes e cíveis, substituíram as câmaras municipais por conselhos electivos, chamaram ao domínio público as propriedades das prelaturas, canonicatos e benefícios eclesiásticos, tributaram as rendas das corporações religiosas, extinguiram vários mosteiros, proibiram os votos, chamaram ao fundo nacional os bens da coroa e ordens, destinando-lhe o produto para amortização da dívida nacional. Tudo isto, ou pouco mais ou menos isto, fez Mouzinho em 34; porque vingou depois, e não vingou em 1820? Por dois motivos: agora legislava-se: mais tarde houve uma espada para o impor e uma vitória para o consagrar.» A citação é esclarecedora: Oliveira Martins, o político, sonha com «uma espada» que imponha uma legislação reformadora; Oliveira Martins, o historiador, não compreende que a transformação por que vai passar a sociedade portuguesa é um longo processo de que «1820» e «1834», a «Revolução de Setembro» e a «reacção cartista» são momentos antagónicos e complementares, posições de diametral afastamento de um movimento pendular - constitucionalismo versus cartismo -, duradouro ritmo que domina e perturba mais de cem anos de vida nacional. Debate - entre Liberdade e Autoridade - que se prolonga pelos anos de novecentos. Debate que não está encerrado. E que tem origem, naturalmente, em antagonismos mais profundos, de conjuntura, de estrutura (14).
A burguesia portuguesa, em 1820, luta por «toda a extensão da palavra liberalismo» (15). A liberdade cantada e incensada, nos artigos de fundo e nas alegorias teatrais, nos elogios poéticos, nas decorações das ruas e nos discursos das cortes constituintes, «a prisca liberdade agrilhoada», não era um fim, era um meio. Com razão notou Vieira de Almeida que «no trânsito da sociedade feudal à sociedade burguesa, o combate à instituição política basilar era prévio, de necessidade» (16). A instituição do sistema representativo, a organização democrática do Estado limitando fortemente a acção e o arbítrio do Rei, eram condições necessárias, básicas, para a segurança e prosperidade da burguesia. Combater as instituições, o princípio da monarquia absoluta e a ordem tradicional era condição do advento e da construção do Estado liberal, burguês.
«Sociedade feudal?» Ajusta-se o qualificativo feudal à estrutura da sociedade portuguesa que a Revolução de 1820 ataca, atinge, e cuja transformação inicia? É certamente perigoso empregar livremente as palavras, forçar o seu rigoroso sentido, impor-lhes um significado extensivo ou anacrónico. Mas uma definição formal, estrita, não englobaria, talvez, na sua extrema diversidade, as estruturas económicas, sociais, jurídicas, às quais convém - fora da Idade Média europeia, no tempo e no espaço - a sugestiva designação de «feudalidades». «Interesses católico-feudais», chamou Teófilo Braga ao conjunto de resistências que as ideias liberais defrontavam. Não é por mera comodidade que aceitamos o adjectivo feudal. Não nos move a fidelidade à lição de Teófilo. Mas tem já para nós um decisivo interesse saber o que os revolucionários de 1820 pensavam da sua revolução; e na sua própria linguagem podemos surpreender a «consciência prática» dos vintistas. No Portugal Regenerado, de Borges Carneiro, depara-se-nos a palavra: feudal. Na Proclamação do Governo Supremo do Reino afirma-se: «Não foi para ressuscitar as antiquadas formas de feudalismo e um vão simulacro de Cortes que nos dias 24 de Agosto e 15 de Setembro...» (17). Reage contra a corrente Manuel Fernandes Tomás: argumenta histórica, juridicamente. Mas na opinião generalizada a Revolução vinha subverter uma «ordem feudal», a «feudalidade» dos donatários nobres e eclesiásticos. E as palavras feudo, feudalismo, têm curso (por uso corrrente?, por influência de leituras?) em textos oficiais e na linguagem dos vintistas (18).
Eram, incorrendo embora em riscos de imprecisão e de anacronismo, as palavras que melhor pareciam ajustar-se à situação que Borges Carneiro descreve nas seguintes linhas do Portugal Regenerado: «Os senhores disseram: «Os meus reinos, o meu povo, os meus vassalos». Quer tratassem do dinheiro particular da sua casa, quer dos rendimentos da Nação, disseram: «A minha Fazenda.» Decretando sobre negócios concernentes ao regime do Reino, disseram: «Porque assim convém ao meu serviço; sou servido ordenar, etc.», sem diferença quando se expediam aos oficiais-mores da sua Casa ordens relativas ao serviço dela...» (19) (Os sublinhados são de Borges Carneiro.) Documenta o trecho apenas um aspecto da monarquia absoluta e centralizada? Ouçamos novamente Borges Carneiro: «Da mesma sorte, nos campos do reguengo de Alviela, termo de Santarém, pertencentes à Casa de Bragança, paga-se de quanto se recolher pelo primeiro moio, de foral 30 alqueires, do carreto 6, de guarda 4, de dízimo 5,5; de sorte que, de cada moio, ficam ao lavrador apenas 12 alqueires e 3 oitavos; e dos mais moios paga-se o mesmo menos o foral. Naquele mesmo reguengo muitas terras pagam, além de um foro sabido, terça, quarta, dízimo e carreto. Estes mesmos direitos paga o reguengo de Tejosa; na freguesia de Casével paga-se terço, dízimo e fogaça.» (20) E a estes privilegiados direitos de uma grande casa senhorial, a do próprio Rei, juntemos o que nos diz a notícia que o Diário do Governo (n.° 20, de 7 de Novembro de 1820) publicava, e segundo o qual o «ilustríssimo» Manuel José Guedes fazia donativo «a bem das urgências do Estado» de «todo o imposto que dos Direitos que se lhe estão devendo das Villas de Murça, Brunhaes, Água Revés e Torre de Dona Chama, de que é donatário por mercê do Senhor Rei D. José; e de metade da importância das Tenças que leva na Alfândega do Porto e nas das Três Casas, assim como de metade da importância dos Juros do Reino que se Ihe devem no Almoxarifado da Torre de Moncorvo e Vila Real». A posição deste donatário, na sociedade portuguesa dos primeiros anos do século XIX, não é, evidentemente, singular. O desembargador da Relação do Porto, Roque Francisco Fortunato de Melo, na exposição que envia ao presidente das Cortes (21), refere-se à situação dos camponeses de Cantanhede, de que era donatário o marquês de Marialva. Os camponeses de Cantanhede eram obrigados a pagar o quarto do grão que colhiam nas suas terras; o tributo da eiradega, que consistia no pagamento de 7 alqueires para o lavrador que arava com bois próprios e de 3,5 alqueires para o lavrador que arava com bois alheios; uma maquia por cada alqueire, em razão de serem dispensados de levar aquele tributo ao Mondego como eram obrigados pelo foral; e uma porção de grão ao medidor do donatário tirada arbitràriamente pelo próprio para se recompensar do seu trabalho. Caso concreto: uma «pobre viúva» que colhera 8 alqueires, pagara de direitos 2 alqueires pelo quarto, 3,5 pela eiradega, 5,5 maquias por não levar o tributo ao Mondego e a parte do medidor. Dos 2 alqueires que lhe ficariam ainda tinha de pagar o dízimo ao cabido de Coimbra.
A distinção entre os direitos dos donatários, que condenava, e o «feudalismo», que afirmava nunca ter existido em Portugal, ninguém a traçou com mais veemência do que Manuel Fernandes Tomás (22), mas os direitos senhoriais e os dízimos eclesiásticos representavam dois terços do total dos encargos fiscais, e estes donatários, da nobreza e do clero, entrepunham-se entre o Rei e a Nação, criando uma situação administrativa e fiscal que, além de ser opressiva, era confusa, obsoleta e paralisadora. Entre a luta da burguesia do século XIX contra estes privilégios e as reclamações dos concelhos aos reis há uma diferença nítida. Agora, também as «câmaras» são consideradas pela burguesia, nas suas atribuições e pelas leis que regulam os seus poderes, peças do sistema iníquo que se opõe à liberdade da circulação e do comércio. Borges Carneiro exprimiu este sentimento nos seguintes termos: «Os direitos e tributos, que as fazendas, e até os frutos do próprio País, e do próprio termo ou distrito, são obrigados a pagar, ou quando entram nas terras, ou quando saem, e às vezes em um e outro caso - as taxas e almotacerias - as restrições impostas pela legislação municipal das câmaras... deve, ou fazer estancar, ou, pelo menos, desfalecer muito o comércio das províncias.» (23) No Portugal Regenerado, de Borges Carneiro, e nos artigos do Astro da Lusitânia, a que Manuel Fernandes Tomás responde nas Cartas do Compadre Belém com grande cópia de argumentos jurídicos e históricos, a palavra feudal é empregada no sentido de conservação de privilégios (24). Privilégios dos nobres e do clero, privilégios dos concelhos e dos mesteres; contra uns e outros a burguesia lutará, alternando, segundo as circunstâncias, a «arma da crítica» e a «crítica das armas».
«Revolução burguesa - a Revolução de 24 de Agosto de 1820». «Revolução burguesa» - «Revolução liberal»... É no interesse concreto da burguesia e pela acção dos armadores, comerciantes, empresários industriais, proprietários, membros das profissões liberais e da magistratura, oficiais do Exército, que se operará a transformação das instituições e dos quadros estruturais da sociedade portuguesa. Até nas próprias contradições, mais aparentes do que reais, é sempre factor presente e determinante o interesse da burguesia. Não é verdade que a Revolução de 1820, que pretende libertar Portugal de uma situação «colonial» (a de estar em risco de se converter numa colónia inglesa e de ser já, pela presença do monarca e da corte no Brasil, «colónia de uma colónia sua»), porfia em reduzir o Brasil à condição de colónia? Não há aqui contradição quanto aos objectivos dos revolucionários vintistas: a burguesia comercial quer dominar o Brasil como mercado, dele fazer uma extensão do «mercado nacional». Todos os privilégios ou condições particulares que impeçam a circulação das mercadorias ou afastem o burguês da direcção dos negócios públicos serão objecto da sua hostilidade. É a luta pela liberdade económica, pelo poder político, pela afirmação social da classe burguesa.
Carácter militar da revolução de 1820 e seu desenvolvimento geográfico
A Revolução de 1820, do ponto de vista militar, foi um pronunciamento. Não é indiferente a designação que adoptemos: optar por esta equivale a assinalar-lhe determinadas características e a distingui-la de outros tipos de movimento militar ou de acção sediciosa. Um pronunciamento não é uma «insurreição», nem uma «revolta», nem uma «revolução». As tropas não se sublevaram, saíram dos quartéis, disciplinadamente, à voz dos seus comandantes. A guarnição do Porto foi ao Campo de Santo Ovídio e pronunciou-se, pela boca dos coronéis Sepúlveda (25) e Cabreira, contra uma situação que condena por razões de puro patriotismo. A população não participa na acção, não há massas empenhadas no movimento; a população assiste e aplaude. A decisão que movimentara as tropas viera do Sinédrio. E que era o Sinédrio? Um pequeno grupo de conspiradores que, à volta de Manuel Fernandes Tomás (26), se constituíra em Janeiro de 1818.
Três meses após a execução de Gomes Freire de Andrade e dos conspiradores de 1817, como já frisou o historiador Damião Peres (27), inicia Manuel Fernandes Tomás os seus trabalhos revolucionários. A actividade conspirativa e preparatória dos «regeneradores» tem lugar sob a alçada do Alvará de 30 de Março de 1818, que expressamente declarou «criminosas e proibidas todas e quaisquer sociedades secretas de qualquer denominação que elas sejam, ou com os nomes e formas já conhecidas, debaixo de qualquer nome e forma que de novo se disponha ou imagine, pois que todas e quaisquer deverão ser consideradas, de agora em diante, corno feitas para conselho e confederação contra o Rei e contra o Estado». As palavras «de agora em diante» são incontestàvelmente significativas. A Regência tolerara, de algum modo, a existência de sociedades secretas até à conspiração de 1817. Ao facto não era estranha a actividade maçónica dos oficiais ingleses. «De agora em diante», tais sociedades, consideradas contrárias ao Rei e ao Estado (na realidade: contra a Regência, a ordem tradicional, a presença inglesa), seriam mais rigorosamente vigiadas e mais severamente reprimidas. É neste ambiente de repressão, correndo sérios riscos, que os conspiradores do Sinédrio vão desenvolver a sua actividade. Quem são esses conspiradores? Que objectivos se propõem?
Notou já um autor português que «é impossível explicar os movimentos de conjunto pela motivação consciente das acções individuais de alguns grandes personagens» (28). Mais importante do que averiguar os objectivos pessoais desse grupo de conjurados é determinar quem eles eram, qual a sua posição na sociedade em que viviam. «As relações sociais têm a sua lógica» (29), e não foi por acaso que se reuniu à volta do desembargador Manuel Fernandes Tomás um grupo de magistrados, comerciantes, proprietários e militares. De resto, a posição dos militares era nitidamente minoritária. Dos treze membros do Sinédrio apenas três eram militares: Francisco Gomes da Silva, médico militar, José de Melo de Castro e Abreu, coronel de milícias, e Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda, coronel de infantaria; e este dera a sua adesão a 19 de Agosto, nas vésperas do movimento. Os iniciadores da conjura, Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho e João Ferreira Viana, são tipos representativos da classe burguesa.
Era João Ferreira Viana um respeitável negociante da praça do Porto, «muito acreditado», na expressão de Xavier de Araújo (30), e os três primeiros eram homens de leis, formados em Coimbra. José da Silva Carvalho, juiz dos órfãos na cidade do Porto, era filho de lavradores pobres de uma povoação do concelho de S. João das Areias, na comarca de Viseu, e José Ferreira Borges, filho de um rico armador de navios do Porto, desempenhava as funções de síndico da Câmara Municipal do Porto, era secretário da Junta Geral da Companhia da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e estava inscrito, desde 1808, como advogado na Relação do Porto. Também o pai do Manuel Fernandes Tomás era um «homem do mar», ou, segundo José de Arriaga, «empregado na vida marítima», e estas expressões não podem deixar do significar que era um burguês interessado no tráfico marítimo (31). O quinto membro do Sinédrio é Duarte Lessa, um proprietário que, possivelmente, também possuiria uma casa comercial (32). E se de José Maria Lopes Carneiro nada se apurou, já sabemos que José Gonçalves dos Santos Silva era um comerciante (33) e que José Pereira de Meneses era um grande negociante relacionado com a praça de Londres (34). Ingressam posteriormente no Sinédrio o médico do Exército Francisco Gomes da Silva, um aristocrata, o desembargador João da Cunha Sotto-Mayor, o coronel de milícias José de Melo de Castro e Abreu e José Maria Xavier de Araújo, fidalgo da Casa Real, que deixara o cargo de provedor da comarca de Viana e era filho de um desembargador. Com o coronel Bernardo Sepúlveda, filho e neto de militares, completa-se o quadro dos membros do Sinédrio (35).
A presença dos três militares e dos dois aristocratas, que por sinal são ambos magistrados, não prejudica o carácter burguês do Sinédrio; compõem-no homens representativos da classe burguesa, homens ligados, na sua maioria, directa ou indirectamente à actividade comercial. Por outro lado, é necessário não esquecer que as invasões francesas, o serviço nos exércitos napoleónicos e o contacto com as tropas inglesas tinham contaminado o exército português. Muitos militares inclinavam-se para as ideias liberais e entre os oficiais era frequente a filiação maçónica. Pode-se mesmo afirmar que até à descoberta e condenação da chamada «conspiração de Gomes Freire», em 1817, os oficiais ingleses fomentaram a Maçonaria no Exército. Contudo, o pronunciamento de 24 de Agosto, embora tenha beneficiado do ambiente por elas criado, não foi organizado directamente pelas «associações secretas». Xavier de Araújo é categórico a este respeito (36).
Não interessa averiguar se alguns membros do Sinédrio estavam filiados na Maçonaria. É demasiado evidente que a presença dos oficiais ingleses nas lojas não se compadecia com a própria natureza da conjura. Independentemente dos seus objectivos políticos e económicos, a conjura tinha, também, um inequívoco aspecto antibritânico. Um dos objectivos dos militares portugueses é o de expulsar os oficiais ingleses das suas posições no exército nacional (37). Não eram por conseguinte as «associações secretas», onde portugueses e ingleses confraternizavam, o veículo próprio para realizar tal objectivo. O Sinédrio cria-se à margem das «sociedades secretas» e associa pessoas que, nos sucessos posteriores à Revolução de 24 de Agosto, se não comportarão idênticamente. É necessário não esquecermos que Manuel Fernandes Tomás defenderá nas Constituintes, num dos debates de maior significado político, posição precisamente contrária à de José Maria Xavier de Araújo (38); que José Ferreira Borges, no exílio de Londres durante a primeira reacção absolutista, abandona a sua posição radical, e mais tarde, em 1836, se nega a jurar a Constituição de 1822, de que fora, como deputado constituinte, um dos autores; que Sepúlveda apoiará com forças do seu comando a Vila-Francada.
E, facto surpreendente e que se impõe sublinhar, não há notícia de que o Sinédrio voltasse a reunir depois do dia 24 de Agosto de 1820. Realizado o pronunciamento no Porto sem oposição e designada a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, a conjura atingira com êxito o seu primeiro objectivo. António da Silveira, o presidente da Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, é um aristocrata e ideològicamente não é um liberal, mas era um reprsentante daquela nobreza da província cujos interesses e sentimentos estavam em conflito com a nobreza das cortes de Lisboa e do Rio de Janeiro. Essa nobreza da província, agrária e antijacobina, aliou-se com a burguesia citadina e comercial na Revolução do 1820. Mas é a classe burguesa que assume a direcção dos sucessos, é ela que, politicamente, tem a hegemonia. E é igualmente significativo que a revolução deflagrada no Porto burguês abarque logo a província de Entre Douro e Minho.
Rebelo da Costa, no final do século XVIII, considerou que uma descrição histórico-económica da cidade do Porto carecia de algumas notas preliminares e introdutóriaas sobre a província de Entre Douro e Minho, de tal modo a cidade e a província eram interdependentes e a tal ponto eram estreitos os seus recíprocos interesses. Escrevia Rebelo da Costa que «não sòmente a cidade utiliza a província pelo contínuo e notável consumo que dá aos seus frutos, pelo valor apreciável com que os fez estimar nas nações estrangeiras e pela facilidade com que os transporta desde o rio Douro até aos portos do Brasil e outras conquistas de Portugal; mas também a província beneficia a cidade com os multiplicados géneros das suas produções e excelentes obras das suas manufacturas, que diàriamente lhe envia.» (39) São estas palavras bem claras: a burguesia do Porto empenhava-se no comércio marítimo, transportava aos mercados estrangeiros e coloniais os produtos do hinterland e era a natural compradora, para comércio e para consumo próprio, dos produtos agrícolas e da produção manufactureira familiar, ou artesanal, da região de Entre Douro e Minho.
Escreveu recentemente um geógrafo francês que, apesar da mediocridade dos seus portos, o Minho é uma dessas regiões privilegiadas que despertaram para o grande comércio marítimo na Idade Média (40) circunstância essa a que o historiador Jaime Cortesão dera já o merecido relevo (41). Efectivamente, o litoral ao norte da foz do Douro apresenta um grande número de portos e mantém até final do século XVI uma importante actividade marítima (42). Averigua-se a existência até essa data nos diversos portos de um número considerável de embarcações e a manutenção de relações comerciais com portos estrangeiros. Mas já no final do século XVIII a situação é inteiramente diferente. Dos portos enumerados por Jaime Cortesão - Caminha, Valença, Viana, Ponte de Lima, Fão, Esposende, Vila do Conde, Azurara, Pinidelo, Leça, Matosinhos, S. João da Foz, Massarelos, Vila Nova de Gaia, Leixões, Porto -, só seis, na época em que escreveu Rebelo da Costa, mantêm ainda alguma actividade comercial: Caminha, Viana, Esposende, Vila do Conde, Matosinhos e Porto. Mas nos portos de Caminha, Esposende, Vila do Conde e Matosinhos a actividade comercial era diminuta.
Viana entrava em franca decadência. Escreve Rebelo da Costa: «No porto de Viana, onde até ao ano de 1740 entravam muitas e grandes embarcações, hoje apenas entram alguns iates e pequenos navios; porque a grossa negociação da cidade do Porto absorveu a maior parte do seu comércio.» (43) Em virtude do populoso, vasto e rico hinterland que servia, sendo a saída natural dos principais centros urbanos e povoações de Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e grande parte da Beira, em nenhum ponto do País como no Porto se realizara «tão vasta concentração das possibilidades comerciais de uma parte do território» (44). Num passo da Memória sobre a Decadência das Pescarias, de Botelho de Lacerda (45), refere-se que na segunda metade do século XV os habitantes do Porto reconheciam que subsistiam das mercadorias vindas das três províncias citadas e pediam que aos estrangeiros fosse proibido delas se abastecerem, com excepção do sal, do vinho, do pescado, do pano de linho. Este facto demonstra não só a capacidade consumidora da cidade como a vontade de reservar certos produtos para os comerciantes locais. À medida que o centro urbano progredia, as classes diferenciavam-se, e a concentração das actividades comerciais de todo o Norte do País no Porto burguês acentuava-se. Não era só Viana que perdia a favor do Porto grande parte do seu comércio. Rebelo da Costa cita também Vila do Conde, e depois de empregar a expressão vaga «outros portos» menciona particularmente o de Aveiro. Agrava-se esta concentração do comércio marítimo do Norte de Portugal no Porto, segundo Rebelo da Costa, a partir de 1740, acompanhando de perto o desenvolvimento demográfico da cidade. O Porto, que em 1622 (segundo D. Rodrigo da Cunha) tinha 14 581 habitantes, tem em 1732 (D. Luís Caetano de Lima) 20 737; em 1772 (Guilherme Guthrie), 50 000, e em 1787 (Rebelo da Costa), 63 505 (46).
Na opinião do autor da Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto, o próprio cataclismo de Novembro de 1755 concorrera para o acréscimo populacional da cidade, dando motivo a que se fixassem no Porto muitas famílias anteriormente domiciliadas em Lisboa. A razão mais forte, todavia, era o «importante comércio auxiliado com as multiplicadas e grossas embarcações, que a foz do rio Douro envia às quatro partes do mundo com tanta frequência, como nunca viram os passados Portugueses; pois este aumento cresceu desde que se transportou para esta cidade todo o comércio das vilas de Viana, situada na foz do Lima, Vila do Conde, Aveiro e outros portos» (47).
A burguesia portuense desenvolvia uma actividade considerável. Rebelo da Costa diz que ao comércio com o Brasil e as outras colónias portuguesas se dedicavam «mais de oitenta navios de muito maior porte que o dos navios mercantis das outras nações comerciantes» (48) e frisava, o que também é um outro índice de desenvolvimento do Porto, que todos eles eram construídos nos estaleiros da cidade, ou nos dos portos vizinhos, e que na sua construção e reparos se ocupava um grande número de artífices (49). Consistia a exportação para o Brasil em pano de linho, estopa, chapéus, tecidos de lã das fábricas da Covilhã, chita (50), louça, botões (51), linhas, pregos, ferragens, obras torneadas. A exportação para o Norte da Europa, e principalmente para a Inglaterra, consistia em vinho, sarro de vinho, folha de loureiro, baga de loureiro, cortiça, laranjas, limões, sal, castanha seca e no açúcar e algodão importados da América do Sul e pelo Porto reexportados (52).
O leitor apercebeu-se, por certo, da diferença qualitativa, do ponto de vista económico, entre estes produtos e os que o Porto exportava para o Brasil: são os primeiros artigos valorizados pelo trabalho das manufacturas ou das fábricas, e o próprio pano de linho ou a estopa denunciam uma produção dispersa, familiar ou artesanal, mas tão intensa que Rebelo da Costa escreveu: «Aumenta-se notàvelmente a riqueza desta província com a multidão das suas fábricas. Não só ela abunda das que acima disse, falando das produções de cânhamo e linho, mas também ocupa milhares de homens e mulheres na construção das melhores sedas, fitas e ligas, das quais se contam multiplicados teares.» (53) Para esses multiplicados teares se importava do Báltico linho e cânhamo o que não significa, evidentemente, que a produção do linho e do cânhamo (54) não fosse das mais ricas da região. É antes tendo esta circunstância em conta que o facto deve ser interpretado. Diz Rebelo da Costa: «Em nenhuma província do Reino, ou ainda em todas juntas, se fabricam tantas e tão preciosas teias de pano e mais fino e durável que excede na qualidade as finas Holandas; chega a 2 milhões de cruzados o lucro que se extrai anualmente desta louvável fábrica.» Só o linho e o cânhamo importado do mar Báltico dos portos de Riga, Memel e Pernau, fabricados em panos, estopas, toalhas de mesa, cardagens, calabres e outras obras, deixavam à província, sobre o seu custo de importação, um lucro que Rebelo da Costa calcula em 1 milhão de cruzados (55). E o mesmo autor refere que em poucos anos esse lucro duplicaria se os esforços e «industriosos inventos» da Sociedade Económica dos Bons Patriotas, Amigos do Bem Público, estabelecida na vila de Ponte de Lima, tivessem encontrado apoio. Que esforços e «industriosos inventos» seriam esses? Deixemos, por agora, a questão sem resposta, mas é necessário reter que a vila de Ponte de Lima assumia um papel de relevo na introdução de «industriosos inventos» na província. E não esqueçamos, também, os termos em que Rebelo da Costa fala de Braga: «pode dizer-se, sem hipérbole, que é quase toda uma fábrica» (56); e de Guimarães, que estava «cheia de cutelarias e de tecelões»; e das próprias aldeias e lugares que se ocupavam «em todo o género de artefactos».
Também sob o aspecto da produção artesanal e fabril, a cidade do Porto está à cabeça da província de Entre Douro e Minho. É longa a lista dos artigos produzidos pela indústria local. Na Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto, publicada trinta e dois anos antes da revolução vintista, encontramos uma extensa relação de artigos produzidos no Porto: «As outras fazendas que se exportam são trabalhadas nas fábricas desta cidade, e tais são as seguintes: seda em largo, dita em estreito, meias de linho, lã, algodão e seda; galões de ouro, prata, linho, seda e lã; fio de ouro e prata; botões de casquinha; ditos de fio de ouro, prata, seda e lã; panos de lã fina como os de Inglaterra; baetões e baetinhas de pintas; chitas de muitos feitios; gangas pintadas; atanados e sola; toalhas de mesa; fustões; talagages de linho; cola ou grude; breu; chapéus finos e grossos; pipas grandes e pequenas; caldeiras, tachos e bacias de latão e cobre; selas e todos os arreios necessários para cavalgaduras; todo o género de ferragens e cutelarias; louça grossa e fina; desta última há quatro grandes fábricas, bastantes a proverem uma grande parte do Reino e das suas conquistas. Nas vizinhanças da cidade há outras de papel, vidro, grude, baetões, etc.» (57) Relativamente a muitos destes artigos, Rebelo da Costa fala de fábricas: das fábricas de chitas, das fábricas de botões, das quatro fábricas de louça aptas a «proverem uma grande parte do Reino e das suas conquistas». A maior fábrica do Porto era a das Cardagens, que tinha 300 operários, entre oficiais, aprendizes, mulheres e raparigas. E, segundo a mesma fonte, a Fábrica do Tabaco tinha mais de 100 trabalhadores e atendia o consumo de 24 comarcas. Já vimos que a construção naval ocupava numerosos artífices. Havia profissões com centenas de artífices e na cidade podiam distinguir-se 184 profissões diferentes, no número das quais as liberais estavam incluídas (58).
Referem-se a 1787 os mais recentes dados de Rebelo da Costa. O progresso comercial e industrial do Porto não se deteve após essa data. Sofreu as perturbações dos anos de 1808 a 1814, que, por exemplo, a estatística da exportação de produtos industriais portugueses para o Brasil e outras colónias tão nìtidamente acusa. Mas a indústria portuense (da cidade e da região) constitui o mais forte núcleo produtor do País no primeiro quartel do século XIX (59).
Existiam então na província de Entre Douro e Minho 3 cidades e 26 centros urbanos de importância secundária. Não importa aqui especificar que administrativamente se dividia em 7 comarcas e 46 concelhos, porque da divisão administrativa e judicial pouco se pode concluir sobre a densidade do povoamento. Importa mais sabermos que as povoações se agrupam em 1519 freguesias; que existiam 26 000 fontes públicas; 3000 ermidas e santuários; 200 mosteiros, conventos e colegiadas; e o número de 217 000 fogos não nos parecerá estranho, nem exagerado o de 750 000 habitantes (60). Esta região do Noroeste, de povoamento remoto e denso, possuía, se os números que utilizamos estão certos, uma grande riqueza pecuária. Segundo Rebelo da Costa, andaria por 400 000 o número de bois e vacas e o gado miúdo, caprino, lanígero e porcino atingiria cerca de 2 milhões de cabeças. Ao norte do Porto estendia-se a região do campo-prado, onde se tinha operado a chamada «revolução do milho» (61). O milho zaburro, introduzido em Portugal no primeiro quartel do século XVI, o que desde a primeira metade do século XVII «é o mantimento mais comum da gente do Minho e da maior parte da Beira» (62), encontrou na vida económica do Noroeste condições que lhe eram muito favoráveis. Adaptando-se, como outro cereal se não adaptaria, ao clima e ao minifúndio, o milho, entre o qual se semeava o feijão e cultivava a hortaliça, proporcionou uma base de alimentação aos camponeses. Segundo Rebelo da Costa, a quantidade de pão produzida não só era «bastante para o sustento dos seus habitantes», como para Lisboa, pelas barras de Viana o do Porto, eram enviados anualmente entre 100 000 e 200 000 alqueires de milhão (63).
A «revolução do milho», cuja importância deve ser considerada tendo em conta a elevadíssima percentagem da população que vivia da agricultura, junta-se à prática secular do comércio marítimo, à actividade comercial da burguesia urbana e à produção manufactureira, familiar e artesanal, dispersa ou concentrada nos centros urbanos, como factor do desenvolvimento da classe burguesa na província de Entre Douro e Minho; condições que explicam a rapidez com que o movimento de 24 de Agosto logo abarcou todo o Noroeste do País.
Viana do Castelo pronuncia-se logo no dia 25 de Agosto. Ponte de Lima no dia 26. Nem a presença em Viana do general Wilson, governador das armas da província, nem a presença em Ponte de Lima do general Blunt, que inspeccionava o batalhão de caçadores, impediram o movimento. Em Ponte de Lima o clero recusou-se a aderir sem o prévio consentimento do arcebispo. Braga, Penafiel, Barcelos, Guimarães, Valença e as povoações mais importantes do Minho pronunciam-se quase simultâneamente. A 5 de Setembro levantam-se as milícias de Vila Real de Trás-os-Montes e celebra-se o acto de aclamação da Junta Provisional. A 7 pronuncia-se Chaves, Bragança no dia 9. Ao sul do Porto o movimento alarga-se a Vila da Feira, Oliveira de Azeméis, Arouca e Albergaria-a-Velha, no dia 28; a 30 pronuncia-se Aveiro. Dão-se revoltas puramente militares em Leiria (64) e Santarém, donde as tropas revoltadas marcham a reunir-se às que tinham saído do Porto, sobre Coimbra. Coimbra subleva-se também, e Figueira da Foz, Soure e Lousã, onde havia batalhões de milícias, decidem-se no mesmo sentido. Lamego é a primeira terra importante da Beira que toma voz pela Regeneração. O seu batalhão de milícias levanta-se a 5 de Setembro. Segue-se Tondela, onde igualmente se dá uma revolta do batalhão de milícias. O coronel Sepúlveda entra em Viseu a 7 de Setembro e é aclamado pela população. No dia 9 o movimento ganha Moncorvo; no dia 10, Tabuaço; no dia 13, Trancoso. Tomar e Abrantes sublevam-se ao tomar conhecimento da aproximação das tropas de Sepúlveda.
A diferença entre a maneira como o movimento alastra no Norte do País e o processo do seu desenvolvimento na Beira interior e ao sul do Mondego é evidente. A Revolução ganha ràpidamente, e quase sempre em virtude de sublevações espontâneas, logo apoiadas pelos elementos civis, a região que econòmicamente está mais estreitamente ligada à cidade do Porto; nas outras regiões, ou irrompem levantamentos militares isolados e parciais (Santarém, Leiria), ou a fuga das tropas governamentais e a aproximação das tropas revolucionárias vem a ser o factor decisivo. Um mapa em que sejam assinaladas as cidades e vilas situadas ao norte do Mondego que tomaram voz pela Regeneração até 15 de Setembro dá uma representação muito aproximada da área que abarcava a actividade comercial da burguesia do Porto.
Depois de 15 de Setembro a situação é assaz diferente, e as adesões à Regeneração não têm o mesmo significado. Lisboa levantara-se contra a Regência. Os oficiais superiores que aparecem no Rossio vieram arrastados pela vontade das tropas e sentem-se logo envolvidos no turbilhão da agitação popular. O Pregoeiro Lusitano (65) descreve que «desde aquela praça até ao Passeio era o povo tanto e tão denso que oferecia à vista uma nova superfície plana toda de cabeças humanas só formada...». Mas a unanimidade com que Lisboa aplaude o novo regime não corresponde a uma eficiente preparação revolucionária, nem à existência de uma organização consciente dos seus objectivos. A Casa dos Vinte e Quatro estava decidida a aclamar a revolução do Porto. O escrivão do juiz do povo, Veríssimo José da Veiga, «espírito agudo e muito activo e muito influente da época» (66), reunia-se na casa de Gregório José de Seixas, ao Rossio, com vários liberais, entre eles Xavier Monteiro e Francisco Simões Margiochi. Afirma Xavier de Araújo que foi este grupo que elaborou a lista do Governo proclamado no dia 15 de Setembro (67). Esta afirmação não deve ser, em toda a sua extensão, exacta. Possivelmente verdadeira quanto à designação dos representantes do comércio, dos proprietários agrícolas e da magistratura, ela não se ajusta à proclamação tumultuosa pelos populares e soldados dos nomes dos aristocratas, do general e do eclesiástico, primeiramente indicados, aos brados, num clamor e numa precipitação que não permitiam reflectir e escolher. Dessa desordenada e irreflectida designação nasceram dificuldades com a Junta do Porto que poderiam ter sido mais graves se a força militar que a apoiava e a pressão popular não tivessem aconselhado aos elementos militares e aristocráticos do Governo de Lisboa uma natural prudência.
Desaparecera, com o levantamento de Lisboa, a Regência, que representava D. João VI. Por «portaria pública» em Alcobaça (27 de Setembro), os Governos do Porto e de Lisboa reúnem-se, passando a constituir dois organismos: Junta Provisional do Governo Supremo do Reino e Junta Provisional Preparatória das Cortes. Lisboa recebe no dia 1 de Outubro os revolucionários portuenses. Está consumada a Regeneração. As adesões ulteriores ao movimento não representam já uma vontade de luta, mas uma necessidade de acomodação. Houve aqui e além manifestações populares entusiásticas? É possível. Mas o que nos interessava era apontar uma zona revolucionária activa, íamos a dizer consciente. A Revolução irrompe no Noroeste, é o Porto burguês que dá a primeira voz. Mas, pelo levantamento de 15 de Setembro e pelos sucessos posteriores, Lisboa torna-se o centro político do movimento e é a Estremadura que apoia as tendências mais radicais: as de Borges Carneiro, as de Simões Margiochi. É Lisboa que salva a Revolução em Novembro do golpe de mão do partido militar. Diz Xavier de Araújo: «Os quartéis apareceram no dia 17 de Novembro cercados por grupos de cidadãos armados, capitaneados por pessoas decentemente vestidas.» (68). Este quadro do povo e da burguesia em armas não se nos depara em qualquer outro momento da Regeneração. É o povo em armas «capitaneado por pessoas decentemente vestidas» e com o juiz do povo e o seu escrivão que faz frustrar o golpe do partido militar, que reconduz Fernandes Tomás, Ferreira de Moura, Frei Francisco de S. Luís e Braamcamp de Sobral aos seus postos governamentais, que impõe uma lei eleitoral e lhes dá força para expulsar do Governo, e de Lisboa, António da Silveira.
Nas suas Memórias, Xavier de Araújo confessa que, quando propusera Coimbra para local da reunião das Constituintes, cometera um «notável erro» e «falta de previdência política», dado que «toda a força da Revolução estava em Lisboa: tirá-la daqui, era entregá-la desarmada aos seus inimigos» (69). É verdade que a burguesia do Porto se mantinha atenta e vigilante, que as razões que a tinham conduzido à Regeneração permaneciam prementes, que, sob certos aspectos, os interesses económicos do Porto se não harmonizavam com os de Lisboa, e que certos privilégios que a Lisboa disputavam teriam levado os comerciantes e armadores do Porto a ver na Regência, e em Beresford, seu instrumento de domínio político, mas também seu directo antagonista, os inimigos da Pátria e os seus próprios inimigos, estorvos reais das liberdades públicas e dos seus interesses particulares. Mas são expressivos os testemunhos coevos quanto ao valor da agitação popular na capital, que chegou, como vimos, a revestir a forma radical do dia 17 de Novembro. Essa pressão popular que submeteu o partido militar, que impôs uma lei eleitoral, também se fez sentir no decurso dos trabalhos das Cortes Constituintes.
Conta Xavier de Araújo que, ao discutir-se a questão de instituir uma ou duas Câmaras, Fernandes Tomás se dispunha a votar por duas Câmaras movido por considerações de ordem internacional e que Ferreira de Moura lhe teria dita: «Tu não sabes o que por aí vai por essa cidade; no dia em que votarmos as duas Câmaras, somos precipitados da janela abaixo do Palácio das Cortes, e perdemos toda a nossa popularidade» (70). Seria assim dominadora a opinião popular de Lisboa, ecoaria ela tão vivamente nas salas do Palácio das Necessidades? Ou obedeceu Xavier de Araújo, ao registar este episódio, à intenção do apresentar Fernandes Tomás influenciável por sugestões fáceis? Bem pode ser que sim. Todavia, os acontecimentos de 17 de Novembro e a própria afirmação de Xavier de Araújo de que em Lisboa residia «toda a força da Revolução» inclinam-nos para a hipótese de que o processo da Revolução de Lisboa de 1383 e o processo da Revolução do Porto de 1820 evoluem paralelamente, mas em sentidos opostos. Em 1383 é a burguesia do Porto que garante a vitória da Revolução de Lisboa; em 1820 é a burguesia de Lisboa que garante a vitória da Revolução do Porto. As condições necessárias para desencadear a Revolução não foram, no quadro local, em qualquer dessas crises históricas, suficientes para assegurar a vitória.
Não deixará de ter interesse confrontar as nossas afirmações com os dados da Memória sobre a Causa da Diferente População de Portugal em Diversos Pontos da Monarquia, por José Joaquim Soares de Barros (71), que escreve: «Todas as terras de comércio têm aumentado em povoação; todas as terras de pescarias têm diminuído e todas as de comércio e de pescarias têm aumentado tão-sòmente em razão do comércio.» Pelo seu comércio crescera o Porto «em povoação» e em riqueza. Viana, Braga, Bragança, Lamego e Aveiro, que, devido ao seu comércio, aumentaram de população, são dos centros do Norte que logo tomam partido pela Regeneração ou por ela mais cedo se decidem. De resto, se o historiador Jaime Cortesão relacionou a actividade da burguesia dos portos do Norte com os «factores democráticos» da formação de Portugal, um geógrafo francês contemporâneo assinalou o importante papel dessa burguesia na vida política portuguesa, «designadamente no século XIX, promovendo as ideias liberais ou republicanas» (72).
(*) Fernando Piteira Santos (1918-1992) nasceu na Amadora e foi um grande animador dos sectores juvenil e intelectual do Partido Comunista Português (PCP) no final dos anos 1930 e durante toda a década seguinte, tendo pertencido ao seu comité central de 1941 a 1950. Foi fundador do Movimento Nacional de Unidade Antifascista (MUNAF), membro do Movimento de Unidade Democrática (MUD) e colaborador assíduo da imprensa neo-realista. Em 1950 é expulso do PCP sob a acusação de “titista”. Ligou-se depois à Resistência Republicana e Socialista. Ainda em 1950 licenciou-se em histórico-filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa com uma tese que permaneceria inédita por doze anos. Foi preso por três vezes pelas suas atividades antifascistas. Subscritor do Programa para a Democratização da Reública, acreditou sempre que o regime salazarista teria de ser derrubado pela força armada. Tendo participado, como membro das Juntas Patrióticas, na tentativa de assalto ao quartel de Beja em janeiro de 1962, mergulha na clandestinidade e sai de barco para o Norte de África. Durante treze anos viveu em Argel, onde foi um dos fundadores da Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN) e da Rádio Voz da Liberdade. Desenvolveu ao longo da sua vida extensa atividade jornalística (‘O Diabo’, ‘Ler’, ‘Gazeta Musical e de todas as Artes’, ‘República’, ‘Diário de Lisboa’), ensaística (‘Seara Nova’, ‘Vértice’, ‘Revista de Economia’, ‘Dicionário de História de Portugal’), de tradutor, prefaciador e editor (Livraria Avelar Machado, Publicações Europa-América, Editora Sá da Costa). Historiador de mérito, homem culto, de grande erudição e finura intelectual, investigou com particular atenção a história do movimento operário português. Durante os anos que se seguiram à revolução portuguesa de 1974-75 procurou manter uma impossível posição conciliatória entre o PS e o PCP, com base num programa de democracia participativa de massas, tendo animado algumas iniciativas políticas nesse sentido, como os Centros Populares 25 de Abril e a Fraternidade Operária. Participou na Comissão do Livro Negro sobre o Fascismo, tendo produzido alguma reflexão académica sobre este tema. Foi diretor-adjunto do ‘Diário de Lisboa’ entre 1975 e 1989, onde assinava a célebre coluna “Política de A a Z”. Entre 1974 e 1988 regressou, agora como professor convidado, à Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, tendo também lecionado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Publicou em livro ‘Raul Proença e a «Alma Nacional»’, Europa-América, Lisboa, 1979 e ‘Camões, os centenários, as leituras e o conceito de «experiências»’, Sociedade da Língua Portuguesa, Lisboa, 1982. Sobre a sua vida e obra pode ler-se, com organização de Maria Antónia Fiadeiro, ‘Fernando Piteira Santos: portugês, cidadão do século XX’, Campo das Letras, Porto, 2002, que reúne um grande número de testemunhos pessoais. ‘Geografia e economia da revolução de 1820’ foi a tese que Piteira Santos apresentou para a sua licenciatura em 1950. É constituída por dois ensaios, um dos quais foi publicado na ‘Revista de Economia’ nos anos 1950. O conjunto da obra, com as notas complementares, seria publicado apenas em 1962 nas Edições Europa-América, do seu amigo Francisco Lyon de Castro. É dessa edição que aqui reproduzimos a Introdução e o primeiro capítulo. O caráter marxista da obra, bem patente, não exclui uma abertura à influência inteletual das escola historiográfica francesa dos ‘Annales’.
___________________ NOTAS:
(1) Marc Bloch, Apologie pour l'Histoire ou Métier d'Historien, 4.ª ed., Armand Colin, Paris, 1961.
(2) Num processo de desenvolvimento histórico-social é necessário considerar, e distinguir, o que resulta de uma diferença de escala e o que resulta de uma diferença de natureza, que é diferente especificamente.
(3) Robert Schnerb, Le XIXe. Siècle, L'Apogée de l'Expansion Économique (1815-1914), tomo VI da Histoire Générale des Civilisations, publicada sob a direcção de Maurice Croizet, 2.ª ed., Presses Universitaires de France, Paris, 1957, p. 3.
(4) L. C. A. Knowles, O Desenvolvimento Económico durante o Século XIX, trad. port., Coimbra, 1947, p. 1.
(5) F. P. S., artigo «Direito de associação», no Dicionário de História de Portugal, em pubIicação, Iniciativas Editoriais, Lisboa.
(6) Charles Morazé, La France Bourgeoise, Armand Colin, Paris, 1946, pp. 62-65.
(7) Para a noção de classe segundo Halbwachs, Sorokin, Gurvitch e a pertinente crítica de L. Goldmann, v. Lucien Goldmann, Sciences Humaines et Philosophie, Presses Universitaires de France, 1952, pp. 99-104; a definição proposta por L. Goldmann, pp. 111-112.
(8) André Joussain, Les Classes Sociales, Paris, 1949, p. 14.
(9) Marc Bloch, Apologie pour l'Histoire ou Métier d'Historien, Armand Colin, 4.ª ed., Paris, 1961.
(10) Karl Marx, El Capital, liv. I, p. 188. Ed. do Fondo do Cultura Económica, México.
(11) Karl Marx, El Capital, liv. I, p. 189. Ed. do Fondo de Cultura Económica, México.
(12) Artigo «Banco», no Dicionário Universal Português, também publicado em volume.
(13) Oliveira Martins, História de Portugal, vol. lI, liv. VII, cap. III.
(14) V. Fernand Braudel, «Histoire et sciences sociales: Ia longue durée», artigo em Annales, Économie, Sociétés, Civilisation, 1958, p. 4. Cf. a afirmação de Henri Lefebvre: «Le conjonctural, c'est plus que l'événementiel ou le contingent, c'est Ia pression du devenir sur les structures, c'est leur insertion inévitable dans les stratégies, en un mot, c'est l'histoire...», Critique de Ia Vie Quotidienne, vol. II - Fondements d'une sociologie de Ia quotidienneté, L'Arche Editeur, Paris, 1961, p. 151.
(15) Expressão usada pelos comerciantes João Gonçalves Marques, Francisco António Ferreira e João António de AImeida, em 1820, no Voto em Separado dos Três Membros da Comissão do Melhoramento do Comércio, p. 12.
(16) Vieira de Almeida, Paradoxos Sociológicos, Coimbra, 1948.
(17) A Proclamação, datada de 31 de Outubro de 1820, foi publicada no Diário do Governo de 9 de Novembro.
(18) O estudo do vocabulário político tem um grande interesse histórico e sociológico. É basilar para o estudo da utensilagem mental e da psicologia histórica. É um rumo de pesquisa - como tantos outros - que entre nós ainda não mereceu a atenção devida. V. o estudo do vocabulário da Revolução Francesa por Ferdinand Brunot, na sua Histoire de Ia Langue Française, tomo IX.
(19) V. Portugal Regenerado em 1820, p. 16.
(20) Discurso de Borges Carneiro, em 10 de Novembro de 1821, sobre a «reforma dos forais».
(21) No Português Constitucional Regenerado, n.° 5 de 6 de Agosto de 1821.
(22) Manuel Fernandes Tomás, Cartas (primeira e segunda) do Compadre Belém ao «Astro da Lusitânia». Sobre a existência ou não existência de feudalismo no nosso país, considerada a questão do ponto de vista da história historizante, v. Introdução ao Problema do Feudalismo em Portugal, Coimbra, 1912, de Manuel Paulo Mereia (com indicações bibliográficas).
(23) Cit. conforme Julião Soares de Azevedo, Condições Económicas da Revolução Portuguesa de 1820, Lisboa, 1944.
(24) Portugal Regenerado, 2.ª ed., pp. 80 e 96.
(25) Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda, coronel de infantaria, comandava então o regimento n.° 18. Era filho do general Manuel Jorge Gomes Sepúlveda, que no dia 11 de Janeiro de 1808 se revoltara em Bragança contra a ocupação francesa. O coronel Bernardo Sepúlveda deixou um relato da sua participação nos acontecimentos de 1820 intitulado: Memórias das Providências e Operações a bem da Regeneração Nacional, Lisboa, 1820.
(26) Sebastião Drago de Valente de Brito Cabreira, coronel de artilharia, comandava então o regimento n.° 4.
(27) Damião Peres, História de Portugal, ed. Barcelos, vol. VII, p. 41.
(28) Vitorino Magalhães Godinho, A Crise da História e as Suas Novas Directrizes, Lisboa, 1946, p. 22. Sobre a influência das personalidades v. também El Papel del Individuo en la Historia, de J. Plejanov (ou G. Plekhanov), trad. espanhola, Toulouse, 1946, designadamente o cap. VIII.
(29) J. Plejanov, ob. cit., p. 48.
(30) José Maria Xavier de Araújo, Revelações e Memórias para a História da Revolução de 24 de Agosto de 1820 e 15 de Setembro do mesmo ano, Lisboa, na Tipografia Rollandina, 1846. Citaremos, abreviadamente, Revelações e Memórias...
(31) É o que, de resto, se conclui da informação de Rebelo da Silva: seu pai «pouco abastado, mas colhendo no comércio marítimo suficientes lucros para acudir às despesas domésticas...». V. Luís Augusto Rebelo da Silva, Varões Ilustres das Três Épocas Constitucionais, Lisboa, 1870, p. 36.
(32) Suposição que nos é sugerida pelo facto de o jornal O Independente anunciar que se encontrava à venda no Porto, «em casa do Sr. Duarte Lessa». Duarte Lessa morreu em Liverpool, onde exercia o cargo de cônsul-geral, ocupação que se coaduna melhor com a possibilidade de ter sido comerciante no Porto. É a Duarte Lessa, com quem manteve estreitas relações, que Garrett se refere nos versos do poema D. Branca:
Não rias, bom filósofo Duarte, Da minha conversão, sincera é ela.
(33) Na Enciclopédia Portuguesa, de Maximiano de Lemos, afirma-se que Santos Silva era escritor. Teria nascido no Porto, em 1794, e falecido na cidade do Desterro, Brasil, em 1871. Em 1823 fugiu para o Brasil e regressou ao Porto em 1827. Com a subida de D. Miguel ao poder, exilou-se para Inglaterra e de lá seguiu novamente para o Brasil. Foi cônsul de Portugal na cidade do Desterro e deixou umas Cartas acerca da Província de Santa Catarina. Como abonação da sua qualidade de escritor, não sabemos o que estas Cartas valem. Mas da sua qualidade de comerciante é que não pode subsistir dúvida pelo facto de ter sido um dos membros da Comissão do Comércio da Praça do Porto.
(34) Refere-se José de Arriaga, História da Revolução Portuguesa de 1820, vol. I, pp. 656 e 657, à viagem de José Pereira de Meneses a Londres, via Lisboa, e lança a hipótese: «E quem sabe mesmo se a criação do próprio Campeão Português tem alguma coisa com essa viagem?»
(35) Há discrepâncias quanto às datas da fundação do Sinédrio e do ingresso dos vários membros. Nas obras de mais corrente consulta, como a História de Portugal, ed. Barcelos, e a História da Revolução Portuguesa de 1820, de José de Arriaga, indicam-se quanto à criação do Sinédrio respectivamente, as datas de 22 e 21 de Janeiro, e quanto à admissão de Sepúlveda, 19 e 18 de Agosto. Para o historiador dos acontecimentos não têm grande interesse estas diferenças, que derivam do facto de o relato da autoria de Duarte Lessa, publicado na Revista Literária, do Porto, não concordar com as informações do Campeão Português, de Londres.
(36) Nas Revelações e Memórias..., pp. v e vi, diz Xavier de Araújo: «...a Maçonaria existia regularmente organizada no Porto e em Lisboa; e todavia não foi ela que fez as Revoluções de 24 de Agosto e de 15 de Setembro: a de 24 de Agosto foi produzida pelo Sinédrio, corpo político, como veremos adiante, e sem comunicação com as sociedades secretas; ao contrário, ignorado delas...»
(37) A Junta Provisional do Governo Supremo, «proclamando, embora, um dos factores da revolução o comando do Exército por oficiais ingleses», pede, por ofício de 26 de Agosto de 1820, a Sebastião Drago Valente de Brito Cabreira, que exprima «aos oficiais ingleses que ocupam postos no Exército quanto deseja mostrar a justa e merecida consideração em que tem os seus eminentes serviços, e quão feliz seria em pensar que se julgava autorizada a remunerá-los dignamente», e lhes garanta a manutenção das «honras, privilégios e distinções pertencentes a seus postos, assim os seus soldos, que lhes serão pontualmente pagos até ao ajuntamento das Cortes». No Correio Brasiliense, Setembro, 1820.
(38) Debate relativo ao problema de uma ou duas Câmaras. Fernandes Tomás vota por uma Câmara; Araújo, por duas.
(39) Agostinho Rebelo da Costa, Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto, Porto, 1788, pp. i e ii.
(40) Pierre Birot, Le Portugal, Armand Colin, Paris; 1950, p. 72.
(41) Jaime Cortesão, «Os Factores Democráticos na Formação de Portugal», na História do Regime Republicano, Ática, Lisboa, 1932, vol. I.
(42) Pedro de Azevedo, «Defesa da Navegação de Portugal contra os Franceses em 1552», no Arquivo Histórico Português, vol. VI, pp. 161 e segs.; e «A Marinha Mercante no Norte de Portugal em 1552», no Arquivo Histórico Português, vol. II, pp. 241 e segs..
(43) Agostinho Rebelo da Costa, Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto, Porto, 1788, p. V.
(44) Jaime Cortesão, ob. cit., p. 60.
(45) Citado por António Sérgio, Em torno da Designação de Monarquia Agrária, Lisboa, 1941, p. 44.
(46) Rebelo da Costa, ob. cit., p. 45.
(47) Rebelo da Costa, ob. cit., p. 46.
(48) Idem, ob. cit., p. 203.
(49) Idem, ob. cit., p. 204.
(50) Segundo Rebelo da Costa, a maior parte das chitas era produzida nas fábricas da cidade do Porto.
(51) Também das fábricas da cidade do Porto.
(52) Rebelo da Costa, ob. cit., p. 219.
(53) Idem, ob. cit., p. xiii e xiv.
(54) Idem, ob. cit., p. 219.
(55) Rebelo da Costa, ob. cit., p. v.
(56) A referência a Braga é textualmente: «A cidade de Braga, pode dizer-se, sem hipérbole, que é quase toda uma fábrica de chapéus, ferragens, caixas, tinteiros, copos e outras obras, que se fazem das pontas do gado vacum.» Ob. cit., p. xiv.
(57) Rebelo da Costa, ob. cit., p. 231.
(58) Rebelo da Costa, ob. cit., p. 235.
(59) Joel Serrão, «A Indústria Portuguesa em 1830», no Bulletin d'Études Historiques, Lisboa, n.° 1, 1953. Do estudo que efectuou, Joel Serrão concluiu que «...a industrialização portuguesa oitocentista se inicia de 1813 a 1814» e que «até, pelo menos, 1830, o Porto encontra-se à frente do esforço de industrialização portuguesa».
(60) Este número (750 000 habitantes) deve ser considerado em relação com os seguintes dados: em 1732, os Portugueses são 2 143 368; em 1801, 3 011 000. De 1768 a 1801 ter-se-ia verificado um crescimento anual de 18 221. Regista-se um refluxo do número dos habitantes e do ritmo do crescimento demográfico por motivos das invasões francesas e das lutas liberais. Em 1835, os Portugueses são 3 milhões. De 1835 a 1854, o ritmo de crescimento anual é de 25 900 indivíduos. V. Vitorino Magalhães Godinho, Prix et Monnaies au Portugal, 1750-1850. Armand Colin, Paris, 1955, p. 308.
(61) V. Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Coimbra, 1945 (?); e Pierre Birot, Le Portugal, Armand Colin, Paris, 1950.
(62) Orlando Ribeiro, ob. cit., p. 174.
(63) Rebelo da Costa, ob. cit., p. viii.
(64) Às tropas de Leiria que marcham para Coimbra, sob o comando de Manuel Pinto da Silveira, deviam-se sete meses de soldos.
(65) Narrativa contemporânea dos acontecimentos da Regeneração. Pode dizer-se que José de Arriaga o segue, na sua conhecida História da Revolução Portuguesa de 1820. Pregoeiro Lusitano, Biblioteca Nacional de Lisboa, S. C. 12 854-57, P. O «Passeio» é, como se sabe, o «Passeio Público».
(66) Xavier de Araújo, Revelações e Memórias... p. 52.
(67) Idem, ob. cit., p. 53.
(68) Xavier de Araújo, Revelações e Memórias... p. 68.
(69) Xavier de Araújo, ob. cit., p. 62. Uma carta de Frei Francisco de S. Luís dá-nos um directo testemunho do papel da população de Lisboa nos acontecimentos de 11 e 17 de Novembro.
(70) Xavier de Araújo, ob. cit., p. 76.
(71) Memórias Económicas, t. I, p. 123.
(72) Pierre Birot, Le Portugal, Armand Colin, Paris, 1950, p. 74.
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