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O fascismo em Portugal: conceito e prática (*)
Fernando Piteira Santos
Que devemos entender por fascismo?
A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, na entrada respectiva, dá-nos as seguintes definições: «Doutrina política e social do partido fundado em Itália por Benito Mussolini... Por extensão: Ditadura exercida num sentido nacionalista». São definições estritas e simplistas. O Dictionnaire de Sociologie de Joseph Sumpf e Michel Hugues (Librairie Larousse, Paris, 1973), na entrada fascismo, diz: «ideologia e doutrina política que assentam na ditadura de um partido político único, na exaltação do nacionalismo e no corporativismo» e, desenvolvendo estes tópicos, alude à «diversidade das formas segundo os países.»
O fascismo, para Joseph Stumpf e Michel Hugues, não se limita, portanto, a um típico, original e circunscrito fenómeno político italiano.
Um antifascista italiano, Palmiro Togliatti, em 1928, reconhecia: «...pode afirmar-se que o fascismo é o sistema de reacção integral mais consequente que jamais existiu até hoje nos países em que o capitalismo alcançou um certo grau de desenvolvimento. Esta afirmação (...) é motivada pela supressão sistemática total de qualquer forma de organização autónoma das massas.» E, nesse mesmo escrito, acrescentava: «O carácter reaccionário de fascismo naquilo que tem de consequente é pois, antes de mais, a expressão de uma necessidade económica e de um processo cujas causas devem ser procuradas no campo das relações de produção. A tendência do capitalimo italiano não apenas para se tornar reaccionário (esta é, na época do imperialismo, uma tendência que se verifica em todos os países), mas para servir-se do fascismo primeiro, e identificar-se com ele depois, deriva directamente da estrutura especial deste capitalismo e do aspecto particular da crise que ele atravessa. É impossível prever se o fascismo, na forma típica com que se apresentou na Itália, poderá instaurar-se num outro país, se não se tiver o cuidado preliminar de analisar atentamente o regime capitalista desse país, assim como as relações de produção e de classe que nele dominam.»
Não podemos esquecer que Togliatti escreve em 1928. Retenhamos, da citação, a expressa referência ao «carácter reaccionário» do fascismo e ao relacionamento deste fenómeno político com o grau de desenvolvimento da estrutura económica, com a crise do regime capitalista, com o nível das relações de produção e o tipo de dominação de classe.
Outro militante antifascista italiano, Angelo Tasca (Nascita e avvento del fascismo, ed. La Nuova Italia, Firenze, 1950), sublinharia: «O fascismo é urna ditadura: daqui partem todas as definições do fascismo tentadas até hoje.» Com efeito, independentemente das discrepâncias que ressaltam da abundante literatura sobre o fascismo, neste ponto existe o acordo dos políticos, dos historiadores e dos sociólogos: o fascismo é uma ditadura. Uma ditadura reaccionária que surge em sociedades capitalistas numa determinada fase do respectivo desenvolvimento. Dimitrov, não se detendo na análise da crise - político-institucional e inerente ao tecido das relações de produção de que o fascismo emerge - e preocupado preferencialmente com o aspecto político da ditadura, definiu o fascismo como a «ditadura abertamente terrorista dos elementos mais reaccionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro.»
A definição tornou-se clássica. Não falta quem a considere científica. Obviamente, é inspirada na apreciação do modelo hitleriano de fascismo.
Dimitrov notaria, também, que «o fascismo não é uma substituição vulgar de um governo burguês por outro, mas uma mudança da forma de Estado, da dominação de classe da burguesia, substituição da democracia burguesa por urna forma terrorista de ditadura». (Obras Completas, vol. 10.º, pág. 31, na edição inglesa).
É incontestável que esta substituição - «da democracia burguesa por uma forma terrorista de ditadura» - ocorreu em Portugal.
Apego-me à ideia de que será irrealista penetrar no nosso fascismo com guia estrangeiro, seja o guia eleito uma Hannah Arendt - analista profunda mas animada do desígnio bem patente de identificar soluções opostas de poder-de-classe sob a etiqueta conceptual do totalitarismo; seja o guia um Nicos Poulantzas analista político operoso mas conhecedor superficial dos casos português e italiano e apressado, como se mostra no seu livro La Crise des dictatures, ao estabelecer analogias. O caminho para dilucidar a temática do fascismo que aconteceu em Portugal, não pode ser outro que o estudo directo da produção doutrinal, da legislação e da prática política portuguesas.
O que define o fascismo não é a «glorificação irracional da violência, dos instintos e do sangue», mas o conteúdo de classe da ditadura. Não podemos avaliar uma forma ditatorial do poder-de-Estado, com um conteúdo de classe específico em relação a cada situação concreta, pela teatralidade burlesca do comportamento do Duce, ou do Führer, ou pela ausência dessa teatralidade num qualquer Chefe.
António de Oliveira Salazar, o seminarista de Viseu, o catedrático de Coimbra, não correspondia ao perfil do Chefe que um Rolão Preto desejava, mas foi para um Carneiro Pacheco o próprio retrato do Chefe.
O Chefe - e um chefe a quem se prestou culto, desde o brado legionário em resposta à interpelação Quem manda? ao S nos cinturões da «Mocidade Portuguesa» - foi Salazar.
Oliveira Salazar justifica a ditadura em função da crise do Estado. Para Oliveira Salazar, citamos: «A expressão desta (...da Nação...) é mais ou menos alta e digna, conforme a dignidade e elevação do próprio Estado.» E mais adiante, no prefácio do seu punho para o volume das entrevistas que concedeu ao jornalista António Ferro, do qual retiramos estas citações, explica-se: «Quer dizer: se a Nação não correspondia aos seus valores individuais, o Estado era ainda inferior à Nação.»
No discurso definidor da «União Nacional», pronunciado na sala do Conselho de Estado em 30 de Julho de 1930 e que acompanha de perto o texto do «Manifesto da União Nacional» cuja autoria, ou a decisiva inspiração, viria a ser reivindicada por Quirino Avelino de Jesus (Nacionalismo Português, Porto, 1932) é da «...crise de autoridade que o Estado atravessa...» que Oliveira Salazar parte para, no desenvolvimento de uma análise da fraqueza intrínseca do Estado liberal, afirmar: «Não há Estado forte onde o Poder Executivo o não é, e o enfraquecimento deste é característica geral dos regimes políticos dominados pelo liberalismo individualista ou socialista, pelo espírito partidário e pelos excessos e desordens do parlamentarismo.»
Ao afirmá-lo, Oliveira Saiazar dá a sua caução teórica à ditadura militar de que é então, nesse mês de Julho de 1930, apenas o ministro das Finanças. E enuncia problemas de equilíbrio dos Poderes (separados) na estrutura jurídico-política do Estado liberal. Citamos: «Na nossa triste história contemporânea parece que nunca puderam coexistir os dois Poderes devidamente equilibrados: ora é o Legislativo que domina, subordinando os Governos; ora o Executivo que reage, substituindo-se àquele inteiramente. E o que é pior é ter a experiência demonstrado que para trabalhar no Governo pelo País é preciso pôr de lado a Constituição.»
E esboçando já a arquitectura totalitária do Poder - o Estado considerado como uma totalidade política, económica, jurídica e ética - nesse mesmo discurso Oliveira Salazar disse: «Não pode aspirar-se a constituir um Estado equilibrado e forte sem a coordenação e desenvolvimento da economia nacional que hoje, mais do que nunca, tem de fazer parte da organização política. Está, por ventura neste ponto, a maior transformação constitucional prática a realizar em todas as nações civilizadas.»
Continuamos a extractar do citado texto, o discurso de 30 de Julho de 1930, as frases que esclarecem o propósito: «Arrancar o poder às clientelas partidárias; sobrepor a todos os interesses o interesse de todos - o interesse nacional; tornar o Estado inacessível à conquista de minorias audaciosas, mas mantê-lo em permanente contacto com as necessidades e aspirações do País; organizar a Nação, de alto a baixo, com as diferentes manifestações da vida colectiva, desde a família aos corpos administrativos e às corporações morais e económicas, e integrar este todo no Estado, que será assim a sua expressão viva - isto é, dar realidade à soberania nacional.»
Além desta concepção de soberania nacional que elimina, como se compreende, o cidadão e dispensa a participação cívica individual, haverá que destacar a vontade de «integrar este todo no Estado», este todo que resulta da decisão de «organizar a Nação, de alto a baixo...»
Em 23 de Novembro de 1932, no acto de posse dos corpos directivos da «União Nacional», Oliveira Salazar defenderá que as fraquezas do Estado liberal e o sectarismo da República explicam a boa aceitação com que «foram recebidas as reacções de Pimenta de Castro, Sidónio Pais e a Ditadura Nacional...». Não diz: ditadura militar; nem sequer, simplesmente Ditadura, como no prefácio das entrevistas com António Ferro (pág. XIV). A Ditadura, com maiúscula, acrescenta Nacional, também com maiúscula. E, peremptório, declara: «Nós temos uma doutrina e somos uma força. Como força compete-nos governar: temos o mandato duma revolução triunfante, sem oposição e com a consagração do País; como adeptos duma doutrina, importa-nos ser intransigentes na defesa e na realização dos princípios que a constituem. Nestas circunstâncias não há acordos, nem transições, nem transigências possíveis.»
O Estado é uma força, tem uma doutrina. Este Estado forte e portador de uma doutrina, como observaria Hannah Arendt, desafia «as leis positivas» e é, ou pretende ser, «uma forma mais elevada de legitimidade que, inspirando-se nas próprias fontes (para Oliveira Salazar o interesse nacional, por ele próprio definido), pode dispensar-se de uma legalidade mesquinha». (Le Systéme Totalitaire, ed. francesa, pág. 205). E Hannah Arendt precisa: «A legitimidade totalitária, no seu desafio à legalidade e na sua pretensão de instaurar o reino directo da justiça na terra, realiza a lei da História ou da Natureza sem a traduzir em normas de bem e de mal relativamente à conduta individual» (pág. 206).
Oliveira Salazar - no prefácio às entrevistas com António Ferro - afirmou: «Nunca se pode negar que o Estado, no que tem de dinâmico, representasse uma doutrina em acção» (págs. XI-XII). E num dos seus discursos, aprofundando o carácter ditatorial desse Estado que se afirmava como «uma doutrina em acção», Oliveira Salazar sentenciou: «Deve o Estado ser tão forte que não precise de ser violento» (Discursos, vol. I, pág. 81). O que não pode deixar de entender-se como o enunciado de uma orientação prática: O Estado será tão violento quanto o necessário para se afirmar como Estado forte e impor a doutrina que o inspira - o pensamento e a vontade do ditador. A leitura que o ditador, o Chefe, faz do interesse nacional.
Quando Raul Proença, em princípios de Março de 1926, reflectindo acerca do fascismo italiano, escrevia: «Que admira, pois, que à ideologia fascista corresponda o terrorismo mais violento e a supressão de todas as liberdades? As mais elementares garantias desapareceram. Não existe o direito de associação - senão para os fascistas. Não há o direito de imprensa - senão para os fascistas. Os funcionários públicos têm de se declarar fascistas...» - ele, Raul Proença, estava, evidentemente, longe de adivinhar o que do modelo mussolinesco se viria a adoptar e reproduzir no nosso país.
Raul Proença critica severamente o fascismo italiano e o seu chefe Mussolini. Ataca esse exemplo para generalizar: «Para que o fascismo se mantenha é, pois, necessário o emprego sistemático da violência em relação aos adversários.» Mas Raul Proença, tão lúcido na denúncia da ameaça fascista e na identificação de alguns dos promotores da substituição «da democracia burguesa por uma forma terrorista de ditadura», não podia prever o brutal recorte do ponto 10.º do «Decálogo do Estado Novo», essa clara afirmação de totalitarismo inequívoco. Citamos: «Os inimigos do Estado Novo são inimigos da Nação. Ao serviço da Nação - isto é: da ordem, do interesse comum e da justiça para todos - pode e deve ser usada a força, que realiza, neste caso, a legítima defesa da Pátria.»
Se os «inimigos do Estado Novo» eram considerados «inimigos da Nação» que os devia tratar, em «legítima defesa da Pátria», com a violência necessária para os submeter, neutralizar ou eliminar, aos próprios partidários do regime ditatorial não era consentida a iniciativa política. Numa das entrevistas publicadas no «Diário de Notícias», e que serviram à promoção do ditador, António Ferro questionou-o sobre a possibilidade de constituição de agrupamentos políticos: «E se alguns agrupamentos se formarem dentro da situação, dentro dos princípios do 28 de Maio?» Pronta e decidida foi a resposta de Salazar: «Não os deixaremos formar. Seria a negação de nós próprios.»
Do carácter totalitário do poder ditatorial decorria o monopólio da actividade política. Em teoria, monopólio do partido único. Na realidade, modo de Salazar impor a sua vontade política.
Em Portugal, em 1926, havia uma actividade política diversificada. Livremente actuavam, afirmando-se no quadro do parlamentarismo democrático, ignorando-o, ou não alcançando representatividade parlamentar, os seguintes partidos, organizações, correntes: Partido Republicano Português (PRP, vulgarmente designado Partido Democrá.tico); Partido Republicano Nacionalista; União Liberal Republicana; Partido Radical; Esquerda Republicana; Partido Comunista; Partido Socialista; Centro Católico; Monárquicos Constitucionais; Monárquicos Integralistas; União dos Interesses Económicos. Livremente actuavam, estes contestando o parlamentarismo «burguês», os anarquistas e os sindicalistas.
Atacados logo pela ditadura militar, com Salazar todos seriam dissolvidos ou ilegalizados, suprimidos os jornais e revistas que publicavam, muitos dos seus dirigentes seriam presos, muitos seriam deportados ou compelidos ao exílio.
A supressão da actividade política diversificada, plural e livre, estava na lógica da diligência de constituição do partido único.
O partido único - caso, talvez, único no mundo - foi criado por um decreto governamental: Decreto N.° 21.608. No seu discurso de 23 de Novembro de 1932, Oliveira Saiazar reconheceu que nos dois anos, de 1930 (data de promulgação dos Estatutos) a 1932 (data de posse dos primeiros corpos directivos), tinham sido os ministros do Interior que «organizavam por todo o país as comissões, da União Nacional... »
O Ministro do interior, Albino dos Reis, fiel executante da vontade do ditador, declararia em reforço da unicidade orgânica e do monopolismo político: «Fora da União Nacional não reconhecemos partidos. Dentro dela não admitimos grupos.»
Num texto oficial - a União Nacional como Direcção Política Única, da autoria de Águeda de Oliveira, editado pela «União Nacional», em 1938 - são o partido fascista, o partido nacional socialista, a falange espanhola, os exemplos citados de «organizações patriotas unitárias, como a U. N.». Portanto, a União Nacional reconhecia, pela pena de um dos seus dirigentes, que o partido fascista, o partido nacional socialista, a falange espanhola, eram organizações congéneres.
Esta identificação da «União Nacional» com os partidos únicos de outros regimens afins, é, por si mesma, concludente. Mas vejamos mais de perto o que da «União Nacional» pensavam, e como lhe definiam o carácter e a função, alguns dos coriféus do «Estado Novo».
Para o ministro do Interior, coronel Lopes Mateus, a «União Nacional» é a: «Coligação cívica superior que abrange a coordenação dos esforços de todos os portugueses e de todos os interesses primordiais da Pátria.»
Para outro ministro do Interior, o Dr. Mário Pais de Sousa, a «União Nacional» é: «O organismo que superiormente orienta e dirige a actividade do Estado Novo.»
Para o Engenheiro Nobre Guedes que, antes de ser Embaixador na Alemanha hitleriana tinha sido Comissário Nacional de «Mocidade Portuguesa», a «União Nacional» é: «Massa cívica de apoio ao Governo.» Para Nobre Guedes a «União Nacional» era: «uma manifestação de unidade política e não... de vontade política.»
Marcelo Caetano, analisando a função de um «partido único que seria a corporação nacional da política», diria: «A função política, à qual compete a orientação espiritual da Nação para os seus destinos, deve pertencer a um escol de cidadãos, seleccionados pelo sacrifício, pelo espírito de renúncia e pela devoção ao bem comum, em cujas almas impera "o sentimento ascético e militar da vida." Esse escol, colocando acima da consciência dos seus direitos o cumprimento dos seus deveres para com a Pátria, animado pela mística do interesse nacional e suprimindo divergências acidentais para só acentuar a comunhão de princípios na unidade dos fins, forma o partido único.»
Não podemos recusar a Marcelo Caetano autoridade, política e doutrinária, para se pronunciar sobre o partido único, essa peça fundamental do mecanismo do «Estado Novo.»
E do lugar e função do partido único no sistema do Estado, Águeda de Oliveira, na citada publicação editada pela «União Nacional» precisaria: «Assim quanto à essência, porque o subordinamos ou limitamos, em nome dos ditames da ética, o Estado Novo não é totalitário. Mas quanto ao exercício do mesmo poder, por isso que é a revelação duma soberania forte e incontestada, nós somos totalitários.» (O sublinhado é nosso).
«Legião Portuguesa», como milícia militarizada, as organizações nacionais «Mocidade Portuguesa», «Obra das Mães para Educação Nacional», «Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho», e os «Sindicatos Nacionais», os «Grémios», as «Casas do Povo» e as «Casas dos Pescadores», completam o esquema de enquadramento, que substitui e impede a existência de organizações autónomas. O Estado fascista, o Estado totalitário, o «Estado forte», o «Estado doutrina em acção», delas se servirá para articular a sua política - a vontade política do Chefe - com a mobilização da «massa cívica».
É o tipo de poder-de-Estado, o seu conteúdo de classe, o monopólio político do partido único, que caracterizam um Estado fascista e um fascismo.
Oliveira Salazar recebeu o poder do Exército. A partir da ditadura militar, operou a fasciszação do Estado. O seu governo não seria apenas um «governo extrapartidário» orientado por «princípios nacionalistas», mas um governo fora dos partidos e contra os partidos. O governo do «Estado Novo», o governo ditatorial que, em função de um conteúdo de classe substituiu a democracia parlamentar, seria uma «doutrina de acção» a modelar um Estado ditatorial como totalidade jurídica, política e económica. Um governo servidor, em nome do «interesse nacional», de interesses sectoriais de classe. Um governo servidor e criador de fascismo.
(*) Comunicação ao colóquio «O fascismo em Portugal», realizado na Faculdade de Letras de Lisboa, em março de 1980, coligido em ‘O fascismo em Portugal’, A Regra do Jogo, Lisboa, 1982. |
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