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Significação do novo humanismo
Fernando Pinto Loureiro (*)
Há quem não compreenda que se possa falar em novo humanismo. Há quem não descortine que se possa distinguir um humanismo ultrapassado e um novo humanismo, uma vez que todo o humanismo supõe a mesma atitude: «fé racional no valor e na dignidade do homern», «respeito civilizado da sua liberdade» e «culto militante da sua razão».
Ainda não há muito alguém (1) afirmava, com brilho e vigor, que os «humanistas de todos os tempos pensaram que os homens são irmãos pelo espírito corno pelo corpo e que a razão é um bem comum da humanidade; que peviram e constataram o domínio crescente da inteligência humana sobre a natureza: que tiveram a convicção de que a ciência e a cultura conduzem a humanidade para o progresso e sacrificaram por vezes a vida a esta convicção». Se é realmente assim, com que legitimidade se pode falar em trova humanismo?
Não há negar que o humanismo, em geral, pressupõe a mesma atitude de fé no valor e na dignidade do homem, de respeito civilizado da sua liberdade e de culto militante da sua razão. Mas, é bem de ver que uma coisa é o conceito genérico de humanismo e outra as várias posições humanistas em concreto. O denominador comum de todas as variantes do humanismo é, com efeito, o convencimento de que o homem é em si mesmo um valor e de que deve ser tratado corno tal. A própria palavra o inculca: humanismo, doutrina do primado do homem, da afirmação e defesa do humano.
Fácil é ver, porém, que um conceito assim tão vago de humanismo apenas serve para fazer a destrinça entre o humanismo e o antihumanismo, entre as doutrinas que aceitam e as doutrinas que negam a dignidade do homem como homem. Não há uma posição humanista extra-histórica, idêntica em todos os tempos e lugares. Quem esquecer que nenhuma doutrina se compreende desenraizada da história, desintegrada da época e do meio em que emergiu, quem se afastar da perspectiva histórica, - mostrar-se-á incapaz de compreender a diferença existente entre o humanismo ultrapassado e o novo humanismo.
A origem do humanismo moderno anda ligada à história da burguesia. É com a ascensão desta classe e com a fé nas possibilidades da razão humana que ele surge na história do pensamento. Optimismo, crença no progresso, individualismo, humanismo - são ideias que se entrelaçam e estão directamente relacionadas com a história ascensional da burguesia. O humanismo clássico é o humanismo burguês - é o humanismo racionalista abstracto. Mas, existe um novo humanismo, concreto e integral: é aquele a que os seus fundadores chamaram «humanismo realista» e a que Romain Rolland, quase um século depois, chamou «humanismo humano».
Este novo humanismo, como o humanismo burguês clássico, defende também o homem, mas não o homem abstracto, alienado, estranho a si mesmo, o homem hipostasiado na pura razão; antes, como disse o autor de Jean-Christophe, «o homem integral, retemperado na fonte da vida real, da vida completa, consciente, da espécie: o homem social, o homem humano».
Entre o humanismo clássico e o novo humanismo há esta diferença fundamental: um e outro pressupõem filosofias diferentes e diferentes concepções do homem. Coincidem realmente num mesmo juízo: num e noutro se estima o homem como um valor absoluto, num e noutro se faz um protesto de respeito pela dignidade humana. Mas, há uma divergência nítida: partem um e outro de diferentes concepções do homem que são o resultado de diferentes atitudes filosóficas.
A concepção burguesa do homem é idealista. Reflecte a mentalidade burguesa geral, a consciência social da burguesia. Segundo esta concepção, o homem define-se pelos seus atributos naturais (2). Ora, precisamente segundo um tal critério, o que define o homem, a determinação especifica da natureza humana - é a razão. Para o humanismo racionalista, portanto, todo o homem nasce Homem, porque a Razão é o atributo natural de todos os homens. O conceito de humano e de humanidade é assim um conceito «ideal» puramente teórico, que abstrai da vida quotidiana e das coordenadas económico-sociais dos vários tempos e lugares. Para o humanismo chamado clássico, o homem é apenas um ente abstracto dotado de razão, um ente genérico, desintegrado da vida concreta.
Assim como o humanismo clássico saía lógicamente de um ponto de partida idealista, de um conceito abstracto do homem e da sua humanidade, reduzida à sua racionalidade abstracta (3), o novo humanismo arranca de uma concepção materialista - o materialismo dialéctico - segundo a qual o homem é considerado na sua realidade histórica, empírica e relativa. Para o novo humanismo, o problema do homem não é posto no plano intemporal, mas é visto à luz da vida histórica concreta (4).
Deste modo, para o humanismo realista, a circunstância de o homem nascer dotado de razão não significa que nasça na plena posse da sua humanidade. Acontece mesmo que, na sociedade actual, o homem está desumanizado, alienado. Alienado filosòficamente quer dizer «estranho a si mesmo». É mercadoria quando aluga o seu trabalho e degrada-se quando compra o trabalho dos outros, Isto mostra que o homem não é essencialmente humano, que o homem não nasce humano (5), porque a evolução histórica o conduziu a perder a sua destinação própria. A humanização do homem depende de um esforço de renovação de todas as realidades anacrónicas, que nos fazem viver ainda na fase que o fundador do materialismo moderno chamou «pré-história do homem humano».
Existe evidentemente um sentido humanista no humanismo clássico. Mas, só o novo humanismo é um humanismo concreto e total - um humanismo humano, porque só nele o homem é encarado na sua unidade peculiar e na sua relatividade histórica. O que há no homem de especificamente humano não é a razão: é o conjunto da inteligência e da animalidade, o complexo dinâmico incindível do corpo e da inteligência (bem diferente da cisão clássica corpo-alma).
Por tudo isto é que só o humanismo materialista é a doutrina do homem integral. E esta doutrina do homem total não é, como já se dise, uma forma de romantismo com o culto da paixão humanitária e da acção, em detrimento do culto da razão e da espiritualidade. É, sim, a visão do homem na sua unidade especificamente humana, na unidade do indivíduo com o social. Novo humanismo quer dizer, portanto, «posse plena, pelo homem, da Natureza e da sua própria natureza» (6).
Quando o novo humanismo triunfar dos múltiplos obstáculos que se opõem à sua concepção humana do homem, quando o homem humano for uma realidade, perderá todo o sentido aquela justa observação de Ibsen: «Vejo abdómens, mãos, cabeças, mas não vejo um único homem na terra»...
(*) Fernando Pinto Loureiro (1917-1982) era ainda aluno da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra quando se aproximou do movimento neo-realista, do qual foi um dos principais dirigentes e animadores editoriais. Colaborou nos periódicos ‘O Diabo’, ‘Sol Nascente’, ‘Pensamento’, ‘Seara Nova’ e ‘Vértice’, sendo um dos mais entusiastas porta-estandartes da chamada “geração de 39”. Licenciou-se em Ciências Jurídicas (1940) e Ciências Político-Económicas (1941). Militou no Partido Comunista Português, tendo sido dirigente do seu sector intelectual de Coimbra. Coube-lhe a ele defender o pacto germano-soviético de 1939 nas páginas de ‘Sol Nascente’. A sua experiência de prisão, em 1949, não foi feliz do ponto de vista da preservação da sua integridade pessoal. Subsequentemente veio a aproximar-se do regime salazarista, atitude pela qual, mais tarde, se viria ainda a penitenciar. Uma boa parte dos seus ensaios da fase de intelectual marxista foi reunida em volume, sob o seu mais habitual pseudónimo (usou também Eduardo Reis), Rodrigo Soares, ‘Por um novo humanismo’, Livraria Portugália, Porto, 1947. Aí se encontra também este texto, cuja publicação inicial data de Novembro de 1940.
___________ NOTAS:
(1) [Nota de 1947] As afirnações a que se alude no texto (contidas num editorial anónimo da revista Commune de Paris, n.° 66, de Fevereiro de 1939 e intitulado L'humanisme allemand) são as seguintes:
«O que é o humanismo? É urna fé racional no valor e na dignidade do homem, um respeito civilizado da sua liberdade, um culto militante da sua razão. Os humanistas de todos os tempos pensaram que os homens eram irmãos pelo espírito como pelo corpo, que a razão era um bem comum da humanidade. Previram e constataram o domínio crescente da inteligência humana sobre a natureza, tiveram a convicção de que a ciência e a cultura conduziam a humanidade para o progresso, e sacrificaram por vezes a sua vida a esta convicção.»
Por um opúsculo recente - Comme je vous en donne l’exemple..., textos de Jacques Decour apresentados por Aragon (Paris, Éditions Sociales, 1945) - verifico ser de Jacques Decour o editorial de Commune. A definição de humanismo aí dada - e que acima transcrevemos - tem um carácter intencionalmente geral, pois visa a mostrar os traços comuns entre o humanismo do passado e o humanismo de hoje.
Estava reservado ao heróico Jacques Decour, fuzilado pelos alemães em 1942, reforçar com o seu exemplo a continuidade entre os humanistas de todos os tempos, de quem ele afirmou que «tiveram a convicção de que a ciência e a cultura conduziam a humanidade para o progresso, e sacrificaram por vezes a sua vida a esta convicção» e os humanistas do nosso tempo.
(2) «Natureza humana», «razão natural», «direitos natutais» são, como se sabe, expressões consagradas do vocabulário filosófico da burguesia, na sua fase ascendente.
(3) O espírito católico conduz a conclusões análogas às do idealismo racionalista. Recorde-se que para S. Tomás «homo est maxime mens» e para Pascal «toute nôtre dignité consiste en la pensée».
(4) Maritain (L'humanisme intégral, ed. Montaigne) pretende que no humanismo clássico, a que chama antropocêntrico, o que é condenável não é o humanismo, mas o facto de afastar a alma humana de Deus, do seu centro, arriscando-se assim a perdê-la. Maritain propõe, por isso, que se trasmude o humanismo antropocêntrico em humanismo teocêntrico. E este «novo humanismo», que seria o humanismo integral, esta «nova idade da cristandade», caracterizar-se-ia pela «reabilitação da criatura em Deus». Porque, segundo Maritain, o humanismo racionalista tinha conduzido a uma eliminação de Deus; e eliminando Deus tinha aberto o caminho aos homens para a adoração de dois objectos não divinos: o Estado (solução pagã) e a humanidade (conclusão materialista). Para Maritain, o «humanismo integral» é o culto da «conscience de soi évangélique» e não racionalista, da «santa liberdade da criatura que a graça une a Deus». Para o autor de L'humanisme intégral, se o humanismo está em crise, só a filosofia cristã lhe pode restituir o seu vigor.
O humanismo teocêntrico de Maritain é um misticismo negador da personalidade plena do homem no homem, que confia os destinos humanos à dádiva mística que realiza abstractamente o homem em Deus...
(5) Em L'homme est-il hurnain? (ed. Gallimard), Ramon Fernandez abordou este aspecto do problema do humanismo, mas perdeu-se num remoinho de divagações abstractas.
(6) Cfr. N. Guterman e H. Lefèbvre, introdução aos Cahiers sur la dialectique de Hegel (ed Gallimard).
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