O «mundo interior»(*)

   

 

Oscar Lopes2

Óscar Lopes

 

 

Nós exprimimo-nos constantemente por metáforas, ou transferências dos significados que correspondem a certas expressões significantes. Poucos inconvenientes tem uma tal necessidade se, em certos momentos cruciais, não nos esquecermos disso, quer dizer, se pusermos oportunamente em questão a analogia de que resultam as metáforas já comezinhas. Uma dessas metáforas usuais e já quase despercebidas, uma metáfora carregada de problemas tantas vezes esquecidos na ontologia, na teoria do conhecimento e na dos valores (inclusivamente literários) é a que se condensa na frase «mundo interior».

 

Expressões como vida íntima, a intimidade, o mundo interior são de uso corrente, e ao nível do senso-comum não suscitam grandes dúvidas. No entanto a oposição entre um mundo exterior e um mundo interior tem sido muitas vezes criticada por filósofos de tendências muito diversas. Os fenomenologistas e os filósofos da existência, por exemplo, salientam que o fenómeno psíquico se caracteriza, não por uma pura interioridade (sinónima, aqui, de subjectividade), mas por uma intencionalidade que tanto supõe um sujeito interno como um objecto externo; certos idealistas, como entre nós António Sérgio e Vieira de Almeida, empenhados em asseverar a unidade do ser e do conhecer, e mormente a redução do ser ao conhecer, insistem em que o fenómeno psíquico é, por definição ou intuição directa, inextenso, heterogéneo ao espaço, portanto, na sua especificidade, sem fronteiras que, literalmente, dele façam um mundo interno separado do externo. Só talvez as correntes de materialismo metafísico, aquelas que pretendem reduzir substancialmente (e não apenas genèticamente) os fenómenos psíquicos a certos dados físicos ou fisiológicos já cientificamente definidos, tomam à letra, sem metáfora, uma tal divisão, encarando os processos psíquicos como epifenómenos inconsequentes, mera tradução ilusória (e que por isso elas se dispensam de caracterizar e estudar como tais) de processos físico-químicos ou energéticos decorridos adentro da nossa pele individual.

 

Este último ponto de vista relaciona-se de perto com a própria origem da metáfora mundo interior, pelo que afinal nele se mantém das formas mais antigas de espiritualismo. Com efeito, o espírito ou alma é predominantemente concebido nas culturas pré-científicas como um sopro vital (ou um conjunto de sopros vitais) dinamizador de certos corpos, nomeadamente corpos humanos, como uma espécie de vapor quente, animador do sangue e doutros humores orgânicos, que em morte se escaparia pela boca (1). As raízes vocabulares gregas ou latinas que designam os conceitos de alma ou espírito tinham, como é muito sabido, esse significado primordial: thymós, pneuma, psychê, animus, spiritus. E a importância que na mentalidade arcaica e na vida psíquica subconsciente desempenham as imagens e outras representações da casa ou habitação podem ter contribuído para a concepção do corpo como habitáculo do pensar e sentir, contribuindo assim também para o problema tipicamente materialista metafísico das localizações: se esta ou aquela faculdade anímica residirá no coração, no fígado, sob dada bossa craniana ou entre certas e determinadas circunvoluções cerebrais (2).

 

Mas, apesar destas tão profundas raízes num certo senso-comum ainda prevalecente, o carácter metafísico da expressão mundo interior e análogas torna-se bem evidente se repararmos que o facto social e fisiológicamente inlocalizável de falarmos não tem menos importância para a vida psíquica humana que o seu condicionamento orgânico: o psiquismo não cabe no corpo como não cabe nas manchas tipográficas de textos literários ou científicos, é um processo complexo e não uma coisa mensurável em centímetros quadrados ou cúbicos. E o carácter metafísico-materialista da expressão mundo interior, quando tomada à letra, não se evidencia menos se repararmos que se não podem traçar limites definidos entre um corpo vivente e o seu meio material externo, pois a vida já por si constitui um complicado processo ininterrupto da trocas mecânicas, químicas, energéticas, etc., cujas condições determinantes se podem encontrar, decorrida uma simples fracção de segundo, a milhares de quilómetros de distância: fenómenos ópticos ou, em geral, electromagnéticos. Mesmo tomando o contraste interior-exterior como uma simples exclusão recíproca, em sentido logístico, de dois conjuntos de fenómenos, esse contraste não poderia manter-se em absoluto, pois das duas uma: ou a dicotomia interno-externo sugere que se assumiu o ponto de vista interno (a ideia de interioridade tende muito para a de essencialidade), o que conduz afinal à redução idealista do mundo externo a mero resíduo de tudo o que ainda se não traduz em termos de representação interior, eliminando ao fim e ao cabo a dicotomia; ou então a intimidade psíquica ou cognoscente reconhece-se a si própria, em perspectiva materialista, como fase e aspecto dialéctico da história externa, e nesse caso qualquer divisória é flutuante, pois não se pode dizer nunca em que momento principiou a consciência social ou individual humana, ou mesmo biológica, a revelar-se, tantos graus ela em si mesma reconhece, ou vai cada vez mais reconhecendo. Por outras palavras: a dualidade do conhecimento supõe sempre uma unidade do ser, quer a perspectivemos de um modo idealista, materialista ou ambíguo (sendo este último o caso do agnosticismo e de filosofias da existência como a de Heidegger e, bem explicitamente, a de Merleau-Ponty).

 

Vamos, portanto, encarar o contraste interior-exterior no seu significado metafórico e relativo, ou antes, na sua dialéctica, nos seus movimentos de conversão e distinção recíprocas. Mais do que negá-lo, procuremos entendê-lo, para evitar o que tem geralmente de simplista. Perguntemo-nos insistentemente o que haverá, afinal, na oposição dentro-fora que justifique a sua transferência para a oposição entre o psíquico e o não-psíquico. É interessante lembrar que tal transferência, ou metáfora, é obsessiva, pelo menos na linguística latina. Assim, a oposição primordial entre os prefixos-preposições (os classicistas dizem pré-verbos) in e ex ganhou mais ênfase com o sufixo de contraste binário -ter ou -tra (inter ou intra, exter ou extra), assumindo a seguir forma adjectiva com internus-externus; a oposição binária foi depois sublinhada pelas formas comparativas interior-exterior, que em português se tornaram pràticamente sinónimas das formas positivas interno-externo, e acontece ainda que o superlativo do primeiro membro, intimus (neste caso, sem correspondência com o seu oposto, extremus) veio a especializar-se no significado metafórico; com efeito, íntimo, que originariamente significa muito de dentro ou o mais de dentro, hoje quase só se usa em português num sentido psicológico ou afim.

 

Vejamos agora de que maneira esta oposição entre o íntimo e o externo é instável, apesar de tudo o que sugere uma localização metafísica dos fenómenos psíquicos dentro do corpo humano (ou corpo vivo). A instabilidade de tal contraste verifica-se, por exemplo, na atribuição a objectos externos de forças antes conhecidas como íntimas, isto é, na animização dos seres inertes ou personificação dos seres não-humanos, facto próprio de certas fases e níveis de vida psíquica e de civilização. Há nisso uma fusão entre as ideias de causa e de vontade, que mais adiante examinaremos e que de resto está no centro das preocupações de certos filósofos, como Leibnitz, Maine de Biran e, modernamente, Heidegger (não esquecendo o nosso Antero de Quental da última fase). Mas, antes de sondarmos tal assunto, convém notar que a animização e personificação revela um cruzamento do binário intimidade-exterior com o binário essência-aparência. O interior espacial de um objecto é aquilo que normalmente se conhece depois de conhecer o seu exterior; por outras palavras, o interior aparece geralmente como posterior, no processo de conhecimento de um objecto, tal como no processo de conhecimento de outra pessoa, e disso resulta que em dadas fases de cultura os homens se interrogassem acerca das forças ocultas nas coisas, de um modo análogo àquele como se interrogavam acerca das vontades ocultas nos outros homens. Contudo nada nos garante que oposição nós-coisas se tenha sempre, e originàriamente, decalcado sobre a oposição eu-outrem; as animizações e personificações míticas apenas testemunham que, em dada fase cultural, a analogia operou em tal sentido. Os estudos de psicologia infantil, da génese infantil da percepção adulta, por Wallon, Piaget e Merleau-Ponty, revelam que na passagem, em criança, do ser meramente biológico a ser psicológico, isto é, no condicionamento caracteristicamente humano dos seus reflexos inatos, a percepção do eu, mesmo fisiológico, é relativamente tardia; de início, a criança infante reage sem dúvida como um todo vivo relativamente autónomo, mas quando entra em fase de utilizar a linguagem, isto é, de utilizar aquilo a que Pavlov chama o 2º sistema de sinalização, a criança atribui frequentemente as suas impressões orgânicas, cenestésicas, a um corpo humano alheio ou à imagem do seu próprio corpo visto no espelho, fenómeno que os especialistas designam como «transitivismo» ou como «sociabilidade sincrética», anterior à noção de individualidade «interna». Jacques Lacan, valorizando muito o aparente auto-reconhecimento de uma criança ao espelho pelos seis meses, numa altura em que se encontra atrasada, fetalizada, em relação aos primatas superiores, considera esse fenómeno como surto decisivo de um nexo entre o Innenwelt (mundo interior orgânico) e Umwelt (mundo exterior físico), como criação da primeira imago, da primeira de todas as sucessivas fixações instintivas, que só são do eu por identificação, inevitàvelmente alienante, com outrem, o pai, o modelo, o estereótipo social, o concorrente, o mediador através do qual se definem os objectos de desejo (3).

 

O mais intrigante da oposição metafórica entre o externo e o íntimo é que o seu significado translato, o significado psíquico (por assim dizer) da intimidade fica por determinar, tal como acontece com as metáforas poéticas, não concretizadas por malhas apertadas de relações práticas e científicas. Sentimos adequada essa metáfora, e todavia não sabemos bem dizer porquê. Ora é justo perguntar se a possibilidade de se ter tão naturalmente chegado a um tal significado translato não porá também, um pouco, em questão o seu signflcado primordial, aquele donde arrancou a metáfora. Que haverá, teimemos, na oposição dentro-fora que justifique a sua transferência para oposição entre objecto psíquico e não-psíquico? (Claro que a qualidade de psíquico, espiritual, anímico, etc., foi também designativamente alcançada por metáfora baseada na analogia entre o sopro vital, a respiração, e os sopros de vento; mas essa outra metáfora não nos interessa directamente por agora).

 

A oposição dentro-fora talvez tenha atingido um significado psíquico por analogias várias, e até, como atrás íamos seguindo, por propriedades lógicas analisáveis segundo a teoria dos conjuntos ou a topologia; mas vamos seguir antes outro caminho, aquele em que a oposição dentro-fora se relaciona com a oposição essência-aparência. O interior de um objecto é, como já vimos, aquilo que normalmente se conhece depois de conhecer o seu exterior; por outras palavras, o interior aparece geralmente como ulterior, ou posterior, no processo de conhecimento de um objecto (com excepção do nosso quarto ou da nossa casa de criança, que serviu talvez de esquema para uma compreensão do nosso corpo como habitáculo de alma, sensibilidade, etc., dada a manifesta interioridade dos centros fisiológicos da vida psíquica, que de início se julgavam ser o coração, o estômago, o fígado...). A oposição exterior-interior resume em termos estáticos (Leibniz diria que em termos de coexistência ou espacialidade) um crescimento irreversível, temporal, no nosso conhecimento, organizando em relações estáveis, invariantes, quase todas espaciais e reversíveis, os dados de urna experiência que, cumulativamente, é também sentida como irreversível, temporal.

 

Lembremo-nos agora de que, em dada fase da cultura humana, as causas dos fenómenos foram concebidas como numes, isto é, como vontades ou agentes psíquicos, inaparentes mas «sub-stantes» às coisas materiais (às coisas que, portanto, ainda então não eram tidas como materiais, como inertes). Isto mostra que a descoberta da intimidade e da vontade do conhecimento humano se desenvolveu paralelamente à descoberta de uma interioridade, uma espécie de carácter psíquico, uma tendência de comportamento nas coisas. Vontade subjectiva e causalidade objectiva são entidades correlatas; a vontade subjectiva descobre-se, fixa normas de comportamento próprio, define fins e valores em função das tendências e leis de comportamento que, de um modo mágico, religioso ou científico, atribui a uma intimidade própria do mundo que lhe é exterior.

 

O antropomorfismo surge-nos assim como algo de muito curioso e històricamente necessário, que tem muito que ver com as pressuposições da magia (incluindo a magia verbal, origem histórica da prece) e com a ambiguidade a certa altura atribuída à noção de lei (lei da cidade, lei natural), pois se baseia na analogia entre o natural e o humano; o facto de os totens animalescos das comunidades caçadoras se terem mais tarde antropomorfizado, em fase já agrária e mercantil, revela, no antropomorfismo, urna percepção de maior complexidade de motivos, causas, razões, quer na intimidade humana, quer na intimidade (externa à humana) do mundo ainda concebido de um modo animista e revela ainda uma superior autoconceituação humana, podendo dizer-se que o dogma da Encarnação do divino no humano se principia a definir no momento em que os totens ganham forma humana Quando o monoteísmo dos primeiros grandes impérios ocidentais de pretensão universal se substituiu ao politeísmo das cidades-estados, isso quer dizer que estavam ideològicarnente constituídas uma metafísica (pretensa física fundamental) e uma ética que aspiravam a reger, quer o divino, quer o humano, limitando correlativamente as respectivas arbitrariedades da fase politeísta antropomórfica. O monoteísmo surgiu como um grande passo conceptual dado no sentido, afinal, do materialismo científico, passo preparado por um largo e longo processo de coalescência e racionalização dos mitos, cuja expressão compendiada clássica é a Teogonia de Hesíodo e que se verificou paralelamente ao desenvolvimento do comércio, das cidades, federações de cidades, impérios (4).

 

Para melhor compreensão da dialéctica travada entre o mundo interior e o mundo exterior, reparemos ainda que causa, na sua evolução semântica latina, decalcada sobre a do grego aitía, significa primordialmente causa judicial, acusação (ad + causare > accusare); reparemos que a noção abstracta de causalidade se desenvolveu na sociedade patriarcal e se fixou por metáfora da procriação masculina (patrare, de pater, significa fazer, de um modo genérico); reparemos que, segundo Aristóteles e a Escolástica, a causalidade obedece a uma jerarquia teológica descendente, a partir de um Primus Movens, um Acto Puro, que é um Deus-Pai; reparemos que os ocasionalistas de Seiscentos, corno Mallebranche, e sobretudo David Hume, no séc. XVIII, criticaram tal noção escolástica de causa eficiente e interna, substituindo-a pela categoria agnóstica de sucessão ou correlação altamente provável, e que essa mesma crítica agnóstica foi por seu turno criticada por Marx, o qual restabeleceu em novos termos a dialéctica essência-aparência, intimidade-exterior: a essência das coisas comprova-se apenas pelo facto de os homens as transformarem, a intimidade das coisas é apenas a intimidade humana potencial que virá a exercer-se pelo uso e transformação humanamente interessada das mesmas coisas (5); reparemos que a palavra matéria, ou equivalente em qualquer vocabulário filosófico ocidental, significa fundamentalmente material de construção (etimológicamente, em grego e latim, significa madeira, essência florestal disponível para a construção de móveis ou imóveis); reparemos que na terminologia aristotélica matéria designa a medida daquilo que há de informe, inerte, inacabado nos seres, por isso mesmo passível de uma forma, uma arte, um acabamento relativamente superiores, e que a metafísica aristotélica atribui, em última análise, tal acabamento, aperfeiçoamento ou dinamização dos seres à iniciativa de uma Causa Primeira e de uma Causa Final identificadas entre si e transcendentes à humanidade. A Causa Primeira é afinal a transposição metafísica do trabalho humano, como agente actualizador de formas sempre mais perfeitas: numa matéria informe (relativamente a tais formas); essa transposição metafísica pode ter sido sugerida pelo que há de coincidente entre as leis de transformação natural e os critérios humanos de valor que norteiam o trabalho (a natureza trabalha, em grande parte, a favor dos homens, possibilitando a sua existência), mas funciona como apologia teológica de uma sociedade dividida em classes: as formas, os valores desceriam, em última análise, do Céu à Terra, em vez de sobretudo se imporem às coisas pelo trabalho (6).

 

De tudo isto e de outras constatações semelhantes pode concluir-se que há uma correlação entre a intuição de um mundo íntimo e a de uma causa também, a seu modo, íntima (mas exterior a esse tal mundo) para qualquer fenómeno natural, ambas as intuições espontâneas e opostas ao agnosticismo de Hume, Kant, Comte, etc.. O progresso realizado desde as concepções mágicas e politeístas até ao monoteísmo de tendência racional metafísica ou universalista consistiu no seguinte: reduziu-se a interioridade intangível, a essência oculta do mundo, ao admitir-se uma larga exterioridade comum, neutra, inerte, causal, obediente a leis, entre a intimidade humana e a intimidade divina, e ainda ao admitir-se uma complexa racionalidade normativa para o comportamento humano ou divino, anulando a caprichosa subjectividade dos numes tribais ou locais. O código das leis naturais e o das leis morais e jurídicas racionalizadas correspondem-se afinal, tendendo ambos a limitar uma arbitrariedade que é, por um lado imanentemente humana, e por outro lado transcendentemente divina; a própria escravatura, que o particularismo gentílico e depois urbano não precisava de justificar, pois só os membros do clã ou da cidade estavam a coberto do seu sagrado, exigiu uma fundamentação e um condicionamento em direito universal humano (humanismo estóico e cristão): todos os homens são iguais em dignidade, mas esta é transcendente ao mundo das paixões e do pecado original. Esboça-se o trânsito da pura e bruta coacção social para aquelas ideologias jurídicas, religiosas, políticas através das quais se processará a alienação mental das massas exploradas.

 

Descartes, que está na ponte de transição da Escolástica feudal para o mecanismo burguês, ora concebe a divindade como simples postulado ou garante da racionalidade objectiva, material, extensiva, externa, ora, recaindo no extremo oposto, regressa a uma divindade toda ela vontade discricionária, tal o Jeová quando impôs um filicídio a Abraão e torturou Job imerecidamente como paradigmas da obediência incondicional e indiferente aos próprios valores morais espontâneos; mas o tipo da evidência de verdade residiria afinal, segundo ele, na evidência da intimidade subjectiva, pois da actividade do penso é que se depreende a substancialidade, quer do pensamento, quer da extensão, quer do limite divino em que ambas as substâncias se confundem. Mais tarde, Kant reduz a divindade a simples postulado, quer de uma intimidade, ou coisa-em-si, para as aparências, ou fenómenos, cujas categorias meramente gnoseológicas determina no seu limite transcendental (isto é, no limite de contiguidade à transcendência metafísica incognoscível); quer a um postulado da identidade, transcendentemente à inteligência, entre o imperativo moral e o imperativo estético, ambos íntimos ao homem, o primeiro impondo a universalidade do respeito abstracto de qualquer homem como fim em si mesmo, e o segundo garantindo, através da universalidade pré-conceptual de Belo, a intuição de uma finalidade metafísica.

 

Para a história da metáfora do interior como lugar do psíquico e do subjectivo cognitivo (duas coisas diferentes mas muito confundidas) tem grande importância o facto de Kant ter distinguido na Estética Transcendental, secções 1 e 11, entre o tempo como forma a priori dos fenómenos do sentido interno «quer dizer, de nós mesmos e do nosso estado interno» e o espaço como forma a priori do sentido externo «quer dizer condição subjectiva da sensibilidade sem a qual não seria para mim possível a intuição externa» (7). O tempo desempenha, assim, um papel privilegiado, como Heidegger notará, pois é aos seus dados que se refere todo o processo de enlace entre os sentidos e o entendimento judicativo, mediante esquemas que são, por assim dizer, outros tantos campos de variação imaginativa-sensorial ajustável a cada conceito, ou categoria, desse entendimento (8). Esta relativa intimidade gnoseológica do tempo em comparação com o espaço é tanto mais importante quanto é certo que, sendo ele a manifestação mais directa do ser em si, é também a do eu, pois Kant não admite a intuição intelectual do eu puro, unidade da apercepção pura: o eu só se conheceria no tempo, como objecto, e não como sujeito. Daí o desdobramento pós-kantiano do tempo em graus de intimidade, de que recordarei as tentativas hoje mais influentes, tempo autêntico de Kierkegaard, aquele em que ainda hoje se pode ser contemporâneo da Paixão de Cristo, ao cabo de um desespero que, como reconhece Chestov, é o drama do querer crer, do racionalista que quer crer e, no fundo, não pode, em oposição ao tempo inautêntico, racionalizado ou institucionalizado; o tempo quantificado e espacializado, cronometrado de Bergson, e a sua duração qualitativa e intuitiva; finalmente, com Heidegger, a multiplicidade dos tempos ontològicamente instauráveis, embora inerentes a cada ordem instaurada de entes, a temporalidade como instaurada pelo Dasein, pelo existir humano (humano?), na angústia desvendadora de uma sua resolução (Entschlossenheit: ambiguamente, decisão e des-fecho) de viver, a sua morte, de se ser autênticamente o que se é (eigentlich sein). E, assim como Bergson propõe modalidades mais íntimas de tempo e memória, em oposição àquelas que, na perspectiva de W. James, lhe pareciam racionalizadas segundo um senso socialmente prefixo de utilidade, também Heidegger vê no eterno retorno, no ateísmo e na vontade de domínio de Nietzsche o momento final de uma «metafísica», uma lógica e uma tecnologia ocidentais que, depois de instaurar um mundo de domínio conceptual e prático, um mundo de entes instrumentais, se nega a um tal mundo, a um tal desvendamento do ser, e reconhece a verdade (alêtheia) dos valores irracionais indigitados por simples modos afectivos (Stimmungen), pela poesia, pela arte (9).

 

Acabamos de seguir uma deriva ideológica do conceito de intimidade ou subjectividade gnóseológica constituída em oposição ao pensamento dialéctico e científico. Voltemos à encruzilhada e exploremos outro caminho.

 

Sabemos que, segundo Marx, o trabalho (a interacção homens-coisas em que os homens refazem as coisas e, refazendo-as, se refazem) é que anima a dialéctica da essência-aparência, da intimidade-exterioridade: a essência actualiza-se, a intimidade patenteia-se, o ser consuma-se - e, o ser-em-si converte-se em ser-para-si à medida que a técnica, obedecendo alias à natureza, a domina, à medida que a arte utiliza a inércia (inertia é, etimológicamente, em latim, não-arte), a realidade ainda humanamente inarticulada; a intimidade opaca das coisas e das causas (que é exterioridade mítica relativamente aos homens) pode sempre tornar-se transparente para os homens, pode tornar-se intimidade humana às razões intelectuais, aos motivos afectivos, aos valores e fins. Acontece, porém, que o processo de transformação das coisas-em-si em coisas-para-si acarreta certas transformações inversas, isto é, acarreta aspectos novos de exterioridade para o exterior já antes interiorizado ou apropriado pelos homens. Assim, o processo através do qual a humanidade descobria cada vez mais usos humanos para as coisas, é também o da divisão do trabalho, o da sua divisão interna e externa (em classes) e o da constituição de uma economia mercantil que transforma os valores de uso imediato em valores de troca, mediatos e contingentes, dependentes das oscilações do mercado; e essa mesma economia mercantil acabou por atingir uma fase em que os produtos do trabalho se subordinam às complexas (e, de início, inteiramente desconhecidas) leis de uma segunda natureza, cujo determinismo escraviza a liberdade entretanto adquirida relativamente à primeira natureza. A propriedade privada dos meios de produção social, quer dizer, a subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto, acumulado, capitalizado e, cuja reprodução ampliada dirige essencialmente a vida económica, forçando a produção pela produção lucrativa, o consumo pelo consumo lucrativo e publicitàriamente condicionado, isto é, determinando os circuitos económicos pelo mercado e em função da mais-valia, do lucro (que, etimològicamente, é o mesmo que logro), impede dois terços da população actual de comer o que precisa, pauperiza cada vez mais a grande maioria dos homens relativamente às possibilidas de expansão das suas necessidades (necessidades de consumação da sua intimidade ainda amorfa).

 

Este processo social humano repete aliás, a um outro nível certos processos biológicos anteriores. Os reflexos de nível espinal, bulbar, cerebeloso, talâmico, cerebral, cérebro-frontal, ao jerarquizarem-se em estruturas cada vez mais complicadas, mantiveram fora do comando directo dos centros superiores toda uma série de funções que entretanto se subalternizavam; é necessária ao controlo vital supremo do organismo, tal como ele hoje se exerce no organismo humano adulto, uma inibição completa de quase todos os dados da sensibilidade elementar; uma das condições do actual domínio do homem sobre a natureza é o facto de grande parte da sua própria vida vegetativa estar eclipsada à sua consciência mais lúcida, ou apenas se lhe apresentar de um modo difuso, pela chamada cenestesia, ou sensibilidade geral orgânica. Mas a partir de certa fase ulterior de desenvolvimento, estas especializações e alienações funcionais convertem-se em graves obstáculos. A paleontologia apresenta-nos o quadro de espécies vivas vítimas de grandes hecatombes, se não de completo aniquilamento, pelo facto de certos órgãos e funções se terem desenvolvido e especializado demais, ao passo que outras espécies puderam sobreviver e progredir a partir de uma fase menos adiantada dessas mesmas especializações, donde foi possível arrancar para outras inovações radicais, qualitativas e não apenas (ou relativamente) quantitativas. As doenças civilizadas (o cancro, as neuroses, as psicoses, as alergias) são, cada vez mais caracteristicamente, doenças de controlo, disfunções centrais, exigindo novos progressos de centralização nervosa ou endócrino-nervosa, ou psico-somática, se não mesmo sócio-somática, e podem comparar-se ao facto de o estado capitalista não garantir defesa contra as formas agudas da luta de classes e blocos, as recessões ou guerras. Mesmo quando capaz de se constituir em sociedade da abundância, quando, por uma propaganda monstruosa dos mass media, se consegue imunizar contra as experiências de uma democracia planificadora verdadeira (que, aliás, enfrenta hoje os difíceis problemas de conjugar as exigências subsistentes de um mercado com as da planificação burocrática, as da democracia empresarial, na unidade social de trabalho, com as da democracia, bem diferente, de uma planificação central que todos, efectivamente, controlem) - o capitalismo monopolista de Estado está na fase crítica dos grandes sáurios que soçobraram no terciário: é um cúmulo de alienações (10).

 

Quando queremos caracterizar a movimentação da alternativa intimidade-exterioridade, os seus três momentos dialécticos apresentam-se-nos como sendo os do objecto, do sujeito e do projecto. Hegel e, mais recentemente, Heidegger e sobretudo Sartre sublinham que o sujeito se define como negação do objecto: o sujeito é sempre o que transcende, o que se põe fora de uma percepção ou concepção: nós sentimo-nos só como um outro lado na realidade, um outro lado a partir do qual essa realidade pode até certo ponto problematizar-se e transformar-se, em vista a uma série mudável de projectos. E sentimos como sendo intimidade de um objecto o esquema de forças que, uma vez conhecido, possibilita uma sua transformação por nossa iniciativa; ou então aquele segredo que, a partir desse objecto, nosso inimigo, nos poderá atingir, se não aniquilar, ou seja, o seu nume, como que a sua subjectividade, toda feita da negação e dos limites da nossa subjectividade.

 

Acontece, porém, que os momentos de subjectividade ou intimidade nossa se podem, eles próprios, converter em objecto de outros momentos de subjectividade. Assim (ideia predilecta de Merleau-Ponty), a subjectividade individual humana identifica-se quase sempre com o corpo fisiológico de cada qual; mas eu posso, até certo ponto pelo menos, objectivar o meu próprio corpo sob pontos de vista mais elaborados de subjectividade, alguns deles por seu turno também objectiváveis (subjectividade psíquica, subjectividade orientada por qualquer propósito moral, estético ou científico que implique sacrifício corpóreo ou outro). Há de resto toda uma história da intropercepção física e psíquica, estudada por Wallon, Piaget, Merleau-Ponty, Lacan e outros, como vimos; e há nessa intropercepção um facetamento que vai desde sonhos de premunição patológica (pesadelos precursores de doença) até à hiperconsciência que os doentes ganham sobre os órgãos afectados (é a doença que nos faz reparar nas vísceras).

 

Mas a dialéctica da subjectividade objectivada apresenta ainda outros aspectos cuja importância merece exame. É que a música, a pintura, a poesia, a simples linguagem nas suas funções afectivas e comunicativas, a que K. Buehler deu os nomes de manifestação (Kundgabe) e apelo (Appel), colocam em posição a subjectividade social, sugerem atitudes intersubjectivas através de meios todavia objectivos, verdadeiras instituições sociais, tão inesgotàvelmente analisáveis e transformáveis como qualquer objecto natural: as obras de arte, as expressões de sentimento e intenção. A cultura (em oposição a civilização) caracteriza-se sobretudo por estes objectos que mais directamente afectam os sujeitos humanos, e que com eles se identificam ou coincidem, orientando-os em relação aos objectos mais ou menos naturais; a subjectividade humana é em grande parte um produto social criado pela educação de valores, ideias, hábitos, quadros de memória, percepção, relacionação objectiva. As próprias reacções de dor e prazer, agrado e desagrado, tão decisivas em questões de vida ou morte, são educadas, e por vezes erradamente: dores erradas do parto, psicoses sociais do suicídio, toxicomanias como a do tabaco, pavores supersticiosos ou religiosos, etc. (11).

 

Nós não podemos prever até que ponto o sujeito de dor, de agrado ou desagrado pode ser refeito, re-orientado, através de métodos que abranjam, quer os objectos estéticos e culturais, quer a reeducação dos reflexos até agora incondicionados, inclusivamente com a ajuda de uma farmacopeia química e de agentes físicos ainda por descobrir ou aperfeiçoar. As dores não-funcionais da agonia, e a ausência de alarme doloroso nos inícios do cancro e outras doenças, os excessos de excitabilidade alérgica, as insuficiências de excitabilidade voluntária dos músculos lisos e glândulas ligadas às funções vegetativas - eis um mundo de rectificações a fazer à natureza Estamos provavelmente na pré-história do sujeito da cultura; de qualquer modo, toda a plasticidade imaginativa é pouca para nos compreendermos como sujeito, isto é, como visão e actividade objectivante e projectante.

 

As ciências postulam uma concepção materialista da realidade, isto é, postulam um progresso indefinido nas possibilidades de conhecimento e reestruturação da realidade pelos homens; a unidade material do ser é sobretudo urna unidade potencial, é unificação possível através da dualidade sujeito-objecto do conhecimento e do trabalho humanos. Tal dualidade não tem, portanto, um carácter absoluto; quando afirmamos a preexistência da matéria ao conhecimento, o que afinal afirmamos é a possibilidade ilimitada de progresso no conhecimento e na técnica: dizer que a matéria existia muito antes da consciência humana existir significa, exactamente, que estamos longe de conhecer as suas leis fundamentais, pois conhecer tais leis equivaleria a poder utilizá-las, e, no limite final abstracto do progresso científico e técnico, o tempo deixaria de ter passado para uma humanidade omnisciente e omnipotente, tal como acontece para o conceito abstracto de Deus. A dualidade sujeito-objecto é dialéctica, as suas relações com a unidade material do mundo (que lhe é contraditória) constituem um problema de génese (como se formou a consciência humana?) e de estrutura (até que ponto estarei eu, sujeito actual, dependente de leis materiais, e até que ponto serão livres o meu pensamento e a minha sensibilidade, o que equivale a dizer, até que ponto criarão eles no mundo um modo novo e humano do ser, com leis suas próprias que modulam as leis gerais, de resto ainda por conhecer, da matéria?). O sujeito do conhecimento constitui o momento de trânsito intermitente entre objectos e projectos que reciprocamente se rectificam, tendo como limite causal e inicial a matéria informe (informe relativamente aos projectos humanos ou suas realizações) e como limite final a matéria já apropriada à intimidade humana, que, através dessa mesma apropriação, vai crescendo nos planos intelectual, técnico, estético.

 

Que pensar dos estados de indiferenciação entre o eu individual e o não-eu que Bachelard evidenciou, ao descrever a fenomenologia das imagens poéticas, que a psicanálise já patenteara em certos sonhos, e que MerIeau-Ponty e Piaget observaram também em dadas fases iniciais da percepção infantil? Se em grande parte descobrir uma realidade é redescobrir aquilo que, de um modo mais espontâneo, subconsciente, intuitivo e reflexo já se sentia, embora em horizontes mais restritos da sensibilidade e da acção (os fenomenologistas insistem nestes fenómenos de pré-percepção e pré-judicação), pode perguntar-se até que ponto poderá o homem vir a sentir por dentro toda matéria orgânica tal como sente a sua mão viva, e até que ponto pode vir a conhecer e a usar o seu corpo com aquela liberdade e transparência com que conhece e usa os algoritmos aritméticos e algébricos. A intimidade subjectiva tem uma espécie de centro de gravidade que é móvel; quando me dói violentamente a cabeça, o meu foco parece ser essa dor e esse sítio; quando o meu corpo não tem dificuldades funcionais internas, o meu foco desloca-se para fora dele. A metáfora que dá significado a expressões como intimidade e mundo interior abrange uma classe sempre aberta, ou indeterminada, de seres, corno se verifica pela categoria gramatical da pessoa verbal, nomeadamente o pronome eu, que nunca se determina independentemente do facto único de se estar aqui a falar; e acontece até que o eu implícito em tenho frio não coincide de todo com o de quero, mesmo tratando-se da mesma identidade física e civil; a unidade entre tais eus admite todas as fracturas inerentes à coexistência de um plano fisiológico (aquele em que se tem frio) e um plano psicológico (aquele em que se quer), pois, por exemplo, pode acontecer que em dada ocasião eu tenha frio e não queira evitá-lo, embora a reacção fisiológica espontânea seja de o evitar. Portanto a intimidade subjectiva muda e problematiza-se constantemente, no concreto único de objectos e sujeitos, de séries causais descobertas e transformadas em instrumentos de autodeterminação, e de domínios e circunstâncias em que se vive.

 

Por outro lado, o facto de me sentir por dentro do meu comportamento processa-se à custa da instrumentalização de muitos outros momentos de intimidade subjectiva, que se automatizam sob a forma de hábitos ou reflexos condicionados (12). Ora é flagrante a analogia entre essa instrumentalização, essa objectivação do subjectivo e aquela que sentimos em relação às pessoas com que convivemos, entre as quais há relações, aspectos contrastantes ou semelhantes apenas visíveis a partir da minha ou da tua óptica individual, relações de que só eu me apercebo porque nelas me interesso, relações de que só eu me suponho consciência e intenção (as pessoas são objecto de intenções de que outras são sujeito).

 

Ora a fenomenologia de Husserl começou por eliminar todas as formas de relativismo na teoria do conhecimento pelo postulado de uma visão das essências (Wesenschau), inerente à nossa própria intencionalidade ante-predicativa, prévia à (e orientadora da) tematização científica de cada domínio (eidos) do real; depois postulou um Eu transcendental que (como em Kant) garantisse a unidade do conhecimento - mas procurou evitar o escolho idealista clássico do solipsismo postulando uma intersubjectividade transcendental, evidenciada pela intersecção de diferentes objectivações, nomeadamente a do meu corpo por ti, e do teu corpo por mim, acabando por reconhecer a solidariedade social, prática e histórica dessa intersubjectividade. Deste preito à História provém a temporalidade suposta por Heidegger para qualquer instauração (ou, sempre ambiguamente, doação) de um mundo, na angústia do estar aqui para morrer. Mas Max Scheler encaminha a «intuição fenomenológica» num sentido afectivo e axiológico distinto do racionalismo husserliano: cada homem é um microcosmo de valores, e o teu microcrosmo revela-se-me através de toda uma escala de simpatia afectiva que, mantendo a irredutibilidade de cada eu, põe como destino final humano o Gottsuchen, isto é, a transcendência divina a todo o eu ou mundo. E eis algo que lembra a Stimmung heideggeriana como modo (afectivo) irredutível de desocultação do ser (ou de um inefável a que, em Zu Seinsfrage, já nem chama «Sein», ou «Ser»). O tema da intersubjectividade acaba por confundir-se, em Heidegger, com o da linguagem, diálogo ou palavra: faz-se poesia, «casa do ser». Este idealismo objectivo da linguagem é tipicamente moderno. Esboça-se em Cassirer, que define o homem como criador de estruturas simbólicas em que o real se subsume, e vem até à psicanálise da escola de Lacan e à «nouvelie critique» estruturalista francesa.

 

Mesmo um linguísta como E. Benveniste (13) presta o seu contributo à hispóstase, ou substantivação absoluta, da linguagem, na medida em que encara a expressão linguística do eu e do tu como uma subjectividade irredutível. Mas tenho-me dedicado agora aos problemas da algebrização possível da análise gramatical, e é minha convicção que a linguagem corrente não se caracteriza por urna subjectividade oposta à omnicontextualidade (o termo é de Volpe) da terminologia científica: basta ler dois ou três tratados ou manuais de matemática moderna, a mais formalizada das ciências, para verificar que termos básicos como função, aplicação, anti-simetria, etc. têm de ser compreendidos no contexto de cada livro, porque variam semânticamente de um para outro, tal como as notações simbólicas. Um texto da fala corrente é, apenas, contextualmente bastante mais aberto que um texto científico. Falando, estamos constantemente a fazer definições ad hoc, isto é, para uso em contexto restrito. Em «os rapazes vieram» não se trata de todos os rapazes do mundo, mas da totalidade de um seu subconjunto prèviamente definido. «João» não é um nome individual, mas o do elemento de um subconjunto singular, contextualmente definido no conjunto de todas as pessoas chamadas «João». E «eu» e «tu» designam, como qualquer substantivo singular, o elemento único de um subconjunto, sempre singular e contextualmente definido, no conjunto dos que falam (ou dos a quem se fala). Em português, todas as estruturas, nem sempre coerentes, das oposições pronominais, adverbiais, verbais (nomeadamente as de tempo) estão adequadas a este constante pegar e largar de definições contextuais ad hoc, que aliás supõem quadros objectivos espácio-temporais de referência. Mesmo o reduto subjectivo ou intersubjectivo de certos modos verbais, como o imperativo, o optativo (oxalá...), etc., resolve-se sempre, pelo discurso indirecto, num dado, bem objectivo, de metalinguagem: um teu «oxalá ela venha» é indissolúvel da sua percepção por um meu «ele deseja que ela venha». Isto não exclui, a meu ver, a possibilidade de uma simpatia, empatia (Einfühlung), compreensão (Verstand de Rickert, Dilthey, Max Weber) das intenções e vivências de outrem, incluindo talvez todos os seres vivos. E dou a maior importância à plenitude existencial de um eu, aqui e agora, que é a da decisão e acção. E creio numa certa dialéctica do tempo (ou dos tempos), núcleo considerável, embora mistificado, das filosofias de Bergson e Heidegger. O que eu não creio é que seja possível apreender formas transcendentais definitivas do eu conhecente ou sensível, de compreensão diltheyana ou do tempo.

 

A compreensão ou simpatia patentes e efectivas por outrem passa pela objectivação das suas circunstâncias. A subjectividade de uma personagem teatral ou novelística é dada pela mímesis das suas circunstâncias e comportamento, inclusivamente verbal; num poema lírico, como nos disse Pessoa, há sempre fingimento, drama em gente, identificação a uma dramatis persona; uma fala ou estilo individual contém sempre elementos conotativos de outras falas ou estilos incorporados. O humor de T. S. Eliot, Appollinaire, Drummond de Andrade é todo feito de vozes alheias fundidas nas suas - e não esqueçamos a origem caracterológica, psicofisiológica e teatral desta noção de humor, como lembra Escarpit (14). A unidade estrutural de uma obra musical é dialogal, constitui uma réplica a princípios pré-determinados de unidade que essa obra põe, e a que, dialècticamente, se opõe, e refaz, quer se trate de tons, modos gregos ou pós-barrocos, de séries dodecafónicas, rítmicas ou tímbricas, de temas ou motivos.

 

Reconheço que à hipóstase da linguagem corresponde uma evidência, mas deformada: a realidade pode parecer estrutura simbólica, linguagem, porque é dialéctica, e nós postulamos o conceito-limite gnoseológico e ontológico de matéria devido à manifesta história dessas estruturas, às contradições sempre subsistentes entre diversas estruturas, mesmo científicas, de representação (re-presentação, re-flexo), que revelam a distância dessas estruturas a um certo fundo a que pretendem adequar-se.

 

O espanto existencial do eu que, de súbito, aparece a si mesmo, ou de certas vivências espontâneas ou artísticas; a impressão que temos, quando apaixonados, de viver num mundo de deuses, de intuições fulgurantes a escapar-nos dos dedos sem palavras ou formas que as agarrem e fixem; a experiência, quase quotidiana num artista ou pensador, de que as evidências essenciais nos escapam, e de que todas as coisas importantes que achamos nos surgiram, por acaso, no rasto do que procurámos sem achar - tudo isto é impotente contra a evidência de que nasci de pai e mãe em data calendarizada, de que (por muito que pese a Kierkegaard) não sou contemporâneo de Cristo, de que sinto essas mesmas coisas porque os meus antepassados aprenderam a falar há uns centos de milhar de anos; tudo isto é impotente, excepto na medida em que participa de um progresso de adequação dialéctica entre as estruturas ontológicas tais como reflectidas pelo conhecimento científico, e os possíveis, objectivamente escalados, de emancipação humana, que é social, mesmo na arte.

 

Mas voltemos atrás e lembremo-nos de que a nossa consciência depende de uma organização de células vivas cuja irritabilidade elementar se subordina a arcos reflexos operados pelos neurónios, ou células nisso especializadas, através de sucessivas subordinações de gânglios neuronais, de centros nervosos inferiores a superiores, em que a intimidade, a consciência ou controlo do processo parcelar se perde em proveito de uma intimidade, consciência ou controlo globalmente mais eficaz. E, posto tudo isto, pergunta-se: Até onde poderá ir o progresso cósmico no sentido da subjectividade, da intimidade, aliás correlato ao da instrumentalização e objectivação? Até onde poderá a matéria do nosso conhecimento ser passível de objectivação conhecente e de apropriação, a partir da actual cultura humana - ou, caso ela falhe como linha de evolução, a partir de qualquer outra evolução cósmica semelhante? Na evolução material à face da Terra, a sensibilidade e a consciência correspondem a determinada fase superior, e parece que necessária, de transformação, e é de supor que o mesmo se verifique em muitos planetas de todo o cosmos. De que modo a necessidade e o acaso se entrecondicionarão na dialéctica geral da intimidade-exterioridade? Quer dizer: até que ponto será a vida um acaso, sob o aspecto com que se verifica sobre a Terra?

 

Num âmbito mais imediato, pode perguntar-se até que ponto a planificação económica, a automação, a manipulação cibernética de instrumentos materiais e de informações (estas até agora imperfeitamente organizadas em circuitos neurónicos do cérebro e em bibliotecas, gravações, ficheiros e seus anexos) poderão eliminar, não apenas a exploração e instrumentalização social de homens por outros homens, mas tornar transparente a cada sujeito humano aqueles reflexos que o cérebro, os centros nervosos, mesmo inferiores, normalmente inibem. Por outras palavras: como continuará a desenvolver-se a dialéctica da apropriação e alienação, num sentido genérico do termo que se aproxima do primitivo sentido hegeliano? Até que ponto, e de que modo, a vida e matéria física se tomarão íntimas, a uma consciência com origem humana, e que novas crises de crescimento isso acarretará? Teilhard de Chardin admite que se atinja um ponto Ómega de super-consciência social humana, conexamente conhecente, afectiva (ou estética) e activa. É um mito a que, como vimos, só tenho a objectar o que há de metafisicamente biologista no seu materialismo, ainda incapaz de assimilar os módulos científicos da sociologia de Marx, que não são dogmas, mas bases de uma sociologia científica actual.

 

Ora, atendendo a que o tempo se define como sendo a dimensão irreversível; atendendo a que, sobre a irreversibilidade pròpriamente física (de entropia, p. ex.), se formou urna irreversibilidade fisiológica (lei do envelhecimento), uma como irreversibilidade lógica (sucessão axiomática de teoremas, tendencialmente redutora da sucessão material das causas ou condições), uma irreversibilidade estética (o tempo afectivamente denso das artes rítmicas, ou antes, dos ritmos em arte), não poderá pensar-se que a máquina de viajar no tempo de H. G. Wells está afinal em construção desde sempre? Porque não admitir a possibilidade, quer de um sujeito futuro reviver, de certo modo, e a um nível superior, aquilo que os homens hoje pobremente vivem, quer de reviver, a esse mesmo nível superior e social, aquilo que cada ser vivo já viveu? Pois um simples romance ou filme, não corresponde, já por si, a uma necessidade de viver tudo o que, de bom ou mau, se não vive, através de urna intersubjectividade induzida por objectivação de tensões e situações típicas?

 

Ser materialista é crer na possibilidade (embora não necessidade, fatalidade, predeterminação teológica) indefinida de progresso; «tudo é material» significa, exactamente, «tudo está disponível para uma subjectividade objectivante e projectante, toda a fatalidade ou acaso pode vir a reduzir-se a razão». Um materialista acredita numa exequibilidade, por via humana, de todos os mitos: o de Ícaro, o da deificação humana por estímulo de Prometeu ou Lúcifer, o da escalada do Céu pela Torre de Babel, o do Paraíso Terrestre ou Idade do Ouro, o do Advento do Reino do Deus-Homem, o da metempsicose, o da ressurreição dos corpos, o da comunicação pela santidade, o dos homens-coisas como Posídon ou Hélio, os dos homens-bichos totémicos como Hórus ou os sátiros, o mito de Adão, que é o da realidade do universal Homem, o do Mundo Inteligível ou ideias-coisas, o de Orfeu ou da magia verbal, o do tempo em que tudo era falante para os homens. Como os antigos politeístas, aceito o cerne dos mitos nas suas contradições simbólicas, e sem exclusividade: eles mostram como as ambições mais desmedidas, as aspirações mágicas mais inconfessáveis são conaturais à consciência humana, essa última qualidade expansiva da matéria, capaz de conceber a categoria da universalidade, do todo, do absoluto, mesmo antes de a tornar eficaz e concreta. Os mitos testemunham que nunca nos resignamos, ou antes, testemunharn que a resignação perante os fracassos de qualquer projecto muito íntimo não atinge as zonas subconscientes, aquelas em que já pensávamos antes de pensar que pensamos, e onde continuamos a agir mesmo sem querer. Camões sabia que a saudade se não reduz a um desejo de regresso, mas que é um projecto à procura do seu objecto, um projecto a falar na linguagem do seu passado, a única que já conhece. Não é recalcando os mitos para o subconsciente que se deixa de ser religioso. A religião só se supera (só se anula, conservando o que nela tende para além dela) medindo os mais irreprimíveis mitos humanos pelas perspectivas científicas do aqui e agora. A liberdade de religião e o diálogo livre com os crentes é indispensável, até porque nunca é com erros que a gente se engana: é com verdades desfocadas ou mal engrenadas. O erro materialista mais corrente continua a ser o já denunciado nas Teses sobre Feuerbach: o de ignorar as razões que assistem à subjectividade residual activa, aquele não dinâmico que há no ser tal como as ciências, mesmo mais formalizadas e metodizadas, o vêem. Esse não dinâmico, embora espontâneamente retrocessivo ou passadista, não é o mesmo em Joseph de Maltre e Teilhard de Chardin.

 

Permita-se uma insistência, por outras palavras: certas correntes mais individualistas da filosofia da existência arguiriam contra esta doutrina que ela é inautêntica, no sentido de não assentar nas mais radicais e irredutíveis evidências do meu estar aqui, agora, nestas circunstâncias.

 

Eis a resposta: se por autenticidade existencial se entende a reacção mais funda e unitivamente íntima a uma dada situação, então não há nenhuma filosofia, incluindo a existencialista, capaz de fomentar autenticidade, a autenticidade é por definição imprevisível, ela está no foco sempre movediço da subjectividade, ela é como que uma lei nova a nascer das leis naturais já definidas ou intuídas, ela é como que a lei da essência humana a constituir-se por oposição dialéctica às leis naturais constituídas, incluindo as psicológicas. Toda a teoria da existência como superação humana é por isso ociosa, a não ser que seja o próprio pensamento científico a superar-se, ou, noutro pólo, contradição dialéctica da poesia ou da arte. De todo o meu estar aqui (Dasein) é inseparável um certo conjunto de convicções científicas, que sei muito bem terem origem histórica; é inseparável um postulado de verdade universal absoluta para essas convicções, mesmo quando reconheço a sua historicidade, postulado que mais tarde exigirá que se averigue em que sentido, relativamente a um certo momento e esfera de experiência, estas minhas convicções estão certas, quando eu (ou outrem) as critique e supere, pois não se acaba de superar um erro se ainda se reconhece em que medida histórica ou parcelar, ele não era (e não é) um erro. Por outras palavras, a oposição entre a lógica da mudança e a não-contradição é, ela própria, dialéctica: são, e não são, ambas a mesma lógica.

 

No plano estético, a plenitude do estar aqui coincide com a de, em certa maneira, estar no eterno. Assim como já estava, de algum modo, conhecido o que vamos conhecendo melhor, também um sentimento é um reviver de sentimentos: um grande desgosto abre as fontes de todos os desgostos, alguns nem sabemos já de quê. Um grau humano de consciência retoma a outro nível toda uma espontaneidade animal, toda uma espontaneidade histórico-social, toda uma espontaneidade individual; nós fazemo-nos dentro duma espontaneidade em que, pela maioríssima parte, coincidimos com a história humana e material. Por isso não há alienação em contar com urna superconsciência futura de origem humana social (ou outra), na medida em que afinal autentica a nossa tensão existencial presente: nós não poderíamos pensar se não postulássemos uma universalidade e certeza de juízo que nos transcende. E a tensão existencial pode ser socialmente induzida: um bom psiquiatra ou educador pode, em certos casos, levar um abúlico a querer, levar um neurótico a atribuir valor ou sentido à vida; a liberdade, como a saúde psíquica, e até a outra, também se pega, por expressão ou apelo, simpatia, ou o que queiram chamar-lhe. O verdadeiro mundo interior é um certo ser juntamente, um certo e criador Mitsein, tanto assim que a poesia, a arte, trazem-nos à presença, à tona da consciência individual, dores, agonias, torturas que se tinham sumido, e de que até o nome se perdera, de que até se tinham perdido as razões, as coordenadas espácio-temporais da sua primeira experiência.

 

De onde vem tudo isso, e aonde se dirige? Se é que faz sentido perguntar para quê se vive, uma das mais razoáveis respostas, talvez a única adequada a tal pergunta como pergunta, será: «Para descobrir isso mesmo». Eis porque me entusiasma aquela afirmação de Robbe-Grillet de que escreve para descobrir porque escreve. O sentido da vida fez-se vivendo. É um progresso social. É, creio eu, um progresso permanentemente possível de sensibilidade ou consciência (15).

 

 

 

 

 

(*) Este ensaio foi publicado pela primeira vez como segundo capítulo do volume ‘Ler e Depois. Crítica e Interpretação Literária/1, Editorial Inova, Porto, 1969. Juntamente com o capítulo precedente, ‘Abordagem ao realismo de experiência portuguesa’, constitui uma verdadeira estética, ou teoria do realismo em arte, que, fosse pela sua extrema densidade e complexidade expositiva, jamais seria objeto de disputa, salvo uma pequena escaramuça com Augusto da Costa Dias. Encerrou-se, assim, de certa forma, a discussão precedente sobre “forma e conteúdo” com o que só pode considerar-se uma completa vitória dos “formalistas”.

 

  

Oscar Lopes - Ler e depois

___________

NOTAS:

 

(1) G. O. James, Comparative Religion, University Paperbacks, págs. 35 e segs.; Joan Wynn Reeves, Body and Mind in Western Thought, Pelican Books, págs. 25 e segs..

 

(2) A propósito da homologia corpo-casa, vide Mircea Eliade, O Sagrado e o Profano, ed. port. págs. 51 e segs. e 134 e segs.; G. Bachelard, La Poétique de I'Espace, págs. 51 e segs.; M. Heidegger, Vorträge and Ausfsätze, trad. franc. Essais et Conférences, págs. 170 e segs., e 224 e segs..

 

(3) Wallon, Les Relations avec autrui chez l’enfant, cours 1950-51; Merleau-Ponty, Phénoménologie de Ia Perception, 1945; Jacques Lacan, Écrits, ed. Seuil, Paris, 1966, especialmente págs. 93-100 e 178-193, e outros passos indicados no seu Index Raisonné final.

 

(4) H., H. A. Frankfort, J. A. Wilson, Thorkild Jacobsen, Before Philosophy, Pelican Book, sobretudo págs. 237 e segs.; Georg Thomson, Studies in Ancient Greek Sociery: The Prehistoric Aegean, Lawrence and Wishart, Londres, 1948, e The First Philosophers, ibidem, 1961.

 

(5) Das Teses sobre Feuerbach, na versão anexa a A Ideologia Alemã: «A deficiência fundamental de todo o materialismo até agora, incluindo o de Feuerbach, consiste em que só apreende a coisa (Gegenstand), a realidade, o sensível, sob a forma de objecto (Objekt) de especulação (Anschauung) e não como actividade humana sensorial, como prática, não de um modo subjectivo. [...] O problema de poder-se atribuir ao pensamento humano uma verdade objectiva não é um problema teórico mas prático». (Ed. Pueblos Unidos, 1959, págs. 633-34).

 

(6) Na História da Literatura Portuguesa de que sou co-autor com António José Saraiva estudam-se as formas típicas e diferentes que esta alienação e inversão causal dos valores criados pelo trabalho (em terminologia marxiana, Entfremdung e Verkehrung) assumem na Virtuosa Benfeitoria de D. Pedro e no Escritório Avarento de D. Francisco Manuel de Melo.

 

(7) Utilizo a tradução de Manuel Morente, t. 1., 1928, págs. 122 e 151.

 

(8) Analítica Transcendental, liv. II, ibidem, espec. págs. 296 e segs.

 

(9) Holzwege, trad. castelhana, Lesada, Buenos Aires, 1960, ensaio sobre o «Deus está morto» de Nietzsche.

 

(10) As alienações hoje típicas da sociedade da abundância monopolista são o tema de obras conhecidas de Herbert Marcuse, Eros and Civilization, Boston, 1955, One-Dimensional Man, Boston, 1964, trad. franc. Les Éditions de Minuit, cheias de sugestões estéticas e psico-sociais, mas sociològicarnente imprecisas.

 

(11) A cibernética criou com W. B. Cannan (1932) o conceito de horneóstase, sistema de equilíbrio dinâmicamente auto-regulado, como, por exemplo, aquele sistema funcional automático que mantém a temperatura normal do corpo em torno de certos valores. Este conceito foi depois alargado a todo o conjunto das relações ecológicas, entre o ser vivo e o meio, e, depois, à dinâmica psíquica, físico-individual e psico-social, ou seja, ao campo das motivações, que passou a substituir as noções vagas tradicionais de tendências, pulsões (o Trieb freudiano), afectos, volições, stress, etc.

 

Finalmente e por cruzamento com os dados da culturologia ou antropologia cultural americana (Malinowski, Ralph Linton, Ruth Benedit, Margaret Mead) e da psicanálise sociológica (Karen Horney, Erich Fromm, cujo conformismo é aliás denunciado por Marcuse; Dollard, etc.) chegou-se à noção da personalidade como «jerarquia de homeóstases» sendo cada homeóstase a estrutura dinâmica correspondente a um dado nível de aspirações, de uns dados valores, que històricamente se criam (Lewin, C. A. Mace, 1935, A. W. Kurtz, 1956). Esta noção pode abranger a chamada «personalidade de base» de uma dada cultura, definida por R. Linton.

 

Ver bibliografia e desenvolvimento no livro de C. I. Guliane Problematica Omului, Bucareste, 1966, trad. franc. Le Marxisme devant l'Homme, Payot, 1968 (para sair em trad. port), sobretudo o cap. La Motivation, págs. 64-73. Guliane aproxima um tal conceito de homeóstase, aplicado aos níveis de aspiração e valores, da teoria das camadas do ser humano de Nicolai Hartmann (Schichtung des Menschenwesens), bem como de outras fórmulas como: «O possível mais individual é a interiorização e o enriquecimento de um possível social», Sartre; «As circunstâncias formam os homens na medida em que os homens criam as circunstâncias», Marx-Engels; «A consciência humana não se limita a reflectir o mundo objectivo: cria-o também», V. I. Lénine. É óbvia a importância de tudo isto para a teoria do realismo em arte que se expõe no capítulo anterior: o real realizável correspondente a uma emoção estética, quer dizer, de sensibilidade superior, não é descrito, mas dado por objectos onde encarnam valores, níveis de aspiração; a compenetração de uma carência antes despercebida dá-nos um prazer superior e dinamogénico, a que certas dores são imanentes. E a consciência de uma carência pode ser a melhor das presenças e das plenitudes objectivas que se atingiram.

 

(12) Tran-Duc-Thao, em Phénoménologie et Matérialisme Dialectique, ed. Minh-Tan, Paris, 1951, defende a tese de que o sentido íntimo (ou consciência) é constituído pela repressão, retenção, representação e re-orientação intencional das formas espontâneas de actividade viva, à medida que, através do progresso de cefalização, os centros nervosos inferiores se subordinam aos superiores (págs. 248 e segs.). Trata-se de uma tentativa de tratamento científico que engloba e supera os dados da fenomenologia de Husserl e cujos horizontes se abrem se a relacionarmos com a extensão psico-sociológica do conceito de homeóstase, referido na nota anterior.

 

(13) Problèmes de Linguistique Générale, caps. XVIII e XXV.

 

(14) L'Humour (Col. Que Sais-je?, n.° 877).

 

(15) Depois de composto este capítulo, encontrei reflexões coincidentes, quanto à dialéctica do sujeito-objecto em Adam Schaff, Langage et Connaissance, trad. franc. ed. Anthropos, Paris, 1969, págs. 304 e segs., e passim. Ver também uma admirável, e aliás compreensiva crítica à hipóstase da linguagem, a propósito do relativismo idiomático de Herder-Humboldt (precursores, neste aspecto, de Heidegger e da nouvelle critique), de Cassirer e outros neokantianos, do empirismo lógico (certo Wittgenstein, Carnap, Adjukiewicz), e de certa etnolinguística (E. Sapir e sobretudo B. Lee Whorf), ibidem, págs. 3-97 e passim. Em Lacan, Jean-Michel Palmier, Paris, 1969, págs. 141-42 e 238, encontrei outro lado coincidente: os psicanalistas Conrad Stein e A. Gleen observaram que o inconsciente ignora a categoria linguística das pessoas verbais.