Na morte de Karl Marx (*)

 

 

 

 

2.° anno - n.° 2

18 de Março de 1383

 

Um tellegrama de Paris anuncia o fallecimento do grande pensador socialista Karl Marx. Permita-nos a agencia Havas e os jornaes burguees que publicam a noticia, que duvidemos da veracidade do facto, não por que o achemos estranho, mas por que o não podemos acreditar sem communicacão official. Sabemos a avidez com que os repporters inventam notícias de sensação, e esta é uma d'aquellas que nos allucina, que nos confunde, só ao pensar na perda do Mestre. Alem d'isso, sabemos que Marx habitava ultimamente Londres e não tivemos noticia da sua partida para Paris.

 

A ser verdadeira aquella participação, o socialisrno universal, a sciencia, a humanidade terão a lamentar o desapparecimento da inteligencia mais potente da civilisação moderna. Não é .preciso que nós o digamos; dil-o um jornal burguez nas seguintes phrazes que transcrevemos:

 

«Era, por ventura, o primeiro vulto do socialismo e, sem duvida, uma das mais notaveis intelligencias do seculo. O seu livro «O Capital» pela profundeza de vistas, pelo rigor penetrantissimo do raciocinio, pela vastidão do seu pIano admiravelmente cumprido, é uma obra suprema, é o mais luminoso dos trabalhos que em materia economica se tem feito.

 

Foi tambem importantissimo o papel de Karl Marx como homem de acção, como instigador secreto do movimento socialista.»

 

Esperamos ansiosos por informacões fidedignas.

 

 

 Sentidos pesames

 

 

2.° anno - n.° 3

25 de Março de 1383

 

Como quasi todos os boatos tristes são confirmados para completar, com dôr que produz a confirmação, o sobressalto que nos tenha acommetido, a noticia do fallecimento de Karl Marx, o nosso venerando mestre, acaba de nos ser confirmada.

 

Karl Marx acaba de fallecer em Londres quasi repentinamente em resultado de doença de peito, contrahida ha pouco mais de um anno junto de sua esposa rnoribunda.

 

Desappareceu o mais eminente dos socialistas contemporaneos e um dos mais profundos socialistas da nossa epoca. É a elle principalmente que se deve o caracter historico e scientifico que assurniu o socialismo utopista e sentimental da primeira d'este seculo.

 

Marx pode também ser considerado como o verdadeiro fundador da Internacional, e portanto, como o mais podroso iniciador d'este movimento operario europeu-americano.

 

Karl Marx, nasceu em 1814 em Tréves onde o seu pai exercia a profissão de advogado. Comecou por estudar direito na universidade de Bonn e depois na de Berlim; mas o seu espirito era demasiado investigador e scientifico para se encerrar no estudo secco e arido da jurisprudência. O seu gosto pela parte historica do direito, quer romanico, quer germanico, impelliu-o para a historia propriamente dita. Ao mesmo tempo entregava-se com paixão à philosofia e até à metaphisica, apesar do seu scepticismo n'este assumpto. Em Berlim encontrou-se com Bruno Bauer, Feuerbach, Heine, Strauss, Grun, etc., toda a «esquerda hegeliana».

 

Foi por esta epocha que seguindo um conselho dum collega da universidade, Frederico Engels, que foi o seu amigo mais dedicado até à morte, Marx se dedicou ao estudo da economia politica. Depois de se doutorar em qualidade de privat docent.

 

Era professor havia pouco tempo, quando morreu Frederico Guilherme III (1840). Os chefes da democracia liberal e burgueza, os Hanseman Kamphausen, julgando opportuno o momento para as reformas constitucionais, offereceram a Karl Marx que ainda não tinha vinte e um annos, o cargo de redactor em chefe da «Gazetta Rhenana». A sua polemica original e audaciosa, não tardou a lancar o pânico no poder, que a principio submetteu o jornal à censura, mas depois pouco satisfeito com os resultados, acabou por o supprimir. Foi então que veio para França, publicando com Ruge e Heine em 1844, os Deutsch Franzoesischen Jahrbucvher (annaes franco-allemães). N'esta publicação encontra-se já a ideia mãe do socialismo moderno. Publicou também umas apoz outras, uma Revisão Critica da Philosophia do Direito de Hegel e a Santa Familia contra Bauer, Bruno e consortes; este ultimo livro é dirigido contra o idealismo hegeliano.

 

Entretanto Karl Marx não se fixava nas altas regiões da philosophia especulativa; entrou valentemente na critica e na elaboração socialista. Assim publicou em 1847 a Miseria da philosophia em resposta às Contradições economicas ou Philosophia da miseria de Prodhon. Foi n'esta epocha, que publicou com Engels, em Bruxellas (tinha sido expulso de França) o celebre Manifesto dos Communistas que lançou as bases do socialismo moderno, e que trinta annos mais tarde se devia tornar o symbolo da maioria do proletariado do Occidente e da America do Norte.

 

Quando a revolução de 24 de Fevereiro, aballou a velha Allemanha feudal e monarchica, Marx, depois de uma curta .residencia em Paris, partiu para Colonia, onde ressucitou a Gazetta Rhenana e fez d'ella um estandarte a cuja sombra sustentou contra a reacção prussiana e alemã uma campanha socialista muito notavel, mas bruscamente interrompida em 1850 pela supressão da Gazeta e pelo famoso processo dos comunistas de Colonia.

 

Proscrito de novo, Marx refugiou-se em Londres onde se fixou. Data d'esta epocha O dix huit brumaire de Louis Napoleon (1852) e a brochura àcerca do processo dos comunistas de Colonia (1853).

 

Os annos seguintes foram empregados por Marx n'um grande acto politico e n'uma grande obra philosophica: a fundação d'uma associação internacional dos trabalhadores e a theoria do socialismo historico-scientifico. O seu primeiro pensamento realizou-se na Internacional, o segundo na Critica da Economia Politica (1859) e principalmente Capital (1867) obra magistral que fez epocha na historia do socialismo, e collocou o seu auctor ao lado dos primeiros economistas criticos e socialistas do nosso seculo.

 

Querendo ser ao mesmo tempo propagador das theorias e o impulsor do novo partido socialista, Marx tomou parte activa na direcção da Internacional, bem como na fundação mais recente d'alguns dos partidos operarios actuaes. Mas é principalmente como pensador, como descobridor das leis da evolução economica, principalmente das que presidem à genese do capital e às transformações obrigadas dos meios producção que Marx ficara sendo um dos homens eminentes do nosso seculo.

 

A grande obra d'este illustre pensador «O Capital» ficou por acabar. A primeira parte d'ella, A Producção das Riquezas produziu uma verdadeira revolução mesmo no sentido excathedra da economia politica em toda a parte onde este ensino não esté completamente unificado. A segunda, A Circulação das Riquezas suppõe-se ficou bastante adiantada, e a ponto de poder ser publicada por Frederico Engels, o amigo mais intimo e o mais digno interprete de Marx.

 

O terceiro volume Historia da Theoria devia ser uma analyse critica de toda a litteratura e economia. É para receiar que apenas existam fragmentos esboçados, porquanto Marx considerava esta parte como um trabalho ligeiro e facil.

 

Tal é, a largos traços, a biographia do chefe scientifico do socialismo contemporaneo e do seu mais profundo pensador, perante o tumulo do qual nós curvamos reverentes a fronte onde marejam as lagrimas do sentimento.

 

 

 

 

2.° anno - n.° 6

15 de Abril de 1883

 

Ha nomes que memoram uma epocha e syntetisam uma geração. São como que abreviaturas da historia exprimindo um periodo inteiro de grandes acontecimentos.

 

A queda da sociedade feudal e os rapidos progressos do industrialismo, haviam creado uma situação nova que agitava as sociedades d'uma fórmula extranha. Tinham-se destruido os velhos privilegios, tinham-se proclamado os direitos do homem - e a miseria e a desgraça imperavam por toda a parte.

 

Succederam-se as revoluções. O sangue correu em ondas por toda a Europa, e o mal cresceu, zombando de todos os exforços. O constitucionalismo que promettera felicidade dava miseria; o republicanismo que era a derradeira esperança - dava fome! Para onde appelar então?

 

Como o caminheiro do deserto, cançado de correr de miragem em miragem, se deixa cair desalentado sobre a areia ardente que Ihe vae servir de tumulo, assim o povo, exhausto de procurar o fim dos seus males, se abandonou sem esperanca no turbilhão da miseria.

 

E, comtudo, jé se havia achado a solução do problema. Stuart Mill tinha posto o dedo sobre a chaga. Faltava, porem, demonstrar d'uma fórmula irrefutavel, que essa solução não era mais uma esperança enganosa; e levantar, reunir, disciplinar, aguerrir este povo sem alento, disposto a deixar-se morrer.

 

É n'este trabalho colossal que Marx immortalisa o seu nome, desempenhando a parte principal na critica scientifica e rigorosa das riquezas sociaes, e na organisação e desenvolvimento das novas forças revolucionarias.

 

Tudo mudará, e, por isso, a desorientação era completa. Passara-se do campo abstracto para o campo positivo. A revolução ia ser mathematica em vez de sentimental. O povo ia dividir-se para sempre duas classes antagonicas. A lucta ia resumir-se na sujeição d'uma ou no anniquilamento da outra.

 

As pugnas estereis do constitucionalismo e da republica, os exforços de alliança e harmonia entre o capital e o trabalho, iam ser abandonados como de nenhum valor - o socialismo todas as concepções utopicas, saia do explorado campo das luctas romanticas, e entrava na acção real, pela sciencia e pela consciencia. As queixas do povo eram comprovadas pelas indagações philosophicas; as reclamações dos miseraveis eram demonstradas justas pelos sabios estudos d'uma pleiade erudita, que Marx representava pelo seu saber e pela sua grande alma.

 

Novos estudos alargarão, decerto, a massa de conhecimentos positivos sobre a reorganisação das sociedades; mas a revolução proletaria, a origem e a razão d'ella, estão já assentes em bases indestrutiveis, que enraizam nos trabalhos scientificos de Marx e no vigor e energia do seu caracter.

 

 

O Protesto Operario

 

 

 

(*) O Protesto Operário, semanário do Partido Operário Socialista, publicou-se de 1882 a 1894 (ou 1896) em Lisboa e Porto. Resultou da fusão de O Protesto, que era desde 1875 o semanário lisboeta do Partido dos Operários Socialistas, dirigido por Azedo Gneco e Manuel Luis Figueiredo e O Operário, semanário fundado em 1879 no Porto pela Associação dos Trabalhadores e que aderira também àquele partido. Este último jornal publicou em folhetim Socialismo Utópico, Socialismo Científico de Frederico Engels. O Protesto Operário foi o principal órgão da imprensa operária portuguesa no último quartel do século XIX. Foi dirigido por Manuel Luis Figueiredo e nele colaboraram Angelina Vidal, Azedo Gneco, Nobre França, Guedes Quinhones, Fernando Alves, Viterbo de Campos, Manuel José da Silva e Ramos Lourenço entre muitos outros, segundo nos informa Victor de Sá em Roteiro da Imprensa Operária e Sindical 1836-1986, Caminho, Lisboa, 1991. Reeditou o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, em 1887. Foi aindanas páginas de O Protesto Operário que Azedo Gneco, a 4 de fevereiro de 1883, em polémica com Felizardo Lima, defende o sistema socialista socorrendo-se para isso de citações do Anti-Dühring de Engels e do Manifesto Inaugural da A.I.T., redigido por Marx (este havia sido publicado, anos antes, por O Pensamento Social).

Esta série de três notas não assinadas de O Protesto Operário por ocasião da morte de Karl Marx são sobremaneira interesantes. Revelam, sem dúvida, algum conhecimento da vida e propósitos do falecido, bem como da sua importância para o movimento operário internacional. Infelizmente, isso não nos adianta muito sobre o estado de assimilação das suas ideias pela vanguarda organizada do operariado português. Sobre esse ponto, sabemos hoje que, infelizmente, os inícios auspiciosos dos anos 1870 (correspondência com Engels e Marx, visita de Paul Lafargue, fundação do partido político em 1875) não terão infelizmente grande sequência até já bem dentro do século XX.