Sobre os fins e a coragem nos meios de actuar

 

José Rodrigues Miguéis

José Rodrigues Miguéis (*)

 

 

I.

 

"É quase impossível passar, entre os homens, com o archote da Verdade, sem queimar as barbas a alguém."

 

Lichtenberg

 

 

Longe de mim a ideia de fazer a crítica ou a pesagem dos valores duma geração, considerada nela mesma e no seu tempo, ou o intuito de revoltar quem quer que seja contra o prestígio mental de um grupo de homens a cuja coragem de pensar (e de afirmar) alguma coisa devemos, por muito que pretendam convencer-nos do contrário os prefácios com que têm nascido aparelhados e deformados os inéditos do Eça.

 

Desde já fica, portanto, assente que não venho discutir Antero ou os seus contemporâneos, nem o mérito pessoal ou literário dos homens da grande geração, nem tampouco censurá-los porque, coitados, não souberam endireitar o mundo, pondo-o à imagem do seu idealismo, - isto é, fazendo o que mesmo os homens de hoje ainda não sabem fazer... As minhas intenções são infinitamente mais modestas e actuais. Aceito os homens como eles foram ou se nos mostram, e como as circunstâncias os forçaram a ser, com erros e virtudes, divergências, incapacidades e apostasias; não como o faria um seu contemporâneo, - mas com os olhos do meu tempo, uma certa noção da perspectiva e um sincero desejo de me libertar das "lições do passado", dos "exemplos da História", dos "mestres do pensamento" quando considerados fora do puro pensamento e outros sofismas, - sobretudo também no intuito de evitar que uma falsa visão do passado influa nefastamente no presente. É tão perigoso erguer o Desejado a símbolo da fé e da acção que o presente demanda, como pretender conduzir-nos pelos caminhos da pura especulação ideológica, em nome do imaculado idealismo de Antero de Quental.

 

Pelo que toca ao Poeta, que um prurido legendário classificou de Santo, afirmo categoricamente a minha admiração e o meu respeito pela sua obra literária, pelo seu espírito torturado das mais altas preocupações morais e filosóficas pela sua acção espiritual, ainda hoje tão viva em todos nós; o seu suicídio é para mim o incidente final da sua luta interior, e o termo dum conflito insanável com os acontecimentos e o tempo: passada a época em que os homens da sua grandeza espiritual morriam na cruz, ao pensador que fizera da vida inteira um drama de consciência, só restava aquela solução - posta de parte a hipótese impossível de ser fuzilado pela Ordem, na rua, com as armas na mão, o que não seria afinal, para a época, senão uma forma de suicídio épico, vistoso, incompatível com o seu pudor mental. Não sou dos que explicam todos os conflitos de consciência pelas doenças do estômago ou as deficiências glandulares. Com bom estômago e outro equilíbrio orgânico, os problemas e a luta tomam decerto um outro aspecto, mas na essência não mudam.

 

Outra coisa é, porém, a lição actual que pretendam extrair da vida e da obra literária e social desses homens, a preocupação de criar uma tradição baseada nos textos que eles deixaram ou nos actos que praticaram.

 

Não me submeto facilmente às lições do passado com que certos senhores pretendem às vezes reduzir-nos ao silêncio ou à inacção. O passado que vive em nós como uma fatalidade, por via hereditária, por ambiência natural, temos de aceitá-lo, mas apenas na medida em que não venha opor-se à nossa vontade de progresso. Aliás, a História tem pano para mangas e não é dificil encontrar nela tradições e razões para todas as tendências. Os factos históricos devem ser descobertos, ordenados, arquivados e expostos cuidadosamente, com a maior objectividade como os trastes e a indumentária antiga nas vitrinas dum museu: para que os admiremos, para que nos recreiern e divirtam, e para podermos dizer: "O que eles usavam naquele tempo! Como podiam os cavaleiros respirar naquelas armaduras, e as damas tão espartilhadas!" Mas consintam que arranque o meu colarinho, se me aperta, e não me oponham Camões, nem D. João II, nem o Mestre de Aviz, porque usavam colarinhos, botas, abafos e armaduras que ninguém hoje poderia suportar. O Eça usava um plastron! Mas, que diabo, dêem licença que o romancista de hoje ponha uma blusa de sport...

 

No presente somos nós que agimos, dele são senhores, de certo modo, os vivos, que estão no direito de usar as camisas, os pensamentos e as condutas mais conformes com o tempo de hoje. Eu não me rio das cabeleiras de setecentos, embora ache eminentemente mais lógico o cabelo de agora, cortado à inglesa ou à escovinha; rir-me-ia, sim, a valer, se o senhor conde de Penha Garcia, por exemplo, pusesse amanhã bofes de renda ou envergasse um gibão golpeado!

 

Já me parece bastante, na crise actual, que sejam os adversários da democracia a pôr os problemas político-sociais dentro do critério histórico e tradicionalista, procurando no passado disciplinas para a vida que brota. O importante, hoje, é adquirirmos a consciência histórica do momento em que vivemos.

 

O espírito, como a vida, não carece de justificação; nem é a tradição que o anima, o inspira, o legitima. Só o legitima a vitalidade, na medida em que é actual, em que se torna capaz de impelir os indivíduos e as massas para o futuro.

 

Para se aperfeiçoar, para manter-se ao menos ao mesmo nível espiritual, a democracia tem de repelir a cada instante todos os fantasmas, repudiar todas as tradições, mesmo as que se lhe impõem como suas, passar além de todo o espírito de tradição ou de igreja, sob pena de paralisar-se. Há em todos os movimentos de massa uma tendência, de que os especuladores se aproveitam habilmente, a cair no dogmatismo, no exagero dos textos sagrados, na intolerância, no psitacismo de escola, no farisaico espírito legalista, quando se trata de os justificar historicamente por textos ou "tábuas da lei". Basta lembrar o exemplo vivo e actual do bolchevismo, agitado numa crise de princípios, em que são justamente os que se dizem portadores do "espírito" de escola, do leninismo, enfim, os que parecem negá-lo na realidade viva da actuação. O espírito de tradição é essencialmente fixador, dogrnático, rígido, textual; falta-lhe a souplesse, a harmonia dos movimentos a cada instante necessários. Demais, na ordem social, política e religiosa, a tradição exige um corpo de sacerdotes e burocratas cujo interesse é opor as tábuas da lei à inovação livre e constante do pensamento.

 

Mal da democracia quando ela se volta para o passado a pedir-lhe uma razão de ser, como as velhas que se consolam da sua fealdade actual com as histórias do tempo em que eram mocinhas de apetite. Ou a democracia vale pelo que é, pela sua actualidade e sua viabilidade futura, pela força dos seus pensamentos unida à força das circunstâncias - ou não é nada. Ser, por princípio, democrata ou socialista porque Antero o foi e como ele o foi, ou abdicar da acção porque o Eça foi um socialista doutrinário, é absurdo e risível.

 

Não somos culpados de que o tempo tivesse criado novas exigências. Não podemos repetir a cada instante: "Que diria disto o Antero? Que faria o Antero nestas circunstâncias?" etc., etc., pela simples razão de que ele não podia ter visto todos os problemas e os meios actuais de os resolver... O nosso dever é pensar e agir segundo o nosso espírito contemporâneo, de certo modo evoluído do de Antero, mas dirigido e condicionado por uma série de factores específicos da nossa idade.

 

Eu sei que há muitos indivíduos que se dizem democratas, porque a democracia vem de trás, já cá estava quando eles abriram os olhinhos concupiscentes para as pastagens da vida. São estes democratas (que teriam renegado a democracia se a monarquia florisse ao tempo em que entraram na vida) os mais duros e ferozes conservadores dos princípios, os seus exegetas mais implacáveis. O instinto adverte-os do perigo duma alteração no conceito dos princípios democráticos e, para eles, a salvação está na conservação. É preciso tornar os princípios indiscutíveis, intangíveis, sagrados, pela tradição, ao menos pelo tempo bastante para que a sua digestão se faça. É claro que estes democratas são ainda e sempre preferíveis aos que negam todo o princípio e governam contra todas as regras - mas ficam muito abaixo dos que trazem consigo os germes duma renovação, dum progresso constante. São apenas o que a força imperiosa da evolução num certo estádio e a inércia lhes permitem. Vão com a maré, sobem com a onda. São a maioria. Pertencem à massa que forma o peso morto de todos os regimes São a força de conservação Quando não reagem de cima, reagem na sombra, passiva mas tenazmente São a “casta" do presente, como o teriam sido num passado qualquer.

 

Mas não é disso que se trata aqui.

 

O ponto é que a democracia, no que tem de vivo, de evolutivo, de actuante, - de radical ou, se quiserem, mesmo de jacobino, - vem sofrendo certos ataques surdos e disfarçados que algumas vezes se revestem de atitudes irrepreensíveis, mesmo de aceitação ou de concordância com o espírito democrático. Um dia é um senhor que desdenha em nome não sei de quê da fé ingénua e popular dos primeiros tempos da República; depois, outro senhor, das alturas da crítica literária e filosófica, intenta desarticular, dissociar dois conceitos íntima e estruturalmente ligados, como os nervos e as fibras musculares: o pensamento e a actuação revolucionária.

 

É este o caso (finalmente!) do sr. Castelo Branco Chaves, que nas colunas desta mesma revista (n.° 205) analisa "o conceito da Revolução em Eça de Queirós". Ora eu não viria aqui discuti-lo nesta prosa tardia (1) se o sr. C. B. Chaves, com uma objectividade que só lhe faria honra, nos mostrasse como e até que ponto o Eça foi um "revolucionário"... Mas o tom do artigo, as citações acessórias, certas opiniões discretamente emitidas, a atitude espiritual do seu Autor cujo passado mesmo é já um sintoma, (conquanto eu renda homenagem ao seu carácter, à sua honestidade política, à sua honradez pessoal), - tudo se reduz a uma resultante: negar certos métodos de luta que estão ligados umbilicalmente às ideias, se é licito associar às ideias a imagem do umbigo. O senhor C. B. C. saiu insensivelmente do terreno da crítica filosófica, literária e histórica para o das apologias políticas e sociais. Ora se, em todo o caso, é sempre a ideia, e outros conceitos igualmente simpáticos, que dominam todas as apologias, campanhas e controvérsias desta revista, a verdade é que nunca a apologia dos princípios nos pôs em conflito com os métodos (ou certos métodos) necessários, empregados na sua realização. Ninguém, por exemplo, repudiou o facto da Revolução francesa, para afirmar que os métodos dialécticos, a propaganda ideológica são preferíveis à violência armada, quando os acontecimentos se precipitam. Suponhamos que um democrata, um indivíduo que gozasse dos benefícios legados pela Revolução francesa, se voltava para o passado a repudiá-lo, repudiando os relativos benefícios com que ela nos brindou, porque os actos revolucionários e violentos repugnassem à sua ideologia democrática... Em geral é inteiramente inútil protestar contra o passado. E neste caso, seria até absurdo, cómico e monstruoso, esse protesto. Se o sr. C. B. C. perguntasse aos componentes da SEARA NOVA se eles entendem que a República teria sido possível sem a revolução de 3 a 5 de Outubro de 1910, as respostas divergiriam talvez em aspectos de pormenor, - mas o que alguns não poderiam negar é que se bateram, então e depois, para implantar e salvar a democracia em Portugal. Aí os tem o senhor envoltos na condenação e no fumo do charuto de Ramalho! Todos lhe responderiam que os métodos dialécticos, a propaganda pela persuasão, a discussão libérrima, são em todo o caso preferíveis; mas que antes foi necessário partir as cadeias e os duros moldes que impediam a consciência democrática de se manifestar.

 

Esse é que é o ponto importante.

 

Por mim, não receio as contradições de que possam acusar-me. Entre a ideia de furar uma rocha e o meio ou o acto de a furar, vai um abismo. Ponhamo-nos todos - os idealistas, - em frente da rocha, a pensar que é preciso e útil fazer-lhe um furo, e digam-me se é possível admitir que a rocha, sob o esforço apenas da nossa ideação, se abrirá de lado a lado, a menos que a ideação passe a alucinação, se produza um milagre, e nos ponhamos todos a gritar que a rocha se furou pelo mesmo (ou semelhante) processo por que o sol dançou em Fátima! Os meios de actuar, os instrumentos, a acção, são o prolongamento necessário das ideias. Quem aplaude estas e recusa aquelas, ou mente ao seu idealismo por inconsciência e estupidez, ou anda a embalar os outros, a deitar-lhes poeira nos olhos. Se é possível falar da "unidade espiritual da vida” esta não pode ser concebida senão como um elo necessário de continuidade entre um sem-número de fenómenos contraditórios, de acções e reacções, se o querem, como a resultante duma série de forças todas necessárias, mesmo quando opostas entre si. Para isto, porém, torna-se preciso um mínimo de critério objectivo e realista da existência - que não me parece de modo algum incompatível com o mais absoluto idealismo.

 

Mas repudiar a democracia, porque ela nasceu pela força - não obstante ser um produto ideológico - seria o mesmo que renegar a vida que a ferros se libertou do seio materno, onde por um acto de amor foi concebida.

 

Na medida, pois, em que a violência foi reconhecidamente necessária para fazer a Revolução em França, ou a República em Portugal, nenhum idealista, democrata sincero, e adversário da violência sistemática, a pode repudiar ou negar. Por mim, irei mais longe, repetindo a essência do que atrás deixo dito: à luz da crítica histórica, ninguém a pode refutar, na medida em que ela faz parte dum passado irremovível. Não se pense que esta ideia corresponde a uma tendência à passividade perante o facto consumado. O facto consumado, enquanto se encontre ao alcance dos nossos meios de luta e em contradição com o nosso idealismo, é um facto refutável e lutável. Muitos factos seculares, consumados, aparentemente inelutáveis, monarquias, impérios, religiões, feitiçarias, privilégios de toda a casta, tombaram no momento em que as circunstâncias, apressadas e agitadas pelo pensamento prolongado em actos (não o "puro" pensamento, a "pura" ideia, a abstracção engarrafada), tornaram possível e urgente a sua queda. Já nesta revista procurei desenvolver a mesma ideia, e não me repugna acentuá-la agora: como homens do nosso tempo, cumpre-nos reagir perante os acontecimentos procurando pôr os factos de acordo com o nosso idealismo; se o nosso idealismo tem ou não raízes no passado, pouco importa. O que dita a nossa conduta são as circunstâncias do presente e as possibilidades do futuro.

 

De resto, há uma diferença fundamental entre os que fazem dos métodos - da força da violência, da acção em geral - um fim, e os que fazem deles um meio. Ao primeiro grupo pertencem os bonapartistas. Ao segundo, os que fizeram e conduziram as grandes e verdadeiras revoluções da História. Os idealistas que em nome dos ideais repudiam a acção necessária à sua efectivação, mentem, por inconsciência ou estupidez. Os homens que fazem da violência, da opressão, da força, uma finalidade, sem as pôr ao serviço do progresso, mas para o combater, são loucos ou miseráveis que a História liquida, mais cedo ou mais tarde. Para mostrar até que ponto, em geral, esses falsos criadores, do tipo Bonaparte, desconhecem o ritmo do seu tempo, o sentimento do progresso, basta lembrar a famosa boutade que Napoleão emitiu em 1803: "A navegação a vapor não tem futuro nenhum!"

 

Mas o critério de distinção (que urge aliás estabelecer) entre o verdadeiro condutor de povos, o revolucionário, o idealista de acção, e o condutor teatral de massas não é, também, assunto deste artigo.

 

O importante, no momento, é saber até que ponto uma interpretação, aparentemente ingénua, doutrinária, inofensiva, do pensamento dum homem ou duma época intenta estabelecer uma norma de conduta - isto é, impelir-nos em nome dos ideais no sentido duma renúncia a certos processos de luta. As ideias não se criam para inibir, mas para estimular a acção, e como inícios de acção. E na hora de conflitos que o mundo atravessa, não é positivamente de secundária importância assentar em quais os meios de que é possível ou legítimo haver recurso para sair da encruzilhada.

 

O meu desejo seria mostrar que o idealismo da grande geração, condenada a converter-se ou a renunciar com dor, não pode estar em contradição com os meios de actuar do nosso tempo, cujo substrato ideal é, bem vistas as coisas, o mesmo. Absurdo, sim, é supor que as circunstâncias de hoje suportariam as atitudes desse tempo.

 

 

II.

 

“A missão principal do pensamento consiste em prever os actos e os acontecimentos, em conceber os fins e os meios, e em exercer sobre uns e outros o mais possível de influência.”

 

Alfred Adler

 

 

Que é, no conceito dum Ramalho, uma civilização? Que é a “influência duma elite sobre a obtuosidade das massas”? Que são as massas no ponto de vista da civilização e da cultura? Por uma tendência viciosa de generalização, tendemos a fundir civilização e cultura num conceito só, e tomamos como unidades no tempo e no espaço certos complexos de fenómenos, sob o nome de civilização grega, romana ou norte-americana. Mas quais são os "índices" da civilização grega? Sócrates - ou os democratas puros, que o fazem perecer em nome da Ordem e da razão de Estado? Péricles, o ditador, é para muita gente uma das mais altas expressões da cultura e da civilização dos gregos. Não nos preocupamos de saber se a civilização americana é Ford ou Emerson, Hoover, ou Sinclair, se a inglesa é a rainha Victoria ou Shelley, se o hebraísmo é Cristo ou Shylock, se a Alemanha é Kant ou Guilherme II. A simples consideração deste facto essencialmente contraditório mostra a que ponto é frouxo o nosso conceito histórico de civilização, sobretudo quando circunscrito a uma raça ou a uma época.

 

Precisamente o americanismo é Whitman, Emerson e Ford, do mesmo modo que a civilização do nosso tempo consiste na contradição aparente do fraccionismo europeu, da mística revolucionária dos russos e do tecnicismo norte-americano. Uma civilização é a unidade abstracta que resulta da estreita fusão histórica de elementos contraditórios. E a linha vertebral, dominante, duma evolução totalizada ou perfeita, não consiste na vitória de uma só tendência, mas no resultado da interacção dos factores mais opostos.

 

Os verdes e os vermelhos, os brancos e azuis de que um Ramalho, artista mas céptico, espírito crítico mas fechado na esfera de cristal da literatura, fala com soberano desprezo, podem integrar num dado momento histórico as aspirações profundas, subterrâneas, duma civilização em conflito com ela mesma. Em certos momentos da história dum povo, a tensão política e social corresponde a uma tensão moral de ordem tão grave, que só os verdes ou os vermelhos podem abrir-lhe um escape realizando uma brusca mudança de pressão. As grandes expansões civilizadoras nunca se efectuaram sem dor, e pode dizer-se que, sem os vermelhos e os verdes, raramente algum pensamento saiu da atmosfera transcendente da ideia para o terreno agitado das transformações sociais. Os políticos, os revolucionários, são os técnicos da ideologia social.

 

O que leva à falência muitos intelectuais, é a sua falta dc coragem, e de serenidade perante os acontecimentos, a sua obstinada crença na eficácia das ideias agindo como ideias, e não como instituições, - a sua pertinácia em recuar perante os fenómenos, não poucas vezes dolorosos, da fecundação e da gestação social das suas mesmas ideias. A persuasão pela lógica, pelos argumentos ou pela expressão pura e simples das ideias, não passa dum sonho, embora delicioso. Os adversários ideológicos da Democracia, se acabaram por aceitá-la após uma luta porfiada, fizeram-no apenas em obediência racional à lógica do adversário, nunca por via de convicção íntima, da sua afectividade política e social. A clareza das ideias, a força dos argumentos do adversário, podem ter-lhes forçado as portas da razão, - nunca, ou muito raramente, o substrato afectivo das ideias, que tarde ou cedo reagirá sobre estas decisivamente. Há uma grande diferença entre os pensamentos que lógica e voluntariamente exprimimos e aquilo para que tendemos espontaneamente. O que há de revelador nos indivíduos são as suas reacções espontâneas, súbitas, naturais, não as ideias de conduta a que chegaram trabalhosamente. As ideias representam muitas vezes uma reacção da lógica, da razão contra o eu. Mas se não passam de pura expressão, isto é, se não entram no domínio das instituições da aparelhagem da nossa vida, restam inteiramente ineficazes sob o ponto de vista educativo.

 

Ponhamos o caso duma sociedade organizada sobre o capitalismo (ou a propriedade particular), a religião católica, o individualismo liberal, a democracia burguesa que permite e facilita o acesso aos comandos de todos os indivíduos que se convertam à sua moral específica; admitamos que nesta sociedade, como a portuguesa, uma geração excepcional, como a de Antero, surge, pregando as reformas urgentes que hão-de ter por base a reforma do espírito. Nos partidos e fora deles, enquanto se não discutir a forma de governo, as pessoas dos governantes, o regime de propriedade, as vias de acesso ao poderio, a igreja, e mil outros elementos que formam o mosaico duma sociedade em marcha, - todos os homens de mediana consciência estarão de acordo sobre a "reforma do espírito". No fundo, muitos destes e a maioria dos outros rir-se-ão dos idealistas, dos espirituais. Pouco importa, porém. Todos procurarão conservar-se no terreno do espírito. Escrever-se-ão coisas admiráveis em nome de todas as encarnações do espírito. A própria imprensa chegará ao cúmulo de elogiar os idealistas - sobretudo em necrológios. Mas sempre, é claro, sob a condição de que todos se mantenham no terreno do espírito. Senão, ai dos idealistas, ai das amenas controvérsias, e dos amáveis louvores. Num dado momento, todos se darão as mãos para esmagar na sombra e no silêncio o idealista perigoso. Ou, porque o homem é falível, tentarão corrompê-lo com empregos, sinecuras, honrarias, ou saberão habilmente chamá-lo à cilada para o pôr em xeque, fazendo dele ministro, deputado, ou coisa assim.

 

Considere-se o caso da geração de Antero. Este, ei-lo morto ao fim de muita luta e de mortais desilusões. Oliveira Martins, extenuado, escarnecido, censurado pelos republicanos, por haver cedido a uma excessiva boa-fé, ingenuidade ou inexperiência dos homens. O Eça, endividado, com um reduzido número de leitores, longe do meio que visceralmente repudiava (e esse repúdio, deixemo-nos de eufemismos, é uma traição aos deveres do lutador), acaba no elogio à D. Amélia e na homenagem às graças duma corte onde se trabalhava pelo engrandecimento do poder real.

 

O Ramalho, depois de haver crivado de sarcasmos e risos a sociedade, a monarquia, o próprio Herculano, - acaba repudiando o novo regime, quer dizer, tomando partido pela monarquia apodrecida, com todos os seus vícios e torpezas, o clericalismo, o poder pessoal do rei, animando, afinal com o seu talento e o prestigio do seu passado a reacção integralista que, desde a couceirada a Monsanto, havia de encher de inútil e sangrenta perturbação a vida da República em Portugal. Deixemos de parte os menores dessa geração, os que nada significam na história do pensamento português. O poder do pessimismo desse tempo é tão forte, que acabará por contagiar mesmo os que, na aparência, haviam tomado um rumo diferente: que faz, por exemplo, um Junqueiro? Génio poético e verbal de rara fecundidade e potência, ao serviço da necessária demolição, quando chegam as horas da construção, perde-se nas névoas duma baça filosofia que se resolve à beira da morte em pessimismo (a convicção de que a monarquia estava à porta) e de que lembro conceitos como este que as turbas conservadoras (com O Diário de Notícias à frente) aplaudiram calorosamente: “A Escola sem Deus é o Universo morto e decapitado!" Querem mais nítido regresso? Gomes Leal morre, babando-se de crença aos pés da cruz do Catolicismo. Mas há mais. O génio trágico de Fialho (que, pelo tempo, pertence um pouco ainda àquela geração): qual foi, social e politicamente, o seu papel? Pior que o do Ramalho. A sua demolição fora amarga, epiléptica, plebeia. A sua renúncia, o seu desespero, o seu negativismo ante o novo regime, mais amargos ainda, vazios de esperança, não subindo além das mais vulgares considerações políticas, como se a voz da própria monarquia falasse de além-túmulo nos seus panfletos. O próprio Teófilo se afunda, amargo e maledicente, no meio da troça e das raivas de muitos, rodeado por um reduzido grupo de intelectuais de quilate inferior. E quem mais? quem mais? Onde fica a obra social dos homens da grande geração? Onde estão os sinais da sua passagem, se fecharmos à chave as nossas bibliotecas?

 

Que importa na verdade que o Eça tivesse aspirado em Proudhon o seu "revolucionarismo", se havia de ficar de pés estendidos para o fogo ameno, remexendo voluptuosamente em sonho as rendinhas do marquesinho de Blandford? Onde está, sim a revolução do Eça? Onde estão os resultados sociais da sua obra, se exceptuarmos uns cepticismos baratos, umas ironias fáceis, uns snobismos inspirados em Fradique, os lucros dos Lelos, a educação sexual das semi-virgens que andam por bailes promíscuos, umas dessoradas imitações de estilo, e pouco mais?

 

Considere-se a sociedade portuguesa de hoje, posterior a todos os últimos acontecimentos e diga-se onde está a diferença íntima, essencial, estrutural nos homens ou nas coisas, que tenha vindo do Eça e dos seus contemporâneos. Onde estão as diferenças que não provenham da irreverência dos caricaturistas, das campanhas políticas, do exaspero do povo, do sangue derramado, do heroísmo plebeu, da paixão, do misticismo, enfim? Os mesmos poderes sociais nos comandam. Os homens de hoje ainda se curvam às mesmas forças económicas. E, em geral, são idênticas às desse tempo as tendências da nossa cultura. Os abades corruptos prosperam, proliferam. Os milagres renovam-se e prestigiam-se, sob a sanção eclesiástica. Os Acácios reluzem. A mentira continua arvorada em regra de conduta - na ciência, no jornalismo, na política, em tudo. As conivências duvidosas permanecem. As tranquibérnias desse tempo multiplicam-se inconcebivelmente. Os Burnay, os Ulrich, os Alfredo da Silva, os Pereira da Rosa, os Elio do Rego, os monopolistas de facto e de direito refinaram. A C. P., Ali Babá fabuloso de quarenta directores, a moagem e os seus quarenta maiores... Mas para quê tentar um esboço de retrato? Para quê insistir nesta verdade elementar - toda a grande geração, na ordem social, não deixou nada, nada? (2) Que fez a pregação de todos eles contra a ignorância e o analfabetismo do povo, que são o maior instrumento do nosso atraso, a ancilia da reacção? (Que poderá produzir, na verdade, a acção isolada de meia dúzia de intelectuais honestos, num meio crasso de ignorância, avesso ao progresso das ideias e das técnicas, anquilosado pela reacção religiosa, política e social, pela fome, pela exploração capitalista, pela especulação de umas centenas de indivíduos que fazem da sua pseudocultura as ventosas duma voracidade insaciável?...) Que produziram contra o parasitismo, a rotina e o marasmo da nossa economia? Contra a nossa miserável emigração? Contra os estados de infecção permanente das nossas aglomerações urbanas, das escolas e das oficinas? Contra a aceitação passiva das ideias feitas, das fórmulas e das hierarquias tradicionais? O quê, afinal? A República mesmo, não é obra deles. Os que chegaram a vê-Ia, souberam só repudiá-la ou não tiveram a coragem de levá-la às suas legitimas consequências. A República foi obra duma ardente fé popular, duma grande rajada retórica e da podridão da monarquia insustentável. E de resto, se exceptuarmos meia dúzia de leis fundamentais e a intervenção de Portugal na guerra (que encaro unicamente como demonstração da vitalidade prodigiosa do novo regime na ordem interna e internacional, e como um desafio ao autoritarismo reaccionário), a vida da República tem sido uma longa luta, surda umas vezes, outras patente, da reacção contra a democracia.

 

Considerem-se agora os homens da geração presente, os intelectuais que, de Antero para cá, foram os únicos a assumir atitudes e responsabilidades perante os acontecimentos. Basta lembrar a situação em que se encontram. Será, então, necessário acreditar que os homens do Espírito ou serão banidos ou estrangulados?

 

A verdade é que, com raras excepções, esses homens fizeram dos seus apostolados, das suas lutas, simples exercícios espirituais - duelos, diálogos, controvérsias para raros, prolongados corps-a-corps filosóficos e culturais, - possuídos da certeza de que o reduzido número dos seus leitores constituirá necessariamente a elite da qual esperam a solução dos problemas portugueses. A multidão, o povo, se preferem, desapareceu quase que por completo dos seus escritos, - o povo que é o instrumento e deve ser, em democracia, o terreno e o fim das grandes lutas e renovações sociais. A reforma da mentalidade não pode estar na simples especulação de ideias, nos torneios isolados em que os adversários se vão rendendo ou tombando, - mas na condução harmoniosa e total das massas aos objectivos da renovação nacional. É preciso não confundir o homem do povo com o plebeu promovido a pequeno ou a grande burguês. Essa metamorfose realiza-se em geral à custa duma corrupção do que há essencialmente popular na alma dos indivíduos e das massas, e esse é o perigo maior das democracias liberais, cujos poderes, cujos comandos se recrutam precisamente nas fileiras de homens pseudopopulares e de aristocratas aderentes. O povo é, socialmente, a única massa plástica, receptiva, capaz de consagrar e vivificar os pensamentos dos intelectuais. É essa ausência da "massa" que constitui a maior fraqueza, senão a impotência ou ineficácia das tentativas dos intelectuais.

 

Leio no artigo do sr. Castelo-Branco Chaves: “A revolução é para ele [Eça] o factor dinâmico da evolução das sociedades e do progresso humano, um "facto permanente" contra o qual...", etc.

 

Teríamos então um Eça marxista, preconizando a revolução permanente, uma espécie de precursor de Trotsky? Longe disso. Para Eça a revolução consiste... na evolução. É a transformação automática, mecânica, das coisas, É o progresso social que vai de "su própio peso", sem que intervenha nele a vontade orientadora e criadora do homem. Para ele a revolução "não é o motim, a luta da força, a balbúrdia sanguinolenta”, a expansão jacobina das paixões e de misticismos sociais (3).(Que é, pois, a revolução? Simplesmente - O surge et ambula intelectualista. Consiste em produzir ensaios e artigos modelares, de estilo apimentado e com recorte elegante, em pronunciar conferências modelares que implicam risonhamente com a moral burguesa, - e em ir para casa, lido o Figaro e o vient-de-paraître, de chinelos, no agasalho confortável dum lar burguês, esperar que o manjerico da revolução cresça cá fora, dê cheiro e floresça. A revolução (como diria o querido e prudente Emílio Costa), - se a burguesia quisesse... Revolução de varinha mágica. Por imposição de mãos, ou arte de toque, ou Espírito Santo de Elite... Ou então, em esperar que o progresso da biologia ou o dos meios de transporte realizem, só por eles, a transformação social. Sabemos hoje que essas formas de progresso entram no progresso social como factores de excitação, de aguçamento dos conflitos sociais, e como bases duma transformação filosófica. A verdade é que essa nobre geração acreditou demasiado no poder mágico e automático das leis da Sociologia, da Química e da Física, como se, fora do controle e da vontade do homem (para não falar dos fenómenos que escapam à nossa intervenção) elas pudessem realizar, e só elas, a necessária renovação social.

 

Foi o que a grande geração não conseguiu fazer. Veja no que deram as tentativas reformistas de Oliveira Martins. O papel dos intelectuais, nas combinações dessa espécie, é ficarem "comidos". Nem o socialismo, em Portugal, escapou dessa miséria!

 

(Conclui)

 

 

Seara Nova

 

 

(*) José Rodrigues Miguéis (1901-1980) não era ainda por esta altura o romancista e novelista que viria a ser. Nascido em Alfama, passou toda a sua infância e juventude em Lisboa, licenciando-se em Direito em 1924. Esteve fortemente ligado à revista ‘Seara Nova’, desde a sua fundação, à Mocidade Republicana e também ao movimento Universidade Livre. Em 1929 foi estudar Ciências Pedagógicas com uma bolsa na Universidade de Bruxelas, tendo-se aí relacionado com meios revolucionários de origem russa. Este artigo - publicado em duas partes, na revista ‘Seara Nova’, n.º 220, de 18 de Setembro de 1930 e nº 222, de 2 de Outubro de 1930 - pode ser considerado a primeira manifestação de ideias marxistas em Portugal, fora da imprensa especificamente operária. Daria aso a uma amarga polémica, da qual resultaria o abandono por Miguéis dos quadros seareiros, naquilo que ele próprio qualificaria de uma “dissidência sovietófila”. Nos anos seguintes, o autor terá militado no Sector Intelectual do P.C.P., juntamente com o seu amigo Bento Caraça, com quem protagonizou uma efémera iniciativa editorial, o quinzenário ‘O Globo’. Tendo-se radicado em Nova Iorque a partir 1935, Miguéis continuou a ser simpatizante comunista, tendo mesmo a certo ponto, nos anos cinquenta, desempenhado um papel ainda mal esclarecido na quebra do isolamento internacional do P.C.P..

 

 

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NOTAS:

 

(1) O artigo chegou-me com grande atraso a Bruxelas, surpreendendo-me doente; só agora me é possível organizar as ideias que dele fiquei formando.

 

(2) Repito, ainda uma vez, que sendo a lição moral e espiritual de Antero das mais belas do nosso passado, o curso da sua vida e o seu fim nos dão que pensar quanto à atitude a assumir perante o meio. Mas não é demasiado insistir nas diferenças de ambiente social de hoje e do seu tempo.

 

(3) Aceitemos por comodidade, como exactos todos esses termos de sentido vago, elástico, que são no domínio da psicologia individual e colectiva e da filosofia, verdadeiros enigmas - paixão, força, misticismo, etc...