Há uma estética neo-realista? (*)

 

 

Mário Sacramento2

Mário Sacramento

 

 

Introdução

 

I. Proémio

 

Direi que o realismo (tenha esse nome ou outro) ocorre na literatura, como impulso consciente, quando à expressão incumbe incluir, na linguagem, específica da arte, os aspectos revolucionários que a ciência haja descortinado no real. Está hoje provado que a sinalética linguística, do mesmo passo que data o aparecimento do homem no mundo, só pode cingir este porque tem equivalentes prévios na estrutura biológica e inorgânica. Mimese ou homologia do que a precede, o que exprime polariza-se ora no sujeito ora no objecto que a delimitam, sendo portanto antropormorfizadora ou desantropomorfizadora consoante o pêndulo oscile num ou noutro sentido. Cabendo à arte o primeiro desses dois impulsos, a expressão que lhe toca é a dum homem que a realidade moldou, mas que por isso mesmo inclui todo o conhecimento a que, por si ou por outros, chegou.

 

Compreende-se assim que, ao surgirem saltos na apreensão do real como objecto científico, a literatura entre em crise, uma vez que isso envolve um desfasamento do homem em geral. Dizê-lo não é depreciá-la, todavia, pois bem sabemos que a crise (vide Quixote, por exemplo) pode ser um momento sem par na sondagem do que nos é mais recôndito ou perene.

 

Está dito e redito que onde a arte se remete à expressão dum impasse, pingueponga em espelhos paralelos o ar rarefeito duma agonia. Em contrapartida, onde o realismo parte do conhecimento objectivo para a expressão directa do factual, é linguagem híbrida. O neo-realismo português tem muito disso, expressão circunstancial que é. Ao procurar-lhe, nas páginas que vão ler-se, uma matriz estética, abstraí desse caduco e procurei delimitar o que nele reascende do impacte científico à especificidade literária.

 

Processo em marcha ainda, deixo o seu encadeamento para o estudo histórico que um dia terá de fazer-se. Concebido como depoimento pessoal para um livro de colaboração colectiva que não chegou a sair, o presente ensaio é o que é e nada mais. Aos que fiquem decepcionados só há que dizer: tirem dos seus tinteiros o que aqui não coube.

 

II. Que é a arte?

 

A pergunta é absurda, pois pressupõe que um conceito possa abranger, delimitando-a e definindo-a, uma linguagem ou expressão cuja especificidade se caracteriza pela irredutibilidade conceitual. Se fosse possível dizer-se o que é a arte, tê-la-íamos suprimido.

 

No contexto que aqui nos ocupa, visamos sentidos ou direcções, apenas, que o pensamento pode detectar na arte. E um deles diz-nos que a arte é uma dialéctica (em termos de sensibilidade) entre um estado de necessidade e uma aspiração de liberdade. Face à natureza e à sociedade, o homem confronta o que o detém com o que o impele. Pelo que logo na origem apresenta uma raiz bífida: a que fomenta os ritmos de trabalho e a que tacteia o báratro. A mentalidade pré-lógica do homem primitivo converge em ritmo o sincretismo das forças que já domina; e mitifica em cosmogonias as aspirações que acalenta sobre as restantes. Polarizando em realismo as primeiras, deforma em magia a insubmissão das outras.

 

Mas, a partir do momento em que a divisão social do trabalho diferencia em classes a comuna primitiva, a luta pela natureza entrelaça-se com a luta pela sociedade. Quer o indivíduo (o artista) quer o grupo social a que pertença integram um conspecto de êxitos e frustrações que só a arte abrange. Os progressos da ciência inventariam os êxitos; as religiões e as metafísicas iludem as frustrações: e só a arte imediatiza em intuição sensível esse conjunto.

 

Como o imediatiza, porém? Através duma elaboração, prévia e interna, que, analisada, mostra que o domínio da natureza e da sociedade definem àquela aspiração de liberdade um simbolismo perpétuo. E, dado que o processo do real não é arbitrário e que o progresso (social e científico) é irreversível, eis que a «solução» estética inflecte, consoante os interesses em causa, ora no sentido da afirmação progressiva do real ora no da sua negação. No primeiro caso, a liberdade assume a forma que lhe é consentida pelo aprofundamento do conteúdo definido pela necessidade; no segundo, formaliza-se em necessidade iludida ou mitigada.

 

Este formalismo pode manifestar-se de dois modos: minimizando o conteúdo em empirismo, ou seja, imediatizando desde logo em facilidade perceptiva o que na verdadeira obra de arte só resulta por uma elaboração prosseguida - e só então imediatizada; ou desfigurando em ensaísmo formal, em «linguajar», o recusado aprofundamento dos temas. No primeiro caso, o formalismo (naturalista ou académico) glosa uma forma de consciência complacente com os quadros naturais e sociais herdados duma experiência que o precedeu; no segundo, amaneira em preciosismo tecnicista (mesmo se renovador) o papel que coube ao artista na divisão social do trabalho.

 

Quer numa quer noutra eventualidade, a função criadora da arte fica reduzida a um mínimo vital de hibernação estética. Parasitando uma experiência já socialmente elaborada, reduz-se a proclamar uma «liberdade» sem preço: a que M. Jourdain incensaria ao delírio se fosse informado sobre ela; e a que dizem não lhe faltar os que se admiram dos sacrifícios que outros lhe votam.

 

III. Indicações gerais de uma estética materialista

 

Segundo a ciência, a linguagem é um sistema de sinais que marca o aparecimento do homem no mundo, mas tem equivalentes prévios, como já se indicou, nos nexos que estruturam a vida biológica e a matéria em geral. Numa mesa-redonda há meses realizada entre o linguista Roman Jakobson, o biólogo François Jacob, o geneticista Philippe L'Héritier e o antropólogo Lévi-Strauss, o diálogo foi centrado na analogia existente entre as conexões gráficas de uma escrita e as que os quatro elementos químicos constitutivos da fibra polimérica dos cromossomas realizam entre si para transmitirem a hereditariedade. E acentuou que a significação daí resultante, em ambos os casos, é sempre diferente da que o somatório dos elementos integrados poderia prever. Assim como há uma unidade na célula que os seus constituintes de per si ou em conjunto não possuem, assim a linguagem é expressividade que os seus elementos não encerram, sendo necessário passar deles a formas fulcradas no grupo social ou na civilização para chegarmos a níveis cada vez mais densos e específicos que permitam estudá-la como objecto científico.

 

A organização da matéria, do inorgânico à linguagem, encadeia estruturas que a um tempo se prolongam, reflectem e diferenciam, permitindo - por um lado - uma análise a cada passo mais precisa e - por outro - uma síntese inesgotável em suas possibilidades. Ou, citando Jakobson: «É hoje seguro que não há urna cortina de ferro entre a cultura e a natureza. Existe um factor cultural entre os animais, como existe um factor natural entre os homens. E a língua é o fenómeno que cavalga a natureza biológica e a cultura. O que há de inato nos fenómenos da linguagem é, primeiro, a capacidade de aprender a língua, uma vez que só os seres humanos podem fazê-lo. E, depois, o ser o inato uma provável hereditariedade molecular, cujo princípio arquitectónico se encontra em todas as línguas. Cada língua tem uma dada hierarquia de unidades e de valores. Não sendo ousado supor que esta estrutura, esta similaridade entre as moléculas e a língua é devida ao facto de a língua ter sido modelada, em sua arquitectura, pelos princípios da genética molecular, uma vez que é um fenómeno biológico, também, a estrutura da língua.»

 

Combinação de elementos, a língua conduz à formação de símbolos, cuja informação ou expressividade é cada vez mais complexa ou inesgotável. Daí que Lévi-Strauss afirme que a palavra significação é a mais indefinível de quantas usamos e lhe aponte um sentido de homologia entre códigos diversos. Neste contexto, a perenidade artística é apenas um grau de unidade essencial de tudo o que existe. Champollion descobriu a cifra dos hieróglifos mediante a homologia com outra sinalética liguística. E a paleontologia reconstitui um animal pré-histórico derivando-lhe uma unidade biológica das ossadas que deixou. Esse o sentido da designação de fim a posteriori que os antropólogos estão usando. A anatomia do homem é chave para a do macaco - já dizia, há um século, Marx. E acentuava deste modo o sentido teleológico do trabalho humano: «Uma aranha realiza operações que se assemelham às do tecelão, e uma abelha pode lançar o ridículo, ao construir os seus favos, sobre muitos arquitectos. Mas o que distingue o pior arquitecto da melhor abelha é que o primeiro construiu o seu objecto na cabeça antes de o fazer no real. Ao cabo do trabalho há um resultado que já preexistia na representação do trabalhador, ou seja: idealmente. O trabalhador não realiza apenas uma transformação formal da natureza: faz intervir os seus fins na natureza, fins que ele conhece e determinam o seu tipo e o seu modo de agir, qual uma lei a que submeta a sua vontade». O fim a posteriori dos antropólogos de hoje é, pois, metodologia apenas do que o economista de Oitocentos implicara pela teleologia do trabalho. E, se é certo que o estudo dos grandes conjuntos humanos impõe a existência de estruturas que ultrapassam o indivíduo, não é menos verdade que tais superstruturas são um produto do trabalho colectivo e, como tais, orientadas por uma teleologia que outra teleologia, devidamente fundada, pode transformar.

 

Ora, se a arte, como linguagem que é, tem uma unidade que lhe é própria, a sua especificidade pressupõe não só os níveis prévios que sumariámos, mas implica uma teleologia de significações em que caiba o mais lato do homem. E propende a identificar a sua unidade com a do mundo, simbolizando-o. Alienando-se em tal símbolo, na medida em que se projecta nele, o artista idealiza do real o que o objecto artístico como unidade-em-si lhe impõe. O que é dizer: a especificidade do trabalho artístico conduz não à objectivação dum conhecimento apenas, mas à criação dum modelo auto-suficiente do real.

 

Escreve Lukács, na Estética: «Alienação significa caminho do sujeito ao mundo objectivo, a ponto de se perder nele por vezes; a retroactividade ou reabsorção de tal alienação representa, ao contrário, a penetração completa da objectividade assim nascida na qualidade singular do sujeito. [...] A tendência à desaparição da subjectividade na sua alienação, na sua entrega à objectividade entitativa-em-si dos objectos, descobre e dá sentido ao que há de importante para a humanidade (em cada caso) no mundo dos objectos. E como o fundamento disso é o em-si dos objectos, independente da consciência, é imprescindível para a recepção estética do mundo externo a recepção quanto possível total e exacta do mesmo. Manifesta-se nisto que todo o reflexo do mundo externo tem - falando em termos gerais - o mesmo objecto mas que o reflexo que serve ao trabalho, à prática, tem de concentrar-se, sob pena de fracasso, sobre o em-si, com todo o despojamento possível da subjectividade. [A esta desantropomorfização], a fecunda contradição do reflexo estético [opõe], por um lado, o esforço pela captação total do objecto e, sobretudo pela totalidade dos objectos, sempre em conexão inseparável, ainda que não explícita e directamente reconhecida, com a subjectividade humana de um determinado sujeito e, por outro, a fixação de um sentido ao mundo dos objectos, não só em sua essência, como em sua forma de manifestação imediata: a dialéctica da aparência e da essência impõe-se, em seu sentido geral e em sua imediatidade, tal-qual se apresenta ao homem em vida.»

 

Desfibrar todos os aspectos que esta citação envolve seria percorrer um longo e acidentado caminho. Fixemo-nos apenas em que o reflexo activo do real (ou reflexão) pode assumir, para lá do quotidiano, duas formas distintas - a científica e a estética: desantropomorfizadora, a primeira; antropomorfizadora, a segunda. Mas não só antropomorfizadora: una em si mesma. A dialéctica aparência-essência conexa-se, pois, a de alienação-objectivação e a de real-irreal. Sendo por esta última que propendo a divergir de Lukács, se é que o facto de o seu trabalho estar ainda incompleto não me leva a tirar falsas conclusões. Em boa verdade, a sua Estética afigura-se-me uma estética do realismo apenas, o que não envolve toda a arte, como é óbvio para quem não identifique os dois termos. De qualquer modo, é fundamental, quanto a mim, o que passo a transcrever: «A proposição não há objecto sem sujeito, que na teoria do conhecimento tem uma significação idealista, é fundamental para a relação sujeito- -objecto em estética. Como é natural, o objecto estético também é em si algo que existe independentemente do sujeito. Mas, entendido desse modo, só existe materialmente, não esteticamente. Se se põe a sua positividade estética, põe-se ao mesmo tempo a de um sujeito estético, pois a essência estética do objecto consiste em evocar certas vivências do sujeito- -receptor por meio da mimese, que é uma forma específica de reflexo da realidade objectiva. Se se prescinde disso, a formação estética deixa de existir como tal: será um bloco de pedra, um pedaço de tela, um objecto como qualquer outro, que sem dúvida existirá como objecto independente de qualquer consciência, de qualquer subjectividade. A proposição não há objecto sem sujeito refere-se pois, exclusivamente, à natureza estética de tais formações.» Confronte-se com a Tabacaria, de Fernando Pessoa:

 

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

 

Esta conceituação de objecto estético implica, todavia, não o reflexo estético do objecto natural apenas, que sim o de objecto como intercâmbio da sociedade com a natureza. Ou citando, de novo, Lukács: «O que aqui se faz objecto não é o em-si da natureza [...], mas uma natureza em interacção ininterrupta como um sujeito activo e não individual apenas: um sujeito colectivo - a sociedade de cada caso e, mediante ela, o género humano.» E, reconsiderando Pessoa:

 

...O Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma-mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas...

 

E não trago Fernando Pessoa aqui por acaso, pois se é certo que a correlação materialista-idealista dos seus heterónimos Caeiro-Campos confirma Lukács, a problemática estética, em seu sentido mais lato, envolve esta questão: a interdependência sujeito-objecto só é dimensão do Ser na rnedida em que o homem faz dele um para-si; mas só se realiza esteticamente na medida em que repõe num em-si a teleologia que o acto criador implica. O que envolve tudo o que a imaginação e até o delírio possam conceber como fímbria do ignoto ou «espaço do invisível» - em metáfora de Virgílio Ferreira. E faz do irreal um contrapólio inelutável.

 

Uma estética materialista compreende em nossos dias todos estes níveis, desde o bas-fond em que a genética mergulha ao crepúsculo em que a consciência perde de vista os contornos do racional. Alicerçada no que homologa a linguagem à estrutura da matéria, a sua perenidade é a de uma sinalética cujas significações podem ser retomadas em circunstâncias históricas diversas das que lhe deram origem. Só assim «o finito é metáfora do infinito», como disse Fink.

 

Mas tais significações são «operadoras de sentido», para citar agora Houdebine. Ou seja, envolvem uma ideologia, no contexto sociedade-natureza que já vimos. O que é apenas um outro nível na complexa trama de sentidos que envolve e integra, mas nível em que a alienação estética (ou alienação positiva) se confronta, quer à partida quer à chegada, com a alienação histórica (ou alienação negativa) dos criador-receptor. E é isso que situa historicamente a obra de arte, por um lado, e a sua interpretação, por outro.

 

IV. Há uma estética neo-realista?

 

Perguntá-lo ou é pôr em dúvida que haja uma literatura neo-realista (e digo literatura, e não arte, porque é esse, se formos rigorosos, o caso português), ou é pressupor que o neo-realismo nos obriga a conceber a estética em termos particulares. A resposta correcta é evidentemente a última, pois que há urna literatura neo-realista é inegável. O leitor mais atento já se apercebeu, claro, do que pretendo insinuar: ao demolir as bases da estética clássica, o neo-realismo sacrificou, numa primeira fase, a literatura à ciência, pressionado pela mutação que ocorrera nesta, mas para a repor em novas bases. Os que recusam a legitimidade com que se tem distinguido um primeiro dum segundo neo-realismo só têm que ponderar o caso, adiante aflorado, do Hóspede de Job, de José Cardoso Pires, obra em que o primeiro neo-realismo é retomado por um escritor do segundo, em dimensão já plena de especificidade literária.

 

A breve sondagem que vai fazer-se não é uma demonstração de tese: é urna reflexão apenas, cujas conclusões, se é que as há, deixo ao discrime de cada um.

 

 

Há uma Estética Neo-realista?

 

 

A história do mundo não é senão uma série de reacções e contra-reacções. A da literatura é o mesmo. O que unicamente fica imutável são os eternos princípios da verdade, do gosto e da razão em tudo.

GARRETT

 

1. Em 1940 e tal, dizia-me um amigo: A querela do neo-realismo vai dissolver-se no Parlamento da 3.ª República...

 

Havia nesta frase dois erros: nem a 3.ª República estava para breve, uma vez que o País se tornara um enclave, após a vitória dos falangistas na Guerra Civil Espanhola; nem o neo-realismo era um movimento político de mero disfarce literário. Mas havia nela uma meia-verdade também: o neo-realismo era a única expressão possível de ideários cuja realização pressupunha uma transformação social e política, e nela se empenhavam. E digo ideários (no plural), porque havia uma alternativa, no plano das hipóteses, quanto à saída plausível da conjuntura existente: instauração, no imediato, de uma democracia de tipo popular e socialista, ou acesso a ela através de uma fase prévia de democracia liberal e burguesa.

 

Cumpre assim distinguir no neo-realismo a parte que pertence à história das ideias da parte que pertence à história da literatura. Por outras palavras: a expressão ideológica da expressão estética. (E digo ideológica, e não teórica, porque a teoria está para a ideologia - na minha opinião - como a ciência está para a técnica, ao contrário do que pensa Althusser. Ou seja: a teoria abrange um espaço mais lato, que a ideologia adapta ao real, do que resulta incidir a praxis - por ela conduzida - na teoria, questionando-a e levando-a a assumir-se como ideologia renovada ou reajustada.)

 

O neo-realismo foi colhido ou tolhido, com efeito, por urna adversidade a que não conseguiu eximir-se: a de a literatura ser a única expressão viável de aspectos da vida social que, noutras circunstâncias, teriam cabido ao jornalismo, à política e ao livro doutrinário. O próprio ensaio (e recordo a frase de Sartre: é muito difícil expulsar o ensaio da literatura...) se mostrou impossível, pois as limitações de tema, terminologia e forma a que teve de sujeitar-se tornaram-no um nado-morto, excepção feita dos poucos autores que o praticaram em livro. A poesia, o conto, a novela e o romance, mas sobretudo os dois últimos, foram a expressão possível, mas mesmo assim mitigada, de uma linha conjuntural que, em condições normais, deveria reflectir-se na literatura como vivência ideo-sensível apenas. Não tendo podido alijar esse lastro, o neo-realismo não só teve dificuldade em atingir uma expressão estética, como sofreu deturpações, desvios e crises inevitáveis. Aliás, em tempo algum houve literatura sem subliteratura em que se apoie. E o que há de parti pris ideológico na recusa pseudo-estética de certas obras neo-realistas torna-se bem nítido se considerarmos o caso da Seara de Vento, de Manuel da Fonseca, cuja condenação equivaleu a dizer-se que não havia razões para uma literatura 'de Campo de Concentração, entre nós.

 

2. O neo-realismo português foi e é um movimento ideológico e estético que exprimiu e exprime a incidência cultural dum processo histórico económico-sociopolítico cujas raízes mergulham no século XIX, mas têm, no actual, um marco indiciário: o ano de 1920. Não posso esmiuçar esse aspecto, nem alongar-me sobre as mediações que o conduzem às vésperas do ano de 40. Basta dizer que a última data envolve uma agudização a que corresponde, no plano internacional, a eclosão da Guerra Civil Espanhola e da 2.ª Grande Guerra Interimperialista. À chamada geração de 40 coube assim (e apenas) o privilégio histórico de dar sentido a um movimento que a antecedia e ultrapassava. Que a antecedia, pois já em 1871 Eça de Queirós se exprimia deste modo, ao definir as bases teóricas do Realismo como Nova Expressão de Arte, na conferência que fez no Casino: «O espírito do tempo é a revolução [...] que anda por baixo de tudo, convulsionando e abalando sem que nenhuma coisa nem ninguém se possa eximir a ela. As nossas Consciências estão sendo formadas por ela. Ela é a alma do século. E, entretanto, os ideais da arte são ainda os velhos ideais do passado! A revolução está em tudo menos na arte: a arte representa e sustenta a reacção.» E que a ultrapassava, porque as transformações ocorrentes no mundo, que a praxis nacional não pôde acompanhar, colocaram-na - bem como às procedentes - perante contextos teórico-ideológicos de experiência alheia.

 

Não obstante, esse reajustamento ou renovo tem-se operado sempre, mau grado as deserções e as perdas. E é caso para perguntar: porquê? Resposta simples: porque o neo-realismo é um... realismo.

 

3. Que é, então, realismo? O sentido predominante da objectividade - é talvez a primeira definição que ocorre. Ou a sua captação científica, como na Introdução apontámos. É de literatura, todavia, que tratamos, o que impõe que se repita a pergunta: que é realismo literário?

 

Se o pólo estético é necessariamente subjectivo, como na mesma Introdução também vimos, o realismo literário envolve uma dialéctica em que o científico e o estético se conjugam em prol do último. Há assim uma tensão de real-irreal, como em qualquer arte, que o realismo decide no sentido que o termo indica. É à rebours, portanto, que usamos designações tais como as de realismo-fantástico, realismo-onírico, realismo-subjectivo, realismo-integral, pois qualquer delas faz curto-circuito (expressivo embora) que congela a intenção. Numa palavra: o realismo autêntico pressupõe uma tomada de consciência materialista e dialéctica que reputa o idealismo filosófico e artístico um desenvolvimento unilateral, mas nem por isso necessariamente improfícuo, pois sempre há um contrapólo de irreal idealizado em qualquer realismo. Só constrói quem se opõe ao que o nega. Mas tal negar só ultrapassa porque inclui.

 

4. Neste contexto, todas as aquisições culturais do passado-presente são nexos de reflexão neo-realista. A sua validade decide-se, em termos de teoria do conhecimento, pela praxis. Reconhecido, porém, que o reflexo científico e o reflexo estético são distintos, apesar de terem o mesmo objecto, toda a dificuldade está em sabermos como funciona a praxis relativamente ao segundo. Dizer-se, como já se tem dito, que a praxis é diferente, num e noutro caso, parece absurdo, pois envolve que haja mais do que um critério de verdade. Quer-me parecer que o problema é outro: uma literatura pode situar-se, na aparência, contra a teoria do conhecimento e, não obstante, confirmá-la na essência. Se houvesse uma praxis literária, os dois reflexos seriam afinal coincidentes, dada a impossibilidade de conceber duas verdades. Não, o que sucede é que a literatura dá-nos um conhecimento em bruto, digamos assim, uma abordagem sincrética do real que a subjectividade elabora e orienta no sentido dum conhecimento mais particular e objectivo. Se eu disser que Kafka, na Metamorfose, infringe as leis da história natural (invertendo o sentido da evolução biológica) estou a apegar-me a uma interpretação factual que se mostra inapta para situar, no plano do estético, o seu realismo fantástico. Porque a verdade é que o fantástico de tal involução me permite cingir, como sensível, tudo o que há de animal e de convencionalmente humano em mim, pondo-me frente a frente com a fragilidade dos laços que me prendem à vida, à família e à sociedade. É neste plano de revelação totalizadora do homem e do mundo que a arte tem de ser situada para que desse imediato se elabore toda uma gama de significações que irão convergir nas do conhecimento tout court.

 

De todas as palavras que têm sido propostas para apreender o processo artístico - recriação, reflexão, revelação -, a última é, sem dúvida, a mais aberta, por ser a que ultrapassa o conhecimento já codificado, uma vez que recriar ou reflectir não abrangem o ignoto e o devir. Não é, portanto, o verismo naturalista o sentido que é intrínseco a uma estética neo-realista, que sim o de uma revelação dinamizadora da subjectividade que apreende o real. Ou como diz Héctor Agosti (com quem não estou sempre de acordo, aliás): «O mundo dos objectos desenvolve-se mediante relações sociais que o artista sofre como objecto também, mas que procura modificar como sujeito que é.» Ora é este modificar que pode incidir no sentido do premonitório e lúcido ou no do cego e alienado, pelos quais se distingue o perene do caduco, em arte. Há, assim, uma única praxis, para o científico e o estético, mas que procede tendo em conta as diferentes linguagens que são.

 

5. Observemos de raspão, para maior clareza, em que consiste a singularidade, a universalidade e a actualidade de uma obra clássica, como o Otelo, por exemplo.

 

Há dois problemas capitais no Otelo, do ponto de vista da sua actualidade. E digo actualidade, de preferência a perenidade, porque nenhuma obra sobrevive só por si, mas por um fio de problemática humana que os grandes artistas sabem ver à escala dos séculos. É, o primeiro deles, de natureza estética; o outro, de feição científica.

 

Vejamos quais são. Otelo é a tragédia do ciúme. Criando-o, Shakespeare ultrapassou tudo o que o engenho humano, antes e depois dele, concebeu sobre o tema. Por outras palavras: legou-nos um símbolo, um tipo consumado dos extremos a que pode ser conduzido o barro humano sob o império do monstro dos olhos verdes. Há assim no Otelo uma gama ideo-sensível tão vasta que nela cabe a universalidade do homem. Qualquer que seja a latitude a que vivamos, a condição social, a «raça», o nível de vida ou de cultura, sempre o Otelo convém e condiz aos pélagos do proteiforme ciúme humano. E proteiforme, sublinho, porque o Otelo não é só o ciúme-amor (que inclui Rodrigo e Branca, no tríptico centrado pelo Mouro de Veneza), mas também o ciúme-domínio, o ciúme-ambição, o ciúme-despeito, o ciúme-traição, que lago representa. E, todavia, se chineses, mongóis, judeus e saxões por igual se espelham em Otelo, o herói do dramaturgo inglês é - um negro! Estranha singularidade! Tão estranha, na verdade, que, sem ela, jamais Otelo atingiria o grau supremo da sua própria universalidade. Não bastou, para isso, que Shakespeare lhe houvesse procurado tantos outros traços peculiares: a meia-idade, o brio militar, a situação de estrangeiro, o contrato mercenário, etc.. Foi preciso que o binómio amoroso Otelo-Desdémona opusesse a pele mais alva do que a neve, mais polida do que o alabastro dum túmulo, da mulher que corava ao som da sua própria voz, ao peito negro como a fuligem do velho carneiro negro. Eis assim que o problema racial, em todo o acre esplendor da luta secular travada entre os continentes euro-africanos, vem nimbar, em apogeu, uma singularidade já enraizada no mais concreto da natureza humana, mediante as condições específicas da ordem social, biológica e moral. E a mutação do estético pela qual Otelo já fora dito pelo Doge mais belo do que negro, universaliza na singularidade do amor de Desdémona o ciúme patético, o ciúme a um tempo belo e horrível do assassino honrado.

 

Mas universaliza - como? E chegamos ao segundo problema. Universaliza induzindo, necessariamente, isto é, passando do particular ao geral, ou seja ainda, gerando um nexo de circunstâncias tão válidas para o Mouro de Veneza como para outro qualquer homem. Contudo, a indução tem isto de novo em Shakespeare: é filosoficamente consciente. Contemporâneo de Galileu e de Bacon e compatriota do último (que foi considerado o pai da indução, embora tivesse sido apenas o seu sistematizador moderno), Shakespeare põe na boca de lago esta frase, dirigida a Otelo a propósito da pretensa infidelidade de Desdémona: se a indução e as fortes presunções que conduzem directamente à verdade nos podem dar a certeza, essas podeis obtê-las. E quase diríamos que é satírico, não obstante, o episódio em que Otelo tenta pôr a verdade à prova, por sugestão de lago, espreitando o diálogo entre este e Cássio, que só pode acompanhar através dos gestos, mas que o decide a acreditar na infidelidade da esposa. O experimentalismo do «vi claramente visto» renascentista, falseado por uma indução de cenário, através da qual lago acumula pequenos factos que ele próprio forjara - o lenço, a intervenção de Desdémona em favor da reintegração de Cássio, etc. -, sucumbe às mãos dum dilema passional que dilacera Otelo: Por Deus! Creio que a minha mulher é virtuosa e creio que o não é! E porquê? Porque era afinal da dedução escolástica que lago partia. Diz ele a Otelo, referindo-se a Desdémona: Para vos falar a verdade, recusar tantos casamentos com noivos do seu país, da sua cor, da sua qualidade, condições para as quais a gente vê sempre a natureza tender... Ah! Isto faz pressentir uma alma corrupta, uma desarmonia odiosa de inclinações e de pensamentos desregrados... Eis assim a natureza confundida com o preconceito; a dedução logicista, baseada em premissas convencionais, desmentida pela realidade do amor da casta Desdémona!

 

É esta a luminosa actualidade do Otelo, que desmascara o sofisma racial numa hora da história em que os homens caminham para a definitiva integração das «raças» numa só humanidade.

 

Como se está vendo, Shakespeare inclui-se na filosofia do seu tempo, mas problematizando-a e pondo em confronto a falsa com a verdadeira praxis, o que conduz esta a um plano tão alto que nele coube uma intuição, que os séculos futuros. iriam recriar e reexperimentar incessantemente.

 

6. Mas desçamos das alturas do génio e passemos os olhos por um trecho neo-realista que inclui tudo isto, muito claro e seguro:

 

«No largo de terra batida passeiam dois cavaleiros armados e perguntam com o olhar se é isto Cimadas - este terreiro, este poço.

 

Nem uma árvore. Tudo apagado, tudo branco; alto silêncio do meio-dia. Os cavaleiros, que trazem farda de cotim e carabina na sela, empinam as montadas ao sol. Fazem-nas rodar, movem-se como numa arena deserta. Sabem muito bem que há gente na taberna e a cada porta do largo uma mulher muda a espiá-los. Mas não parecem almas vivas, mulheres; por consequência os enviados do sargento Leandro, ao passarem os olhos em redor, pelas paredes, pelas casas, também não se detêm nos vultos delas. São sinais apenas, simples testemunhas.

 

Os guardas sempre que querem dar de beber aos cavalos acercam-se do poço. Soltam-lhes o freio para os deixar à vontade, afagam-nos. Podem até sorrir-lhes, assobiar-lhes.

 

«Empestam-nos a água» - segredam os homens da taberna.

 

Estão diante dum baralho de cartas, mas todos de costas para o terreiro. Não necessitam de se voltar para saber o que se passa lá fora, pela distância donde vêm os sons, pela espécie de ruídos que fazem os cascos dos animais, na terra dura ou no empedrado, adivinham o ponto exacto onde se encontram os cavaleiros e quais as razões que os levaram lá.

 

Tudo vem até lá com uma clareza terrível. Lêem-se os sons, decifram-se os passos como num livro aberto. Agora sentem rolar o cascalho, patadas nervosas; os guardas sobem com certeza a ladeira da casa dos Sotas e já se sabe que vão procurar avistar desse alto a patrulha que há-de vir pela estrada da vila para os render. Agora admitamos que param no largo junto do poço, que se ouve um corpo saltando para o chão: alguém se apeou. Irá dar água à montada ou passear a pé para descansar as pernas? «Escutem» - recomenda uma voz dentro de cada jogador da taberna.

 

E então, na manhã parada, começa a gemer uma roldana, lenta, muito lenta, num choro abandonado. Daí a nada há-de sentir-se o balde a espadanar no fundo do poço e há-de ouvir-se um guarda, a voz dele e as palmadas amigas que dá no pescoço do cavalo, incitando-o a beber.

 

«Eh-oh. Eh-la-lala-laa...»

 

Nos bancos da taberna, os camponeses soltam longos suspiros:

 

«Muita água gastam esses malditos.»

 

«Fazem de propósito. Sujam-nos o poço e, não contentes com isso, querem secá-lo.»

 

«Mandaram-nos, tio Aníbal. Eles que assim fazem é porque receberam ordens.»

 

«Que dizes tu? Pois haverá alguma ordem que mande estragar a água do semelhante? São eles, fica tu sabendo. Eles é que não têm dez réis de vergonha para se prestarem a uma coisas destas.»

 

«Prestam-se, tio Aníbal, ao que muito bem lhes mandarem.»

 

«Não digas asneiras.»

 

«Não digo? Tivesse você feito a tropa e já sabia o que é uma ordem para o militar. Ai do que se fizer valente, fique sabendo. Ai dele, tio Aníbal.»

 

«Em todo o caso - protesta o velho que ali tratam por Aníbal. - Em todo o caso... »

 

Os jogadores que estão com ele continuam de cartas na mão, empenhados em tudo menos no jogo. Preocupam-se com os cavaleiros de Leandro, com a água que é de todos, e um dos presentes refere-se a Floripes, prisioneiro na vila.

 

«Estará ainda no posto? —pergunta. - Estará na cadeia? Em Beja? Em Lisboa?»

 

«No cortiçal começaram pelo professor e pelos moços de fora. Aqui começam pelas mulheres. Pouca vergonha. Levam-nos as mulheres, sujam-nos a água, guardam-nos a casa... Qualquer dia nem licença nos dão para abaixar as calças atrás dum balceiro.»

 

«Espere - diz um dos jogadores. - Agora prenderam os cavalos ao eixo da roldana.»

 

Os outros não se voltam. Continuam, por cima das cartas, atentos ao relato do companheiro que está de vigia ao largo.

 

«Traçados. Com tanto sítio para os amarrar e foram escolher a roldana. Isso, prendam-nos mais curtos, almas do diabo. Mais curtos, vá.»

 

«Amarraram-nos ao eixo ou à manivela?»

 

«Ao eixo. E agora estão a tirar os selins.»

 

«Não me digas que vão lavar os animais em cima da nossa própria água.»

 

«Admire-se. Por enquanto estão a limpá-los do suor.»

 

«A limpá-los com quê?»

 

«Com palha. Queira Deus que os bichos não se espantem.»

 

«Não te apoquentes. Se se espantarem tanto melhor.»

 

«Pois sim, mas levam a roldana atrás, tio Aníbal. Há muito que eu digo que devíamos ter posto ali outro eixo. E outro suporte, pois então. Mais Inverno, menos Inverno, cai tudo para um monte.»

 

«Em meu entender, o melhor seria esperar pela limpeza do poço. Desmonta-se a roldana, põe-se outro balde... »

 

«Para quê outro balde? Com dois remendos já este fica como novo.»

 

Diante do baralho, mas sem mexerem uma carta, os camponeses conferenciam no tom dos conspiradores em segredo. Não falam dos guardas porque já venceram a realidade que eles são. Discutem, para longe dessas presenças e dos seus cavalos, o futuro de Cimadas - isto é, um balde, um largo com vida, aquilo que tem de permanecer.

 

«O balde - diz um - está condenado. Depois de ter servido às bestas não podemos aproveitar-nos dele.»

 

«Lava-se - diz outro. - Bem lavado e com dois remendos fica bom.»

 

E o jogador que espreita o terreiro:

 

«Eu não disse? A roldana começa a dar de si.»

 

Aníbal atira uma punhada na mesa:

 

«Vou avisá-los. Se ninguém diz nada a esses algozes, acabam-nos com tudo.»

 

Mas os outros deitaram-lhe a mão a tempo. Antes que o velho saísse à porta da rua, cobrem-lhe a passagem e procuram convencê-lo com bons modos.

 

«Tio Aníbal... Vamos, tio Aníbal...»

 

Então do meio do grupo alguém levanta a voz, apontando para os guardas:

 

«Que é aquilo?»

 

Ficam todos de boca aberta, voltados para o largo. Sentados no muro do poço, os cavaleiros tiravam de uma caixa de couro pequenos pedaços de metal que brilhavam ao sol como moedas de prata.

 

«Balas - diz o taberneiro, lentamente. - Estão a contá-las que é para darem uma relação ao comandante.»

 

(José Cardoso Pires, O Hóspede de Job.)

 

Na arena deserta dum antagonismo social cujo conflito se adia, há para cada uma das partes um futuro concreto, um ideal singularizado e nítido: a limpeza do poço, o conserto da roldana, a rendição da patrulha, o inventário das balas. Dois grupos de homens do mesmo estrato social que a estrutura económica opôs e situa em compartimentos estanques: dos mercenários alienados da realidade, para quem o terreiro, o poço, as casas, as mulheres, os homens da taberna são sinais apenas; o dos explorados e contidos, também alienados (mas da acção) que, de cartas na mão, estão não obstante empenhados em tudo menos no jogo, e que por isso já confabulam em segredo, como quem quer realizar o passo que lhes falta dar para atingirem, através do que já venceram, o que lhes falta ainda dominar. Quer uns quer outros só vêem uma parte do real. E estão de costas voltadas não só de uns para os outros, mas de uma para outra dessas partes. E a frescura intuitida deste trecho, a sua beleza literária, residem, justamente, nas sugestões auditivas, perceptivamente recriadas, que os movimentos dos guardas e dos cavalos despertam nos camponeses da taberna.

 

7. E por aqui chegamos à dialéctica da personagem em ficção literária, cujos pólos são a «Madame Bovary - c'est moi», de Flaubert - ou seja, a projecção e desdobramento do eu noutrem e a absorção do outrem no eu, a adesão deste àquele que Aquilino assinalou deste modo: «As personagens a que procurei dar vida não são desdobramentos de mim mesmo.» (Retenha-se que Aquilino acrescentava: «Mas a minha obra sou eu próprio».) Ora, como já foi dito, as circunstâncias históricas em que surgiu o neo-realismo português obrigaram-no a vazar na ficção literária não só os testemunhos de natureza estética, como também os depoimentos ideológicos e morais e os inquéritos sociais. Mas não só as circunstâncias motivaram isso. Com o neo-realismo abria-se o aprendizado dum novo tipo de escritor e a criação duma nova consciência de homem. E, como nada disso se improvisa, o neo-realismo, consciente das dificuldades que se lhe opunham, não teve dúvidas em começar a sua ascensão de gatinhas. Por isso se lê na portada de Gaibéus: «Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem.» e Redol acrescenta, no belo prefácio autocrítico da 6.ª edição: «Propus-me com Gaibéus criar um romance antiassunto, ou, melhor, anti-história, sem personagens principais que só pedissem comparsaria às outras. O tema nasce no colectivo de um rancho de ceifeiros migradores. Os lineamentos da transposição do tema correspondem ao que havia de linear na própria realidade transposta. Tão aguerrida batalha pelo conteúdo em literatura parecia urgente a todos os jovens que ansiavam plantar os alicerces para um novo tipo de cultura extensiva às grandes massas ausentes da actual, preparando pelo alargamento à quantidade a síntese posterior da qualidade. Gaibéus seria um compromisso deliberado da reportagem com o romance, em favor dos homens olvidados e também da literatura aviltada

 

Por seu turno, Fernando Namora escreve, em prefácio à 5.ª edição de Casa da Malta: «Até este livro, o povo era para para mim, adolescente universitário, uma memória de infância: moinhos, urzes, velhas guardadoras de rebanhos que me contavam fábulas, árvores antigas, corvos funestos sobre as árvores antigas, misérias líricas. [...] Não obstante, a prova para um escritor integrado nas urgências do seu tempo era o encontro com o povo. E, pelo que me diz respeito, a oportunidade foi esta Casa da Malta. [...] Eu era médico havia curtos meses e achava-me, de súbito, numa província desconhecida, entre gentes, modos, labores que representavam para mim uma dura e maravilhada descoberta. Eu era o estranho que vinha de longe, aceitando os acasos de urna pobre aventura, mas que não podia sentir-se nem agir como um estranho; e eles eram um mundo inóspito, retraído, tantas vezes cruel, que deveria converter-me à sua autenticidade sem que o preço fosse a minha submissão. O livro já existia dentro de mim, naquele gesto intenso de um fruto saboreado antes de o colhermos da árvore, de tanto lhe anteciparmos o paladar, quando certa tarde a aventura começou: Oito dias de trabalho febril, o único livro de ficção que, até hoje, escrevi de rajada

 

Com as diferenças peculiares a dois temperamentos de escritor, um e outro marcam o advento neo-realista da personagem como adesão, à maneira aquiliniana. Mas com esta distância: Aquilino não foi ao encontro do povo, trouxe-o consigo. O próprio Aquilino o destaca: «A minha obra contrasta com as condições em que foi realizada. O meu livro Terras do Demo, o mais terra-a-terra, compu-lo no meu gabinete D. João V, sobre uma mesa de boa talha...» E Namora sublinha-o na comovida evocação que dele fez: «Ali para as bandas de Entre-campos morava um jovem de setenta e oito anos que trouxera a província para a cidade. Aportou à urbe como serrano, olhar reluzente, quase ladino, arcaboiço de mocetão, e como serrano ainda há pouco aqui o tínhamos. Serrano ficou. E essa havia de ser a sua força, o seu orgulho e a sua originalidade

 

Na dialéctica desdobramento-adesão (com acento tónico num ou noutro desses dois pólos), que é sempre a de todo e qualquer personagem de ficção literária, inclui-se, portanto, no caso do neo-realismo, uma autodialéctica de classe pela qual o escritor, quase sempre de origem e interesse pequeno-burgueses e urbanos, procura identificar-se com as massas trabalhadoras, de uma maneira geral rurais. Ao contrário do que sucedia no trecho que atrás transcrevi de José Cardoso Pires, é difícil, contudo, rastrear esta antidialéctica nas personagens verdadeiramente populares do primeiro neo-realismo. Pode mesmo dizer-se que, nas obras de então, só os personagens pequeno-burgueses reflectem concretamente esse problema, quer em ambiente urbano, como na obra máxima de Namora - Fogo na Noite Escura -, quer em ambiente rural, como na Alcateia, de Carlos de Oliveira, em que uma personagem diz: É preciso limpar este sarro burguês. É que não se transforma ou transpõe uma consciência de classe sem luta e sem experiência. E um dos erros doutrinários do primeiro neo-realismo (erro que, aliás, abrangeu outros sectores ideológicos) foi o da adesão esquemática (e consequentemente dogmática) à tese abstracta da classe ascendente, o que redundou em crítica epidérmica do figurino burguês - a que muitos supuseram poder fugir com a facilidade com que Pilatos lavava as mãos. Fogo na Noite Escura documenta (e reflecte) tudo isto, sem a profundidade embora que só a perspectiva e a maturidade concederiam. Mas destaque-se, em abono desse romance a tantos títulos notável de Namora, que este pormenor não lhe tivesse escapado. E não se considere este erro fortuito ou circunstancial: ele implicava uma realidade económico-social, e significava que a consciência progressiva do País, como no tempo da 1.ª República, punha ainda as suas esperanças na pequena-burguesia, à míngua de massas proletárias suficientemente conscientes e representativas (em número e em força organizada) para criarem, no seu próprio seio, uma vanguarda sólida e destacada. Que remédio, portanto, se não aceitar que meia dúzia de fórmulas um tudo-nada mágicas transformassem dos pés à cabeça o pequeno-burguês num intelectual de esquerda ou num líder de massas? A revolução a que o Eça aludira na Conferência do Casino continuava votada ao fracasso, a despeito de ser correcta a teoria agora adoptada. Mas não se veja nisto, em contrapartida, um simples fenómeno estatístico. Já li, algures, que a elevação do número de operários hoje existentes no País deveria ter-se acompanhado, necessariamente, dum aumento do número das obras literárias que tratam dos seus problemas. Como se isso fosse possível em plena crise! Definir o neo-realismo pelo público potencial ou real que visa ou encontra (proletário, no primeiro caso, e pequeno-burguês, no segundo) é esquecer que o problema básico é o de uma consciência de intelectual (seja ele de origem popular ou burguesa) que vê na aliança com o proletariado o único meio válido (e confirmado) de chegar, a curto ou a longo prazo, não importa (mas já houve quem dissesse que sim!) à sociedade sem classes a que a literatura de todos os tempos sempre aspirou.

 

Sem apoios suficientemente concretos para aprofundar, em futuridade, esta problemática, a autodialéctica a que me vinha referindo processou-se, algumas vezes, ao arrepio, isto é, adoçando em contraluz os contornos do mundo pré-capitalista ou feudal, como é patente em Alves Redol (sobretudo na sua obra máxima, Barranco de Cegos), e que um dos notabilíssimos contos de Manuel da Fonseca, O Último Senhor de Albarrã, assim explicita pela boca duma personagem: «Que era mau diziam. Pois seria - mas à sua volta nunca houve miséria. Todos os trabalhadores de Albarrã andavam fartos de comida e bem agasalhados no vestir e no calçar. Veja hoje. Os lavradores, na ânsia de lucros, comem terras e gentes, tudo a eito, O de Albarrã, não. Vivia com os ganhões.» Nessa mesma colectânea - O Fogo e as Cinzas - o primeiro conto, que é um pórtico aberto para os restantes, descreve a decadência de valores humanos que a infiltração do capitalismo trouxe à vila pelas mãos do comboio, e mitifica assim uma idade de oiro preexistente: «Os senhores da vila desciam (então) ao Largo e falavam de igual para igual com os mestres alvanéis, os mestres ferreiros. E até com os donos do comércio, com os camponeses, com os empregados da Câmara. Até, de igual para igual, com os malteses, os misteriosos e arrogantes vagabundos. Era aí o lugar dos homens, sem distinção de classes

 

Quer dizer: o escritor, ao criar a personagem por adesão, num contexto antidialéctico para o qual as simples forças do instinto e da intuição seriam insuficientes mesmo que manassem (e não era o caso de nenhum) com a pujança telúrica dum Aquilino, procuram apoios nos quadros do passado - do passado histórico e do passado literário -, a fim de estabelecer confrontos, definir antagonismos e desencadear conflitos. Foi Óscar Lopes, suponho, o primeiro que apontou um dos traços deste processo, ao aparentar as personagens de algumas novelas de Namora com as da literatura picaresca hispânica. A adesão passa por aí, sem dúvida, como já passara pelos canais da literatura afim norte-americana e brasileira. Mas desce mais fundo, parece-me, a ponto de recriar, por vezes, autênticas situações de realismo mágico que incidem no estilo, como passo a exemplificar: «o vento agreste abriu buracos nos trapos dos garotos» «era um beco triste que assustava o sol», «os móveis permaneciam na sombra, envergonhados», «as águas da maré já lambiam a ponta do esteiro, numa carícia tímida», «o sol veio debruçar-se nos beirais, pálido e triste», «luzes mortiças de tanto velar homens e máquinas», «rio indiferente, sonâmbulo», «as estrelas catrapiscavam de sono» (todas de Esteiros, único livro que reli com este propósito); «Serra e mar ficavam a mirar-se como dois gladiadores na arena» (Casa da Malta); e na abertura de O Trigo e o Joio: «A vida é uma rua. Vem do alto dos eucaliptos pedindo licença à planície para lhe interromper o sono, atravessa uma encruzilhada de estradas por onde corre o aceno de Espanha ou do mar e, bruscamente, num ímpeto de ousadia, trepa o planalto ao encontro de uma igreja que foi covil de moiros e abades, e ali se fica, arrogante, a desafiar o pasmo da campina.» Note-se que este intróito é precisamente o do livro em que o picaresco atinge o seu máximo na obra de Namora. E que isto é uma consequência da adesão ao primitivismo da personagem campesina, suas crendices e superstições, descortina-se neste trecho em que o novelista é bem explícito: «Sim, o Loas estava certo de que a terra conhecia os seus propósitos», logo seguido destoutro em que os ventos entram a «perseguirem-se como potros à solta, despenteando os cabelos do trigo».

 

Considere-se, ainda, que há diferença entre o antropomorfismo alegórico de todas estas expressões e a imagem furtiva que por vezes se insinua noutros contextos: «As casotas pobres que se aninhavam do outro lado da cerca do hospital, apertadas umas de encontro às outras, rasteiras e medrosas, pareciam-me velhinhas friorentas acocoradas a um raio de Sol.» (Domingo à Tarde). E refira-se que, neste livro de situações urbanas, esse tipo de alegoria só ocorre quando Namora descreve um arrabalde ou um subúrbio de fisionomia híbrida ou semicampesina: «O vento ia espalhar os murmúrios por toda a encosta e quando regressava junto de nós, lá ao cimo, vinha carregado de segredos

 

É que (assim o diz Robert Escarpit) «o estilo não é apenas o homem, é também a sociedade», e os estratos sociais do nosso ruralismo estavam (e estão) eivados ainda de pensamento mágico.

 

Nem sempre me parecem felizes, por isso mesmo, as revisões de estilo a que alguns neo-realistas têm sujeitado, ultimamente, os seus primeiros livros. O escritor que dizemos estilista recreia o real pela tessitura semântica duma sinalética pessoal. E por isso Aquilino, aderindo embora às personagens, podia dizer que os seus livros eram ele próprio: não se transferia para as personagens (à Flaubert) - transferia-as para si. Mas um estilo literário evoluído não pode estabelecer dialéctica com a rusticidade da personagem no plano desta. Só um estilo ingénuo e oscilante entre o realismo poético e o realismo mágico pode consegui-lo, pelo que não estava errado, neste aspecto, o primeiro neo-realismo, embora houvesse cometido, por vezes, excessos de ênfase ou de mau gosto, como alguns dos que apontei em Esteiros. Diga-se, de passagem, que todas as expressões citadas são da primeira metade do livro, pois quando este se aproxima do seu acmé o estilo é puro, servindo, sem uma ruga, o descritivo exemplar e por vezes admirável do trabalho dos valadores ou o pulsar da enxurrada. E acrescente-se que esse reparo (e outros, como o da excessiva intencionalidade dos nomes dos garotos, por exemplo) não mancha, para além do pormenor, a exemplaridade dessa obra-prima do neo-realismo português.

 

Ora é este problema do estilo que nos confirma que o próprio dum escritor como Namora, que, a seu modo, é um estilista também, está no caminho da personagem como desdobramento, e não como adesão; e, portanto, no de urna autodialéctica que se processe nos limites da sua própria experiência (não confundir com audiência) social. Com efeito, o estilo de Namora é exemplarmente seu nos livros em que o autor comparece por si próprio (Retalhos da Vida de Um Médico) ou por co-existentes seus. E até num livro como Casa da Malta isso se apreende, pois a figura mais viva (e, penso eu, deslocada) é a da antiga tricaninha de Coimbra que já perpassara (e com que vigor) em novelas como As Sete Partidas do Mundo e Fogo na Noite Escura. É assim um regresso experienciado às origens, e não uma apostasia, a fase mais recente da sua obra, em que se inclui uma constante pessoal que tudo ordena e conjuga. Domingo à Tarde, por exemplo, é uma novela existencial, sem dúvida, mas em meio específico: o do Hospital, em que diríamos caber à mentira profissional do médico o papel de símbolo do que em todos nós pode servir de biombo à consciência da efemeridade da vida: Que eram as pessoas? Ilhas. Ilhas isoladas e um braço estendido, a fazer de poente, por onde se esperava que passasse alguém. O que implica que o enquadramento num serviço hospitalar de doenças incuráveis dá à dimensão existencial de Domingo à Tarde um fundo legítimo e bem caracterizado do autêntico neo-realismo. É nesse degelo da Consciência formalizada (representada pelo caso de Jorge) que eu vejo a contribuição do existencialismo para o futuro do realismo: funcionar como um descongelador do que as ideologias e as escolas deixaram estático ou hirto. Mas, se se pode chegar, como Namora o demonstra, à apreensão do existencial por um caminho (sem recuo) de neo-realismo, veremos adiante que o mesmo pode acontecer com o existencialismo. E é nessa confluência do que houve e há de válido num e noutro que eu vejo o processo futuro duma alternante e mútua superação dos seus poderes formais, que envolva e apreenda o real numa extensão tão lata quanto possível.

 

8. Mas, para além da personagem, o neo-realismo cria a tensão dum devir. Já vimos, ao correr de outros aspectos, alguns dos recursos que serviram para isso. O principal, todavia, é o que opõe entre si as classes sociais, está claro, e de que escolho um exemplo ao acaso: o de O Trigo e o Joio, que ocorre quando o cabo Almeida da G. N. R. vai aconselhar-se com os lavradores sobre o destino a dar aos dois presos e aqueles dão ordens ao Almeida (que titubeia mas cede) para os trazer... ao clube, a fim de serem interrogados e despachados por eles. E aqui se insere uma dificuldade que o neo-realismo nem sempre pôde vencer: se era relativamente fácil alinhar, no plano da adesão estética, com as classes dominadas, era mais difícil fazê-lo com as dominantes sem as transformar num esquema ou numa caricatura. Daí que à personagem recriada, no seio daquelas, seja oposta, por vezes, a figura (que não se consegue senão desenhar) no seio destas. Ou seja, a dialéctica das classes sociais estabelece-se, em certos casos, entre um concreto e um abstracto. E não foi outro o motivo por que alguns autores recuaram (como vimos) para o plano da historicidade, transferindo o conflito para os quadros do mundo feudal, pois era muito mais fácil aderir a um tipo de explorador já ultrapassado e dar nele, por forma indirecta, a problemática do presente. É o que faz Redol em Barranco de Cegos: a figura do lavrador alentejano (aliás admirável) sai da sua pena com as tintas seculares do suserano feudal, que todo um passado literário e oral ajudava a definir, bastando assim opor-lhe o que esse passado ignora e o talento do novelista sabia como ninguém recriar: o campesinato.

 

Não importa determo-nos na enumeração de todos o meios de que se lançou mão para poder chegar-se a esse fim, pois não é um catálogo ou inventário, como já disse, o meu propósito aqui. Direi apenas que quem queira escrever um estudo capaz sobre a obra de Redol terá de partir deste problema, pois ninguém o viveu como ele com indomável pertinácia e exaustação.

 

Mas dois casos houve, que eu me lembre, em que os autores não tiveram dúvidas em saltar para fora da trama do implícito, a fim de apontarem, sem evasivas, um sentido à história. É, um deles, o de Esteiros. No plano do devir, a dialéctica é dada, neste romance, por um ausente, o marido de Madalena e pai de Gaitinhas, que da prisão escreve assim à mulher: «Manda o nosso filho para a escola. Sem instrução, será um escravo ou um vadio.» Mas é o autor quem diz, no fim de tudo: «Gaitinhas-cantor vai com o Sagui correr os caminhos do mundo, à procura do pai. E, quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais - moços que parecem homens e nunca foram meninos». O outro caso, é o de Seara do Vento, que fecha sobre o brado quase diríamos «histórico» de Armanda Carrusca: «Digam à minha neta! Digam-lhe que ela tem razão! Um homem só não vale nada!» Belo defeito, chamei eu à frase. E chamei-lhe assim pela mesma razão por que gosto de ouvir ao Barão, de Branquinho da Fonseca: «Faze de conta que estamos de acordo!» O faz-de-conta, se é de facto a raiz da ficção, é também a da sua convenção, e os preconceitos que vigoram nesta são ainda os do naturalismo. E por isso eu teria preferido não que Manuel da Fonseca se enredasse na psicologia e na verdade humana dos burgueses dessa novela (Elias Sobral e filhos), mas que os tivesse suprimido pura e simplesmente, dando o conflito no plano das vítimas, pois a presença directa daqueles não é indispensável à novela.

 

Refazer os caminhos do naturalismo e do realismo crítico oitocentista, pondo-os embora ao serviço duma nova ideologia, parece-me, de facto, um duplo formalismo. E digo duplo porque na génese artística dum realismo como o entendo tem de viver-se uma violência que se faz à realidade convencional. E colaboramos com esta se nos limitarmos à exacção ou, pior, à glosa dum ponto de vista reconhecido científico do devir histórico. Não é aplicando valores literários ou científicos já universalizados à situação concreta que se faz realismo, mas sim partindo da situação concreta para a conquista de novos valores. Ao sublinhar os dois casos que apontei, não pretendi defendê-los ou aplaudi-los, mas dizer apenas que há neles uma crítica implícita ao que não pôde evitar-se de convencional, por vezes, no neo-realismo.

 

É de concluir-se, então, que, à semelhança do que Sartre pretende sobre o marxismo, o neo-realismo, para mim, é... uma literatura por fazer? Pois bem: sim e não. Não, porque o neo-realismo existe e existirá como teoria e prática literárias já definidas e realizadas; e sim, porque a dialéctica em que se gerou é um dinamismo e, logo, um movimento filosófico e literário ininterrupto. Quer isto dizer que não há, para mim, um neo-realismo histórico apenas, com maior ou menor actualidade, mas realismos que se sucedem e sucederão em cadeia. E já Mário Dionísio o disse, no prefácio à 3.ª edição de Casa da Duna, de Carlos de Oliveira: «Quem tenha acompanhado com alguma atenção, mesmo que sem muita simpatia, a eclosão e evolução do neo-realismo, sabe bem que tal movimento não poderia ter produzido um livro a que devamos honestamente chamar a sua obra exemplar, pois nunca ele se propôs criar um figurino, um molde, um uniforme

 

O próprio duma fórmula, qualquer que seja, é dar origem a uma contrafórmula. E, se bem que, em teoria, tivesse havido a intenção de não converter o neo-realismo em fórmula, a verdade é que todos nós usamos hoje as expressões do neo-realismo histórico e primeiro neo-realismo, considerando, portanto, que se fechou sobre ele um ciclo. E, se outra prova fosse necessária de que ele se formalizou, aí estaria o facto de ter gerado, no seu próprio seio, a contra-reacção de Virgílio Ferreira, que tende, por seu turno, a assumir os contornos duma contrafórmula e, desse modo, a anunciar, também, a conclusão dum ciclo. Como à problemática social em que se baseia, ao neo-realismo histórico só pode caber, assim, um futuro de superação ou de renovo. Pelo que negar o neo-realismo histórico fez e faz parte do seu próprio processo de renascimento. Mas isso não pode ser obra do arbítrio, que sim duma multiplicidade de factores que ninguém pode dominar. Não vale a pena, portanto, cairmos nos braços uns dos outros e, muito menos, virarmos as costas uns aos outros! A realidade cumpre-se para lá disso. E a autêntica novidade literária há-de surgir não do cálculo de qualquer entendido, mas da necessidade geral dum novo conteúdo.

 

Deste modo, uma estética do neo-realismo só pode ser para mim uma estética que seja crítica e dinâmica. Crítica, já ela começa a poder ser hoje, como aqui esboço. Mas dinâmica - em que sentido? Ninguém interpreta o que o ultrapassa! E o que está hoje a passar-se no mundo é algo que não só ultrapassa um pobre homem como eu, mas... a humanidade inteira!

 

9. E, todavia, o próprio dum ensaísta é ensaiar. E, ensaiando, se há uma verdade que possa ter por segura é a de que as grandes obras literárias do passado nunca foram obras que pudessem ser interpretadas dum jacto, nem tão-pouco as que trazem ao lado uma chave que o autor faculta, mas sim as que conservam um potencial inesgotado de virtualidades significativas. De virtualidades, repito, que não de factícias obscuridades ou evasivas! Não é por haver mais coisas no céu do que ideias ou sonhos na minha cabeça que o Hamlet é o Hamlet, mas... porque é o Hamlet. Uma literatura de tese, qualquer que seja esta, é, portanto, uma literatura suicida, pois que tende a compendiar-se. E, se o caminho duma sociedade sem classes passa, necessariamente, pela hegemonia duma, é preciso não perder de vista que esta hegemonia, ao contrário da hegemonia burguesa que a precedeu, não é a de uma classe que ascende para se tornar indefinidamente dominante, mas para se extinguir com as demais. Uma vez ainda, o figurino do naturalismo e do realismo crítico oitocentista só pode ser aqui um descaminho. O objecto da literatura tem de ser a totalidade da experiência humana sem dúvida; e a expressão panorâmica duma sociedade, a que promane de todos os canais dos seus diversos estratos. Aceitemos, portanto, todas as expressões que o escritor tenha para dar-nos. Mas ponhamos a seu lado uma crítica que as inventarie, clarifique e contraste. Dizia Marx que «o homem é um animal que não se pode isolar senão dentro da própria sociedade». E Plekhanov que «a arte exprime a vida social e o pensamento filosófico pela simples razão de que não pode exprimir outra coisa». Toda a expressão literária inclui, portanto, uma expressão social e implica um conhecimento real. Mas este real, que a literatura nos permite conhecer duma forma singular e concreta, não é estático mas dinâmico, não só de si, mas pela intervenção que podemos exercer sobre ele, transformando-o. Realismo que não exprima este dinamismo só o é, portanto, no sentido estrito (ou menor), em que há pouco se lia que a arte não pode exprimir outra coisa.

 

O esgotamento das condições circunstanciais do primeiro neo-realismo não pode, assim, desobrigar ninguém de tactear, ensaiar, esboçar, perseguir a expressão teórica e prática do conteúdo que a superação implica. O que abrange as condições concretas que foram herdadas da fase anterior, pois essas (sabemo-lo bem!) não foram esgotadas.

 

Ora, o degelo existencial que se descortina nas obras mais recentes de alguns neo-realistas (e que exemplifiquei com o caso de Namora) e a antítese, em âmbito caracterizadamente existencialista, que a obra de Virgílio Ferreira constitui, parecem indicar que o processo seguirá por aí até que atinja uma terceira fase de negação da negação. E a intuição diz-me (erradamente ou não), que é isso mesmo, afinal, o que anuncia já a actual querela do estruturalismo.

 

10. Muito haveria a dizer sobre a técnica, a composição e o estilo dos escritores neo-realistas se as ambições deste ensaio não fossem, apenas, as que atrás se indica. Com efeito, não me interessam aqui os neo-realistas como escritores em sentido geral, mas como neo-realistas tão-só. E já de passagem me fui referindo a aspectos do estilo, sempre que havia nele outras significações. Mas chamarei a atenção para o conteúdo extremamente rico de insinuações sociais que a metáfora por vezes assume: «Rondando as barracas, os olhos do povo comprovam tudo»; «cama derreada por gerações»; «cómoda que se enchera de caruncho, à espera do bragal». (Esteiros)

 

Uma vez que o mais caracterizadamente estilista destes escritores é Carlos de Oliveira, reservei para ele este parágrafo, escolhendo para isso a 3.ª edição de Casa da Duna, que é sem dúvida um dos romances neo-realistas mais conseguidos e hábeis.

 

Notemos, em primeiro lugar, que há nele dois tempos: aquele em que a acção decorre no plano estrito da problemática agrícola; e aquele em que o dono da quinta, à beira da falência, tenta salvar-se recorrendo à pequena indústria - primeiro à dum forno de cal (que não chega a concretizar-se) e, em seguida, à duma fabriqueta de telha; para, enfim, se afundar quando a abertura duma rodovia lhe traz a concorrência até à porta. Ora, num e noutro tempo, os estilos são diferentes e ambos belíssimos, sobretudo o primeiro, que imprime à história um halo de romance poético em que o tempo ondula e perpassa pelo meio de concretizações súbitas que hiatos mais ou menos largos destacam e separam. Um outro exemplo:

 

«- O pai tem razão, devo mudar de vida, e julgo que o melhor é casar-me.

 

-Não te exijo tanto.

 

-Descanse. É de livre vontade. Talvez a Conceição me sirva. Se estiver de acordo, fale ao Pina, peça-lhe a filha em casamento.

 

Os patos bravos, de passagem para o sul, começavam a poisar com o Outono na Lagoa do Corroscovo. Mariano descia a aldeia pelo anoitecer, de caçadeira ao ombro, matava as aves brancas de encontro ao céu.

 

O velho Paulo concordara com a ideia do filho e fora a Corgos fazer o pedido.

 

Mariano descalçou as botas de caça e, impaciente, subiu à sala a interrogar o pai:

 

-Que tal, o Pina?»

 

Veja-se não só o dinamismo que este método estilístico imprime à narrativa, permitindo-lhe devorar por vezes o tempo em curtas páginas, mas a concretização permanente em que a situa (iluminando o carácter e a biografia com o meio) e o constante renovar de ciclos que abre e que tão bem quadra à rotação constante, de dias e estações, que caracteriza a vida agrícola. E isso tanto pode significar tempo como um estado de alma indefinido:

 

«A quinta parecia viver fora do tempo. Numa pausa do tempo. A memória, os 'factos, as coisas, dir-se-iam flutuar ao acaso, e Hilário não conseguia dar-lhes uma ordem coerente. A solidão, que lhe fora tão querida, enervava-o, 'dissolvia o passado, o futuro. Dias, intermitências de sol e treva, que geravam semanas, anos, vidas, sem se idar por isso. Lá vinha rompendo outra manhã. E Hilário, no quarto, esperava que o casarão acordasse de todo. Sentia portas que se abriam, passos, um chiar de água entornada no lume, Maria dos Anjos na cozinha, mais passos. Os camponeses espalhavam-se na quinta e o trabalho começava na madrugada ainda cinzenta. Um vulto subia a rampa. Era Firmino. Parava aqui e ali, junto dos jornaleiros, destinando o serviço de cada um. Continuava a subir devagar. Seguiam-no agora dois homens. Chegava à adega e abria-a, os dois homens entravam e ele ficava a falar-lhes, meio dentro, meio fora, com um dos braços estendido e a mão apoiada na cantaria. De vez em quando apontava com a outra mão o interior da adega. Dali, dirigia-se aos currais. Maria 'dos Anjos saía ido casarão e atravessava o quintal. Sum:iamse ambos no telheiro, apareciam carregados de palha e erva. Entravam nos estábulos. Bois mugiam. Maria dos Anjos voltava à cozinha e Firmino surgia com a égua cia charrete.

Nisto, um desses factos à deriva, quase perdidos na memória, tomava conta da consciência de Hilário e, uma vez fixado, tornava-se de há pouco, abolia o tempo, o fluir ordenado das coisas. Dizia o pai que não pusesse a égua a puxar ao engenho e o pai teimava. Quando? Talvez ontem, talvez agora mesmo. O certo é que a égua se aguentara. E senão, era vê-Ia empinar-se, levantar as patas dianteiras e relinchar ao sol nascente como se cumprisse um rito selvagem da sua raça. Firmino largava-lhe • cabresto e a égua partia a trote, arrancava de súbito, moderava • passo, arrancava outra vez, parava. Firmino espalmava-lhe a mão no flanco e o jogo recomeçava com o ritmo seguro dos cascos no chão 'batido do pátio. Hilário abriu a janela:

—Atrela a égua. Vou sair.»

 

Esse dinamismo, ora apreende sensorialmente o real:

 

«Canaviais mergulham na água, as enguias revolvem o lodo, sapos e rãs enchem o crepúsculo duma toada constante. Os caçadores ficam de lama até ao joelho, metido nas suas botas de cano. Tiros. Um restolho aflito de asas.

 

Mudam de roupa na cabana de Lobisomem e partem com os patos a sangrar nas bolsas de lona. Lobisomem segue-os até à porta, de corpanzil vergado e uma das pernas a arrastar no chão nu da cabana.

 

Da lagoa vem um cheiro de água que apodrece. Lobisomem senta-se a acariciar a plumagem do pato que os caçadores lhe deram: corre-lhes os dedos vagarosos nas asas macias, sorri misteriosamente como as crianças.»;

 

ora se apossa das próprias coisas, saltando as mediações:

 

«Os bois saíram a lutar com a seca. Escoavam os poços, atirando a água dos alcatruzes às chãs de milho, à batata calcinada»;

 

ora anima os objectos de vida própria:

 

«a argila endurece nas formas; a telha empilha-se nos alpendres, escoa-se aos ombros dos carregadores para os taipais dos carros que a levam aos recantos da Gândara.»;

 

ora devora os diálogos em dimensão psicológica:

 

«Tinham-se habituado a falar baixo. Anos de murmúrios, vozes sussurradas, quanto mais silêncio melhor na casa sombria, como se receassem acordar o velho Paulo, D. Conceição, os mortos. E agora perto deles, Firmino pouco mais distinguia do que palavras soltas, uma ou outra frase; pigarço, os jarretes da égua, baio, arranje mulas para este trabalho, poços, é do que nós vivemos, habituada ao xairel, põe-lhe ferraduras de prata, charrete, milho, um animal vistoso para apareceres na vila. Até que Mariano Paulo ordenou, fora de si:

 

- A égua para o poço, Firmino. Imediatamente.»;

 

ora povoa e mobiliza a própria solidão:

 

«A velha passava os dias sozinha. As moscas voavam das estrumeiras, zumbiam na sombra do casebre. Réstias de luz entravam pelas telhas desconjuntadas, abriam no soalho minúsculos lagos amarelos. Nesses raios de Sol a poeira bailava e as asas rápidas das moscas passavam de vermelho a azul, de verde a roxo; cores ágeis, inquietas. A velha pensava em Luciano e Palmira. E rezava por eles. Na solidão, um fragor longínquo aproximava-se: os cavalos da morte e o seu galope devastador. Uma estranha balada nascia da terra ferida pelo tropel. Palmira e Luciano andavam longe. Se gritasse, o grito morreria na aldeia erma. A cantilena reboava como na abóbada de uma igreja. Cavalos à desfilada sobre os campos, as árvores, o povo, e das patas dos cavalos, que faiscavam lume no chão, brotava o coro milenário em demanda do céu.

 

A velha rezava e cobria-se-lhe a cara de suor. Pouco a pouco, a água do sol sumia-se no chão, as moscas sossegavam na obscuridade. E por fim, o bater dos tamancos no empedrado, as vozes do povo que chegava do campo, arrancavam-na ao apocalipse do casebre.»

 

O próprio desenho duma fisionomia se enquadra num ambiente que lhe define urna situação real: «a cabeça frágil, de cabelos caídos, recostada no oiro do azeite que ardia»; «a luz da candeia dava às feições do Luciano, a fronte curta, o nariz e o queixo espessos, a dureza da pedra, das imagens rudes».

 

Singelas metáforas apreendem e envolvem os problemas sociais na trama de ilimitadas significações: «cada gota de água que cai vale um poceiro de estrume»; «os camponeses trocavam a terra a canecas de vinho»; «Corrocovo comia as courelas, os pedaços de vinha. Os que tinham os braços como únicos bens pediam às portas»; «Ninguém sabia quem eram os Franceses nem queria saber. Semearam a Gândara de libras? Fizeram muito bem

 

As próprias analogias estoiram de conteúdo: «Gente consternada comentava o desastre. Nas feiras, quando os negócios correm mal, há um rumor assim, que entristece os marchantes, os ciganos, os pobres vendedores de tamancos

 

E o descritivo apoia-se num contraponto de interior-exterior que por vezes funciona como uma metáfora insólita e de alcance sociológico: «Trouxe amigos da vila e, aos domingos, o povo ficava cá em baixo a olhar as janelas iluminadas pela noite fora

 

E, quando as circunstâncias mudam, o realismo poético, organizado em ciclos, transmuta-se em realismo cinético de torrente que se despenha ao encontro do mar:

 

«A estrada continuou a rolar pela gândara. De lugarejo a lugarejo, as distâncias ficavam mais curtas. A exploração ia começar a fundo. Os armazéns, o comércio de Corgos e, através deles, os grandes negociantes e industriais das cidades, lançavam pela estrada nova as furgonetas e os camiões de carga. O que antes se fazia a custo era agora uma expansão fácil. A vila comia Corrocovo com comodidade: a comodidade dos motores e dos pneumáticos de importação. Uma gigantesca engrenagem de interesses invadia duma vez para sempre o areeiro dos camponeses: Ford, Rockfeller, Shell, Renault, equipavam Corgos para aquela marcha; e Corgos, na companhia da gente poderosa doutras regiões, assentava os pés com segurança na gândara indefesa.

 

A fábrica de Mariano Paulo, estava condenada. O restrito mercado que tinha fora devassado. Às aldeolas ermas, onde a telha de Corrocovo se vendia, chegava a concorrência das grandes indústrias.»

 

Claro está, não foram os neo-realistas em geral, ou Carlos de Oliveira em especial, que inventaram estes recursos de estilo. Nem se esgota, por eles, a caracterização estilística dum grande escritor como este, pois seleccionei apenas os que correspondiam ao meu propósito de hoje. Mas a questão era a de mostrar em que pode um escritor, pelo estilo, confirmar-se como neo-realista, e em que pode o neo-realista, pelas mãos dum estilista, enriquecer a plasticidade da língua. E suponho esse objectivo atingido, pelo que não me alongarei mais sobre o assunto.

 

11. Como vimos, se não há um estilo neo-realista, há, não obstante, um estilo de informação neo-realista. E se a análise se tivesse operado sobre as obras de outros estilistas neo-realistas, logo veríamos abrir-se perante o nosso inquérito uma gama de diferenciações pessoais. (E de seguida o faremos, se bem que noutro contexto.) E por aqui me pergunto: Será que o mesmo se passa com a poesia? Ou seja: haverá, realmente, uma poesia neo-realista? Ou apenas uma poesia de informação neo-realista? O problema é candente, pois se todos reconhecem e aceitam que há neo-realistas cuja poesia reflecte a sua problemática temporal e humana, nem todos convêm na existência duma poesia de cunho neo-realista equiparável, em nitidez de contornos, à ficção que designamos por esse nome. E é o que José Gomes Ferreira aponta ao dizer que «o social não era a característica principal da poesia do Novo Cancioneiro. (Basta relê-lo.)» (A Memória das Palavras). E acrescenta que, nem que o fosse, isso chegaria para designar essa poesia de neo-realista, pois houve poesia social muito antes do neo-realismo, se é que não em todos os tempos. Pelo que limita o neo-realismo, em poesia, à «tentativa de substituição das bases filosóficas tradicionais da poesia portuguesa (dualista, platónica, cristã, etc.) pelo materialismo dialéctico de que alguns artistas jovens de extracção pequeno-burguesa se julgavam imbuídos».

 

O problema não era social (em sentido lato), nem filosófico apenas. Jogava-se nele o homem por inteiro, nos termos duma autodialéctica de classe que já referi, e que abrangia toda a vida social, cultural e moral do indivíduo perante a sociedade. E isso exigia da poesia mais do que ela podia dar, pois o lirismo (que foi o género mais cultivado, se não o único) é uma expressão de subjectividade possível, e não da subjectividade necessária. Pequeno-burgueses que eram, como tal a subjectividade desses poetas se manifestava, pois o mais a que aspirava não se inseria nos quadros do quotidiano, de que brota o lirismo, mas sim no plano das ideias abstractas que só o tempo e a experiência poderiam levar a sensibilidade a adoptar, mediante a intercorrência de uma mutuação favorável. Teria sido possível, está claro, uma poesia dramática, que jogasse com ideias, como a de Bertold Brecht. Mas, essa, nem estaria ao alcance de um qualquer poeta (pois define, de per si, um génio próprio), nem as limitações existentes a viabilizariam. Só a acção política e social, definindo um quotidiano específico, poderia favorecer o advento imediato de tal subjectividade necessária, gerando o poema neo-realista pelo estímulo da situação concreta. E não houve entre nós uma resistência em armas (como na Espanha ou na França), nem poetas que assumissem responsabilidades idênticas à de um Neruda ou às do romancista Soeiro Pereira Gomes. Deste modo, os poetas mais deliberadamente interventores, ou adoptaram o antilirismo agreste, contencioso e escarninho de Joaquim Namorado - que é hoje, talvez, o único representante contemporâneo da linha tradicional das cantigas de escárnio -, seguindo portanto o lema de que «a poesia é uma máquina de produzir entusiasmo»; ou reflectiram, como puderam, o embate da repressão e da clausura, como Veiga Leitão. Os restantes colocaram-se na posição de «voz que escuta» (na bela metáfora dialéctica de Políbio Gomes dos Santos) - e não de voz que age.

 

E que podia a voz que escuta? Manuel da Fonseca o diz, como aliás a quase tudo o que ao neo-realismo importa, pois a sua obra, se é a mais pequena de todas, é também a maior:

 

«Florbela não foi à monda nem às cearas ceifar.

«Nasceu senhora da vila:

nunca as suas mãos esguias colheram

as azeitonas nos galhos das oliveiras.

«Mas ela sabia tudo que há no coração da gente:

ouviu a gente cantar.»

 

Como é evidente, estes versos comportam uma transferência da experiência de Manuel da Fonseca para a de Florbela Espanca. Foi, pois, ouvindo o canto dos ganhões e malteses (canto em sentido genérico, está claro, real e figurado) que Manuel da Fonseca se tornou a voz que escuta - e que escuta diferente! Assim nasceu uma poesia de informação neo-realista, para o advento da qual foi necessário não só escutar diferente, mas... ter a voz do talento! Se nem todos a tiveram (e uma vez mais repito: não cuido aqui de inventários), o mesmo ocorreu, afinal, em todos os tempos, pois contam-se pelos dedos os poetas que sobrevivem à sua época ou à sua corrente.

 

Não me cabe analisar em que medida os modernistas (em especial Fernando Pessoa, pela voz de «Alvaro Campos», e alguns presencistas) contribuíram para que Manuel da Fonseca (e outros) pudesse cantar diferente. Mas todos sabemos que essa contribuição foi generosa e decisiva. Ouvir diferente (com os ouvidos do neo-realismo) e cantar diferente (com a voz do, modernismo) - pode ser, então, o esquema deste processo. Contudo, ninguém taxe os neo-realistas de ingratos pelos ataques que moveram, por vezes, aos modernistas: não era a eles que atacavam, mas a si mesmos!, e ao eco público que a subjectividade necessária tinha de negar à subjectividade possível para que elas pudessem ouvir e cantar diferente! E isso não era ingratidão: era lei da vida.

 

Vejamos, então, como do casamento do céu com o inferno resultou, em Manuel da Fonseca, uma poesia de inconfundível informação neo-realista. Há nos Poemas Completos 55 poesias; e nada menos de 40 figuras humanas perpassam nelas, algumas com nome e existência concreta: Maria Campaniça, Jacinto Baleizão, Zé Cardo, Toino, Zé Limão, Rosa Charneca, Mariazinha Santos, Nena, António Valmorim, o Sr. António, Francisco Charrua, Zé Gaio, Julinho, Zé Jacinto, Manuel da Água, Marianita. Junte-se ao rol uma tuna, um coro de empregados da Câmara, multidões que desfilam, ranchos de ganhões e de malteses, vagabundos, suicidas, mendigos, crianças, ladrões, poetas, costureiras, pintores, adolescentes, campaniços, guardas, prostitutas, viúvas, lojistas, casais com filhos e casais sem filhos, burgueses, velhos, atletas, namorados, catedráticos, doentes, porcariços, marinheiros, turistas, lavradores, presos, viajantes. É bem verdade que outras obras há, tão pequenas como esta, em que se move gente sem conto: a de António Nobre e a de Cesário Verde, por exemplo. Mas como espectáculo ou comiseração, e não como coalescência ou adesão activa. Se é que não como dignidade combativa:

 

Veio a guarda com a lei

no cano das carabinas.

 

Cercaram-me num montado;

puseram joelho em terra;

gritaram que me rendesse

à lei dos caminhos feitos.

Mas eu olhei-os de longe,

tão distante e tão de longe,

o rosto apenas virado,

que só vi em meu redor

dez pobres ajoelhados

perante mim, seu senhor.

 

O que separa esta poesia da de Oitocentos é a conjuntura que diz: «porque não vamos colher os frutos que nós semeámos? / porque não vamos irmãos, por que não vamos?!» Os vagabundos de Fonseca «levam o sol na algibeira». E os seus desempregados trocam histórias por pão:

 

Não aceitei como esmola;

antes roubar que pedir:

paguei com a melhor história

da minha vida sem rumo.

Foi uma paga de rei.

 

Há, aliás, poemas que formam constelações dialécticas, como Nocturno, Canção e Rosa Charneca, ou Canção de Maltês, Poemas da Infância (II), Domingo e Maltês. A voz que escuta é, assim, voz que age também, o que virá a atingir o seu máximo num poeta duas décadas posterior, cujo empenhamento pessoal retomará o fio que Soeiro Pereira Gomes exprimira noutro registo: Manuel Alegre.

 

12. Centremos agora em Romeu Correia duas escassas palavras sobre o teatro neo-realista. O teatro tem sido a expressão artística mais ilaqueada entre nós. Raros têm sido os autores que puderam ver-se representados, não obstante ser grande o número dos que publicaram textos teatrais de valor. O teatro é, por natureza, a mais social de todas as artes, uma vez que confronta conjuntos humanos e obriga o público a uma participação activa. Compreende-se, assim, que tenha sido a mais sacrificada pela repressão.

 

Tendo ensaiado os primeiros passos nos tablados populares da nossa primeira região industrial - a margem sul do Tejo -, Romeu Correia conseguiu exprimir os conflitos sociais integrando-os no que há de ritual poético no melhor teatro. As suas peças inserem-se, quase letra a letra, na direcção que Ernst Fischer apontou assim: «É verdade que a função essencial da arte para os que estão destinados a transformar o mundo não é a de fazer mágica, e sim a de esclarecer e incitar à acção; mas é igualmente verdade que um resíduo mágico na arte não pode ser inteiramente eliminado, uma vez que sem este resíduo provindo da sua natureza original a arte deixa de ser arte.» A concretização social, muito clara e íntima e densa, vivamente dialogada naquele plano da linguagem em que o imediato e o mediato se fundem como recriação plástica da semântica popular, contracena com o realismo mágico primitivo através de uma sucessão de símbolos que opõe ao feiticismo herdado a renovação que as estruturas modernas conduzem a um devir. Assim, em Sol na Floresta, as filhas dos resineiros dispersos, à míngua de mancebos casadoiros, costuram «serafins», na véspera de S. João, com as roupas usadas dos pais de umas e das mães de outras. O que ocorre processa-se ao ritmo desse ritual mágico, mas para transferir, em dado momento, para o símbolo técnico que é o motor, a força oculta, que o símbolo cabalístico detinha: a abertura de uma estrada e o projecto de um campo de aviação recuperam as aprendizas de feiticeiras. No Vagabundo das Mãos de Oiro, o sortilégio que contraponta a alienação estética com a alienação histórica faz maravilhas com o teatro de fantoches, ora reificando neles a desumanização, ora animizando-os com esse milagre de poesia que do sílex faz fogo.

 

Deste sumário relanço se conclui, uma vez mais - parece-me -, que há neo-realismo onde a expressão estética envolve um dinamismo que implicita a interpretação científica (socialmente considerada) das estruturas básicas que a um nível específico reflecte, recria e antecipa.

 

13. Se daqui passarmos a um folheio, também corredio, dos livros de Augusto Abelaira, testemunharemos que a conotação com o científico se processa a uma luz de mitigada ironia que põe, por exemplo, os seus pares de amorosos a conversarem sobre temas desse tipo, à falta de outros que sejam susceptíveis de renovação passional. Na Enseada Amena em que vivem - etimologia de Lisboa, como se sabe -, passeiam o seu desencanto, como animais em reservado, e vão falando do que a divulgação erudita lhes diz haver para além das cercas. Abelaira aplica à pequena-burguesia (a nível mais estilizado e psicologicamente denso), o mesmo processo de Gaibéus, denotando a classe de preferência ao indivíduo, ao ponto de ser indiferente sabermos, muitas vezes, quem fala ou age. É sobre uma massa de significantes amalgamados que a leitura se expande para o confronto com o que além-muros (a Itália, no caso) é proa de barco.

 

Já sem ironia, antes com um acento neo-romântico de flagelação estética, o contrapólo cosmopolita realiza a mesma função em Urbano Tavares Rodrigues (situado agora na França ou na Alemanha), o que rarefaz ainda mais o existencial que reflecte, conduzindo-o a um vácuo em que os limites sofrem as altas pressões duma lâmpada prestes a estoirar.

 

14. Levar mais longe esta breve sondagem seria fazer história ou defender tese, como já apontei. Não sendo esse o propósito de um ensaio que deliberadarnente abre e fecha com uma interrogação, permita-se-me que avance, apenas, esta conclusão problemática, que remeto a um desenvolvimento futuro: a de que há neo-realismo onde o reflexo estético e o reflexo científico se disputam; ou, em termos linguísticos onde a metáfora e a metonímia se entrelaçam. Será neo-realista, portanto, a expressão dialéctica da totalização humanista de um dado momento histórico, mediante o equilíbrio instável, que sucessivas negações transformam, dos polos objectivo e subjectivo conjunturalmente dominantes.

 

 

 

(*) Mário Sacramento foi, sem dúvida, um dos mais destacados teórico do movimento neo-realista português. Este ensaio contém, além disso, algumas das suas mais incisivas reflexões sobre a essência do fenómeno estético. Conheceu uma primeira edição em 1968, pelas Publicações Dom Quixote, sendo reeditado em 1985 pela Vega.

 

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