Ensaios sobre a fé

 

 

Mário Sacramento

Mário Sacramento (*)

 

 

I

 

Tenho um dever moral para comigo, os meus amigos e os meus interlocutores passados ou futuros: pôr em ordem, com a sinceridade e a isenção possíveis, as minhas opiniões sobre o problema religioso. Considerá-lo um fenómeno marginal, como alguns fazem, que a ciência e a filosofia tenderiam a anular como valor humano, seria recair no erro ingénuo do materialismo setecentista e do positivismo oitocentista. A aspiração religiosa é uma constante histórica, que tem desempenhado e desempenhará por muito tempo ainda (para não ir mais longe numa afirmação que é contingente), uma função importante no devir humano.

 

Que função é essa? A de totalizar num Mito, mediante a Fé, - veremos adiante o significado positivo destas palavras -, a aspiração inalienável do homem a uma unidade que tudo integre, contenha e explique. O mesmo faz a Arte e - nos bons tempos em que ainda se concebia como sistema - a Filosofia, mas só em certa medida. Quer num quer noutro destes dois casos, o mito cria-se sob os nossos olhos. Fruto da especulação intelectual ou da imaginação artística, ele apresenta-se, não como revelação mediatizada da Fé, mas como imediatização conceptual ou emotiva duma intuição ou noção de Todo e Uno que o artista ou o pensador propõem gerais, mas apresentam como suas. E só a Arte consegue fazê-lo, verdadeiramente, porque só ela fala, não à inteligência apenas, mas à plenitude do homem.

 

Que será então a Fé, para ir não só além da própria Arte, mas instalar o homem na convicção de que nasceu, não pelo acaso dum acto cego, mas pela conjunção duma harmonia que o conduz a um destino próprio? Diz Pedro Amorim Viana, na sua tão injustamente esquecida Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé (Porto, 1866), que «a fé significava, a princípio, simplesmente confiança. Os fiéis eram os que confiavam na palavra do Senhor, os que tinham esperança em suas promessas». Estas palavras reportam-se ao cristianismo. Mas a Fé antecedeu-o, evidentemente, o que não obsta a que a definição esteja certa: ela é confiança. Que confiança? Prossegue Amorim Viana, noutro contexto: «Ao passo que o filósofo deriva toda a religião de uma revelação natural e interior, o crente firma-a sobre um facto histórico, o qual, sendo em si mesmo compreensível como todos os factos históricos, assume um carácter sobrenatural e divino, sancionado por um aparato mítico em que, mais ou menos claramente, se simbolizam a acção da providência e o destino superior da Humanidade». Eis as duas palavras-chave: mito e símbolo. E escritas por quem, defendendo a Razão que servia como homem de ciência, analisava a Fé que tinha: «Somos um espírito isento de preconceitos, mas somos uma alma religiosa. Aceitamos a Igreja, contanto que ao lado dela estejam a liberdade e a crítica».

 

Que mito, que símbolo? Teria de decorrer um século para estas palavras alcançarem, sobretudo com Henri Wallon (De l'Acte à Ia Pensée, Flammarion) e, muito recentemente, com Roger Garaudy (Du 20.e Siècle, La Palatine, 1966), a sua adequada significação. Lê-se no primeiro desses livros, de que existe tradução portuguesa (Portugália): «No primitivo, a tentativa de explicar o visível pelo invisível não é uma sorte de aberração que o desviaria do real e que, ao contrário do nosso esforço orientado para o conhecimento científico, o faria preferir o sobrenatural à Natureza. É, sim, a condição indispensável de todo o esforço intelectual, se o seu objectivo é superar os dados da experiência simplesmente vivida e descobrir, por detrás dos efeitos com os quais nos mistura a nossa própria actividade, as causas donde eles resultam e donde poderão ser extraídos processos para actuar sobre esses efeitos duma maneira que não seja reagir imediatamente pelos meios sensório-motores». Disto concluiu Wallon que o oculto é uma categoria mental, que está não só na origem de todas as outras, mas as condiciona, pois estas, ao contrário do que supõem as teorias essencialistas do homem, não são fixas nem perpétuas. Operando màgicamente, de início, ele gera o mito por um processo equivalente àquele por que a razão virá a criar a hipótese científica. E exemplifica: «Pois não é verdade que, para Platão, as imagens ou as ideias guardam como que um reflexo de potência mágica que deixa pressentir a transição do pensamento místico ou primitivo para os nossos modos racionais de pensar?»

 

Retomando esta interpretação, Garaudy reconhece que a perscruta religiosa intervém na organização do conhecimento. E cita a frase em que Einstein define o seu sentido de religiosidade cósmica (sem Deus e sem dogmas) como vontade de «apreender a totalidade da existência como unidade cheia de sentido». Para assim chegar ao conceito de que «o apelo à transcendência recobre esta experiência real de que o homem, pertencendo à Natureza, é diferente das coisas e dos animais, e, sendo capaz de se ultrapassar incessantemente, não está nunca acabado».

 

 

Qualquer que seja a mediatização ou alienação por que passe a Fé, ela afirma, em última instância, o homem, - face ao oculto. E Arnorim Viana, esse extraordinário precursor cujas análises do dogma (como mito e símbolo) são um encanto ler, di-lo com esta simplicidade: «A ideia que formamos de Deus não é senão a que temos de nós mesmos e os atributos que lhe conferimos são as nossas próprias faculdades engrandecidas e aperfeiçoadas». Chame-se Matéria ou chame-se Espírito à abstracção máxima a que o homem pode chegar, nem uma nem outra responde ao enigma inicial e básico do mundo. Qualquer interpretação opta, portanto, com fundamentos próprios, entre duas hipóteses igualmente precárias. É a essa opção que se chama Fé. Daí que a Fé do ateu possa ser tão generosa ou tão implacável como a do crente, pois têm a mesma origem. Quem ultrapasse, todavia, esse nível do problema e veja na herança humana uma experiência dialéctica em que é impossível haver toda a verdade dum lado e todo o erro do outro, chega a uma unidade que tudo inclui e sobreleva: a do humanismo. E Garaudy pode dizer: «a profundidade da fé, num crente, depende da força do ateu que ele traz consigo; e a profundidade humana dum ateu, da força do crente que ele traz consigo». Garaudy evitou a palavra Fé, na segunda parte da frase. Mas eu restituo-lha, por minha conta e risco. Pois como poderia explicar-se, doutro modo, que o ateu sacrifique a vida ou a liberdade em defesa do que pensa ou ama, quando tantos «crentes», dispondo da eternidade em que confiam, se furtam a isso? Sim, é com Fé que todos nós somos homens, quando o somos. E por isso Frei Amador Arrais escreveu: «Não se pode dar cristandade a troco de servidão: antes será grave injúria para nossa santa fé».

 

 

Mas, assim como a mitologia formaliza o mito, assim a religião formaliza a Fé, anacronizando-a. E o mesmo se dá com o ateísmo, em cada fase histórica por que passa. A evolução duma e doutro é uma luta permanente pela sobrevivência e pela renovação. E ambos são, nela, tão indispensáveis um ao outro como a resistência do ar ao voo. Consciência disso e colaboração nisso, só pode ser, portanto, um passo em frente, de que todos recolheremos benefícios. Nisto mesmo viu justo Amorim Viana também: «A religião penetra-se da filosofia como nós respiramos o ar: espontânea e irreflectidamente. Tornou-se insensivelmente aristotélica e platónica, como talvez em breve se tornará kantista e hegeliana. A filosofia opera sobre a teologia do mesmo modo que, no parecer de Guizot, actuam sobre os governos o povo e a opinião pública. A sua influência é indirecta, mas imensa, irresistível. Porém, o que em política não basta, é suficiente em religião. Não exijamos que a Igreja abandone os milagres ou os mistérios, não a obriguemos a nenhum sacrifício, a nenhuma concessão. Deixemos isto à acção do tempo e às circunstâncias, e ela será levada, naturalmente, a pedir à filosofia quanto baste para tornar o dogma civilizador, à poesia e ao simbolismo do que precisar para falar à imaginação dos fiéis». Aos que hoje lêem ou seguem Teilhard de Chardin, não lhes será motivo de reflexão este passo?

 

Mas percorra-se todo o epílogo da obra e ver-se-á como, há cem anos precisos, um pensador português, se bem que embuído dum leibnitzianismo que há muito ultrapassámos, apontou direcções e caminhos que estamos seguindo, mutatis mutandis, como se fora ele quem comandasse a História! E, todavia, quantas pessoas terão lido, até hoje, o seu livro?! Há cem anos que apodrece, contendo o Sol lá dentro! Lanterna vermelha do mundo moderno, sempre tivemos quem caminhasse à frente da sua História. Se não soubemos ou sabemos merecer tais precursores, nem por isso deixaremos de fazê-lo um dia. A Fé é isto.

 

 

II

 

Reconhecido o que seja a Fé, dum ponto de vista estritamente humano, isto é alheio ao conceito místico de Graça, vejamos o que poderá dizer sobre ela a minha experiência pessoal.

 

Recordemos, porém, e antes disso, que o livro de Amorim Viana foi posto no Index; e que o padre Teilhard de Chardin não pôde publicar a sua obra em vida. Não obstante, um e outro desses autores abrem hoje a porta a quem queira compreender a evolução da Igreja. E, isso, porque ambos lhe postularam um desenvolvimento: declarando-se homem de Fé e para-cristão, Amorim Viana anunciava que o catolicismo viria a transformar-se; submetendo-se à disciplina hierárquica, Teilhard de Chardin deixava aos vindouros o encargo de editarem, a título póstumo, urna interpretação renovadora do cristianismo que, de momento, parecia herética.

 

O cristianismo primitivo, até à conversão do imperador Constantino, fora uma religião de comunidades em luta com o poder constituído. Reflectia, como diz Garaudy, «o aniquilamento histórico das revoltas de escravos». Daí que fosse, a um tempo, alienação e protesto: alienação, na medida em que acomodava, conformava e transferia a insubmissão; protesto, na medida em que a partilhava e, apontando ao homem a sordidez do dia-a-dia, lhe prometia um futuro melhor, sobrenatural embora. Estas características subsistiriam.

 

Foi na alienação que me educaram católico. Mas a fé de minha Mãe era uma fé verdadeira, uma fé de repúdio implícito pela opressão e pela mentira organizada. Havia nela a pureza do cristianismo primitivo e a tensão, jamais obliterada, dos seus renovadores. Quando recordo a infância, encontro nela o fermento, em última análise religioso, do que me levaria a romper, na adolescência, com o que no catolicismo é alienatório, e a procurar, fora dele, outros rumos para a minha vida. Onde estava, com efeito, a lição de Cristo? Por mais que a procurasse no mundo em torno, jamais a encontrei.

 

Concluir-se-á daqui que ser anticristão, no sentido temporal da palavra, pode ser uma maneira de se ser cristão, em sentido evangélico. E não faltariam exemplos, se fosse necessário dá-los. Mas eu não fui nunca anticristão. E não o fui porque intuí, no contexto já indicado, que religião de escravos não é o mesmo que emancipação de escravos, mas o seu escape. Ser ou não ser cristão não era, pois, o problema, mas um problema que se inseria na escala, sempre crescente, de muitos outros.

 

À superação dessa antinomia, alguns homens preferem, todavia, a pseudo-solução que a ironia lhes concede. Tomando à letra os dogmas, decidem pelo sarcasmo ou pelo humor o que a religião simboliza por eles. E, querendo repudiar uma alienação, caem noutra, pois instalam-se no realismo ingénuo ou factício dum mundo que seria à medida do homem. O que é uma sobrevivência, sem tirar nem pôr, da noção teológica de cosmos como enquadramento criado por Deus para morada do homem. Habitat humano, o mundo não poderia deixar de responder, em sua essência e natureza, à visão antropocêntrica que dele se fazem. Embalde se lhes dirá, por exemplo, que a perspectiva renascentista é uma criação tão subjectiva-objectiva do olhar humano como a da pintura primitiva ou a da pintura moderna; ou que, de Newton a Einstein, se dissolveu e recristalizou o que Wallon chamaria a categoria do oculto.

 

Mas quererá isto dizer que o conhecimento humano é ilusório e vão? Pelo contrário. Quer dizer, sim, que ele é uma recriação permanente, uma reapropriação intérmina do oculto, mas que conduz, em cada fase, à aquisição de noções válidas, exactas, inquestionáveis e, na medida do humano, absolutas. Pôr Deus, em nossos dias, nas frinchas deste processo ou à sua margem é alienar, de novo, o que estava na raiz do processo que levou o homem a concebê-lo: a intuição de que é significante a mole cósmica em que se integra.

 

Quando se dá a esta intuição cósmica o nome de intuição-de-Deus, opta-se pelo irracionalismo. Com efeito, à intuição da unidade cósmica comprova-a, parcial mas incessantemente, o conhecimento humano, e nomeadamente a ciência. Mas a chamada intuição-de-Deus é de si mesma inverificável. Se, na era pré-científica da história humana, antecipou a noção de categoria do oculto, presentemente constitui um mero desejo de happy end, uma aspiração de tranquilidade apenas, que Montaigne, no capítulo de Les Essais intitulado Filosofar é Aprender a Morrer, desenvolveu em termos muito superiores aos da aposta pascaliana, pois conduzem à afirmação humanista de que «a premeditação da morte é premeditação da liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu a servir». A ascensão mística que essa «intuição» promove não passa de um ouvi-dizer, para os outros; e de um intransmissível, para o próprio. Em seu Castillo Interior o Las Moradas, vezes sem conta se confrange com isso Santa Teresa de Jesus: «Valha-me Deus! Que diferença vai entre ouvir estas palavras e dar a entender quanto são verdadeiras!».

 

Não obstante, o que na ideia de Deus dá combate ao realismo ingénuo, ao materialismo mecanicista e à pseudo-solução da ironia continua a ser válido, na medida em que compele o homem a ultrapassar-se, quer no sentido do empírico quer no do subjectivo. É esta a componente positiva que a perscruta religiosa e a perscruta metafísica podem fazer intervir, quando autênticas e informais, nos períodos em que a vida social estagna na parasitação dum ideário fechado ou duma ideologia petrificada. E acresce que, sendo a sociedade uma pirâmide em que coexistem múltiplos estratos de diferenciação cultural e antropológica até, querer separar, de chofre e sem contrapartida, os que estão mais atrasados, da superstrutura religiosa em que a dominação social os instalou, seria substituir o objectivo de emancipação social e de promoção cultural pelo de queda no vácuo. E praticar, em última análise, uma política afim da de genocídio.

 

Já de uma outra vez contei como, perdida a fé católica da minha infância, vim a descobrir que o perdê-la nada resolvera, por si só, e me empobrecera até. Foi numa aula do liceu. Chamado ao quadro, um colega demonstrava, o mais burocràticamente que é possível, um vulgaríssimo teorema de geometria. Nada havia no professor ou no aluno, e muito menos na matéria leccionada, que distinguisse aquela aula de tantas outras. E, todavia, ao seguir a cadeia do raciocínio exposto, eu tive de súbito uma revelação: havia um sincretismo na mente humana, uma coerência que perseguia um fim, uma lucidez que integrava o homem num conjunto mais vasto do que ele. Datou daí a minha compreensão de que não bastava eliminar o caduco: era preciso adubar com ele a inteligência e levá-la a florir de novo.

 

Quais serão, porém, os ramos verdadeiramente secos da árvore do Saber? E quais os verdes? Não poderá conhecê-lo quem os julgue pela aparência apenas. Há plantas que diríamos mortas e que reverdecem, de súbito; outras, que esplendem de seivas e fenecem, de repente. Não basta olhar o ramo: é preciso pô-lo à prova, tentar parti-lo. O critério subjectivo de verdade, qualquer que seja o seu nexo lógico, é, portanto, uma fase apenas, uma conquista menor na extensão dum processo que, para ser autêntico, tem de franquear esse umbral e descer ao redondel, - para aí vencer ou morrer.

 

Jean-Paul Sartre escreve, na sua Critique de Ia Raison Dialectique (Gallirnard): «Para alguns, a Filosofia apresenta-se como um meio homogéneo: os pensamentos nascem e morrem nela, os sistemas erguem-se e caem dentro dela. Para outros, seria uma atitude que poderíamos adoptar livremente, em qualquer momento. Outros, ainda, vêem nela um sector determinado da cultura. Aos nossos olhos, contudo, a Filosofia não existe: sob qualquer ângulo que a consideremos, esta sombra da Ciência, esta eminência parda da Humanidade, não passa de uma abstracção hipostasiada. O que há, na verdade, são filosofias. Ou melhor - pois não encontrareis, em cada época, senão uma que seja viva -, em certas circunstâncias bem definidas, constitui-se uma filosofia que dá a sua expressão ao movimento geral da sociedade; e, enquanto vive, é ela que serve de meio cultural aos contemporâneos». E mais adiante: «Uma filosofia, quando está no auge da sua virulência, não se apresenta nunca como uma coisa inerte, como unidade passiva e já concluída do Saber: nascida do movimento social, ela é movimento ela própria, mordendo o futuro. Toda a filosofia é prática, mesmo a que parece mais contemplativa. Deste modo, só se mantém eficaz enquanto permanece viva a práxis que a engendrou, que a conduz e que ela ilumina». Há muita verdade nisto, mas também o excesso a que o pendor existencial arrasta a subjectividade de Sartre, por vezes.

 

Com efeito, se é correcto o conceito de práxis (ou de prática social e colectiva) pelo qual ele ajuíza da efectividade duma filosofia, não o é o conceito pragmático (ou de prática individualista e personalizante) pelo qual declara não existir, a seus olhos, Filosofia mas filosofias. Só por um imperativo arbitrário da subjectividade se pode negar a história humana e, dentro dela, a concatenação do pensamento filosófico, que representa uma dialéctica do conhecimento, sim, mas uma dialéctica a que corresponde outra dialéctica: a do Ser, da qual a primeira deriva, não como se fosse um reflexo passivo, mas como reflexo criador do homem. E, como tal, reflexo que é ontogenético, em certa medida: a do seu próprio condicionamento. Ou, como diz Garaudy: «o sentido da vida e da História não é uma criação do homem individual, como sugere o existencialismo. Ele existe já antes de nós e sem nós, pois as iniciativas históricas das gerações anteriores cristalizaram em produtos e em instituições que criam condições históricas resistentes às nossas iniciativas actuais e que excluem, radicalmente, um grande número de possíveis históricos. Mas esse sentido mantém-se em aberto, pois o futuro continua por criar, se bem que a partir de condições herdadas do passado». Eis assim que este futuro-por-criar reganha, para lá das divergências, o conceito sartreano de filosofia viva ou de filosofia sendo.

 

Homem de ciência e humanista, Julian Huxley seguiu o mesmo caminho quando escreveu, no ensaio A Religião como Problema Objectivo, do seu livro L'Homme - Cet Être Unique (La Baconnière): «A situação especial em que se encontra a religião é a seguinte: o conceito de Deus atingiu os limites da sua utilidade e não pode evoluir mais». Já atrás pus algumas reservas circunstanciais a esta conclusão. Mas o que importa, em Huxley, é a perspectiva do futuro. E, nela, coincide com Amorim Viana e com Teilhard de Chardin: «O desaparecimento de Deus não significa o fim da religião. No sentido mais literal da palavra, o eclipse de Deus é um processo teológico. E, quando as teologias se modificam, nem por isso as impulsões religiosas que lhes deram origem deixam de persistir. O desaparecimento de Deus implica, assim, uma renovação religiosa, e uma renovação dum tipo especial: a que põe sobre os ombros do homem as responsabilidades que ele fizera recair sobre Deus». Fazendo notar que o conflito que opôs a ciência à religião envolveu apenas as relações do homem com o mundo externo, Julian Huxley conclui que, no plano do que é interno à espécie humana (quer dizer, no do social e psicológico), as relações entre ciência e religião podem e devem ser cooperativas, de futuro. E já hoje o são, em larga medida.

 

Aferido fica, assim, um outro módulo pelo qual a Fé, longe de abrir conflito entre teístas e ateístas, a todos inclui num só projecto, num só futuro.

 

 

III

 

Ao escrever, atrás, que o livro de Amorim Viana procedia, aos olhos do leitor de hoje, como se comandasse a História, eu coloquei-me no limite que separa o humanismo concreto ou cientifico do humanismo abstracto ou teleoteológico. E por isso indiquei a influência que Leibnitz exerceu nesse autor.

 

A vigilância crítica que o humanismo concreto implica não exclui, com efeito, que uma dialéctica exista, permanentemente, entre ele e o humanismo abstracto, como aliás sempre sucede entre a abstracção, qualquer que seja, e o concreto que lhe corresponde.

 

Assim, o conceito de alienação assume, no idealismo dialéctico de Hegel, o sentido de fenómeno que ocorre na consciência e que só nela e por ela pode ser suprimido; e reverte, no materialismo dialéctico, à significação histórica de cisão que interessa a consciência, sim, mas como produto ou consequência de circunstâncias sociais. Ou seja: cisão que repercute a divisão económica da sociedade entre classes que possuem e classes que são possuídas. Ou seja ainda, e segundo a fórmula clássica: o que se apresenta, em quem trabalha, como actividade de alienação, aparece, em quem vive à custa desse trabalho, como condição de alienação.

 

Se a alienação abrange, portanto, todos os estratos sociais e só pode ser vencida, plenamente, pela transformação da infra-estrutura que a gera, duas conclusões se impõem: primeiro, a de que é sobre esta que temos de intervir, para cabal solução do problema; segundo, a de que a apreensão ou consciencialização do que seja a alienação corno forma de consciência mistificada nem por isso é inoperante, em certa medida, pois foi através dela, inclusivamente, que chegámos ou chegamos ao reconhecimento das suas origens sociais.

 

O último número da revista católica Brotéria, datado deste mesmo mês de Janeiro, abre com um artigo do reverendo padre Carlos Outeiro da Cruz, em que diz: «O Concílio que há um ano se encerrou traduz e anuncia uma viragem na história da Igreja e o começo de outra. Por isso mesmo, ele surge também como uma viragem na história da ciência da Palavra de Deus». Sublinhando, que «uma das notas dominantes de Vaticano II residiu, precisamente, na constante preocupação de abertura aos problemas do mundo», reconhece que, «para que a abertura seja eficaz e não se reduza a mera proclamação verbal ou a mero votum sine re, importa sobremodo que se crie nos seus cultores o espírito de comunicação e de diálogo». E, acentuando que «a justa liberdade de pesquisa, de pensamento e de proposição concede-a hoje, ampla, a Igreja», aponta que, «vencida a alienação económica e pacificada a luta social, estabelecida a possível igualdade na justiça e na fraternidade entre os indivíduos e entre os povos, ainda nessa hipótese - a mais favorável que ao olhar humano se torna possível entrever - ainda nessa hipótese restará por cumular o abismo da insatisfação e inquietude que é o coração de cada homem».

 

Estou de acordo neste ponto, que é o único, aliás, em que tenho o direito de pronunciar-me. E, dizendo-o, não dou novidade nenhuma a quem tenha lido com atenção o que já escrevi ou citei. Mas estou de acordo com uma diferença que modifica totalmente o alcance do facto: eu não deploro nem considero indesejável ou maléfica a inquietação humana, antes vejo nela a mola real do processo pelo qual o homem não só se fez, mas «cria» o mundo e a História; e não reduzo a alienação ao nível económico, pois parto dela, ao contrário, para a aperceber na consciência, pelo que, longe de me propor aplacar, engodando-a, a inquietação, faço dela a alavanca do futuro - e a condição do homem. Reconheço o direito e a liberdade que assiste a cada um de lhe responder em termos religiosos ou filosóficos, mas não a legitimidade de se furtar às responsabilidades que o seu reconhecimento envolve, quando este tenha sido alcançado.

 

Ora, se o Concílio Vaticano II traduz e anuncia, como atrás se leu, uma viragem na história da Igreja, é de justiça perguntar-se o que a terá motivado. Poderia ir buscar-se a épocas mais recuadas da História - como, por exemplo, à da Reforma e Contra-Reforma - a lição do passado. Mas basta recuar até ao fim do século anterior, ou seja à encíclica Rerum Novarum, que é considerada o marco que assinala o acordar da Igreja para os problemas sociais. Que coisas novas a teriam originado? A primeira Internacional Socialista aparecera em 1864; a Comuna de Paris dera-se em 1871. E a encíclica veio ao mundo em 1891, quando saint-simonistas, proudhonianos e marxistas disputavam entre si a liderança dos movimentos socialistas e reivindicativos. Foi portanto o fenómeno social (por seu turno emergente da conversão industrial da economia) que repercutiu no fenómeno religioso, levando este a reconsiderar as posições que até então assumira e a procurar intervir nas transformações por que o mundo estava passando ou iria passar. E era notório o conteúdo anti-socialista da encíclica, o contra-reformismo, chamemos-lhe assim, que assumia. O que não obsta a que, à sombra dela, se tivessem formado correntes progressivas do pensamento católico, nas quais um certo grau de desalienação social ia abrindo caminho. Resulta daqui, porém, que o simples «reconhecimento» da alienação económica, longe de conduzir a consciência à plenitude de si, pode agravar, até, o processo que a cinde. E muito haveria a dizer sobre isto (no que se refere, sobretudo, à década de 30-40 deste século) se o espaço não minguasse.

 

Foi na evolução daquela conjuntura - de que ninguém ignora os acontecimentos mais marcantes - que o Concílio Vaticano II veio situar-se. E declaradamente o reconheceu ao aludir, na Exposição Preliminar da Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo, à «metamorfose social e cultural» que entretanto abrangera largos sectores populacionais do mundo e cuja repercussão na vida religiosa assim enumera: «Por um lado, o desenvolvimento do espírito crítico purifica-se de uma concepção mágica do mundo e de reminiscências da superstição, e exige uma adesão cada vez mais pessoal e activa à fé, o que faz que sejam mais numerosos aqueles que atingem um sentido mais vivo de Deus. Por outro lado, multidões sempre mais compactas afastam-se, na prática, da religião. Recusar Deus ou a religião, não se preocupar com isso, não é, como noutros tempos, um facto excepcional, individual: hoje, com efeito, tal atitude é frequentemente apresentada como uma exigência do progresso científico ou de qualquer humanismo novo».

 

Deixando de opor-se, como anteriormente, à metamorfose social do mundo, antes preconizando-a e procurando promovê-la até (como poderá ver quem leia o documento citado), a Igreja pós-conciliar não só admite a eliminação da desigualdade económica (dando à esmola um valor meramente simbólico que manda ultrapassar por outros processos), mas legitima os meios reivindicativos que a tal conduzam. Ou seja, para voltar à citação do artigo da Brotéria, vê na extinção da alienação económica e no espírito crítico que a sua desmistificação fomenta uma purificação da religiosidade e um apuramento do verdadeiro sentido de Deus.

 

Claro está que a análise a que submete a alienação é incompleta. Já anteriormente expus, se bem que muito pela rama, como não podia deixar de ser, que o conceito de alienação não pára aí. Mas o que para o ensejo tem importância é que o catolicismo, assim concebido, nem se incrusta na alienação como o faria (e fez) opondo-se à remoção das causas que a geram, nem teme as consequências que daí possam resultar-lhe a longo prazo, pois aprova que os seus fiéis e leigos colaborem com os demais na extinção daquelas.

 

Não posso deixar de render homenagem a isto, muito embora sabendo que não tirarei daí qualquer usufruto. Não é porque escrevo de noite que devo negar os benefícios do Sol! E não ignoro que a parte que me coubesse, reflexamente, nesse esboço de desalienação, seria apenas a quota-parte infinitesimal que recolheria do concurso que dei, à escala do átomo, para que ela se realizasse. Não se pode ser, portanto, menos ambicioso. Mas não pode ser-se também mais sincero no apelo que faça aos verdadeiros católicos para que ponderem as responsabilidades que partilham nisso.

 

Demarcado este terceiro patamar de acesso à boa vontade, devo acrescentar, ampliando e aproximando a citação que anteriormente dei de Julian Huxley, que é sempre possível, a uma certa mentalidade, adoptar a posição de Baudelaire: «Mesmo que Deus não existisse, a religião ainda seria santa ou divina. Deus é o único ser que, para reinar, não tem necessidade de existir sequer» (Journaux Intimes). Entre a chamada fé do carvoeiro e a fé do irracionalismo, cada um é senhor de dizer como Kant apontou na Crítica da Razão Prática: «eu quero que exista Deus!». Ignorá-lo seria iludir a nebulosa deste ser que se chama homem.

 

Direi também que, se a perda da fé, que anteriormente analisei, ou a sua original ausência constituem uma condição negativa, apenas, do impulso que deve levar o homem à plenitude duma perscruta filosófica que o insira no processo histórico do seu tempo, asim a passividade do Cristão perante o imobilismo a que a fé que partilha esteja sujeita só pode degradá-la e degradá-lo. E não sou eu quem o digo, pois fazê-lo seria infringir o princípio que adoptei de não meter a foice na seara alheia. É o escritor católico João Bénard da Costa quem o recorda no notável trabalho que publicou, a propósito do Concílio, no n.° 37 da revista O Tempo e o Modo, sob o título de A Igreja e o Fim dos Constantinismos: «O Cristão aliena a sua liberdade a favor da Igreja como a Igreja a alienou a favor do Estado, entendendo-a, não como algo de que faz parte e que ele é, mas como superstrutura que o envolve, o protege e o sustenta. Nesta perspectiva, é natural que dela veja, sobretudo, a estrutura hierárquica, que a identifique com a Lei e com a Norma e não com o Espírito e com o Amor». E pergunta: «Mas o medo da liberdade, o medo da verdade, o medo da vida, poderão ser características essenciais dos discípulos d'Aquele que a Si próprio disse: «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida?» Ubi autem Spiritu Domini, ibi libertas, é esta a afirmação essencial do Cristão e é este o sentido fundamental que se perdeu».

 

Seja qual for, porém, o caminho que se escolha entre os que me limitei a apontar, é comum a todos eles que a verdade não possa ser conhecimento sem ser acto. São hoje numerosos os pensadores que adoptam posições filosóficas afins das do materialismo dialéctico e que apenas se desgarram e tornam factícias por não reconhecerem que só a práxis (a prática social e colectiva) pode tirar-lhes a prova real da efectividade. É contra isso que uma filosofia viva tem de lutar constantemente, pois o risco da alienação especulativa espreita-nos a cada passo. No caso português o impasse ideológico agrava essa situação. E há por isso muitos homens que, impossibilitados de se realizarem na vida colectiva, se iludem ao tomarem por caminhos que, em circunstâncias diferentes, nunca seriam os seus.

 

É nas justas da verdade, e não na quietude equívoca da terra-de-ninguém, que a presença humana se define. Parta quem queira, para isso, do teísmo ou do humanismo abstracto se outro não tiver podido alcançar, mas sem esquecer que a História não é um espectáculo a que assistimos, mas um real (condicionado embora) que criamos. Onde o homem se resigna à alienação histórica, quem poderá falarem nome dele?

 

 

IV

 

Se admitirmos, de um ponto de vista materialista, que a Natureza foi tão «sábia», ao produzir o homem, que o dotou, sem uma falha, de todas as faculdades indispensáveis ao conhecimento integral do mundo, teremos de convir que essa hipótese é demiúrgica, uma vez que pressupõe poder o mero concurso das causas naturais conduzir, finalisticamente, a um resultado que tem por limite a omnisciência que o homem atribui a Deus. É fora de dúvida que tal interpretação do materialismo reflecte, inconsciente disso, uma sobrevivência teológica.

 

Não obstante, ninguém duvida de que o conhecimento humano é válido. E não só interpreta correctamente a Natureza e a vida, como permite transformá-las. Quer isto dizer que entre a matéria e a consciência não existe uma simples relação de causa-efeito que permita interpretar a segunda como epifenómeno da primeira, - ao contrário do que pretendeu o materialismo mecanicista -, mas sim urna relação de causa-efeito que faz surgir a segunda por um processo de transformação qualitativa da primeira que a dota duma autonomia relativa. Daí que os dados recolhidos pela consciência, ou as conclusões a que chega, possam ser inadequados à realidade a que concernem e entrar, até, em conflito com ela, não havendo outro critério senão o da práxis (ou prática social e colectiva, refresquemos a memória) para o saber. Quando dizemos, portanto, que uma aquisição do conhecimento humano é válida, reportamo-nos não à sua lógica interna ou formal, mas à verificação que dela podemos fazer agindo sobre o real. E é neste sentido, apenas, que o materialismo representa a verdade, quando considerado em unidade dialéctica com a consciência que o define - e nunca abstraído dela, como o pretendeu o materialismo metafísico. O que é dizer que, se a noção de matéria é inseparável da de consciência (pois é um conceito), e se pode, em teoria, derivar de qualquer um desse termos para o outro, a práxis só autoriza que o façamos partindo do de matéria para o de consciência - e é a isso que chamamos materialismo histórico. Mas, sendo impossível conceber a elisão de um e outro, é pura extrapolação o admitir-se que o conhecimento integral e absoluto do mundo seja algum dia possível, pois isso implicaria a existência duma testemunha exterior ao processo. E se os teístas não têm dúvidas em alienar a sua própria consciência concebendo desse modo Deus, os materialistas dialécticos recusam-se evidentemente a isso, pela simples razão de que, apoiados na exactidão da práxis, só podem considerar um descaminho o trocar-se o racionalismo pelo irracionalismo. Daí que a metafísica não tenha, para eles, qualquer sentido como forma de conhecimento sistemático, muito embora admitam que possa reflectir incidentalmente o real.

 

Há, porém, um outro tipo de conhecimento que se furta à alçada da práxis e nem por isso é irrelevante: o da subjectividade. Com todas as suas distorções e fantasias, ela não só reflecte o real como se constitui num «real» ela própria. A sua força de persuação pode ser tão intensa que dela derivam os idealistas filosóficos todo o seu conceito de real, recusando para a sua destrinça o critério da práxis, como é óbvio. A prevenção que o materialista dialéctico deva ter contra isso (e fundadas razões históricas tem ele para tanto!) não o autoriza a subestimar, contudo, o que na subjectividade é reflexo autêntico do real, se bem que extraviado em suas implicações, quando é o caso, e o que nela é sempre contribuição para o conhecimento psíquico do homem. Os desejos, os sonhos, as evasões, os delírios, as alienações, os tropismos, as alucinações, os afectos, as criptoestesias, os impulsos, as fantasmagorias humanas, são uma «realidade» para quem os experimenta, que nem por ser subjectiva é menos significante da natureza humana. Ignorá-la, repeli-Ia, submetê-la à normatividade rígida duma concepção esquemática da vida e duma noção estatística de normalidade seria reduzir o nosso sentido do humano ao homo faber.

 

De acordo, pois, - e por um lado - em que o mundo não é um habitat precondicionado do homem, mas um meio de que ele se apropria a golpes de lucidez e de audácia, através dos quais o transforma e a si mesmo, evolutivamente, se faz. E de acordo - por outro - em que a subjectividade é uma força poderosa, fonte do conhecimento ele próprio e filão inesgotável de «possíveis» em que emoções, ideias, intuições, sentimentos e volições representam um valor virtual de que ninguém poderá fazer o balanço a priori. O que o homem objectiva de si mesmo em cada dia que vive é apenas uma parcela ínfima desse tesouro oculto. Atenção, pois: o real não esgota, nem por sombras, o homem. Se o duvidam - e só poderá fazê-lo quem se tenha esquivado à intimidade consigo mesmo -, perguntem-no aos surrealistas, por exemplo. E se vos parecerem risíveis as suas «excentricidades», sigam o conselho que Franco Fortini dá no seu livro Il Movimento Surrealista (Garzanti) - e revejam, mentalmente, as «extravagantes» parangonas com que os diários noticiaram, não há muito: A Cadela Espacial Está Viva e Passa bem... Quem foi o surrealista que mandou tal poema às agências noticiosas?!...

 

Só pacificando ou satisfazendo a sua subjectividade é que muitos homens conseguem, entre lutas íntimas e tão árduas como inevitáveis, assomar à janela que dá para o mundo, a fim de o redescobrirem. Também nisso a biografia de muitos surrealistas, corno hoje a de vários existencialistas, é bem elucidativa. Recorde-se apenas Eluard, Aragon e Sartre. Tudo o que eu pudesse dizer, tomando corno ponto de partida este símil, sobre o milindre que assume a subjectividade religiosa seria mais precário ainda, uma vez que esta não sai nunca para fora de si mesma com a nitidez expressiva que caracteriza a arte. Mas o que é lícito deduzir da experiência pessoal dos que já foram crentes e dos testemunhos que outros nos deram sobre a sua própria fé garante-nos que o problema não só é congénere do anterior mas o ultrapassa em complexidade até. Dos místicos aos falsos crentes, dos ateus aos agnósticos, dos teístas aos deístas, dos supersticiosos aos ocultistas, dos confusionistas aos paradoxais, a gama é impensável. E, pelas suas malhas e meandros, caminham legiões de homens que não puderam ou não souberam dar uma forma às suas opiniões e por isso constantemente oscilam entre as dos demais.

 

Do ponto de vista que aqui me interessa, porém, o importante é assinalar que o ateísmo é só uma condição negativa, ou primária, dum caminho a que importa descobrir um horizonte que afirme. Só se nega Deus porque alguém o afirmou. E se esse alguém fomos nós próprios, em fase anterior da nossa vida, negá-lo é negarmo-nos como passado. É empobrecermo-nos, portanto, como atrás já indiquei ao referir-me à minha própria experiência. Mas é empobrecermo-nos se quedarmos aí. Com efeito, toda a negação contém urna afirmação parcial. Negar Deus é afirmá-lo ainda, por conseguinte, e seccionar o homem em duas metades que conflituam entre si, se alienam por vezes, ou estabelecem um armistício precário mediante a ironia. Qual delas irá prevalecer, no futuro? É isso que explica o retrocesso de alguns ateus à sua fé inicial. Mas negar a negação de Deus não é voltar a afirmá-lo, é sim ultrapassar a antinomia que teísmos e ateísmos representavam e atingir a síntese que afirma o homem, criador e negador de deuses. À negação que afirmava substitui-se a afirmação que nada nega porque tudo inclui. Daí que eu chame Fé ao meu humanismo abstracto e restrinja a designação de Ideal ao meu humanismo concreto ou imediato.

 

Pode «roubar-se» a fé a um crente. Pode «roubar-se» a ausência de fé a um ateu. Mas ninguém pode «roubar» a fé a um humanista! Essa a sua força, esse o seu sempre perene e disponível futuro que fez da sua fé a mais rica que algum dia o homem pôde ter! O teísta diz-lhe: Deus existe. E o humanista responde-lhe: existe, sim, existe dentro de ti como aspiração, como sentimento, como ideia, - como alienação. O ateísta diz-lhe: Deus não existe. E o humanista responde-lhe: decerto que não, mas tu, ó coisa pequena!, ó homem truncado!, tu não vês que se podes afirmar ou negar Deus é porque és a medida de tudo o mais? Então, por que esperas para te veres tal qual és?

 

Conclui-se daqui que só posso ter pena, uma enorme pena das pessoas que rejubilam porque Fulano se converteu ao catolicismo, por exemplo, ou porque Cicrano se passou para o ateísmo, também por exemplo... Como se isso tivesse, por si só, qualquer importância! Ser homem é a única coisa que vale. E por isso os pequenos roedores se afadigam tanto em procurar destroçá-lo... Para o humanista, a verdadeira obra da sua vida é ele próprio como elo duma cadeia infinda que o liga, em comunhão humana, a um passado, um presente e um futuro. Ponham-no no potro ou dêem-lhe a cicuta, façam-no abjurar como a Galileu ou tornem-no herói como a Lumumba, assobiem-no ou escarrem-lhe, - e só estareis a colaborar com ele no grande ensaio que é a vida do homem. Podeis tripudiar, se lograis, por momentos, amarfanhá-lo. Mas em vão! Ei-lo que se reergue como o Galileo Galilei de Bertolt Brecht! E mais rico do que nunca! Ser homem não é, assim, um meio apenas de chegar ao céu ou à mesa posta: é um fim em si mesmo, como o diz o título dum livro de ensaios de Alberto Moravia. E um fim que não seria fim sem a morte. Daí que também ela tenha a sua missão e o seu lugar no humanismo verdadeiro.

 

Ao apontar a necessidade de criarmos, dentro de nós, uma filosofia viva em que teoria e prática sejam inseparáveis, eu limitei-me a fazer, assim, uma profissão de fé de humanista. De pequeno humanista, mas de humanista. Mas há que compreender que quem tenha sido educado na alienação religiosa possa ter de passar, antes disso, por uma fase de dramática negação. E a esses só podemos ajudá-los fazendo corno Romain Rolland fazia ao receber, no desalinho da sua intimidade - para que assim perdessem todas as reservas -, os jovens que o procuravam. Intencional e metódico, mas guardando todo o calor humano que é posível deixar no que nos exterioriza, esse desalinho, em cultura, chama-se ensaio. Há lá palavra mais bonita! Ou fim mais digno: reaprender todos os dias a vida, sem que se perca o fio que nos prende a um caminho...

 

É bom lembrar, portanto, que estou escrevendo ensaios e não artigos doutrinários, os quais são, muitas vezes, fórmulas vazias que enchem o papo aos mais pimpões, mas deixam o homem fora de portas. Dou-me neles tal qual sou, deixando aos outros o cuidado de me corrigirem quando houver margem para isso e reservando-me a liberdade de aceitar dessas críticas o que reputar justo. Admito, assim, que me digam, por incompreensão: se a Fé é o nome que torna o seu Humanismo Abstracto, não será que você está a dar um outro nome a Deus? E eu respondo antecipadamente que não, pois nenhum conceito de Deus lhe corresponde nem pode corresponder. Mas concordo, isso sim, em que estou a dar um nome à intuição de unidade cósmica de que derivou, por alienação, o conceito de Deus. Estou, portanto, a restituir ao homem o que as religiões e os ateísmos históricos lhe subtraíram. Livre é cada um de me acompanhar nisso ou não. Mas só assim eu posso e sei acompanhar os outros. E nunca faltei a isso.

 

Encurtando razões e regressando ao que vínhamos: esclarecido ficou, suponho, que há uma problemática que pertence ao foro íntimo ou privado e outra que diz respeito ao foro geral ou comum. Ou seja: uma, que é da pessoa; e, outra, que é do cidadão. Há que distingui-Ias. Mas há também que mantê-las solidárias através duma dialéctica que é diversa em cada caso, mas encontra, em todos eles, um denominador comum. A posteridade jamais perdoou às épocas que não puderam ou souberam encontrar uma solução ampla e correcta para esse problema, - fossem elas a de Giordano Bruno ou a de António José da Silva, a de Anne Frank ou a dos formalistas russos.

 

No caso vertente, outra distinção há, contudo, que sobreleva essa: a que situa, dum lado, teístas e ateístas como tais; e, do outro, os interesses sociais que individualmente representam, para aquém ou para além das suas convicções religiosas. Todos sabemos que há operários católicos, camponeses católicos, pequenos-burgueses católicos, banqueiros católicos, latifundiários católicos, reis do petróleo ou do aço católicos (por exemplo); e que há operários ateus, camponeses ateus, pequeno-burgueses ateus, banqueiros ateus, latifundiários ateus, reis da indústria pesada ateus (por exemplo também). Ora, a mola real da evolução histórica reside, não na superstrutura ideológica, qualquer que seja, mas nas contradições que a infra-estrutura económico-social estabelece entre os meios de produção e as relações de propriedade respectivas, as quais, a partir de certo momento, criam conflitos de tal modo insanáveis que só uma nova organização social pode resolvê-los. Já vimos ser àquele nível que se gera a alienação, em sentido histórico. Mas já vimos, também, que a desalienação operada nalgumas regiões do mundo pode reflectir-se, noutras, sob a forma de amortecimento da alienação como sistema inabalável e coercivo, tornando desse modo possível um primeiro passo de emergência do homem para a plenitude. É entre os que o sintam e reconheçam que um diálogo pode ter sentido. Mas é também na ausência dos que o sintam e reconheçam que o inverso pode apresentar-se como «verdade» provisória.

 

Retomaremos, mais tarde, o assunto.

 

E experimentemos, agora, inverter a reflexão com que abrimos estas linhas. Sigamos este raciocínio: se é facto poder o homem conhecer o mundo e ampliar a cada passo esse conhecimento ou preencher as lacunas que foi deixando para trás; e se é inverosímil ter sido a Natureza tão «sábia» que criasse nele um embrião de omnisciência: não será legítimo pensar que a consciência humana, ao contrário do que teólogos e naturalistas dizem (embora de maneiras diferentes), foi incriada, sendo o que chamamos real tão ilusório em sua aparente consistência e coerente especificidade, como o é o «real» da subjectividade?; ou, inversamente, que o «real» da subjectividade é tão autêntico como o real do mundo objectivo? - Quem partir deste ponto de vista (nuanceando-se embora dentro dele), entra na dinastia histórica dos idealismos filosóficos. E se, entre essas «nuances», se quedar na que data, situa e define o indivíduo cognoscente (ou seja, o sujeito) pelos momentos em que ele se descobre existindo através dum aglomerado de relações suscitadas por outros sujeitos (sujeitos-objectos) e por miríades de objectos, chegará à dos existencialistas.

 

Não considero essas perscrutas ilegítimas ou inúteis, muito embora as rejeite pelo que me diz respeito. E não as considero ilegítimas ou inúteis por razões que, noutro contexto, já referi: é seguindo hipóteses, mesmo a contrario sensu, que se encontra, por vezes, um bom ângulo de reflexão do real. Leiam-se, por exemplo, os fragmentos filosóficos que chegaram até nós de Zenão de Eleia e que pretendem demonstrar, pelo absurdo, a impossibilidade do movimento: nove vezes encontrareis neles a conjunção se conduzindo ao paradoxo o que todos reputamos a própria evidência. Trata-se dum mero artifício lógico, duma ironia transcendente? Decerto. Mas dele derivou coisa tão pouca como o cálculo infinitesimal! Ninguém diga, portanto, que uma especulação filosófica é necessàriamente irrelevante só porque põe em causa urna tradição de verdade já carrilada pelo homem. E, pelo que se refere ao existencialismo, é preciosa a sua contribuição, sobretudo no capítulo referente ao conhecimento da subjectividade. Nada tenho, portanto, contra o existencialismo filosófico em si mesmo, embora o possa ter (depende da situação concreta) contra algumas das suas implicações sociais.

 

Mas pergunto: pode servir-nos uma filosofia que interprete o mundo sem que o possa transformar? Não é isso contraditório com o conceito de filosofia viva, que atrás recolhi, de Sartre? E pode uma filosofia que se isole ao nível do individual ser uma filosofia com essa capacidade? Não é um ser eminentemente social o homem? Tão social que Robinson Crusoe só pôde sobreviver, na sua ilha, recorrendo à experiência que anteriormente colhera da vida em sociedade? Não é verdade que ninguém pode negar que, para além do indivíduo, há agregados humanos que se chamam família, classe social e nação, por exemplo? E não é certo que, se tais agregados existem, eles não podem ser um mero somatório de indivíduos, mas formas colectivas de vida em comum que condicionam o indivíduo e criam laços de sangue ou de ideologia, os quais definem formas de sentir ou de pensar que são idênticas às de outros indivíduos? E não é seguro, também, que entre a minha subjectividade e a de outrem medeia algo que a noção de intersubjectividade não preenche por si só?

 

Comecemos por este último aspecto: chegou a minha casa o número do Litoral em que Eduardo Carvalho Matos me fez, com elegância e cordialidade, alguns reparos ao meu penúltimo ensaio. Li-o, apreciei-o, ponderei-o. Seguidamente, sentei-me à mesa e apensei este comentário ao ensaio que já escrevera para o presente número. Ao concluí-lo, vou meter as folhas num envelope e mandá-las ao director do jornal. Este lê-as, enquadra-as no seu plano do número e manda-as para tipografia. Um operário-tipógrafo, excelente homem que faz com as mãos o que eu faço com o cérebro, compõe-nas e manda-me uma prova. Corrijo-a, devolvo-a, o tipógrafo volta a mexer no que eu pensei, o revisor do jornal verifica, as minhas ideias passam para o prelo, são multiplicadas por x exemplares e um deles, levado pelo carteiro após a intervenção de quem dobrou o jornal, o franqueou e o expediu, chega a casa de Eduardo Carvalho Matos, que o lê. Entre a minha subjectividade e a sua, quantas mediações se interpuseram! E quantas delas susceptíveis de adulterar ou impossibilitar, até, a comunicação!

 

Há, portanto, um mundo objectivo que é independente do nexo sujeito-objecto que me define e do nexo sujeito-objecto que define Eduardo Carvalho Matos. E é nesse mundo objectivo que cristalizaram, justamente, as aquisições históricas da Humanidade, as quais condicionam um estado de necessidade que limita a minha e a sua liberdade pessoais e nos obriga a enquadrá-las nas leis objectivas desse mundo. Mas enquadrá-las, - para quê? para carrear, tão-só, o pedregulho de Sísifo? Decerto que não. Se o destino do homem fosse esse, a História não resultaria, como resulta, num devir, e as gerações passadas teriam deixado o mundo tal qual o encontraram. Não teriam cristalizado, nele, o que herdámos e que o nosso conhecimento das leis permite transformar em novas cristalizações que o futuro retomará. O «possível» de ir à Lua, por exemplo, esteve entre aspas durante séculos e foi um entretenimento apenas da imaginação, com Júlio Verne e Wells, por exemplo. Mas o homem vai arrancar-lhe, dentro em breve, as aspas e dizer: o «possível» gerou o possível. Mas o «possível» de descer aos Infernos, como Orfeu, para salvar Eurídice, poderá tornar-se, algum dia, um possível sem aspas? E, não obstante, ele é subjectivamente um «real» para a nossa imaginação (basta dar-lhe a ler ou a reler Virgílio e Dante) e há séculos que os homens o revêem e recriam. Se cada homem pudesse inventar, como diz o articulista, uma vida diferente da de todos os outros homens e urna filosofia inteiramente pessoal, então os «possíveis», ao contrário do que reconhece ser exacto, seriam todos possíveis à escala dos milhões e dos milénios, e a filosofia que expõe deveria ser radicalmente diferente da de Sartre, Husserl ou qualquer outro que cite.

 

Admito o existencialismo como ensaio da subjectividade, dúvida metódica ou método de passagem do particular para o geral. Aliás, o próprio Sartre o considera, desde 1961 pelos menos, um enclave do materialismo dialéctico. Mas pode alguém deixar de aderir à noção de que o verdadeiro conhecimento é um acto criador pelo qual o real é não só apreendido mas transformado por nós?

 

 

V

 

Aclarando, se possível, o que já disse, apontarei com Juan Rosales (El Diálogo de Ia Época, Buenos Aires) que «a linha divisória não passa entre crentes e ateus, mas entre explorados e exploradores», entre dominados e dominadores, entre falseados e falseadores. Ou, com Lucio Radice (II Dialogo alla Prova, Roma) que «a religião pode ter conteúdos de classe distintos e até opostos». Ou, com Michel Verret (Essai sur l'Atheisme Moderne, Paris) que «se corre o risco de esquecer a verdadeira linha da luta social se se substituem as oposições de classe pelas oposições de opinião».

 

Não percamos de vista, portanto, que se a religião é mito, como mostrámos, «o mito é uma linguagem» (Roland Barthes, Mythologies, Paris) e uma linguagem em que se reflecte a problemática social. As lutas de classe não só estão simbolizadas nela, como se alienam por ela, mediante a interposição duma transcendência que resgataria os valores humanos após a morte. É isto que dá universalidade à religião, uma vez que é isso que lhe permite reajustar-se e sobreviver às transformações sociais, - pró ou contra Constantino. Pelo que o pró e o contra dependem, não das questões teóricas, mas da conjuntura económico-social. Ou seja, da orientação que assumam os interesses práticos dos fiéis e dos leigos.

 

Não admira, assim, que, ao nível europeu do problema, um católico representativo como Mário Gozzini possa dizer (no segundo dos livros citados) que o futuro aponta à descapitalização da fé e à desateização do socialismo. Claro está que, para quem tenha vivido e ponderado estes problemas, tal caminho apresenta-se como um reformismo. E não como uma solução autêntica da questão histórica. Mas, se não é lícito cair na utopia que lhe subjaz, já o é dizermos que, abrindo um túnel em cada uma das vertentes que nos separam, bem poderá suceder que venhamos a encontrar-nos, uns e outros, a meio da montanha. E, se à primeira metade da frase (descapitalização da fé) não me cabe responder, à segunda metade já lhe apontei uma direcção: a que tende, para usar a fórmula de Garaudy, «à recuperação do divino pelo ateísmo».

 

Quer isto dizer que o futuro não pode ser, evidentemente, um a priori que decretemos, embora seja um limite que podemos intuir e ensaiar. Que podemos - e devemos, pois ninguém vai para algures sem levar consigo um projecto de viagem. E como nem uns nem outros recusamos ou pomos em causa a liberdade religiosa - antes queremos assegurá-la e isentá-la, dum e doutro lado, o lastro secular que tanto a tem maculado -, é de concluir-se que o devir da fé será o que lhe advier pelo devir do homem, sendo para este que devemos voltar-nos, portanto. O que não sucederá sem atritos e colisões impróprias de homens civilizados se persistirmos em isolar a tendência sociocultural que representemos das restantes tendências em que se divide a sociedade, pois fazê-lo é alimentar o sectarismo, volvendo-nos nós próprios em seita.

 

Importa, assim, que se tenha presente que uma ideologia, qualquer que seja, contém sempre uma quota-parte de alienação. Entre o homem-táctico e o homem-futurante há, portanto, uma dialéctica do mesmo tipo da que apontei entre o humanismo concreto e o humanismo abstracto. Quem assuma as responsabilidades de um ignorando as do outro, decapita-se ou desmembra-se: pensa com as mãos ou age com o cérebro, o que, em ambos os casos, prolonga e agrava a cisão que a divisão do trabalho e a divisão de classes abriu no homem.

 

Se a mola real da evolução histórica é, como já vimos, a infra-estrutura, isso não é fenómeno mecânico, mas uma lei científica. Um conhecimento, portanto, que só é válido se houver quem o tome nas suas mãos. As leis da termodinâmica, por si sós, nunca construíram nenhuma máquina a vapor... A ciência só o é pelo e para o homem, não para a natureza-em-si.

 

Em conformidade com isso, o conceito de fé que propus como intuição de unidade cósmica não aponta a um universo fechado, mas a um sentido de coesão e devir. E tanto repele a noção de compartimento estanque no que é particular como no que é geral. O infinito é impensável, de acordo. Mas o finito é indemonstrável. E o mundo só poderia ter sido criado se fosse finito. Propor-lhe uma ou outra solução não cancela o enigma que implica e contém, como já vimos. Mas não autoriza, tão-pouco, a que se lhe dê uma resposta arbitrária.

 

Se a filosofia não pode demonstrar, em absoluto, que a matéria seja o Ser, a ciência pode-o, uma vez que comprova a preexistência da matéria ao homem. É com base nela que o materialismo dialéctico se transpõe em materialismo histórico, - em materialismo tout court do nosso tempo. Se há, por conseguinte, uma opção filosófica, como acentuámos, ela tem uma base científica e histórica. Quem puder opor-lhe uma contraprova, é favor trazê-la ao mercado. Enquanto isso não se der, a opção é legítima.

 

Salvemos, em suma, da fé o que nela representa e afirma o homem e aponta a uma transcendência que é o seu próprio devir, em relação à Natureza, ao animal e à História. Mas guardemo-nos de a realienar de novo. Sentemo-nos à mesa-redonda, onde e quando isso seja possível, para, entre homens que somos, falarmos do que nos é comum. Mas defendamo-nos das pseudo-soluções e dos artifícios da insinceridade.

 

De ensaio em ensaio, vim até aqui por um imperativo moral de esclarecimento. E aqui me suspendo por um imperativo moral de solidariedade. O que é, mais uma vez, boa vontade. Mas boa vontade que não pode ser inércia. O bezerro de oiro continua a ser pagão. E, perante ele, todos nós somos homens de fé.

 

Posto isto, fico ao dispor de quem quiser fazer objecções ou perguntas. Não pretendi ensinar, mas sim procurar a verdade. Pelo que estou pronto a aprender o que ignoro ou a rever o que sei.

 

 

 

 

Frátria

 

(*) Mário Sacramento (1920-1969) nasceu em Ílhavo de uma família com tradições liberais. Começou a distinguir-se como ativista estudantil do Liceu José Estêvão em Aveiro, onde dirigiu o jornal ‘A Voz Académica’. Foi aí que, aos 17 anos, conheceu a primeira das suas cinco prisões por motivos políticos, pela então PVDE. Cursou depois Medicina, sucessivamente, nas universidades de Coimbra, do Porto e de Lisboa, licenciando-se em 1946. Em 1945, ainda estudante, ganhou o Prémio Oliveira Martins com o ensaio Eça de Queiroz, uma estética da ironia (Coimbra Editora, 1945). Foi membro da Comissão Central do MUD Juvenil, passando depois para o Movimento Nacional Democrático (MND). Militou no Partido Comunista Português. Começou muito cedo a exercer crítica literária, colaborando na imprensa neo-realista (O Diabo, Sol Nascente, Vértice), nas revistas Pensamento, Seara Nova, Mundo Literário, entre outras. Exerceu clínica em Ílhavo e Aveiro, muitas vezes graciosamente, obtendo o reconhecido epíteto popular de “médico dos pobres”. Opositor acérrimo e impenitente do regime fascista foi encarcerado no Forte de Caxias, no ano de 1953, sofrendo tortura do sono e “estátua”. Seria ainda detido nos calabouços da PIDE em 1955, por duas vezes, e uma última vez em 1962. Com uma bolsa do governo francês obteve uma especialização em gastroenterologia em Paris (Hôpital de St. Antoine) em 1961. Foi aí que lhe apareceram os sintomas da tuberculose. De regresso a Portugal torna-se frequente a sua presença nos jornais ‘Diário de Lisboa’, ‘República’, ‘O Comércio do Porto’ (com Óscar Lopes), ‘Jornal de Notícias’, ‘Comércio do Funchal’, entre muitos outros, nomeadamente da imprensa regional. Deu numerosas conferências sobre temas literários, animou congressos e encontros, granjeando uma grande autoridade como ensaísta e crítico, contando-se entre as suas obras Fernando Pessoa, poeta da hora absurda (Contraponto, 1958), Lírica e dialéctica em Cesário Verde (Vértice, 1959), Fernando Namora, a obra e o homem (Arcádia, 1967), Lendo Raul Brandão (Vértice, 1967) e Há uma estética neo-realista? (Dom Quixote, 1968). Com um âmbito de reflexão mais alargado, merecem ainda destaque 31 de Janeiro (Aveiro, 1969), Frátria: Diálogo com os católicos (ou talvez não) (Inova, 1970), os três volumes, parcialmente póstumos, de Ensaios de Domingo (I, Coimbra Editora, 1959; II, 1974; III, Vega, 1990), a Carta testamento (1973) e o Diário (Limiar, 1975). Experimentou também, ocasionalmente, o teatro, a poesia e o conto. Sempre integrado no núcleo central dos adversários locais da ditadura, contribuiu decisivamente para fazer de Aveiro a capital da oposição democrática. Foi secretário-geral do Primeiro Congresso Republicano que aí se reuniu, no ano de 1957. Dirigiu também a organização do Segundo Congresso Republicano, embora tenha falecido nas vésperas da sua realização, no Teatro Aveirense, em 1969. A sua memória bem viva pairou sobre todo este evento. Quando os participantes ao Terceiro Congresso Republicano (Aveiro, abril de 1973) se dirigiram ao cemitério para o evocar receberam uma tremenda carga policial, sinal de quanto continuava a ser temido pela ditadura. Mais informações sobre a sua vida podem ser colhidas em Mário Sacramento um “ílhavo” de eleição no século XX, pequena nota biográfica de Senos da Fonseca extraída de uma palestra realizada no Illiabum Clube.

Esta série de “ensaios sobre a fé” foi publicada por Mário Sacramento, em cinco partes, no semanário ‘Litoral’, entre 14 de janeiro e 11 de fevereiro de 1967, no âmbito de um diálogo então encetado com alguns meios católicos mais abertos, no ambiente pós Concílio Vaticano II. Peças deste debate seriam depois recolhidas no volume Frátria: Diálogo com os católicos (ou talvez não), Editorial Inova, Porto, 1970.