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Realismo
Mário Dionísio (*)
É muito caractertstica das épocas convulsionadas, como a nossa, em demorada e patente véspera de profundas transformações para tudo e todos, esta repulsa, encoberta ou manifesta, do realismo. De cada canto surge uma acha para a fogueira, de cada canto uma açodada sugestão para que se acabe de vez os gritos incómodos. Muitos que pareciam até aí não se entenderem acabam por confundir as vozes, por dar as mãos, por ficarem lado a lado nessa posição em que já não está em jogo um simples pormenor mas as próprias paredes do edificio em que afinal todos viviam juntos por menos que o houvessem notado ainda.
O que está sempre no fundo da velhíssima aguarela do realismo é apenas o embate doloroso de dois campos opostos que não podem continuar a evitar-se porque tudo os lança para o encontro final, porque tudo os põe inesperadamente frente a frente, numa altura que um deles julgava o outro completamente esbatido nos alçapões do tempo, bem sepulto et trunc et semper nas poeiras silenciosas do passado.
Mas a coisa reveste-se então de ouropéis imprevistos. Da base autêntica de conflito entre o chamamento à realidade e a transformação especiosíssima - tanto mais efectiva, por sinal, quanto mais sincera e inconsciente - dessa mesma realidade, o problema escapa-se, procura encaixar-se apenas nalgum dos seus aspectos, mudar de face, enroupar-se numa constante transferência de domínios, com o que a solução não pode deixar de adiar-se a mistificar-se. Assim, a questão que tem uma base iniludivelmente ideológica (é a aproximação ou o afastamento da realidade social em todos os seus ângulos que realmente está em causa), anicha-se no problema técnico, por exemplo, e consegue formar um círculo vicioso à sua volta.
É evidente que não se pode, à boa fé e com algum conhecimento, deixar de descobrir em primeiro plano uma questão social na divergência entre uma afirmação de Diderot como esta: «o verdadeiro, o bom e o belo seguem-se de perto» e uma de Delacroix como: «o realismo deveria ser definido como o antípoda da arte». Mas aqui logo a coisa se complica ou, melhor: oferece esplêndidas condições para se deixar complicar e, da autêntica base do problema, saltamos involuntariamente para outro lado, vemo-nos a braços com a questão meramente estética, que é só um seu aspecto, tão importante com efeito! Delacroix acrescenta imediatamente que não se sabe bem o que seja arte sem imaginação e escreve, com muita razão, que «simples moldagens do natural estariam sempre (a aceitar a verdade que supunha, em 1860, ser a realista) acima da mais perfeita imitação que a mão do homem pudesse produzir».
A questão, porém, o ponto gerador da questão não está aí, pois pode-se, na verdade, embora só hoje seja possivel fazê-lo, dar razão ao mesmo tempo ao grande entusiasta do naturalismo de Chardin que foi Diderot e a um príncipe dos românticos como Delacroix. Uma coisa é a posição realista em que o autor se coloca, criando,outra os processos de que se serve para concretizar essa sua visão realista. Realismo não é, inevitavelmente, Courbet, ainda que Courbet tenha sido um aspecto, um momento bem alto do realismo. Courbet, como Millet, como Daumier, incarnaram o conceito realista da sua época, como Chardin o incarnara. Mas quando se fala hoje em realismo, até, por evidente escrúpulo, com alguma infelicidade de termo, em neo-realismo, ninguém pode pensar num regresso próximo ou afastado aos realistas do passado. A um realismo de hoje, nada do que se conseguiu conquistar de conhecimento do homem pode ser alheio, para ele nada das vozes interiores do homem que se libertaram e das variadíssimas formas de fixá-las em arte, pode ficar de lado. Simplesmente, qualquer artista que pertence àquele grupo de homens que não só não sente interesse algum em camuflar a realidade como vive, na carne, a mais imperiosa necessidade de desvendá-la aos seus olhos e aos de todos, tem de apelar para essa palavra que a uns parece tão velha e esgotada e a outros se afigura tão promitente e sempre nova. Quando um desses artistas que não pode continuar a calar a sua dor, a sua revolta ou a sua esperança, em face dos dramas mais agudos do mundo que, tocando a maior parte dos homens, o tocam no mais íntimo, fala em realismo, não pensa um momento em apagar insensatamente da histária da arte e, sem dúvida nenhurna, do presente da arte, tudo que os irrealistas fizeram e estão fazendo e farão ainda - porque não - por muito tempo. É um erro muto grosseiro julgá-lo. E, se a coisa se vai esclarecendo tanto por toda a parte, é uma dura injustiça. O que qualquer desses artistas pensa ao falar fervorosamente em realismo é no gesto poderoso, esforçado, bastante heróico nos dias de hoje, de transpor o belo mundo da pintura moderna do exclusivo domínio quantas vezes estreitamente individual para o da realidade de todos, como quem muda valoroso o curso de um rio de um local exíguo onde apenas despontam belas e exóticas flores, inúteis num mundo de dor, para um enorme deserto onde há fome e sede, a falta dessa água, e onde com a sua forte ajuda, um dia, haverá flores também. É afinal uma atitude de solidariedade, de abnegação, de alta humanidade, sem estar fora do serviço da arte, quando era tão fácil, para dizer a verdade, continuar simplesmente a mastigar as passadas do irrealismo aceite hoje mais ou menos em todo o mundo da arte pelas condições a que a sociedade chegou, com uma outra inovação de disposição para exposicão.
Jean Cassou foi muito claro quando disse: «Realismo, sim, mas não basta entender sob este título a fórmula de arte que consiste em observar a realidade do exterior. Realismo que implica uma relação constante do poeta e da realidade, um compromisso constante do poeta com a realidade».
E é neste compromisso constante com a realidade sem esquecer o mundo íntimo de cada uma que está a verdadeira novidade, a verdadeira nota fundamental do realismo dos nossos dias que desponta por toda a parte com um ar tão combativo e anti-irrealista, apesar de partir e de se nutrir, tecnicamente, com a mais aguda consciência dos pontos mais altos do irrealismo.
(*) Mário Dionísio (1916-1993) nasceu em Lisboa e licenciou-se em Filologia Românica, em 1940, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi aí que conheceu Alberto Araújo, Fernando Piteira Santos, Álvaro Salema, Vasco de Magalhães Vilhena, Vitorino Magalhães Godinho entre muitos outros. Terá aderido nessa época ao Partido Comunista Português, do qual se afastaria em 1952, sendo depois expulso. Fez a ligação entre o partido e a Comissão de Escritores e Jornalistas do MUD (1945-46). Desde muito jovem foi um dos mais destacados ativistas culturais e teóricos estéticos da nova geração que viria a ser denominada como neo-realista. Em 1934-35 já era redator dos jornais Gleba e Liberdade. Em 1937 colabora em O Diabo e Sol Nascente, sendo um dos elementosresponsáveis pelacoordenação editorial entre estes dois órgãos centrais na introdução do pensamento “diamático” em Portugal. Colaborará ainda nas revistas Presença, Revista de Portugal, O Globo, Vértice, Altitude, Seara Nova (as suas célebres “fichas”), Mundo Literário, Itinerário (de Lourenço Marques), Ler, Gazeta Musical e de todas as Artes, Colóquio, O Tempo e o Modo, no Jornal do Comércio, nos jornais República, Diário de Lisboa, Jornal de Notícias, A Capital e em inúmeras outras publicações periódicas. Escreve sobretudo crítica literária e de artes plásticas. Dá conferências e palestras, pinta abundantemente, faz traduções, prefacia livros. Trabalha na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde organiza as famosas Exposições Gerais de Artes Plásticas com artistas desafectos ao regime fascista. Dá aulas no ensino secundário, nomeadamente no Colégio Moderno e no Liceu Camões. Só após a revolução de Abril, será admitido como professor na sua Faculdade de Letras de Lisboa. Entre as suas obras literárias contam-se O Dia Cinzento (contos, 1944), As Solicitações e Emboscadas (poesia, 1945), O Riso Dissonante (poesia, 1950), Memória dum Pintor Desconhecido (poesia, 1965), Poesia Incompleta (1966, onde reuniu toda a obra publicada até então), Le Feu qui Dort (poesia, 1967), Não Há Morte Nem Princípio (romance, 1969), Terceira Idade (poesia, 1982), Monólogo a Duas Vozes (contos, 1986), Autobiografia (1987), A Morte é para os Outros (contos, 1988). Na crítica e ensaísmo sobre artes plásticas, destacam-se O Drama de Vincent Van Gogh (1953), Conflito e Unidade da Arte Contemporânea (1958), A Paleta e o Mundo (a partir de 1956, com reedição em cinco volumes em 1973-74). Mais informações biográficas, bibliografia exaustiva, iconografia e alguns textos - inclusive a sua Autobiografia na íntegra - podem ser encontrados no sítio do Centro Mário Dionísio da Casa da Achada. O presente artigo foi publicado na revista O Globo, II série, n.º3, Lisboa, 1946, pp. 1 e 6. É bem representativo do seu pensamento estético desta altura, bem atento ao circunstancialismo concreto da vida social – onde avulta a inescapável luta de classes – mas sem descurar a especificidade da forma artística. De realçar as reticências colocadas à expresão «neo-realismo», que na altura começava a impor-se como denominação oficial do movimento artístico dos jovens marxistas, embora ainda se usasse «novo realismo», «realismo sociológico» e «novo humanismo». Por altura do seu afastamento do PCP, em 1952, Mário Dionísio participaria na célebre polémica nas páginas da Vértice, sobre forma e conteúdo na obra de arte, que cindiu gravemente o movimento neo-realista português.
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