A Operária

 

 

Maria Lamas

Maria Lamas (*)

 

 

 

A colaboração da mulher portuguesa na indústria é impostantíssima. De Norte a Sul ela trabalha nas fábricas, ao lado do homem, e, em muitos sítios, numa percentagem superior. Há regiões onde a mulher participa igualmente na construção civil, na abertura e reparação de estradas, integrada nas equipas de trabalhadores, não como adventícia mas cumprindo o mesmo horário e manejando profissionalmente a ferramenta que lhe compete, na tarefa a seu cargo. A única diferença está na jorna, sempre inferior, um terço pelo menos, à do homem no mesmo serviço.

 

Mesmo onde as tarefas são diversas ou não há mão de obra masculina, a depreciação do seu trabalho mantém-se, agravada, nalguns casos, pela falta dum ponto de referência para a tabela dos seus ganhos.

 

Isto foi dito e redito nestas páginas em relação ao trabalho da mulher da gleba. Mas porque o facto se repete onde quer que a mulher intervenha, como trabalhadora assalariada, apesar de se reconhecer que o rendimento do trabalho feminino iguala, quando não supera, o do homem, não é de mais referir essa injustiça ao falarmos, em especial, da operária.

 

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Em Portugal, a operária não constitui um tipo de mulher correspondente a determinado desenvolvimento de consciência profissional, perfeitamente esclarecida quanto aos seus direitos e deveres, às leis que deveriam protejê-la e às vantagens de se manterem unidas no estudo e defesa dos interesses colectivos, que se reflectem não apenas nas condições do seu trabalho, como também na vida familiar e pessoal.

 

Muito poucas atingiram ainda esse nível; a grande maioria nem sequer avalia quanto o desinteresse e desconhecimento dos problemas que particulamente Ihes dizem respeito contribuem para a sua própria desvalorização, sob os pontos de vista profissional e humano.

 

Não podemos, portanto, generalizar as referências às nossas operárias. Para avaliarmos a sua posição na sociedade portuguesa e os factores que influem na maneira como reagem ou não reagem perante as condições da sua vida, é indispensável agrupá-las em três categorias: as conscientes; as que já se interessarn ou parecem dispostas a interessar-se por alguns aspectos dos seus problemas; as que vão à fábrica, pegam na picareta ou carregarn fardos com a única preocupação de ganhar uns tantos escudos diários, sem ligar, de qualquer forma, a sua vida à das outras mulheres que trabalham e vivem em circunstâncias idênticas, nem acreditar na possibilidade de melhorar a sua situação.

 

Todas devem estar, por lei, inscritas nos respectivos sindicatos, mas não sucede assim, e, para a grande maioria, o sindicato nada mais significa além de mais um encargo a pesar-lhes sobre o reduzido salário, sem que elas cheguem a definir a razão da sua existência, pois não o frequentam nem compreendem nada da sua burocracia e finalidade.

 

Este desinteresse corresponde à ignorância e ao conceito de inferioridade feminina que caracterizaram épocas remotas e são, hoje, prova irrefutável do mais deprimente atraso.

 

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A operária não vive em plena natureza como a mulher do campo. O seu ambiente de trabalho é a fábrica ou qualquer outro local onde cumpre a tarefa diária quase sempre entre quatro paredes. Fora disso os serviços caseiros absorvem-na, não Ihe permitindo muitas vezes, o descanso semanal, mormente se é mãe de família.

 

Das que vivem nas cidades só uma pequeníssima percentagem tem uma casa compIeta para si e os seus. Uma parte de casa ou um único quarto são tudo quanto conseguem para habitar. Ali se instalam marido, mulher e filhos, numa forçada promiscuidade, que tem, além de graves consequências morais, a de agravar o serviço doméstico, complicando e tornando pesado o que deveria ser simples e tanto quanto possível ligeiro.

 

Tais circunstâncias reflectem-se na disposição da mulher e no convívio familiar, dando lugar a discordâncias e conflitos que quebram a harrnonia da vida e deforrnam os seres.

 

Explica-se assim que, no conceito geral, a operária, principalmente a operária dos grandes centros industriais, seja tida como uma criatura irritável, azeda, predisposta para hostilizar quem não pertença ao seu meio e irreverente para os que pretendem ser-lhes superiores. Na realidade, porém, a operária é uma mulher profundamente sacrificada e corajosa, que acumula o labor profissional com os cuidados e canseiras familiares, em condições adversas e lutando ainda, na maior parte dos casos, com permanente insuficiência económica e intermitências de desemprego.

 

O trabalho colectivo, a disciplina dos horários, a noção da responsabilidade, o contacto com as organizações industriais, o alargamento do convívio com outras mulheres e hornens, numa camaradagem benéfica, contribuem, é certo, para Ihe dar uma nova personalidade, de que ela própria nem sempre se apercebe, mas que a vai distanciando da camponesa, embora sem anular influências atávicas, comuns a todas as nossas mulheres do povo, sem distinção.

 

Essa nova personalidade, mais lúcida, leva-a a encarar a vida sob aspectos que antes não via. Mas as naturais reacções, provocadas pela observação directa dos problemas gerais ou particulares, não encontram pontos de apoio que as orientem, dando-lhes sentido prático e construtivo.

 

É esse o grande mal da nossa operária, em geral: não ter possibilidade de se instruir, de alargar os seus horizontes, à medida que a consciência lhe vai despertando e a vida se lhe apresenta em novos planos, mais vastos e complexos.

 

Esta contradição, entre o conhecimento que resulta das próprias circunstâncias e a impossibilidade de o alargar na medida necessária, conduz a um desequilíbrio grandemente desorientador e prejudicial sob todos os pontos de vista.

 

A operária portuguesa ressente-se, na maioria dos casos gravemente, desse desequilíbrio.

 

Dentro da fábrica, no desempenho das suas tarefas, está integrada na disciplina, nas responsabilidades e nas condições gerais estabelecidas para a mão-de-obra, tal como o operário. Fora da fábrica, tudo quanto se relaciona com a vida profissional fica suspenso, para ela, até à hora de regressar ao trabalho, na manhã seguinte. Se é casada, o serviço doméstico, o marido e os filhos absorvem-na completamente: é preciso cozinhar, lavar, remendar, num afã que não tem limite; se é solteira, ajuda a mãe na lida familiar, ou trata das suas coisas pessoais, ou junta-se com as amigas, ou namora como é natural. Fora disto nada mais Ihe prende verdadeiramente a atenção.

 

Há também as que prosseguem no seu labutar, trabalhando na terra ou em qualquer outra ocupação até noite fechada.

 

Desta maneira não passam nunca de operárias indiferentes ao seu aperfeiçoamento profissional, para quem a fábrica é um lugar de trabalho completamente desligado da sua vida pessoal. Sabem que há contratos colectivos, situações que desejariarn modificar, interesses que é preciso defender, coisas que não estão certas, assim como outras que Ihes oferecem vantagens, mas deixam tudo isso para os homens. Eles se encarregarão de resolver o que for necessário e possível, porque elas não sabem, não estão habituadas e sentem acanhamento de se ocupar desses assuntos.

 

Fecham-se na sua existência penosa, sempre estafadas, correndo de casa para a fábrica e da fábrica para casa, sem tempo nem disposição para mais nada, pois que o trabalho nunca abranda, os filhos enchem-nas de cuidados, criados como calha, muitas vezes sem saúde, e o dinheiro não chega.

 

É tão difícil, tão desconfortável e exaustiva a vida familiar, cuja responsabilidade Ihe pesa sobre os ombros como um fardo esmagador, que a operária, mesmo quando compreende que há na sua vida profissional problemas da maior importância, não consegue sobrepor esses problemas à fadiga que a leva ao desinteresse e à falta de confiança em si própria.

 

Quem estranhará o seu azedume? As suas maneiras um tanto desabridas? Certo ar de desafio, quando lhe falam com arrogância?

 

Não, a operárta portuguesa não dispõe ainda dos elementos indispensáveis à sua valorização e à sua felicidade.

 

Verificando as suas realidades, devemos, sim, admirar a resistência física e moral de que dá provas constantes, a dedicação e a solidariedade com que acompanha o homem nos momentos difíceis, a coragem com que enfrenta situações gravíssimas, quando o trabalho escasseia ou falta completamente e ela tem que resolver sozinha o problema inadiável da alimentação da família.

 

Sem a sua decisão e sacrifício, como seria possível vencer as crises e dificuldades de toda a ordem, frequentes na vida dos trabalhadores?

 

Se alguma coisa deve causar espanto é a capacidade de trabalho, sofrimento e privações destas mulheres anónimas e heróicas!

 

Nem a gravidez, nem as noites perdidas com os pequenos, nem o trabalho caseiro até alta noite, nem as longas caminhadas - algumas chegam a andar quilómetros de casa à fábrica - as impedem de comparecer à hora determinada para cumprir a sua tarefa, que, em muitos casos, as obriga a permanecer de pé durante as oito horas regulamentares do trabalho.

 

São muito poucas aquelas que podern deixar as suas crianças numa creche, enquanto ganham o dia. A grande maioria desconhece essa tranquilidade e passa as horas em íntimo sobressalto, porque o menino ficou com a irmãzinha mais velha, que é afinal uma criança de seis anos, ou entregue à vizinha, que também tem a sua vida e muitas outras coisas em que reparar.

 

Este é um dos pontos cruciantes da vida da mãe operária, como da mãe camponesa, como de todas as mães que trabalham fora do lar.

 

Este é um problema fundamental na própria vida da criança, principal vítima das deficiências, lacunas e erros que atormentam a existência dos pais.

 

Talvez haja quem acuse a operária de indiferença por este e outros assuntos que deveriam interessá-la especialmente.

 

Essa observação seria aparentemente justa. Não esqueçamos, porém, que as próprias circunstâncias em que vive favorecem o seu atraso e o seu acanhamento perante qualquer iniciativa que a leve a manifestar-se fora do seu âmbito habitual.

 

Confirmamos, aqui, o que antes dissemos: é muito pequena, em Portugal, a percentagem de operárias conscientes, não por falta de entendimento ou por inferioridade profissional, mas por ignorância, falso conceito da sua condição de mulheres e, acima de tudo, porque Ihes não são proporcionados meios de se desenvolverem mentalmente e de melhorarem a existência, tornando possível a sua indispensável intervenção no estudo e solução dos problemas que directamente lhe dizem respeito.

 

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No distrito de Braga existem cerca de sessenta mil operárias, que trabalham nas mais variadas indústrias, como chapelaria, perfumaria, cutelaria, cortumes, relojoaria, botões, pentes e, principalmente, têxteis. As indústrias caseiras, muito numerosas também neste distrito, não estão aqui incluídas.

 

Só em Guimarães há cento e vinte fábricas de tecidos de algodão, linho e seda, onde trabalham umas trinta mil mulheres.

 

Vila Nova de Famalicão, com o seu movimento industrial sempre crescente, tem numerosa população operária, com elevada percentagem de mulheres, calculada em cinquenta por cento, em relação ao total dos trabalhadores das diversas fábricas ali existentes.

 

É também no distrito de Braga que a rnulher se emprega em maior escala na construção civil e nas estradas - mais de duas mil.

 

Trata-se, portanto, dum centro industrial importantíssimo, onde a vida da mulher operária tem aspectos muito vastos, que requerem especial atenção, pois, interessam não sòmente sob o ponto de vista pessoal, mas abrangem multidões.

 

Nota-se em toda esta região, intensamente fabril, acentuada tendência para a substituição da mão de obra masculina pela feminina, não porque a mulher se apresente em deliberada concorrência com o homem, em iguais condições de trabalho e salário, mas porque essa substituição oferece grande vantagem às empresas.

 

Já nos referimos a este facto. Novamente o fazemos para destacar a injustiça em que ele se baseia e as consequências desagregadoras que tem, em relação à família.

 

A mulher é preferida nas fabricas porque, depois de adquirir a prática necessária, trabalha o mesmo que o homem e ganha muito menos que ele.

 

Isto verifica-se em toda a parte, com excepção dos trabalhos que requerem preparação técnica especial, que a mullter não tern, e daqueles que lhe são interditos por lei, como prejudiciais à sua constituição e à sua função procriadora.

 

Mesmo assim, ainda é possível encontrar, nalgumas fábricas do país, casos em que essa prescrição legal é sofismada, dando-se-lhe, hàbilmente, um aspecto de protecção aos direitos da operária.

 

Um exemplo: Numa fábrica com várias secções há uma oficina onde o trabalho é feito de pé, ao torno, sendo o operário forçado ao constante movimento da perna, que sobe e desce, para manter o aparelho em movimento. Nessa oficina trabalhavam ainda há pouco tempo, quinze mulheres e um hornem.

 

Dada a violência da tarefa evidentemente imprópria para mulheres, fez-se a pergunta:

 

- A lei permite o trabalho feminino nesta secção?

 

- Não perrnite, mas estamos em regime de transição.

 

- ?...

 

- As mulheres que aqui trabalhavam anteriormente à lei não são despedidas e conservam-se nos seus lugares até quererem. Só à medida que forem saindo as substituímos por homens.

 

- E porque insistem elas em continuar neste trabalho?

 

- Porque sempre ganham melhor... É a secção mais bem paga.

 

- Quanto?

 

- Dezóito escudos diários.

 

- E o homem ganha o mesmo?

 

- Não. O homem ganha trinta e dois.

 

- Mas o serviço não é o mesmo?

 

- Pois é...

 

- E o rendimento do trabalho?

 

- Francamente, nesta secção o trabalho da mulher rende mais...

 

- Então?

 

- Bem vê, o salário do homem é sempre superior.

 

E assim se explica, sumariamente, o trabalho das operárias em tarefas que lhes são proibidas por lei e a inferioridade do seu ganho, devendo elas estar ainda muito reconhecidas por serem mantidas nos seus antigos lugares.

 

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Numa outra fábrica, de indústria muito diferente, o caso apresenta-se de maneira inversa. Trata-se de substituir o homem pela mulher, não por qualquer imposição legal, mas por deliberação da empresa. E seja dito desde já que a única objecção a fazer é ainda a de se pagar à operária muito menos que ao operário, na realização de trabalho igual, lado a lado, em condições absolutamente idênticas.

 

Não fosse essa diferença, sobremaneira injusta, seria uma iniciativa de todo o ponto louvável não por ter em vista a substituição do homem pela mulher, mas por dar a esta possibilidades de se empregar em novos trabalhos, para os quais mostra a mesma aptidão de que tem dado provas em qualquer tarefa a que se dedique.

 

Entrando nas vastas oficinas desta fábrica moderna e progressiva, sente-se que deve ser agradável trabalhar num ambiente assim, apropriado, claro, higiénico. Nota-se até preocupação de estética, nas cores dos fatos de trabalho do pessoal - em cada secção o tom que melhor se harmoniza com o material e a ferramenta. Para a marcenaria foi escolhido o caqui; para a metalurgia o azul escuro. E lá estão as operárias entre os companheiros de trabalho, com aprumo, junto do banco manejando a enxó, ou nas outras secções onde o seu trabalho é perfeitamente igual ao do homem na rapidez, no acabamento e na firmeza com que é realizado.

 

É um espectaculo pleno de optimismo e força, este duma fábrica em laboração, com homens e mulheres executando os mesmos serviços, nas mesmas oficinas, ocupando os seus lugares sem qualquer distinção, em perfeita camaradagem.

 

No entanto, alguma coisa os separa... Alguma coisa deprime a mulher e vai alimentando nela um sentido de inferioridade, a par durn sentido de injustiça: a diferença do salário, nunca superior, para aquelas operárias, a quinze escudos diários.

 

Por outro lado o homem não pode aceitar sem despeito a concorrência que a mulher lhe faz, não por iniciativa própria, mas pelas condições a que está subordinada.

 

Evidentemente que, ganhando menos, a mulher é preferida, desde que o seu trabalho iguale o do homem. Assim, à medida que as operárias vão demonstrando a sua perícia, os operários são dispensados.

 

Nesta fábrica de relógios que nos serve de ponto de referência, as mulheres, inicialmente, só trabalhavam numa ou duas secções.

 

Actualmente trabalham em todas: na marcenaria, a abrir e desbastar talha, no levantamento de caixas, a colar folha e a cortar folheado; na metalurgia, a cravar, meter fios, tornear, polir, furar e rendir; na montagem; na envernização; no acabamento e na oficina de regulamento.

 

São, no total, cerca de cem operárias perfeitamente aptas a fazer o trabalho em que se especializaram, apesar da maioria não saber ler, o que lhes dificulta muito o desernpenho cabal da sua profissão.

 

Por exemplo: na oficina de marcenaria de caixas de relógio, cada operária tem que preencher um mapa com o fim de verificar o custo de cada peça.

 

Muitas mostram relutância em cumprir essa formalidade, porque mal sabem fazer o seu nome ou porque não estão habituadas a preencher qualquer documento. Outras têm que recorrer ao auxílio dum colega ou desistir do lugar. Mas permanecem analfabetas.

 

A ideia de vestir uniforme das oficinas também não é bem aceite por todas, a princípio. Depois, convencem-se de que se trata duma vantagem e adaptam-se fácilmente.

 

Em resposta a uma observação feita acerca da desigualdade dos salários, foi-nos explicado que se tratava apenas duma experiência.

 

Entretanto o número de operários vai diminuindo, à medida que o das operárias aumenta. E a diferença dos salários persiste.

 

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Além de injusta, a desigualdade dos salários, levando à substituição do homem pela mulher, que produz o mesmo e ganha menos, influi também de forma condenável na vida familiar.

 

Nas regiões industriais, onde predomina a mão-de-obra feminina, em razão do seu preço inferior, o homem emigra com frequência para outros pontos do país em procura de trabalho.

 

Isto sucede principalmente no Norte, repetindo-se com a operária o mesmo que sucede com a camponesa: o agravamento da responsabilidade familiar e das tarefas a seu cargo, pela ausência quase permanente do marido, que só vem a casa de ano a ano, quando muito.

 

A par dos sacrifícios que esta separação causa à mulher, há ainda a considerar a parte afectiva de tão grave problema. Cada um para seu lado é uma espécie de viuvez que rouba à vida aquele interesse e apoio afectuoso que toma mais leves todos os trabalhos e canseiras, sem falar nas consequências desagregadoras dos afastamentos prolongados.

 

Concretamente: a depreciação do trabalho da mulher na indústria coloca-a na situação, involuntária aliás, de concorrente desleal, em relação ao homem; deprime-a, desvalorizando o seu esforço e competência; contribui para destruir a unidade da família, tendo sob este aspecto, graves inconvenientes de ordem afectiva, moral, fisiológica e económica.

 

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É também no Norte que se verifica em maior escala o facto das operárias viverem a grande distância das fábricas onde trabalham.

 

De manhã e à tarde, os caminhos entre as aldeias e os grandes centros industriais enchem-se de mulheres, que passam, em grupos, apressadas, no seu itinerário monótono e fatigante, tantas vezes repetidos quantos são os dias de trabalho, anos e anos seguidos, sem melhoria de condições.

 

Estas são, em geral, as operárias mais desinteressadas dos seus próprios problemas.

 

No fundo, estão mais presas às leiras que penosamente cultivam nas horas de que podem dispor, e aos costumes aldeões, do que à sua profissão. Vão à fábrica, porque Ihes convém o ganho certo, apesar de insuficiente. Mas a sua mentalidade só muito lentamente vai despertando para a importância dos interesses colectivos, e na maioria dos casos nem sequer chega a despertar.

 

Tudo quanto faz parte fundamental da sua vida está na aldeia: os filhos, a habitação, os dois palmos de terra que lhes dão o milho. A permanência na fábrica é uma espécie de trabalho forçado - tanto monta que seja o tear, como a lavagem da lã, como a torcedura do fio. É certo que tem a vantagem de ser feito ao abrigo do sol e da chuva. Mas o pensamento vai-lhes para as crianças que deixaram expostas a todos os perigos e para as dificuldades que as esperam sempre, no regresso a casa.

 

Se os filhos estivessem ao abrigo de acidentes, com a comida a horas, elas sentir-se-iam tranquilas e as coisas mudariam de figura. Não existem, porém, sítios adequados para esse fim.

 

Há cidades intensamente industriais que não têm uma creche, apesar de nas suas fábricas trabalharem dezenas de milhar de operárias.

 

Por seu lado, as empresas fabris alegam que, morando longe, as mulheres não poderão trazer consigo os filhos, o que torna desnecessárias as creches.

 

Pela mesma razão, explicam que tudo quanto fizessem para promover a instrução e a distracção do pessoal feminino, por meio de cursos nocturnos, sessões de cinema, jogos e espectáculos variados, seria inútil, porque as operárias contam os minutos, na ânsia de regressar a casa, e têm que andar quilómetros nas idas e vindas diárias, faça que tempo fizer.

 

Nada mais Ihes interessa fora do trabalho e da casa - costumarn dizer os patrões.

 

Assim se mantém, para estas mulheres, uma situação em tudo desfavorável à sua valorização, como elementos duma classe, e à sua felicidade pessoal.

 

Vivem com o máximo desconforto, o que se reflecte na sua disposição e no pessimismo com que encaram tudo.

 

As parcas refeições, que elas próprias transportam de manhã ou que as filhas Ihes trazem à hora marcada, não são, de forma alguma, o que deveriam ser. Comidas como calha e onde calha, não constituem, como alimento e como hora de repouso, aquela renovação de energias indispensável a quem trabalha.

 

Acerca das refeições, variam tambérn os critérios das empresas. Algumas, muito poucas, constroem refeitórios que são utilizados, indistintamente, pelo pessoal que come as refeições servidas pela cantina e pelo que prefere trazê-las de casa. Outras reservam esses refeitórios sòmente para os operários que comem da cantina, enquanto os outros acampam sob as árvores ou noutro qualquer sítio.

 

Há, porém, aqueles que consideram os refeitórios desvantajosos para os operários em geral e para as mulheres em especial, pois que, no seu entender, elas devem preferir ir a casa, ver os filhos e dar ordem à vida, comendo mais à sua vontade e proporcionando melhores refeições aos maridos, quase sempre operários também. E lá vão eles, mas principalmente as mulheres, em passo rápido, acumulando mais uma fadiga, almoçar a casa, à pressa, porque o tempo não espera e o sinal para retomar o trabalho é rigorosamente pontual.

 

Mesmo que não morem muito longe, este sistema trás-lhes um acréscimo de canseira e perturba com arrelias que, inevitavelmente, surgem nesse precipitado contacto com o ambiente familiar, o ritmo da sua vida profissional, sem qualquer vantagem para elas e para os seus.

 

Comparando estas sacrificadas mulheres, com as outras, igualmente operárias do nosso país que já possuem condições de vida mais conforme a um sentido de verdadeiro progresso, verifica-se a diferença que entre elas existe, no aspecto, na confiança em si próprias, nas aspirações, nos gostos, na maneira de falar e até na maneira de olhar. Basta esse confronto para evidenciar as vantagens duma vida consciente, em que os problemas são resolvidos como é lógico, dignificando a profissão e valorizando o indivíduo.

 

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A falta de conhecimento das leis e o acanhamento natural das nossas operárias perante os assuntos mais importantes, que directamente lhes dizem respeito, levam-nas, por vezes, a aceitar determinações arbitrárias, absurdas e contrárias à própria dignidade feminina.

 

Por exemplo: a incompatibilidade do casamento com o trabalho profissional.

 

Sem qualquer razão que justifique tal incompatibilidade, há pelo menos uma fábrica onde só admitem operárias solteiras e, se alguma resolve casar, deve comunicar essa resolução á empresa, ficando automáticamente despedida. Nessa fábrica trabalham cerca de setenta mulheres, que, para não perder o emprego, têm que renunciar à humaníssima aspiração de constituir família e serem mães.

 

Evidentemente que semelhante imposição tem por fim evitar os dias de licença obrigatória por ocasião dos partos e o cumprimento doutras formalidades relativas à maternidade das operárias.

 

Elas revoltam-se intimamente, mas aceitam esta situação deprimente sob todos os aspectos, sem se atreverem a averiguar, ao menos, se é legal, preferindo tudo a ficar sem pão. No entanto, são quase todas raparigas que habitam a cidade e que têm relativo desembaraço, considerando, porém, impróprio de mulheres discutir certos assuntos e procurar resolvê-los como é de justiça.

 

Por contraste, vejamos o que sucede nas fábricas que têm creches para os filhos das operárias.

 

Dizem os patrões e gerentes que as mulheres trabalham com maior desembaraço e atenção, quando estão tranquilas acerca das crianças. Muitas amamentam os filhos, a horas certas, sendo-lhes concedido o tempo necessário para isso. Essas mães são sempre um exemplo de aprumo e interesse no desempenho das suas tarefas, procurando obter um maior rendimento de trabalho. Nota-se a alegria que Ihes causa a breve permanência na creche, junto dos filhos. Esses minutos são o mais poderoso estímulo para a sua actividade e criam nelas uma dedicação maior pela vida profissional.

 

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Há fábricas onde é permitido cantar durante o trabalho. Isso sucede principalmente em ambientes pouco ruidosos, como algumas secções das fábricas de tabacos, rolhas de cortiça, conservas de peixe e de frutos. Além de permitir o espairecimento das trabalhadoras, esta permissão tem a vantagem de evitar distracções provocadas pelas conversas entre as operárias.

 

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O ambiente das fábricas varia de indústria para indústria, de empresa para empresa, conforme a sua prosperidade e muito, também, conforme as pessoas que a dirigem.

 

Há fábricas instaladas em barracões ou velhos edifícios sem condições higiénicas, onde não é possível haver uma atmosfera de boa disposição para o trabalho. Há outras que funcionam em edifícios modemos, amplos, arejados e alegres.

 

Tudo isto influi no pessoal. Referindo-nos especialmente à operária, verifica-se que ela reflecte, de forrna evidente, o ambiente em que trabalha. Nenhuma tem coragem de se apresentar desmazelada, com ar sórdido, num refeitório limpo, sòbriamente decorado, onde dá gosto comer. Mesmo nas oficinas, quando são impecávelmente ordenadas, a operária sente a necessidade de não destoar do todo. A pouco e pouco, mesmo sem dar por isso, ela vai procurando apresentar-se melhor, e, em muitos casos, tem uma noção mais nítida da sua dignidade, para além do que é convencional - uma dignidade feita de respeito pelos outros e por si própria, tendendo sempre para uma vida mais equilibrada.

 

Sucede, porém, que os bons resultados desta evolução são, muitas vezes, incompletos, porque, a par das vantagens incontestáveis dos hábitos adquiridos num ambiente favorável, não se cuida da instrução, não se fortalece a consciência profissional nem se chega à convicção de que os problemas re!ativos à vida proletária são comuns a mulheres e homens, interessando igualmente a umas e outros e exigindo, para a sua boa solução, a intervenção de todos.

 

Dá-se, por isso, esta contradição: Mulheres trabalhadoras, com um nível de vida melhor, sob certos aspectos, que outras, a quem faltam todos os elementos que as ajudem a progredir, mantêm-se indiferentes à vida colectiva, mostram relutância ern participar directamente nos respectivos sindicatos, desinteressando-se da sorte das outras operárias mais infelizes.

 

Este é o sintoma concludente da sua falta de compreensão e, portanto, do seu atraso, relativamente dignificação da operária, no trabalho, na sociedade e na família.

 

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Felizmente, vai aumentando o número das mulheres trabalhadoras esclarecidas. Nos grandes centros a operária tem evoluído e continua a evoluir de forma a impôr-se à consideração das empresas, dos companheiros de trabalho e da opinião geral. A sua coragem de sempre, nobrernente provada em horas difíceis, e a consciência cada vez mais nítida das suas responsabilidades e dos seus direitos dão-lhe uma personalidade forte, nova e verdadeiramente progressiva, integrando-as nas aspirações da humanidade que luta por uma vida harmoniosa e justa.

 

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As faculdades de trabalho da mulher portuguesa e a sua facilidade de adaptação aos mais variados misteres são notáveis. Ela colabora mais ou menos em todas as indústrias e, se não atinge cargos superiores, mantendo-se a vida inteira, como simples operária, não é porque lhe faltem os predicados necessários para dirigir uma oficina, mas ùnicamente pela relutância que existe, entre nós, em quebrar o velho preconceito da inferioridade feminina na vida profissional.

 

Há, nalgumas fábricas, encarregadas de secção e operárias categorizadas. São, porém, excepções que se verificam apenas nalguns serviços. Os postos mais elevados são sempre ocupados por homens.

 

Existem proprietárias e directoras técnicas de fábricas - mulheres industriais ou com cursos superiores e técnicos mas pertencem já a outra classe. Por agora referimo-nos apenas à operária.

 

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Basta enumerar, ao acaso, algumas das indústrias em que a mulher colabora, para se avaliar como é intensa a sua colaboração em quase todas as fábricas portuguesas: tecidos, malhas, cortiças, tapetes, conservas, tabacos, chocolates, perfumarias, material de guerra, filigranas, cutelaria, chapéus, vimes, bordados, massas alimentícias, calçado, brinquedos, adubos, produtos químicos, cimento, papel, material eléctrico, ardósias, encadernações, faianças, azulejos, porcelanas, vidros, olaria, engarrafamento de vinhos e de águas, relógios, pentes, botões, pastelaria.

 

Trabalha em casas de costura, lavandarias, tinturarias.

 

Embora em pequeno número, há tipógrafas, nomeadamente em Lisboa e na ilha de S. Miguel, onde fazem parte do quadro tipográfico dum jornal diário, desde asua fundação, há bastantes anos. Ali, como nas outras profissões, têm salário mais baixo do que os homens.

 

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No Porto principiam a admitir mulheres como mecânicas e pintoras de automóveis nas oficinas da especialidadc. Para executar o seu trabalho elas envergam o «macaco» de operário, o que Ihes dá, um ar sóbrio, honesto e ao mesmo tempo cuidado.

 

Este trajo é adoptado por muitas operárias de importantes empresas em todo o país, especialmente em Lisboa.

 

Também as encarregadas da limpesa de algumas grandes casas de espectáculo usam o mesmo modelo de vestuário para desempenharem a sua tarefa.

 

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O contingente de mulheres empregadas nas minas, em serviços subsidiários, como lavagem e separação de minério, é muito elevado. Na sua maioria vivem em povoações próximas e conservam o tipo aldeão.

 

Onde as trabalhadoras das minas constituem um tipo já com características acentuadas, embora não tenham ainda atingido a mentalidade da operária consciente, dedicando-se exclusivamente aos serviços da exploração mineira, é em S. Pedro da Cova. Algumas, filhas e mulheres de mineiros, consideram como seu ambiente normal aquele em que nasceram e onde lhe nasceram os filhos. Tudo ali, assume, para elas, importância fundamental; mesmo profissionalmente os problemas dos maridos são os seus problemas, apesar deles trabalharem nas galerias, a centenas de metros de profundidade, e elas à superfície da terra. Nem por isso deixam de andar mascarradas nos dias da semana. O pó do carvão entranha-se-lhes no vestuário, na pele, no organismo e, pode dizer-se, na própria personalidade. Conhecem todos os porrnenores daquela penosa profissão e empregam termos técnicos com a maior naturalidade, deturpando-lhes a pronúncia, na maioria dos casos.

 

Porém, não se interessam pelos problemas da sua classe, se estes Ihe forem apresentados teòricamente, desligados das realidades diárias, nem frequentam associações relativas à organização da sua vida profissional.

 

Se há qualquer festa ou baile, vão até lá espairecer, mas só excepcionalmente se decidem a tomar parte em reuniões de carácter proletário.

 

Entendern que a solução de todos esses assuntos compete aos homens. Dão-lhe, porém, a mais firme solida riedade, sempre que se trata de interesses comuns, procedendo, então, como se realmente estivessem compenetradas da importância da sua atitude.

 

A falta de instrução, as carências e limites do ambiente em que vivem, concorrem muito para que elas se mantenham atrasadas. Entretanto, a própria profissão, áspera, fatigante, em que consomem a vida, dá-lhes uma argúcia e uma compreensão de certas realidades que se nota logo ao primeiro contacto. São operárias em plena evolução.

 

É pouco frequente casarem com homens de fora. Naquele pequeno mundo mineiro vive-se um pouco à parte das outras gentes e não é com facilidade que a mulher ou o homem se adapta a outro meio.

 

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Uma classe numerosíssima é a das costureiras que trabalham nos diversos ramos da sua actividade, desde as fábricas de cintas, aos depósitos de fardamentos, às roupas modestas, em série, às camisarias elegantes, às modistas e alfaiates de todas as categorias.

 

As que se dedicam ao vestuário feminino e masculino começam por aprendizas e, nessa fase, levam o tempo a fazer recados, palmilhando léguas em cada dia, sem sair das ruas da cidade.

 

Depois, quando passam a costureiras, ficam na oficina, curvadas sobre a costura, durante as oito horas que a lei deterrnina.

 

Trabalho monótono, caprichoso, que obriga a fazer, desfazer e refazer várias vezes a mesma coisa, num ambiente atafulhado de tecidos, onde tudo tem que ser meticuloso, é dos mais exaustivos, sem perspectivas risonhas, nem estímulo de qualquer ordem.

 

No entanto, é o caminho seguido pela maioria das raparigas do povo, nas cidades e vilas, que, atingidos os dez, onze anos, após o exame de terceira ou quarta classe, quando o chegam a fazer, têm que procurar uma profissão.

 

Ser costureira é considerado um modo de vida particularmente próprio para uma pequena modesta, mas estimada, mesrno quando pertence a uma família de trabalhadores.

 

Como não se lhes requere, para tal emprego, qualquer preparação especial, além do vulgar geito para coser, isso é considerado uma vantagem. E a criança, sem outros conhecimentos que não sejam, na melhor das hipóteses, os da instrução primária, superficialmente aprendidos e rápidamente esquecidos, transita da escola ou da vida humilde da sua família para um meio onde lhe são revelados, sem cautela, alguns dos aspectos mais condenáveis da sociedade e todos os artifícios, despeitos, vaidades e misérias morais que se dissimulam, tantas vezes, na convencional elegância feminina.

 

Ela sobe todas as escadas, vai a todas as casas, honestas e desonestas, observa as situações mais escabrosas, com a curiosidade desperta e a intuição mórbida da puberdade, que tudo apreendem, mesmo quando se ignoram ainda certas realidades chocantes.

 

Tudo contribui para Ihe desenvolver o gosto pelo luxo. As colegas mais velhas e experientes, que tiveram a mesma aprendizagem, conversam sobre assuntos que a excitarn, falam, em segredo, da sua vida sentimental mal esboçada.

 

E a aprendiza desorienta-se, chega à noite estafada e com a cabecita cheia de pensamentos confusos, perturbantes, que se não atreveria a contar a ninguém.

 

Anos depois, já costureira, metida o dia inteiro na oficina, a mexer e remexer em sedas, veludos, rendas, que Ihe deslumbram a fantasia, a assistir a provas, a ver mulheres que parece viverem só para usar aqueles vestidos em cuja confecção ela esgota as forças e a paciência, a ouvir intrigas, escândalos íntimos e «casos apaixonantes», ela está deformada, tem da vida um conceito falsíssimo e sente uma revolta estéril contra o seu destino.

 

Para se evadir da sua existência mesquinha só tem ao seu alcance, mesmo assim à custa de sacrifícios, as sessões de cinema, os romances «cor-de-rosa» e os passeios, ao domingo, com as amigas e o namorado.

 

Tem a grande preocupação de ser elegante e realiza prodígios para valorizar um tecido barato, copiando os modelos da sua preferência, muitas vezes excessivamente complicados e extravagantes.

 

Não é raro usar pinturas desde muito nova, gosta de parecer bem e dá fundarnental importância aos pormenores do penteado, do calçado e de tudo quanto seja moda, resumindo, geralmente, nessa preocupação as suas aspirações, convencida de que é o melhor caminho para conseguir um casamento vantajoso, que a liberte da costura.

 

É censurável isto? Não, nem admira que tal suceda. Se as costureiras pensam, assim, é porque Ihes não são proporcionados meios de cultura mental e física, que melhorem as suas condições de vida.

 

Dizendo condições de vida não nos referimos ùnicamente à parte económica. Abrangemos nesta expressão tudo quanto desenvolve a inteligência e fortalece o corpo, aumentando a resistência moral e da saúde, integrando os seres humanos no verdadeiro sentido de viver.

 

Apontamos as circunstâncias gerais em que as costureiras passam da infância à mocidade e prosseguem, depois, a sua vida, limitadíssima e sem horizontes, justamente para que se compreenda melhor as razões que influem na sua mentalidade.

 

Sejam quais forem esses erros e as suas consequências, não impedern, porém, que elas sejam trabalhadoras utilíssimas, corajosas na sua luta pelo pão e nas amarguras da sua vida pessoal.

 

Pode mesmo afirmar-se que as costureiras figuram entre as mais sacrificadas trabalhadoras, porque a sua profissão as obriga a uma posição extremamente fatigante e nociva para a saúde, além de permanecerem longas horas em recintos muitas vezes insuficientemente iluminados e arejados.

 

A sua juventude é intimamente triste, sem o desafogo da vida ao ar livre que as camponesas têm, e sem a despreocupação de vestuário que, sob esse aspecto, torna mais simples a vida da jovem operária.

 

A costureira, apresentada como uma figura romântica, heroína de casos sentimentais, cantada pelos poetas, merece sem dúvida a maior simpatia, mas não pode ser tomada como um tipo feminino, imutável, correspondente a uma classe.

 

O facto da sua mocidade emurchecida, sacrificada, inspirar romances e poemas mais ou menos doentios, não significa que ela tenha que ser irremediavelmente assim. Só as circunstâncias em que decorria e decorre ainda, para a maior parte, a sua vida, impedem que ela seja uma criatura sadia e confiante no futuro.

 

De certo modo, a costureira tem evoluído, como, em geral, todas as jovens: passeia em grupos, tornou-se menos tímida, dispõe de si com maior liberdade.

 

Não basta, porém, isso e mais o mau cinema e os péssimos romances que já apontamos para a valorizar. Pelo contrário, tais distracções e leituras só agravam o erro da sua formação, porque constituem só por si elementos desorientadores. Daí a costureira dos nossos dias, na generalidade, continuar a ser romântica, dum romantismo adaptado à época. Algumas têm sonhos maravilhosos de amor e desejam ser «estrela», prémio de beleza, como lêem nos jornais, ou qualquer outra coisa neste género, que Ihes dê, num momento, a felicidade - uma felicidade dourada, falsa e desmoralizadora. Outras, e são a maioria, têm aspirações mais modestas: urn casamento a seu gosto, uma existência desafogada e risonha. Fora disto, tudo Ihes parece secundário, se é que chegam a pensar que mais alguma coisa possa merecer o seu interesse.

 

É assim a nossa costureira: trabalhadora, hábil, porém indiferente aos problemas gerais da vida, não porque eles a não atinjam pessoalmente, mas porque se considera à margem da sua solução.

 

Tudo quanto se relacione com a parte económica pesa implacavelmente no seu viver. Ela sabe quanto custa uma casa, um quarto, a alimentação, tudo quanto lhe é indispensável para se manter. Sabe o esforço a que corresponde o salário que recebe cada semana, sempre insuficiente para as suas reduzidas despesas. Sente a fadiga das caminhadas, de manhã, à hora do almoço e ao entardecer. Talvez pense que seria bom e útil poder tomar as suas refeições em condições melhores. Decerto sente falta de muita coisa e, frequentemente, só recorrendo a um trabalho suplementar, aos serões, consegue suprir o que é mais urgente.

 

Sabe tudo isto, mesmo quando vive melhor que as colegas, por não ter encargos de família ou guarda o que ganha só para os «seus alfinetes».

 

No entanto conserva-se inerte e convence-se de que nada tem a fazer para modificar favoravelmente o seu destino. Como a maioria das nossas mulheres considera que lhe compete ser resignada e suportar todo o sofrimento que lhe couber, aceitando como «uma sorte» qualquer transformação que lhe traga benefícios. Tambem está convencida de que a sua felicidade pessoal nada tem que ver com a profissão que exerce e com as condições em que a exerce.

 

Felicidade pessoal é, no seu entender, um amor correspondido e a satisfação daquilo que mais se deseja. E, quase sempre, uma das coisas que ela mais deseja é não precisar de trabalhar pelo ofício.

 

Isto contribui profundamente para que não haja, entre as costureiras, um verdadeiro sentido de classe.

 

O interesse de cada uma confina-se à casa em que trabalha e às colegas com quem se entende melhor.

 

Só uma pequeníssima percentagem frequenta o respectivo sindicato e mesmo assim apenas nas principais cidades. Por essa ou por outras razões, tambem é certo que o sindicato não tem influído na valorização e desenvolvimento colectivos.

 

Em resumo: as costureiras constituem uma classe numerosíssima que abrange todo o país. O seu tipo varia da aldeia para a cidade, correspondendo ao meio em que vivem. A sua mentalidade ressente-se das condições do ambiente especial em que exercem a profissão. Há uma lei que regula o seu trabalho, mas não têm possibilidades de se instruirem e fortalecerem fisicamente, por meio de exercícios, jogos e distracções sadias, indispensáveis, principalmente, quando se passa o dia inteiro dentro de casa, na mais fatigante posição, trabalhando, muitas vezes, com luz artificial.

 

Tratando-se de jovens, como sucede, em grande maioria, com as costureiras, a falta dessa possibilidade torna-se mais grave ainda e tem as piores consequências. São muitos milhares de raparigas, de organismo enfraquecido e mentalidade deformada, para quem a vida não terá nunca a plenitude que resulta da saúde moral e física, da confiança e da noção clara do que vale e significa o trabalho profissional.

 

É também elevado o número de mulheres que executam, em casa, trabalhos de costura para grandes armazéns exportadores e para o Depósito Geral de Fardamentos, acumulando com essa tarefa os serviços domésticos.

 

Não estão sujeitas a horários e recebem conforme o número de peças de roupa confeccionadas.

 

Há também as costureiras que trabalham isoladamente, por conta própria, sem terem, contudo, a categoria de modistas. Isto sucede principalmente na província.

 

Essas não estão subordinadas a ninguém nem têm horas fixas de entrada e saída para o trabalho. A sua vida, porém, tem aspectos de maior sacrifício e fadiga que a das costureiras das casas de modas e modistas mais ou menos importantes, porque a sua actividade é regulada apenas pela necessidade de ganhar a vida, sem conhecer limites doutra espécie. Muitas pegam na costura ao amanhecer e só a largam depois de prolongado serão.

 

Pertencem ao número das trabalhadoras pelas quais, na maior parte dos casos, não se chega a dar, porque se mantêm no âmbito do viver doméstico.

 

Isso não impede, todavia, que elas sejam valiosos elementos de trabalho, com a agravante de não serem abrangidas pelas vantagens que a lei possa conceder às outras, que exercem a sua actividade dentro duma organização.

 

Modestas, geralmente tímidas, sem o relativo desembaraço que o convívio mais largo dá, as costureiras que trabalham individualmente, espalhadas por cidades, vilas e aldeias, vivem fechadas em si próprias, a sua mocidade estiola-se, e elas são, afinal, ainda mais sacrificadas que as outras, agrupadas em trabalho colectivo.

 

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No Funchal há numerosas mulheres empregadas nas fábricas de bordados.

 

Como já referimos, esses bordados são entregues a bordadeiras rurais e profissionais, que os fazem em casa, conforme o tempo de que dispõem.

 

As operárias trabalham as horas regulamentares e ganham salário fixo, que vai de seis a doze escudos diários.

 

Data de 1850 o aparecimento dos primeiros bordados executados na Madeira, sem que esteja bem esclarecida a sua origem. É, contudo, certo, que a sua rápida expansão se deve, inicialmente, à propaganda de uma inglesa, grande admiradora daquela maravilhosa ilha. Logo apareceram alguns negociantes, ingleses e alemães, que principiaram a exportar, em larga escala, esses bordados, tornando-se igualmente muito importante a venda feita aos passageiros dos navios que tocavam no Funchal.

 

Esta indústria desenvolveu-se extraordinariamente, com períodos de maior ou menor prosperidade, atingindo as exportações e o comércio local, no ano de 1946, a importância de duzentos e quarenta mil contos. Por aqui se avalia o que representa, na economia madeirense, o trabalho das bordadeiras, espalhadas por toda a ilha, desde o Funchal à rnais pequena freguesia.

 

Quando os bordados falham, como sucede presentemente, estabelece-se o pânico, não só entre a população aldeã, como em toda a ilha, visto que também há bordadeiras nas vilas e na cidade, podendo dizer-se que, directa ou indirectamente, grande parte dos seus habitantes tem interesses ligados aquela indústria.

 

Actualmente, o bordado da Madeira é muito diverso do que foi na fase primitiva. Para corresponder ao gosto da importante clientela estrangeira, dentre a qual se destacam americanos, ingleses e brasileiros, os industriais criaram novos modelos, quanto ao desenho e ao processo de bordar.

 

Os bordados dividem-se em três grupos: primitivos, antigos e modernos.

 

Nos primitivos predominam os caseados e ilhós e são geralmente executados com linha azul sobre tecido branco.

 

Nos antigos verifica-se a influência de vários bordados estrangeiros, com desenhos mais complicados, em diversos estilos, sendo a linha azul substituída pela branca.

 

Os modernos abrangem uma grande variedade de processos, desde o matiz ao bordado a retalho.

 

Com uma facilidade invulgar, as bordadeiras vão acompanhando esta evolução, seguindo as indicações que recebem, copiando outros bordados e criando elas próprias novos «pontos», conforrne a sua fantasia e o género de trabalho que executam.

 

Os bordados são pagos por uma tabela baseada no número de pontos exigido por cada desenho e préviamente calculados. Assim, a obra leva o desenho passado e a indicação do preço do seu trabalho, que a bordadeira aceita sem discutir. A importância correspondente às linhas é descontada nesse preço, isto é, a bordadeira paga as linhas que emprega.

 

A designação de ponto, neste caso ponto industrial, não corresponde aqui a cada vez que se espeta a agulha no tecido, mas sim a um conjunto de pontos que formam um ilhó, uma folha ou um grupo de granitos, equivalendo, cada metro de richelieu, cordão, caseado e outros, ou cada centímetro quadrado de pontos de fantasia, a um determinado número de pontos industriais. Cada ponto industrial é pago por um centavo e meio.

 

As bordadeiras rurais ou profissionais, são consideradas trabalhadoras domésticas, não pertencendo a qualquer sindicato nem beneficiando de quaisquer vantagens de caixas de previdência ou fundo de desemprego. Pagam, porém, rigorosamente, o imposto estabelecido sobre todas as importâncias que recebem pelos bordados executados.

 

Quem vê qualquer peça nas mãos das bordadeiras, quando elas, sentadas à porta, ou em rancho, à sombra das árvores, vão lavrando primorosamente o tecido, sem contudo ter com ele a menor cautela, mal pode acreditar que aquele pedaço de linho ou cambraia, enrodilhado, sujo, se transforme numa toalha com formoso bordado, impecavelmente limpa e engomada.

 

Na verdade, a bordadeira, principalmente a bordadeira rural, não tem o menor escrúpulo em arrastar na terra o tecido que está a bordar, chegando mesmo a limpar as mãos com ele. A sua tarefa é executar o bordado, o resto é com a fábrica. Quando ali dá entrada, a obra parece, muitas vezes, um esfregão, mas o bordado lá esta, resistente, certo, bastando lavá-lo para que ele ressalte, perfeito e lindo.

 

Se assim não for, se o trabalho apresentar dificiências, a bordadeira perderá o seu ganha-pão e prejudicará a aceitação desta famosa indústria nos grandes mercados que a mantêm. Isto obriga-a a apurar, quanto pode, o seu labor.

 

Cabe às operárias verificar se há irnperfeições no bordado e remediá-las, quanto possível. A tarefa de recortar o tecido é particularrnente delicada e exige grande atenção. Cada fábrica tem várias secções, com operárias especializadas, desde lavadeiras e engomadeiras às encarregadas da estampagem, contagem e empacotamento das peças.

 

Na ilha Terceira, onde existe também a indústria de bordados, em tudo idêntica à da Madeira, mas em muito menor escala, há igualmente fábricas do mesmo género.

 

As operárias que trabalham nas fábricas de bordados são, como a maioria das operárias portuguesas, activas, hábeis, disciplinadas, mantendo-se, porém, à margem da vida proletária. O seu nível de vida é baixíssimo; no entanto, sentindo embora o peso de incalculáveis dificuldades, elas não chegam a definir os seus próprios problemas, nem os discutem, nem se unem para lhes encontrar a solução.

 

Não é nosso intuito analisar as particularidades do trabalho feminino em cada fábrica ou oficina, nem sequer mencionar todas as indústrias em que a mulher colabora.

 

O que importa, para o nosso ponto de vista, é o conhecimento da mentalidade, índole e nível de vida das operárias portuguesas.

 

De resto, dada a incompreensão encontrada nalgumas empresas, quando pretendíamos documentar-nos acerca do trabalho, aptidão profissional, competência e outros aspectos da vida das operánas, tomou muito difícil a nossa tarefa.

 

Se muitos directores e gerentes nos permitiram visitar as suas fábricas e nos deram, de forma mais ou menos desenvolvida, os esclarecimentos que lhes pedimos, também houve bastantes que se retraíram ou nos fecharam categoricamente as suas portas.

 

Fazemos referência a este facto porque ele nos parece bastante significativo e também diz respeito, afinal, embora indirectamente, à vida da operária.

 

Tal como sucede com a camponesa, verificamos que a operária constitui um elemento valiosíssimo, com grandes faculdades de trabalho e adaptação aos mais variados mesteres.

 

A sua importância na economia da Nação é fundamental. No entanto, o salário que Ihe atribuem é inferior ao do homem, ainda que a tarefa realizada seja igual.

 

Neste ponto é idêntica a situação da trabalhadora rural e da operária.

 

Há, nalgumas indústrias, serviços considerados impróprios para a mulher, por serem prejudiciais ao seu organismo. Esta protecção da lei, que nem sempre é rigorosamente cumprida, representa um avanço apreciável na defesa dos seus direitos naturais.

 

Quanto à assistência na maternidade, também a lei estipula, para as operárias, férias com vencimento, durante trinta dias, na ocasião do parto. Neste ponto são mais precárias as condições da camponesa, a quem falta, absolutamente, qualquer protecção, quando lhe nascern os filhos.

 

Se a lei dispensa justíssima atenção à operária-mãe, outro tanto não sucede da parte das empresas. Elas limitam-se a cumprir o que está obrigatóriamente estabelecido, mas não tomam qualquer iniciativa para completar o efeito benéfico da lei, instalando e organizando maternidades para o seu pessoal feminino.

 

Salvo raríssimas excepções, entre as quais é justo destacar a Companhia dos Tabacos, em Lisboa, que mantém uma maternidade para as suas operárias, as grandes empresas desinteressam-se deste assunto, como se desinteressam das creches e dos refeitórios.

 

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A vida familiar das operánas, no que respeita a habitação e conforto doméstico, varia muito, não apenas conforme as indústrias a que se dedicam, ou mesmo os salários que ganham, mas, em grande parte, segundo as possibilidades que lhes são dadas.

 

Há, sem dúvida, indústrias consideradas pobres e outras mais rendosas, o que influi nas condições de vida dos respectivos operários. Mas, na realidade, tudo depende de várias circunstâncias, como, por exemplo: disporem de casas higiénicas, não muito distantes do local onde trabalham. Assim, há, na mesma indústria, operárias com um nível de vida melhor que o de outras.

 

Tambem há, igualmente, operárias da mesma indústria com mentalidade mais ou menos esclarecida, segundo o meio em que vivem, a sua instrução e as possibilidades de valorização postos ao seu alcance.

 

Como já dissemos, é reduzido o número daquelas que encaram conscientemente a vida profissional, não em relação à competência com que desempenham as tarefas a seu cargo, mas relativamente aos aspectos morais, sociais e económicos do próprio valor que elas representam.

 

A percentagem de analfabetas é elevada. Mesmo as que aprenderam a ler, geralmente não leem, por falta de tempo, de interesse e de leitura acessível ao seu entendimento. Esta é, incontestavelmente, uma das causas fundamentais da mentalidade atrasada que caracteriza a maioria das operárias portuguesas.

 

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Menos religiosas que as camponesas, as operárias conservam, porém, mais nuns sítios que noutros, a crença tradicional do povo português.

 

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Dedicadas, capazes dos maiores sacrifícios pela família, vivendo num labutar constante, as operárias portuguesas, se não atingirarn ainda aquele desenvolvimento que lhes fortalecera a consciência de si próprias, são contudo mulheres admiráveis, cuja abnegação e coragem nunca será demais enaltecer.

 

 

VÁRIAS PROFISSÕES DAS MULHERES DO POVO

 

Nao é somente na agricultura e na indústria que a mulher do povo exerce a sua actividade. Ela trabalha sempre intensamente, nas mais variadas profissões, mesmo quando não é camponesa ou operária, contribuindo desde muito nova, às vezes ainda criança, para a manutenção da familia.

 

Enumerar todos os trabalhos a que a mulher do povo se dedica seria impossível, porque ela encontra sempre maneira de fazer alguma coisa para ganhar a sua vida, seja portas a dentro, lavando, engomando, cosendo roupa ou fazendo doces, seja expondo-se a todo o tempo e a longas caminhadas, na condução de malas do correio através de regiões montanhosas, seja fazendo carregos de toda a espécie, à cabeça ou puxando pequenas carroças, como um animal de carga.

 

Isto não sucede apenas nos meios rústicos. Nas vilas e cidades do Norte é comum a profissão de carregadora.

 

A carrejona e a carqueijeira são figuras femininas que passam diariamente nas ruas do Porto, ajoujadas sob os carregamentos que transportam.

 

Nalgumas estações do caminho de ferro há mulheres empregadas no serviço de carregar e descarregar bagagens e mercadorias, ostentando a chapa, com o número, que garante a legalidade da sua profissão.

 

Duma forma geral esta ocupação é exercida por mulheres de condição muito humilde, que se apresentam pobremente vestidas e descalças. Porém, também há, em terras importantes, serviços deste género a cargo de mulheres, cujo aspecto é semelhante ao de qualquer empregada modesta, vestida e calçada sem luxo, mas com certo apuro.

 

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Um emprego feminino de grande responsabilidade, apesar de obscuro, é o das guardas de passagem de nível, ao longo da via férrea, de Norte a Sul do País. É importantíssima a missão dessas mulheres, que são forçadas a estar vigilantes durante toda a noite e a quem compete garantir a segurança de milhares de vidas humanas.

 

O trabalho doméstico, nas diversas classes, é executado quase exclusivamente por mulheres. Elas são «criadas» e «mulheres a dias» em casas ricas, remediadas e até de insuficientes recursos, servindo outras mulheres que, geralmente, não têm preparação nem facilidades para organizar devidamente o trabalho do seu lar, e, além disso, nem sempre encaram como seres humanos, de natureza semelhante à sua, as pessoas que as servem.

 

A classe das empregadas domésticas, permanentes ou eventuais, abrange, no nosso país, muitas centenas de milhar de raparigas e mulheres. Trata-se de trabalhadoras de carácter especial, que se vão adaptando mais ou menos ao meio em que perrnanecem, valorizando, algumas vezes, as suas naturais qualidades e adquirindo sempre os defeitos que nesse meio predominam.

 

Sem preparação conveniente, as serviçais domésticas constituem hoje um problema dos mais importantes na sociedade portuguesa. Como todos os problemas, este não tem sòmente um aspecto. Pelo contrário, é complexo e grave, estando ligado a outros, de fundamental importância para a vida familiar, cujo estudo excede o âmbito destas páginas. No entanto, pela sua própria índole e por que diz respeito a um número considerável de mulheres portuguesas, não podemos deixar de o focar, embora superficialmente.

 

O tipo da «criada antiga», que permanecia longos anos na mesma família, servindo os patrões com uma dedicação sem limites, desapareceu quase por completo. As velhas servas que ainda existern, principalmente na província, e que ajudam, hoje, a criar os filhos e os netos das meninas e meninos que elas próprias embalaram, são uma reminiscência dessas mulheres obscuras, pacientes e fidelíssimas que se tomavam indispensáveis à tranquilidade das boas donas de casa, conforme a tradição portuguesa. A certa altura eram elas, afinal, quem orientava o serviço doméstico.

 

É certo que a maioria dessas leais e abnegadas servidoras acabava, de certo modo, por fazer parte da família e não lhe faltava, nos derradeiros dias, assistência mais ou menos carinhosa. Isso, porém, não era senão a recompensa natural e inevitável duma vida inteira de servidão, sem aspirações pessoais nem vislumbre de independência.

 

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Essas criadas, que entravam para uma casa ao despontar da adolescência e só a abandonavam quando iam a enterrar, substituiam inconscientemente as escravas doutro tempo, abdicando de si proprias e aceitando humildemente a condição de animal de trabalho, como se outro não pudesse ser o seu destino.

 

Não tinham limite de tarefas, desde tomar conta das crianças e, muitas vezes, perder as noites com elas, a todos os serviços caseiros, ainda os mais pesados, quando não também alguns trabalhos rurais.

 

À medida que o tempo ia passando e as qualidades requeridas a uma boa criada deste género se iam acentuando, aumentava a confiança que as patroas depositavam nela e aumentavam também a sua canseira e responsabilidade.

 

As que casavam, seguiam geralmente novo rumo e, continuassem embora, com o marido, ao serviço dos mesmos patrões, a sua vida alargava-se, adquiria um sentido mais profundo, ainda que não abrandassem as agruras nem o labutar constante.

 

Mas era grande a percentagem daquelas que, voluntária ou involuntariamente, renunciavam ao casamento.

 

Algumas não chegavam a ter oportunidade de namorar; outras não se atreviam a eximir-se à tutela dos amos; muitas afeiçoavam-se aos meninos que criavam e a quem suportavam, com paciência e submissão, maus tratos, caprichos, crueldades, ficando para sempre presas a esse afecto em que vibrava, estérilmente, o instinto maternal.

 

Havia também dramas secretos, embates angustiosos, realidades inconfessáveis que se passavam na alma e no corpo das jovens servas.

 

Tudo ia ficando sepultado nas vidas sem horizontes, apagadas, das mulheres humildes e desamparadas que se votavam inteiramente à felicidade alheia. Porque uma criada deste tipo contribuia fortemente para a felicidade da dona de casa, dando-lhe a certeza de que, a qualquer hora do dia ou da noite, teria sempre quern cumprisse rigorosamente as suas ordens, sem protestar, numa passividade total.

 

O termo felicidade aparece, neste caso, com um sentido limitadíssimo e mesquinho. Mas corresponde ao conceito de vida predominante numa época e num meio em que, para a mulher, ser feliz correspondia a ter um marido amável e generoso, vestidos, jóias e conforto, criadas para a servir, resumindo-se tudo, afinal, numa existência passada o mais agradávelmente possível, sem cuidados nem canseiras nem responsabilidades.

 

São muitas as mulheres que ainda hoje pensam assim, exactamente porque, vivendo fechadas no seu egoísmo e na inconsciência de si próprias, vão ficando para trás, refractárias à evolução dos costumes e da mentalidade dos povos. Entretanto, essa evolução é inevitável e vai exercendo influência, muito lenta embora, em todas as camadas sociais.

 

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Não é, pois, de admirar, que as criadas de hoje sejam diferentes das criadas doutros tempos. Essa transforrnação corresponde a modificações de ordem geral, e não deve causar estranheza que as serviçais domésticas tenham agora aspirações diversas das que tinham há cinquenta ou cem anos. O desequilíbrio que existe entre essas aspirações e as qualidades requeridas para ser uma boa trabalhadora doméstica não é mais que a consequência da falta de preparação que caracteriza, em geral, as raparigas e mulheres que se dedicam ao referido mester.

 

Os defeitos apontados, quase sempre justamente, às criadas actuais, as suas exigências, incompetência e indisciplina, correspondem a defeitos, exigências e indisciplina de muitas donas de casa, revelados noutro campo, sob aspectos diferentes, e também, em grande parte, a deficiências e condições contrárias à boa organização do trabalho caseiro e da vida familiar.

 

No seu conjunto, este problerna de donas de casa e pessoal doméstico constitui um assunto que interessa fundarnentalmente a todas as mulheres, embora sejam diversas as maneiras de o encarar.

 

Limitamo-nos a referir algumas características das mulheres que exercem a profissão de serviçais domésticas, e que são, afinal, transpostas para meios diferentes e com agravantes que desses meios lhes advêm, as mesmas que notamos nas outras trabalhadoras do povo: falta de instrução e uma noção falsa da valorização pessoal, avaliando a sua própria importância pela maneira mais ou menos luxuosa como se vestem e calçam, à imagem da maioria das patroas, sem outras preocupações de ordem espiritual e profissional.

 

Varia muito, é certo, a categoria das criadas, conforme as terras onde se encontram, as casas em que se empregam e as suas qualidades pessoais. No fundo, porém, abstraindo essas circunstâncias, só excepcionalmente alguma terá aspirações mais elevadas que a de se apresentar bem vestida, namorar, ter o seu oiro e ir enchendo a mala do enxoval.

 

Por outro lado, consideram-se inferiores porque são «criadas» e deixam-se dominar, frequentemente, por um sentimento de despeito, em retação às outras mulheres que podem ter quem as sirva.

 

Desta maneira, a classe das trabalhadoras domésticas, que é uma das mais numerosas, no nosso país, reflecte uma deformação atávica, que tende a agravar-se cada vez mais e que está intimamente ligada à mentalidade geral e a outras influências desmoralizadoras. Basta dizer que predomina ainda a opinião de que uma rapariga, cujo provável destino seja ganhar a vida como criada, deve saber, quando muito, ler, escrever e contar rudimentarmente. O exame de instrução primária é considerado excessivo para tal emprego.

 

Como não há escolas de preparação para o trabalho doméstico, não é possível dar a essa profissão garantias que a prestigiem e constituarn um estímulo para as mulheres que a ela se dedicam.

 

A desigualdade de remuneração para o trabalho do homem e da mulher, em tarefa igual, existe também, sancionada por lei, entre os profissionais hoteleiros. O ordenado dum criado de quarto é superior ao duma criada também de quarto, do mesmo hotel, sem que haja a menor diferença nas responsabilidades e encargos de ambos. Além disso, o tempo de descanso diário é de duas horas, fora o almoço, para os homens, e de uma hora, incluindo o almoço, para as mulheres.

 

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Várias vezes nos temos referido já às lavadeiras. Trata-se duma profissão geral, que tanto se encontra na aldeia como na cidade.

 

Àparte uma ou outra povoação onde existe lavadouro coberto, as lavadeiras constituem longos frisos de figuras curvadas, batendo roupa, nas margens dos rios, quase sempre metidas na água até ao joeiho.

 

É das mais duras profissões! Tal como é praticada, corresponde a hábitos antigos, distantes da civilização actual. E as mulheres que a ela se dedicam, além de levarem vida extenuante e gravemente prejudicial à saúde, vão-se tornando cada vez mais fechadas na sua ignorância, limitando-se a falar, umas com as outras, da vida alheia, enquanto ensaboam a roupa das freguesas.

 

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A mulher do povo, em Portugal, principalmente no Norte, transporta toda a espécie de carga, como se fosse cssa a sua função natural. Mesmo em Lisboa, como no Porto, há numerosas mulheres empregadas na descarga de barcos.

 

O carvão, a areia, o sal, são descarregados quase exclusivamente por mulheres.

 

Passam sobre pranchas estreitas, em contínuo vai-vem, decididas e activas, sempre animosas, embora muitas vezes os pés feridos as obriguem a coxear.

 

Trabalho mal remunerado e brutal, imprime as mulheres que o realizam modos agrestes, um tanto sarcásticos, que correspondem, afinal, à rudeza da profissão.

 

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As vendedeiras ambulantes, de todos os géneros, são trabalhadoras das mais sacrificadas. Percorrem léguas em cada dia, ao sol, à chuva e ao frio.

 

As que vão de feira, em feira, com o marido e os filhos, pode dizer-se que têm vida nómada, sem casa nem abrigo certo, dispondo apenas duma carroça ou duma barraca, hoje aqui, amanhã ali, em toda a roda do ano.

 

Quase sempre, nestas circunstâncias, cabe à mulher a mais pesada responsabilidade na instalação familiar, seja em viagem, seja quando acampam em qualquer local. Ela tem que prover a tudo, para que haja uma sopa quente, uma enxerga, um arremedo de lar. Durante a gravidez e quando lhe nascem os filhos, ela não pode contar com o mínimo conforto, nem sequer com um aligeiramento de canseiras.

Estas mulheres, companheiras valorosas do seu homem na luta pela vida, conhecem todas as amarguras e privações.

 

Uma ocupação feminina que é recente e vai empregando um número cada vez maior de raparigas, é a de arrumadora de cinema e teatro.

 

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Não tém limite as profissões da mulher do povo! Com continuidade ou eventualmente, todas empregam o seu esforço máximo para angariar o pão. A mulher portuguesa é das mais trabalhadoras, tanto por índole como para prover às suas necessidades e às dos filhos, visto que, na grande maioria, o homem não ganha o suficiente para manter a família.

 

Chamar mandriona a uma mulher é ofensa grave, entre o povo. Isto demonstra em que conta é tido o trabalho feminino, não sòmente no que se refere à lida caseira, como em qualquer outra tarefa.

 

Mas, ainda que a mulher não trabalhe fora do lar, a sua actividade é constante, agravada quase sempre pelas complicações de toda a ordem que tornam mais difícil o serviço doméstico.

 

De certo modo, a mulher que permanece em casa tem uma vida mais sobrecarregada de aborrecimentos que qualquer outra. A mudança de arnbiente, o convívio com as companheiras, a atenção que o trabalho profissional requer e a noção de responsabilidade que desperta, dão à vida da operária variantes benéficas. Isto não significa, de modo algum, que seja menor a fadiga. Estabelecendo este paralelo procuramos apenas pôr em destaque as condições desfavoráveis em que, geralmente, decorre a vida doméstica da mulher do povo, e afirmar que a sua importância e valor moral são inferiores aos da mulher que tem uma profissão.

 

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Na realidade, é incalculável o trabalho que representa manter uma casa limpa, obter géneros alimentícios, cozinhar, lavar e remendar as roupas da família, mesmo que se trate de um nível de vida muito modesto. As mulheres domésticas são trabalhadoras anónimas, mas valiosíssimas, que não têm por si, sequer, a protecção que a lei garante, no período do parto, àquelas que trabalham nas fábricas ou em serviços feitos por meio de contrato, nem assistências ou qualquer garantia em caso de desastre.

 

Neste ponto, a sua situação é idêntica à das camponesas.

 

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Existe, é certo, o Instituto Maternal, que mantém nalgumas cidades das rnais importantes, serviços de consultas e Maternidades onde deterrninado número de mulheres das classes populares são recebidas mediante o pagamento duma importância diária, relativa aos salários dos maridos. As que provem ser indigentes recebem assistência gratuita.

 

Há também algumas instituições de protecção à mãe e à criança, de iniciativa particular ou com subsídios do Estado.

 

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É,porém, muito reduzida, a percentagem de mulheres que são abrangidas por esta vantagem, visto que nas próprias cidades, onde existem as Maternidades, não é possível admitir todas, sendo numerosas as que ficarn excluídas, e, duma forrna geral, não há assistência às mães, nas outras localidades do país.

 

A assistência à criança, na primeira infância, tem sido ampliada, nas terras de maior categoria, mas, mesmo aí é também insuficientíssima, e não existe na quase totalidade das outras povoações.

 

Este problema, íntimamente ligado à vida da mulher, agrava extraordináriamente os seus sacrifícios e dificuldades.

 

ASPECTOS PARTICULARES DA VIDA DA MULHER DO POVO NAS POVOAÇÕES MAIORES

 

As romarias são a distracção máxima das aldeãs.

 

Nas cidades e vilas mais importantes, embora haja também o gosto pelos arraiais, que se realizam quase sempre nos arredores, a juventude popular reúne-se, habitualmente, nas sociedades de recreio.

 

Cada bairro tem a sua, e ás vezes mais do que uma. Ali se reunem, quase sempre ao sábado ou em qualquer outro dia combinado, rapazes e raparigas, que se divertem, dansando e conversando durante o serão.

 

Muitas têm apenas uma finalidade: proporcionar aos sócios algumas horas de convívio e distracção.

 

Nalgumas, porém, realizam-se sessões de cinema; noutras organizam-se representações teatrais.

 

As sociedades de recreio representam para as raparigas do povo, sejam operárias, empregadas ou domésticas, um pequeno mundo onde a sua mocidade se expande, onde convivem com os rapazes, na mais agradável camaradagem, fora do ambiente de trabalho e das preocupações diárias.

 

Estas instituições contribuem também para o desenvolvimento mental dos sócios, pois bastantes possuem uma biblioteca e incluem no seu programa sessões culturais.

 

Nem todas as raparigas do povo frequentam as sociedades de recreio. Pode mesmo dizer-se que sòmente uma pequeníssima percentagem o faz. As que habitam em bairros distantes ou povoações onde elas não existem, assim como as mais modestas, cuja família não pode pagar a respectiva quota, estão privadas desse espairecimento.

 

Trata-se, portanto, duma possibilidade de distracção exclusiva dalgumas jovens das cidades e vilas mais civilizadas.

 

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Se é certo que a mulher do povo permanece, em grande parte, analfabeta e, mesmo quando o não é completamente, apenas sabe soletrar e assinar o seu nome, também é verdade que vai aumentando o número daquelas que tomam gosto pela leitura.

 

Isto sucede, acentuadamente, na cidade, e para tal contribuem muitos factores, como, por exemplo: os cartazes sugestivos colados nas paredes, anunciando filmes sensacionais; os jornais que lhes passam constantemente sob os olhos; as montras das livrarias; o próprio aspecto movimentado das ruas, onde elas cruzam com pessoas de todas as classes, muitas vezes com estrangeiros de aspecto mais ou menos extravagante, que lhe dão uma ideia da variedade do panorama humano.

 

Como ninguém orienta essa curiosidade mental, sucede, quase sem excepção, que a leitura escolhida contribui fortemente para desorientar a leitora, criando na sua imaginação mundos fantásticos, com personagens artificiais e episódios inverosímeis.

 

Longe de beneficiar quem os lê, semelhantes livros deformam gravemente a mentalidade e a sensibilidade dessas raparigas e mulheres, com a agravante de se tratar de pessoas cujo meio é totalmente diverso daquele que tais romances - pois de romances se trata - Ihes descrevem.

 

Então, para essas operárias, vendedeiras ou empregadas em qualquer mester humilde e mesmo domésticas, o livro de capa azul, côr-de-rosa ou de qualquer outra cor passa a ser uma espécie de estupefaciente que Ihes perrnite evadirem-se momentâneamente, da realidade mesquinha da sua existência.

 

Nas páginas desse livro elas conhecem mulheres fatais, jovens formosas, sublimes, que se sacrificam, mas acabam sempre por triunfar no coração dum homem orgulhoso e rico. A felicidade toma, para elas, aspectos ideais, em que predomina um amor romântico, eterno, sem fraquezas humanas, e tudo se passa em cenários maravilhosos, ou pelo menos dum lirismo condizente com a psicologia dos personagens.

 

A consequência é um descontentamento mais profundo, um amolecimento de energias e um alheamento maior dos problemas da vida real. Passam a achar inferiores os rapazes do seu meio, cedem a aspirações insensatas; põem em perigo a sua própria dignidade e tornam-se cada vez mais infelizes.

 

Neste caso, pode dizer-se que a leitura lhes foi prejudicial.

 

Pois é este, quase exclusivamente, o género de livros que se proporciona às mulheres do povo.

 

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Relacionado com o assunto a que acabamos de nos referir, vem-nos à lembrança um instantâneo colhido numa das avenidas de Lisboa.

 

Uma vendedeira de hortaliça, mulher feita mas ainda muito nova, ia, de giga à cabeça, apregoando a sua mercadoria.

 

Caminhava devagar, na placa central, por entre as árvores, e a sua voz tinha um timbre agradável, como se cantasse. Vestia como qualquer outra vendedeira. No entanto, alguma coisa nela chamava a atenção. Talvez o ritmo lento do andar. Talvez a expressão melancólica da fisionomia. Parecia fatigada, desintegrada do que estava fazendo. Dir-se-ia que aquela vendedeira estava ali sómente em corpo: o pensamento andava distante.

 

A certa altura charnaram-na dum andar alto. Primeiro não ouviu. Depois parou, olhou para cima e respondeu ao que lhe perguntavam. Como lhe dissessem que esperasse, ela pôs a giga no chão, encostou-se a uma árvore, tirou da algibeira do avental um dos tais romances sentimentais e principiou a ler, desinteressada de tudo o que a cercava, da hortaliça, da freguesa que não tardaria a aproximar-se.

Quando chegou a pessoa interessada na compra das couves, ela teve um gesto de enfado.

 

Guardou o livro, fez o negócio, com ar indiferente, pôs de novo a giga à cabeça e prosseguiu, avenida acima, a cantar o seu pregão como se lançasse um grito nostálgico.

 

Tudo, na sua atitude, denunciava que não havia nada, no mundo, que equivalesse, para ela, à intriga amorosa que aquele livro continha.

 

E sonhava, decerto, com urn destino semelhante ao da heroína, num constante deslumbramento de amor e numa inconsciência entorpecedora.

 

FACULDADE DE ADAPTAÇÃO DAS MULHERES DO POVO

 

A mulher portuguesa possui, em elevado grau, facilidade de adaptação, não só quanto as profissões, como a outros ambientes diversos daquele em que se criou.

 

É frequente uma mulher, cujo nível de vida melhorou, transformar de tal maneira o seu aspecto, que se não distingue, aparentemente, das outras habituadas desde sempre a tudo quanto, para ela, constitui novidade.

 

Sendo uma vantagem, esta facilidade de adaptação, ou antes, de imitação, tem também grandes inconvenientes, pois cria a ilusão de que basta vestir à moda, ir ao cabeleireiro, pintar as unhas, para ser «uma senhora». E com isso se contentam os espíritos ignorantes e deformados, a quem o luxo e a vaidade deslumbram, como suprema conquista na vida.

 

Sob este aspecto, a mulher, por seu mal, é mais influenciável do que o homem. Não cabe na índole deste documentário o estudo profundo de tão grave e complexo problema, mas não podemos deixar de Ihe fazer referência, porque ele está na raiz dos males que afectam a mulher, desvalorizando-a, impedindo a sua evolução e arrastando-a, muitas vezes, para a mais aviltante imoralidade.

 

De facto, tudo impele a mulher a tirar o máximo partido dos seus atractivos pessoais. Sem instrução nem preparação para a vida nem consciência do seu póprio valor humano e social nem leis que a protejam, o caminho mais fácil que se Ihe oferece é esse. Quanto maior é o meio onde vive, mais fortes e perigosas são as influências que a desorientam. Verificando que as mais belas e bem vestidas são preferidas e lisongeadas, as raparigas deixam-se convencer, sem dificuldade, de que isso constitui o maior triunfo feminino.

 

As consequências deste erro são as piores, sob todos os pontos de vista, e levam ao desprestígio mais deprimente para a mulher. Todas as censuras e acusações recaem sobre ela, como se fosse a única responsável da sua própria deformação.

 

Atribui-se-lhe incapacidade mental para compreender a vida fora das coisas fúteis e dos assuntos caseiros Tudo o que não seja frivolidades, paixões sentimentais, concorrência de elegância e encantos físicos é considerado transcendente para a mentalidade feminina.

 

Ao mesmo tempo, quando se mostra leviana e, em muitos casos, mesmo que assim não seja, apontam-na como elemento de perdição, causador de todas as complicações, tragédias e intrigas passionais em que se enreda a sociedade.

 

Não são apenas os homens quem assim julga a muIher. Também as mulheres se mostram implacáveis umas para com as outras. As que têm uma auréola de honestidade falam com desprezo das que vivem à margem da moral corrente; as que se orgulham dos seus pergaminhos não tomam a sério as que ascenderam na sociedade por terem enriquecido; duma forma geral, todas as que estão instaladas na vida consideram impróprio e irritante que as das classes mais modestas gostem de vestir à moda e procurem imitar, à sua maneira, o que é de bom-tom.

 

As mais ásperas críticas vão justamente para as mulheres do povo que não se conservam dentro das tradições da sua classe, na maneira de vestir ou nas suas aspirações. E insiste-se em que, façam o que fizerem, nunca passarão dumas estúpidas. Se alguma consegue dar provas de inteligência e de faculdades de trabalho acima do vulgar, no comércio, na vida profissional ou na sociedade, isso aponta-se como uma excepção e faz-se sempre alusão à sua origem, algumas vezes para valorizar essa mulher que se impôs pelo seu esforço, mas, quase sempre, para marcar a humildade da origem, como quem, ingénuamente, na melhor das intenções, aponta uma inferioridade...

 

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Não é raro ouvir comentários neste género: «Sim, Fulana tem automóvel, jóias e casacos de peles, mas foi criada de servir...».

 

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Numa praia elegante, à passagem duma mulher que dava nas vistas pelo seu luxo espaventoso, houve quem dissesse: «Ali, onde a veem, já teve um lugar de hortaliça! Nem o seu nome sabe fazer. Quis aprender a ler e não foi capaz!...».

 

Para explicar a dificuldade de compreensão de qualquer rapariga do povo no desempenho de serviços que executa, quase sempre, pela primeira vez, é costume dizer frases como esta: «És urna bronca. Não tens geito para nadal Bem se vê que andaste atrás das cabras...»

 

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Outra apreciação, relativa a urna antiga camponesa, que, tendo ajudado corajosamente o marido a desenvolver o seu comércio, ficou viúva e conseguiu enriquecer. Gosava de muita consideração, pela sua seriedade e esperteza para o negócio. Conservava, no entanto, uma maneira de ser, franca, sem artifícios, e nunca se preocupou em desenvolver a sua instrução. Quando se falava nela, principalmente entre outras mulheres, não faltava quem dissesse: «Tem muito dinheiro, mas não pode renegar a origem... O pai era cavador e ela também sachou muito milho. São coisas que ficam agarradas à pele para sempre...».

 

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Estas notas soltas correspondem ao conceito geral de que a mulher do povo, além de ter os defeitos atribuídos a todas as mulheres não consegue libertar-se duma espécie de estigma que lhe vem dos seus princípios modestos, tornando-a incapaz de atingir a delicadeza de maneiras e o desenvolvimento mental das pessoas civilizadas. Isto refere-se, principalmente, àquelas que vivem até certa altura no meio em que nasceram e só depois de jovens ou mulheres feitas passam a ter melhores condições económicas.

 

Na verdade, porém, quando se dá essa transformação, raras vezes ela vai além da parte exclusivamente material. A ignorância mantém-se e a mentalidade permanece no mesmo atraso. Daí o desequilíbrio que põe tanto mais em destaque certas inferiondades, quanto maior for o contraste entre a pobreza inicial e a riqueza atingida.

 

A mulher do povo, seja camponesa, operária ou simples doméstica, tem tanta possibilidade de evoluir e aperfeiçoar-se como qualquer outra. Se ela se preocupa quase exclusivamente com o vestuário, quando as circunstâncias da sua existência melhoram, não faz mais que seguir o rumo que por todas as formas Ihe é sugerido. O mesmo fazem, duma forma geral, aquelas que as censuram e sempre conheceram a abundância ou a mediania.

 

Vem a propósito contar uma história verdadeira que justifica o ditado: «Não há regra sem excepção». Ao mesmo tempo demonstra como é possível obter a transfonnação total duma rapariga nascida e criada num meio humílimo.

 

Este caso é, na verdade, romântico e singular. Não pode, portanto, tomar-se como exemplo fácil de seguir. Mas constitui um ensinamento, quanto à maneira de considerar a valorização da mulher.

 

Abstraindo as circunstâncias particulares deste acontecimento verídico e transpondo para a vida corrente o seu significado, compreender-se-á melhor a diferença entre o que é e o que deveria ser, e a importância que tem para uma rapariga a instrução, a integridade de carácter e o respeito por si própria.

 

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Numa fábrica portuguesa trabalhava, entre muitas, uma jovem operária. Não era excepcionalmente bonita, no sentido vulgar da expressão, mas distinguia-se pela sua aptidão profissional e pela seriedade que transparecia na sua conduta.

 

Filha e irmã de operários, levava a mestna vida modesta da sua família, mostrando, porém, muito gosto pela leitura e desejo de alargar os seus conhecimentos.

 

Assim criou fama de inteligente. As outras raparigas consideravam-na com admiração e os rapazes gostavam de conversar com ela, tendo-a em grande apreço.

 

Ela, no entanto, mantinha-se simples, boa camarada. Tinha dezanove anos. Quando lhe falavam em casamento, respondia que só casaria com um rapaz de quem gostasse e que fosse capaz de compreender as suas aspirações.

 

Um dia foi decidido fazer uma exposiçâo à gerência da empresa, acerca dum assunto que interessava a todos os operários. Os homens escolheram um delegado e as mulheres uma delegada, recaindo nela a escolha para desempenhar essa missão.

 

Um dos donos da fábrica, engenheiro, chegado pouco antes duma longa viagem de estudo por vários países estrangeiros, ficou impressionado com aquela rapariga, ainda tão nova, que se exprimia com clareza e um ar de grande confiança em si própria.

 

Inforrnou-se a respeito dela, observou-a e verificou o excelente rendimento do seu trabalho. Reparou, ao mesmo tempo, no seu aspecto modesto, mas sempre cuidado e impecável de asseio.

 

Soube ainda que ela gozava de muito prestígio entre os companheiros de trabalho e também que gostava muito de ler.

 

Poucas semanas depois a jovem operária foi chamada ao gabinete do engenheiro-patrão, que lhe fez várias perguntas acerca do seu desejo de aprender.

 

Ela confessou, com naturalidade, a sua pena de não ter, sequer, o exame de instrução primária. E ouviu, sem poder acreditar, este oferecimento:

 

- A empresa está disposta a proporcionar-lhe meios de se instruir. Quer aceitar?

 

A rapariga corou, olhou bem de frente para o patrão, como se quisesse adivinhar-lhe as intenções. Ele compreendeu-a e esclareceu:

 

- Poderá estudar à noite e continuar a trabalhar durante o dia. Nada será alterado na sua vida, a não ser o desenvolvimento da sua inteligência.

 

Ela aceitou, pondo como única condição que as lições cessariam, no caso de se reconhecer que ela não era suficientemente esperta para justificar essa vantagem que Ihe ofereciam.

 

Passou a ser ensinada pela professora de instrução primária da localidade. O seu aproveitamento foi surpreendente. Em poucos meses estava apta a fazer exame de quarta classe.

 

Na fábrica, trabalhava cada vez com maior atenção e procurava manter, inalteràvelmente, perfeita camaradagem com os seus camaradas, mulheres e homens. Coisa alguma, na sua atitude, revelava orgulho ou presunção de superioridade.

 

Quando a nomearam chefe da sua secção, recusou. Aquela distinção alarmou o seu escrúpulo.

 

Quem Ihe comunicou a decisão da gerência foi o mesmo engenheiro que Ihe propusera estudar. O convívio, entre os dois mantivera-se sempre no ponto norrnal entre patrão e operária. Dir-se-ia até que ambos tinham a preocupação de não criar familiaridade. Apesar disso ela estranhou a promoção que lhe ofereciarn.

 

A ideia de que a pretendiam proteger fê-la reagir vivamente. Cada vez tinha em maior conta a sua independência moral. E agora já considerava possível conquistar também, pelo seu esforço, maior independência económica. Mas não aceitaria nunca, na fábrica, qualquer situação que pudesse parecer um privilégio.

 

Insistiu, por isso, na recusa, alegando a sua pouca idade, bem como o facto de haver operárias tão competentes como ela e com mais anos de serviço.

 

As suas razões foram aceites e ela continuou a ser uma simples operária sem categoria especial.

 

Porém, houve na sua vida outra modificação mais profunda: depois de várias conversas, ficou resolvido que ela prosseguisse no estudo. Passou a ter outros professores e iniciou o curso dos liceus.

 

A certa altura quis, ela própria, ensinar a ler ou completar o ensino das primeiras classes às suas companheiras de trabalho que desejassem aprender. E organizou aulas noctumas numa dependência da fábrica, cedida para esse fim.

 

Não se tratava apenas de lições de leitura. A improvisada professora aproveitava todos os pretextos para explicar às outras operárias tudo quanto lhe parecia útil e acessível aos seus cérebros pouco desenvolvidos. Era um mundo novo que se Ihes revelava!

 

Alguma coisa maravilhosa tocou o espírito daquelas mulheres. Tornou-se mais forte a arnisade entre elas; sentiram maior interesse pela sua profissão; parecia-lhes mais alegre o ambiente da fábrica; encontravam maior encanto na vida.

 

Entretanto, uma notícia sensacional correu no bairro operário. A Luísa - charnava-se assim a heroína desta história vivida - ia casar com um dos patrões, o engenheiro que se interessara pela sua instrução.

 

Ela continuava a ocupar, todos os dias, o seu lugar na secção onde trabalhava. Mas a notícia era verdadeira.

 

Luísa tinha agora vinte e cinco anos. Concluíra o curso liceal, que conseguira fazer em cinco anos, e preparava-se para frequentar a Faculdade de Ciências.

 

Não quisera abandonar nunca a sua profissão, pois não se julgava ainda apta a ganhar a vida doutra maneira. Mas chegara a altura em que era inevitável abandonar a fábrica.

 

Foi então que o mais novo dos patrões Ihe falou em casamento. Eram já dois grandes amigos. À medida que Luísa ia progredindo no seu desenvolvimento intelectual, tornava-se maior, para ambos, o prazer de conversarem e trocarem impressões sobre vários assuntos. Ele próprio foi, muitas vezes, seu explicador.

 

Gostavam um do outro, mas compreendiam, embora o não dissessem, que não era ainda o momento de falarem no seu problema sentimental.

 

Ela queria, antes de tudo, licenciar-se em ciências físico-químicas; ele respeitava e apreciava o espírito de independência que tão fortemente se revelara sempre naquela rapariga inteligente e correctíssima.

 

As circunstâncias, porém, levaram-nos a decidir-se pelo casamento imediato.

 

Luísa continuou a estudar, ao mesmo tempo que praticava nos laboratórios da fabrica, onde ocupou um lugar de responsabilidade logo que terminou o curso.

 

A antiga operária tornou-se um elemento valiosíssimo para o desenvolvimento da empresa, e tomou-se também uma mulher sòbriamente elegante, tão à vontade no seu aspecto e maneiras civilizadas como qualquer outra nascida e educada num meio proprício ao aproveitamento das suas qualidades e dons naturais.

 

Completando esta breve história, diremos que, longe de se afastar das antigas companheiras de trabalho, Luísa manteve-se fraternalmente unida a elas, defendendo os seus interesses e procurando melhorar sempre, pelas vantagens alcançadas e pela valorização pessoal, as condições da sua vida.

 

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Não é um caso isolado, embora seja excepcional nas suas circunstâncias particulares, um tanto romanescas, este que acabamos de referir. Não deverá esquecer-se a importância que teve no desenrolar desta novela vivida a atitude firme, independente, honesta, da sua protagonista. Ela não partiu da intriga amorosa nem dum cálculo mais ou menos disfarçado em paixão sentimental, para a conquista duma situação superior. Luísa começou por ser a operária anónima que vai junto dos patrões defender os seus interesses e das suas camaradas. Desejosa de instruir-se, aproveitou a oportunidade que Ihe foi dada, sem aceitar, porém, qualquer privilégio que a diferençasse das demais trabalhadoras da fábrica. Conservou-se, conscientemente, rapariga do povo, sem falsas atitudes de incompreendida ou deslocada no meio em que vivia.

 

O facto do seu desenvolvimento intelectual a aproximar do jovem patrão foi absolutamente lógico e não alterou a sua fisionomia moral. O casamento não foi para ela o desfecho duma novela romântica, mas um acontecimento natural que a não desviou da sua directriz.

 

Ao contrário das heroínas dos romances cor-de-rosa, para quem o casamento com o homem, quase sempre rico e poderoso, que elas souberam conquistar, é o ponto culminante da felicidade e a garantia duma existência desafogada, esta rapariga construiu a sua vida com um sentido de independência que não exclue o amor, antes o fortalece, sem abdicar da colaboração com o marido na luta e no trabalho única garantia duma união perfeita e duradoura.

 

Fazemos esta observação porque, sob a influência de livros e filmes dum romantismo nocivo e desorientador, tanto como por atávica deformação da mentalidade, a maior parte das raparigas das classes popular e média, quando aspira a subir de nível, o que muitas vezes consegue em consequência dum casamento vantajoso sob o ponto de vista económico e social, pensa que a sua adaptação ao novo meio se resumirá a aparências, especialmente aos atractivos pessoais, convencida de que tanto basta para assegurar o seu triunfo e a sua felicidade.

 

Muito poucas se preocupam com os valores intelectuais e morais, julgando fácil suprir a falta de instrução e de educação com a maquilhagem bem feita, vestidos caros e jóias.

 

Além disso, é frequente as mulheres que de pobres passaram a ricas ou remediadas, e de trabalhadoras se tornaram ociosas ou pouco menos, esquecerem as circunstâncias anteriores da sua vida e transforrnarem-se em inimigas das outras mulheres, suas antiga companheiras de canseiras e privações.

 

Quando falamos das camponesas, casadas com emigrantes que voltam, endinheirados, ao torrão natal, notamos a transformação psicológica que a súbita prosperidade exerce nelas.

 

Sucede o mesmo, talvez ainda mais acentuadamente, com as mulheres do povo das vilas e cidades.

 

As «novas ricas», as que foram, ontem, criadas, modestas empregadas ou vendedeiras dos mercados, e são, hoje, damas ricamente ataviadas, vivendo em casas espaventosas e dispondo de automóvel, quase sempre tratam altivamente as outras mulheres que as servem, como se fossem de espécies diferentes. Esta irritante e injustíssima atitude é ainda uma consequência da ignorância, da falsa noção de dignidade humana e da escravidão ao luxo que vem deformando, através dos séculos, o espírito e a consciência da mulher.

 

Esta realidade não tem apenas importância moral. Ela contribui fundamentalmente para o atraso em que se mantém a mulher portuguesa, quanto à consciência dos problemas que são de todas, pertençam a que classe pertencerem, e de cuja solução depende, em grande parte, a sua felicidade e o progresso humano.

 

Ao analisar a vida da mulher em Portugal, a falta de união geral perante esses problemas ressalta lamentavelmente e explica as circunstâncias precárias, sob o ponto de vista moral e material, em que vive uma esmagadora maioria da população feminina do nosso país.

 

O analfabetismo que caracteriza as camponesas e as outras mulheres do povo não é exclusivo da gente humilde. As mulheres das classes abastadas também são, na generalidade, analfabetas, mesmo quando sabem ler ou simplesmente soletrar. Isto porque assimilam mal o que lêem e lêem quase exclusivamente livros que lhes povoam a imaginação de casos aventurosos, romanescos, sern ampliar os conhecimentos gerais que desenvolvern a inteligência, orientam o raciocínio e criarn o sentido crítico.

 

Não se trata, como já dissemos, de incapacidade da mulher - referimo-nos agora especialmente àquelas que tiveram uma origem humilde - para evoluir e libertar-se da sua rusticidade inicial. Trata-se apenas de falta de instrução e de meios que lhes permitam desenvolver o espírito. Verifica-se até, entre as mulheres do povo, uma acuidade de espírito, uma objectividade, uma rapidez de compreensão, um sentido de humanidade, em relação aos assuntos predominantes da sua vida, que as mulheres de existência cómoda ou menos dura não têm. Mesmo as que, vindas das massas populares, sobem na escala social apenas por terem enriquecido, acabam muitas vezes por perder essa vivacidade espontânea e lúcida que o contacto directo com as dificuldades lhes dava. Dir-se-ia que a inteligência se Ihes amortece sob o artifício e as complicações frívolas da sua nova existência.

 

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Sempre houve mulheres do povo que se destacaram pela sua decisão, lutando em defesa dos interesses colectivos, com tanta ou mais energia que os homens.

 

Quando as circunstâncias exigem uma atitude firme, elas não desistem nem se intimidam perante qualquer risco.

 

Há quem atribua essa atitude a má-criação e falta de compostura. Não deve, porém, causar espanto que as mulheres do povo se manifestem desassombradamente contra tudo o que pode tornar mais dura a sua vida. Elas sentem no seu corpo, no seu amor de mães, nas suas aspirações esmagadas, todos os tormentos dum viver sem alegria nem descanso nem desafogo nem esperança. Elas sabern quanto lhes custa o pão de cada dia e como ele lhes falta, muitas vezes.

 

Vem a propósito referir um facto antigo que documenta a energia com que as trabalhadoras portuguesas, mesmo desamparadas pela lei e olhadas desdenhosamente pelas classes superiores, se mostraram sempre capazes de enfrentar uma injustiça que as atinja directamente.

 

Foi no tempo do rei D. João V. Tinha ele proibido o uso de rendas portuguesas, fosse no vestuário feminino ou masculino.

 

Só eram permitidas as riquíssimas rendas de Flandres, tanto nos paramentos das igrejas, como nos trajos dos fidalgos, que as exibiam, então, espaventosamente.

 

Tal determinação representava a miséria para as rendeiras portuguesas, numerosas e habilíssimas, que ficavam absolutamente sem compradores para as suas lindas rendas.

 

Protestaram, choraram, pedindo as pessoas influentes das suas terras que se interessassem por aquele problema que era, para elas, de vida ou de morte. Nada conseguiram, porém.

 

Uma rendeira de Vila do Conde - Joana Maria de Jesus - tomou, por firn, a resolução de ir a Lisboa, como delegada das suas colegas, pedir ao rei que autorizasse o uso das rendas portuguesas.

 

Naquela época a viagem era perigosa, demorada e extremamente fatigante, sobretudo quando feita sem as mínimas comodidades.

 

Lisboa ficava longe. Era preciso percorrer centenas de quilómetros, durante dias e dias, sozinha, exposta a todos os perigos.

 

Joana Maria de Jesus não hesitou. Pôs-se a caminho e chegou à capital exausta de forças físicas, mas não de ânimo.

 

De porta em porta, de ministério em ministério, vencendo todos os obstáculos, logrou fazer ouvir a sua voz. Foi uma batalha difícil e a valente mulher chegou a ser ameaçada de prisão. Mas, quando voltou a Vila do Conde, muitas semanas depois, tinha conseguido um alvará, permitindo a utilização de rendas portuguesas «sòmente em roupas de casa».

 

As golas, os punhos, todas as roupas e adornos de uso pessoal eram excluídos desta concessão. Apesar disso, o referido alvará representava um triunfo, obtido ùnicamente pela coragem e persistência duma mulher do povo.

 

HABITAÇÕES POPULARES

 

Não há, propriamente, urn tipo de habitação popular nos grandes centros urbanos.

 

Há, sim, bairros pobres, páteos, ruas estreitas e casas de aspecto vulgar, velhas, sombrias, sem quaisquer condições de higiene e conforto.

 

Há também prédios destinados primitivarnente para a classe média, mas que, deteriorados ou desvalorizados pela carência de tudo quanto pode tornar uma habitação agradável e higiénica, forarn mudando de inquilinos e são, hoje, habitados exclusivamente por famílias de modestos proletários.

 

O mesmo sucede a antigos palácios, que os estragos do tempo e a decadência das famílias nobres que ali residiam transformaram em casarões desoladores - pequenos mundos de miséria, onde se aglomeram dezenas, centenas de pessoas que outra solução não encontraram para o problerna da sua instalação.

 

Em todas as cidades existem, mais ou menos, destes bairros, páteos e «vilas» - nomes que se dão, nalguns sítios, às velhas residências senhoriais ou conventos tornados habitações populares.

 

As «ilhas» do Porto são do pior que pode imaginar-se como habitação humana.

 

Quanto aos bairros para operários, marítirnos e outros trabalhadores construídos modernamente em Lisboa e noutros pontos do país, não podem, de forma alguma, constituir regra geral, antes representam uma excepção que aproveita apenas a um reduzidíssirno número de deterrninadas famílias.

 

Sucede, pois, que as mulheres do povo, sejam operárias ou quaisquer outras, habitantes de grandes e pequenos centros urbanos, têm que organizar a vida familiar nas mais difíceis condições, quase sempre no mesmo ambiente de promiscuidade que predomina nos aglomerados rurais.

 

Nunca será demais insistir na importância desta deprimente realidade, porque ela influe de forma decisiva não só na felicidade do casal como na mentalidade e costumes da Mulher.

 

É sob este aspecto que focamos o problema da habitação das classes populares.

 

O facto de residir numa parte de casa ou num único quarto, onde dormern pais e filhos, separados por uma cortina de chita ou, muitas vezes, nem isso, além de dificultar ao máximo o trabalho caseiro e dar causa aos mais desagradáveis desentendimentos, tanto entre marido, mulher e filhos, como entre as pessoas que cohabitam cada andar, faz geralmente perder o gosto pelo arranjo e pelas pequenas coisas que tomarn o lar agradável, acolhedor.

 

Nem se pode chamar lar a um cubículo, talvez sern janela, onde a família se recolhe para comer e dorrnir.

 

Esta anomalia social, afectando o homem e a mulher, reflecte-se mais directamente sobre esta, aumentando o desconforto e tristeza da sua vida, porque o homem pode ter ainda o recurso de procurar, na companhia de amigos, na taberna ou no clube de que é sócio, um espairecimento, ao passo que a mulher permanece amarrada às obrigações, ao trabalho doméstico, às dificuldades a vencer, à preocupação constante de sustentar a família com o dinheiro de que dispõe, por muito insuficiente que seja, ou mesmo quando ele lhe falta por completo.

 

Se o marido e os filhos não andarem lavados, remendados; se faltar a comida a horas; se as coisas não correrem, mesmo dentro da mais rasteira mediocridade, como está estabelecido - todas as culpas recairão sobre a mulher e nenhuma censura lhe será poupada. Ela terá contra si o seu homem, as vizinhas e a opinião pública da rua ou do bairro.

 

Ninguém se lembra, nem aqueles que vivem em circunstâncias idênticas, de que a mulher do povo, seja operária, vendedeira ou «nulher a dias», na maior parte dos casos só depois da sua tarefa profissional diária ou no breve intervalo de que dispõe para comer, entre dois períodos de labuta, pode ocupar-se da família. Cansada, alquebrada, irritada, sem interesse por coisa alguma, à força de ser apenas um instrumento de trabalho, ela é forçada a prolongar os serões e sacrificar o repouso do domingo, para dar volta ao serviço doméstico, tanto mais extenuante e enfadonho quanto mais baixo for o nível de vida.

 

Junte-se a tudo isto a gravidez; os abalos físicos e doenças provocadas pela ignorância e pela impossibilidade de tratamento conveniente; o desgaste de energias físicas e psíquicas; a descrença na felicidade e julgue-se depois até que ponto essa mulher tem que ser resistente e heróica, para suportar todo o peso de responsabilidades, esforço físico e sofrimento que esmaga a sua existência.

 

É claro que as circunstâncias em que, geralmente, vive a mulher do povo, - desde a promiscuidade à sobrecarga de trabalho e às privações - são sobremodo propícias ao desleixo e a todos os defeitos que acompanham de perto a miséria, confundindo-se com ela.

 

Será, porém, justo, atribuir à Mulher que não consegue, só por si, superar todo esse mal, a culpa das suas falhas?

 

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Analisando o panorama da vida da mulher trabalhadora, ressalta de forma incontestável a luta obscura, mas quase sobrehumana, que ela trava, dia a dia, para se aguentar, e aos seus, nas mais adversas condições. Não é que ela tenha a consciência do valor dessa luta. O que a impele e ampara é o instinto da sobrevivência, a dedicação aos que ama, a ânsia universal de felicidade.

 

Ter a sua casa, imprimir-lhe feição própria, que a transforme num abrigo seguro, onde seja possível sentir o prazer do convívio familiar e refazer as forças para o labor quotidiano, é um problema que está na raiz da felicidade dos povos. Tudo o mais tem que ser construído sobre esta base, sem o que não passará de bem fictício ou grave ludíbrio.

 

Reforçando a afirmação anterior de que a falta de habitação apropriada à vida de família tem, para a mulher, consequências ainda mais graves que para o homem, e verificando como e onde vivern, na sua grande maioria, as massas populares, somos levados a uma conclusão: A mulher do nosso povo não é feliz.

 

 

 

 

Mulheres

 

(*) Maria Lamas (1893-1985) nasceu no seio de uma família relativamente privilegiada, em Torres Novas, tendo tido como nome de batismo Maria da Conceição Vassalo e Silva. O pai era republicano e maçon. Um dos seus irmãos viria a ser o general Vassalo e Silva, último governador português do Estado da Índia. Ainda muito jovem, também ela casa com um militar e parte para Angola. O casal separa-se, regressando ela a casa dos pais. Mais tarde acabarão por se divorciar, ficando Maria da Conceição com duas filhas a cargo. Emprega-se como jornalista em Lisboa na Agência Americana de Informação. Em 1921 casa-se novamente, com um jornalista monárquico, Alfredo da Cunha Lamas. Nasce-lhe uma terceira filha. Começa a dedicar-se à literatura infantil, dirigindo suplementos infantis em diversos jornais. Faz amizade com o escritor Ferreira de Castro, que a indica para dirigir Modas e Bordados, o suplemento para senhoras do jornal O Século. Em 1929 separa-se efetivamente do seu segundo marido, cujo apelido manterá contudo para sempre. Em 1935 publica o romance de temática feminina Para além do Amor, considerado ousado. Ocupa-se de correio sentimental em Modas e Bordados e em Joaninha, o jornal das raparigas. Publica diversos livros infantis e novos romances. Em 1945 é eleita presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP), fundado em 1914 por Adelaide Cabete. É nessa qualidade que começa a aproximar-se consistentemente dos círculos da oposição ao regime fascista de Salazar. Subscreve as listas de apoio ao Movimento de Unidade Democrática (MUD). No regresso de uma viagem ao estrangeiro, é interrogada pela PIDE. Em 1947 organiza a exposição Livros Escritos por Mulheres, que tem grande impacto nacional. Nesse mesmo ano a polícia encerra o CNMP e a sua presidente é forçada a abandonar Modas e Bordados. Maria Lamas decide partir para uma pesquisa inédita no terreno, sobre as condições de vida e os problemas das mulheres portuguesas. “Andei dois anos sozinha, de combóio, de camioneta, de carro de bois, a pé, de burro, de toda a maneira e tendo começado no Minho só parei em Vila Real de Santo António”. Essa sua grande obra jornalística começa a publicar-se em fascículos em 1948, prolongando-se até 1950 – As Mulheres do meu País. É membro da comissão executiva nacional do Movimento Nacional Democrático(MND), sendo presa nessa qualidade em Dezembro de 1949. Em 1950 integra a direção do Conselho Nacional da Paz, sendo novamente presa. Participa em diversos congressos internacionais de mulheres e sobre a paz. Em 1953 é novamente detida à chegada de avião a Lisboa, juntamente dezenas de pessoas da pequena multidão que a fora esperar. Nesse mesmo ano publica em dois volumes A Mulher no Mundo, pela Casa dos Estudantes do Brasil. Assediada constantemente pela PIDE, parte para o exílio em Paris, aos 60 anos. Em 1957 participa na reunião do Conselho Mundial da Paz no Ceilão, visitando depois a China, onde é recebida por Mao Zedong. Nova prisão em 1962, no regresso da Conferência sobre Desarmamento Geral realizada em Moscovo. Novo exílio em Paris, de 1962 a 1969. Faz longas pesquisas para o que viria a ser a sua obra Mitologia Geral – o mundo dos deuses e dos heróis. Traduz e prefacia Os Miseráveis de Victor Hugo. Faz amizade com Marguerite Yourcenar, de quem traduzira Memórias de Adriano. Regressa a Portugal no âmbito da “primavera” marcelista. Após a revolução de Abril de 1974, aos 81 anos, adere formalmente ao Partido Comunista Português. Sobre a sua vida, pode consultar-se com proveito, de Maria Antónia Fiadeiro, Maria Lamas. Biografia, Quetzal, Lisboa, 2003.

Típica compagnonne de route dos comunistas, só com uma grande latitude poderá Maria Lamas ser considerada uma inteletual marxista. É, aliás, de uma geração anterior à dos jovens “neo-realistas” de 36. Em As Mulheres do meu País, nomeadamente no capítulo A Operária, parece por vezes aproximar-se do conceito de consciência de classe e expõe, sem dúvida, uma concepção progressista de emancipação humana integral. No seu melhor, é um bom inquérito sociológico, conduzido com óbvia simpatia humana e muita finura de observação; no seu pior, exibe uma sentimentalidade burguesa e um moralismo que remetem ainda para a primeira geração das feministas portuguesas.

 

 

 

 

 

Algumas Ilustrações

 

 

Operaria1Esmerilando o vidro, numa fábrica de Oliveira de Azeméis. É uma tarefa delicada e fatigante, que requer especial perícia e muita prática. Todo o trabalho da fabricação do vidro é feito por homens, excepto este. Há numerosas mulheres empregadas nas fábricas vidreiras, mas trabalham nas oficinas de pintara, nas secções de escolha e de empacotamento. A esmeriladora é uma operária especializada, mas sem qualquer preparação técnica. Toda a competência lhe vem da prática, atingindo uma segurança e um desembaraço que dão grande rendimento ao seu trabalho. A sua activiciade é constante, exigindo-lhe a maior atenção. Em pé, junto do aparelho de esmerilar, ela não tem um momento de folga, a polir ou despolir o vidro, conforme os casos. A percentagem de esmeriladoras em cada fábrica é mínima, sendo vulgar, numa empresa onde trabalham centenas de empregados, haver apenas três ou quatro encarregadas dessa tarefa.

 

 

 

 

Operaria2

Operárias duma fábrica de chocolates ern Viana do Castelo. São na grande maioria, raparigas da cidade. Ambiente higiénico. Trabalho pouco pesado.

 

 

 


 

 

 

Operaria3

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um grupo de operárias da indústria em Gouveia, à saída da fábrica. Pertencem ao tipo médio de operária, já conscientes da importância do seu trabalho e do que está bem ou mal na sua situação, mas não mostram ainda um decidido interesse pelos problermas relativos à sua vida profissional e à sua própria valorização.

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

Operaria4

Operária duma fábrica de lixa em Aveiro. Conserva a mentalidade da mulher do campo, sem demonstrar interesse por qualquer assunto relativo à sua condição de operária. Trabalha as horas regulamentares e regressa às tarefas da sua vida familiar sem outra preocupação que não seja ganhar o salário com que ajuda a manter a casa e os filhos. O marido é trabalhador rural. FOTO DA AUTORA.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

Operaria5Trabalhadora das minas de S. Pedro da Cova. O marido é mineiro e os filhos serão mineiros também. Decidida e afeita a uma existência rude, esta mulher encara a vida sem rodeios, com um sentido profundamente humano. Ela sabe como a doença ameaça constantemente o marido nas galerias subterrâneas. Sente em si própria o drama de envelhecer precocemente e de esgotar as suas forças nas mais exaustivas tarefas. Vive no bairro da rnina - um pequeno mundo à parte, onde se têm as mesmas canseiras, os mesmos problemas, as mesmas aspirações. A dois passos de casa ficam as entulheiras. Tudo está enegrecido e a floresta alastra em volta. As mulheres dos mineiros, ainda quando se conservam na sua habitação, respiram e vivem no ambiente das minas, estão integradas no labor, conhecem todos os aspectos da profissão dos maridos. Muitas, como esta, também ali trabalham. Analfabeta, mas esperta, é solidária com o seu homem em todas as circunstâncias, mostrando-se capaz da maior firmesa e dedicação. São assim as trabalhadoras de S. Pedro da Cova e de todas as minas do país. FOTO DA AUTORA.

 

 


 

 

Operaria6

O carvão superior a 50 mm., proveniente dos crivos, é escolhido manualmente sobre um transportador mecânico, sendo o carvão puro lançado em silos e seguindo dali para a preparação manual dos terreiros. Da mesma maneira o carvão compreendido entre 40 e 50 mm. é escolhido sobre outro transportador, dando produtos definitivos: carvão «superior» e de «segunda». O trabalho de escolha do carvão é realizado inteiramente por mulheres que ganham, neste serviço, treze escudos diários, mais um ou dois que as outras trabalahadoras das minas em S. Pedro da Cova.

 

 

 

 

 

Operaria7

A tarefa de britar o carvão manual é feila exclusivamente por mulheres, nos grandes terreiros cobertos, que permitem trabalhar em qualquer época do ano. Ajoelhadas, com os olhos protegidos por óculos e munidas de pequenos martelos, elas reduzem os carvões graúdos a pequenos fragmentos. Apesar de ser dos que obrigam a um menor esforço, este serviço é fatigante e como todos os outros das minas, exige robustez física. Chegou-se, porém, à conclusão de que não convém substituir a mulher pelo homem, na escolha e britagem, porque ela tem mais paciência e meticulosidade.

 

 

 

 


 

 

Operaria8

Jovens trabalhadoras das minas de S. Pedro da Cova. As raparigas começam a trabalhar ali aos catorze anos. Fazern a remoçâo, ou seja o transporte do carvão ou da pedra, à cabeça, em gigos, como se vê na fotografia. Só depois de consideradas mulheres feitas se empregam na britagem, na escolha e no transporte das vagonetas. O pó do carvão dá-lhes um ar precocemente endurecido. Muito cedo aprendem a encarar directamente a vida. FOTO DA AUTORA

 

 


 

 

 

 

Operaria9

Um grupo de mulheres das minas, à hora de largar o trabalho. Estas corajosas trabalhadoras mantêm-se, na sua grande maioria, num estado de transição entre a camponesa e a operária. Fundamentalmente têm hábitos, tendências e o nível mental da camponesa. No entanto, pelo género de trabalho a que se dedicam, pelo convívio, disciplina e noção de responsabilidade, vão-se aproximando, lentamente embora, do tipo operário dos grandes centros industriais. FOTO DA AUTORA.

 

 

 


 

Operaria10

Em S. Pedro da Cova, o transporte de carvão dos terreiros, onde é britado, para as «tolvas», também é executado por mulheres. Esse trabalho consiste em encher as vagonetas, por meio de pás, empurrá-las nos «rails» e despejá-las para as «tolvas». Estas são uns depósitos enormes, sob os quais passam as cestas do cabo aéreo. Trata-se dum serviço excessivamente fatigante. Há duas ou três mulheres a trabalhar em cada vagoneta, num esforço permanente dos músculos, pois que as vagonetas de ferro, cheias de carvão, são pesadíssimas. Depois da tarefa dos mineiros, que trabalham em galerias que chegam a estar a cerca de quatrocentos metros de profundidade, esta é a mais rude. Está inteiramente a cargo das mulheres. Esta fotografia mostra urn aspecto dos enormes silos da lavaria.


 

 

Operaria11

Por esta fotografia avalia-se melhor a violência do serviço de transporte das vagonetas carregadas de carvão. Quando a vagoneta chega ao firn dos «rails» é preciso impulsioná-la, de forma a executar o movimento que permita lançar o seu conteúdo nas «tolvas». Este esforço repete-se dezenas de vezes por dia, sempre igual, sempre esmagador. Causa espanto a resistência das mulheres que o realizam, sem qualquer ajuda, unicamente à custa dos seus músculos retezados e doridos. FOTO DA AUTORA

 


 

Operaria12

Trabalhadoras das minas em plena juventude. Apesar do desconhecimento e indiferença por certos aspectos da vida proletária, a mulher que trabalha nas minas é firmemente solidária com o homem na defesa dos interesses comuns. Referimo-nos às mulheres empregadas nas minas de S. Pedro da Cova pelo conhecimento directo que temos das condições da sua vida e também por se tratar duma das nossas mais importantes regiões mineiras. Fazêmo-lo, porém, com o sentido de abranger todas as mulheres que se dedicam a trabalho idêntico em todas as minas do nosso país. FOTO DA AUTORA

 


 

Operaria13

O tipo da costureira varia muito, conforme as terras e vai evoluindo constantemente. Há a costureira modesta, que se apresenta como qualquer outra rapariga do povo; há, principalmente no Norte, aquela que ainda conserva a indumentária tradicional – xaile preto, fino, de longas franjas; há também, e constituem a maioria, as que, usando embora tecidos baratos, põem o máximo cuidado na sua elegância. A tarefa de levar a obra às freguesas competa às aprendizas ou às costureiras menos categorizadas.


 

Operaria14

No Minho, mesmo nas vilas e cidades, é vulgar as mulheres transportarem, em pequenas carroças, cargas de toda a espécie. Nalgumas terras o transporte das malas do correio, entre a gare do caminho de ferro e a estação do Correio é feito por mulheres, pelo mesmo processo. FOTO DA AUTORA.

 

 

 


 

 

Operaria15Operárias das fábricas de Conservas, ern Olhão. Têm o tipo nitidamente algarvio. Como já referimos, ao falarmos das camponesas do Algarve, a mulher daquela província distingue-se da do Norte pela sua maneira de ser mais viva e aberta á compreensão de muitos problemas da vida. Essa diferença acentua-se nas operárias, algumas das quais atingiram já um desenvolvimento mental apreciável. A sua existência, porém, é incerta, porque incerta é também a indústria em que trabalham. Há meses de pesca abundante e meses em que o peixe falta por completo. Isto corresponde a alternativas de relativo desafogo económico e das maiores privações. Este facto tem consequências graves sob diversos aspectos.

 


Operaria16Mulher do bairro da Barreta, em Olhão, onde vivern quase exclusivarnente famílias de pescadores. A fotografia reproduz não somente o tipo humano, feminino, que predomina naquele bairro, como o seu arnbiente característico. Esta jovem mulher, com o seu ar resoluto e o à-vontade de quem olha a vida de frente, conhecendo todas as lutas e amarguras, sern perder a confiança em si própria, tem um aspecto menos modesto e submisso do que as mulheres do povo de outras regiões, mas possui a mesma capacidade de trabalho, sofrimento e dedicação que é o traço mais vincado da índole da mulher portuguesa. Viva de entendimento, impulsiva e de temperamento apaixonado, a operária algarvia, tal como as demais mulheres do povo daquela província, pode considerar-se, dentro dos limites da sua ignorância, um tipo feminino em evolução, sob influências contraditórias e desorientadoras do meio, do clima e das suas tendências naturais.


 

Operaria17

Carqueijeira subindo a Rampa da Corticeira, no Porto. Esta subida, que vem desde a beira do rio, é extrernamente íngreme e muito longa. As carqueijeiras vão buscar os enormes molhos de carqueja aos barcos que os transportam até ali e levam-nos, atravessando a cidade, tal como se vê na gravura, até aos carvoeiros a que se destinam. Para melhor aguentarem a carga passam sobre a cabeça a corda que amarra o molho.

 

 

Operaria18

Operárias numa fábrica de cortiça em pleno trabalho.