A música e o homem

 

Fernando Lopes-Graça

Fernando Lopes-Graça (*)

 

 

Os músicos têm probabilidades de subir pouco a pouco da categoria de

rouxinóis ou de lunáticos à de membros da sociedade humana.

 

Mussorgsky

 

 

Num recente e alarmado inquérito que o jornal francês Candide fez junto de alguns intelectuais franceses, acerca do que poderia acontecer à França, caso viesse a tomar conta do poder um governo da Frente Popular, figura o depoimento do compositor Darius Milhaud, uma das figuras mais notáveis da música contemporânea.

 

Não é muito vulgar interrogarem-se os músicos sobre os problemas de ordem social. Em geral, o músico é considerado um lunático, que vive no reino abstracto e irreal dos sons, indiferente ao que vai por este mundo terreno das coisas concretas. Pasmei, pois, com a liberalidade do periódico francês, ao conceder a um músico o direito de exprimir a sua opinião a respeito de um assunto de ordem política, que, segundo parece, trazia alvoroçada meia França. E passei a ler, interessadíssimo, o depoimento, aliás breve, do autor de La création du monde.

 

Fiquei desiludido. Afinal, Milhaud vem dar razão àqueles que pensam que o músico é apenas... músico. Depois de ligeiras considerações, que nem adiantam nem atrasam nada, Milhaud acaba por concluir: «a música deve rir-se da forma do regime. Um quarteto de cordas nunca será fascista ou comunista. Uma sonata em mi bemol será sempre uma sonata. Graças a Deus, os músicos não têm outro ideal além da música, nem outras preocupações além das escalas e dos acordes».

 

Havemos de reconhecer que isto é bastante inferior. Um Beethoven ou um Wagner nunca fariam afirmações destas, porque as considerariam humilhantes para a sua inteligência, e porque jamais abdicaram da sua categoria de membros do corpo social. E quase podemos ter a certeza de que um Bach (o músico-músico, por excelência) não procederia diferentemente, se no seu tempo as questões sociais se pusessem explicitamente com a agudeza com que vieram a pôr-se depois da Revolução.

 

Que a música nada tenha que ver directamente com a forma do regime, é perfeitamente compreensível, e parece-me que nunca ninguém afirmou o contrário. Que um quarteto ou uma sonata não sejam imediatamente nem comunistas nem fascistas, é já uma coisa discutível, mas que, em princípio, se pode também aceitar (1). Agora, que o músico não tenha outros ideais e preocupações além da música - eis aí o que é historicamente falso e moralmente monstruoso.

 

Que é falso historicamente, atestam-no, entre outros, os seguintes casos ilustres: Gluck, Haydn e Mozart, franco-maçãos; Beethoven, democrata e republicano; Berlioz, sempre contraditório, combatendo nas ruas de Paris ao lado da «santa canalha», e denegrindo, mais tarde, a ideologia revolucionária; Wagner, caudilho da revolução de 48; Mussorgsky, anti-tzarista, socialista in herbis, e concebendo a sua actividade artística como uma forma de combate; Ricardo Strauss, aderindo ao nacional-socialismo e às teorias racistas; Schoenberg, simpatizante com as ideologias políticas avançadas (2).

 

E não foi, certamente, por ser apenas músico que Mozart recusou o confessor à hora da morte; nem que Beethoven arriscou algumas vezes a liberdade por delitos de opinião; nem que Wagner se teve de expatriar, após a revolução de Dresda; nem que Schoenberg foi obrigado a abandonar a Alemanha, depois do advento do nazismo...

 

Mas, pelo visto, Milhaud prefere continuar «rouxinol» e «lunático». Muito bem: isso é consigo. Para que afirmar, porém, que todos tenham sido ou devam ser apenas rouxinóis ou lunáticos? A história desmente-o, e logo com os mais altos nomes da sua arte, provando-lhe nunca eles terem permanecido indiferentes aos problemas e às lutas do seu tempo.

 

E como o permanecer? - Eis aqui o que se me afigura moralmente monstruoso: a indiferença do artista perante o jogo patético das forças sociais.

 

A sorte da Arte é a sorte do corpo social. As vicissitudes deste repercutem-se na vida daquela. O próprio artista é, afinal, uma roda da engrenagem do corpo social, ainda que não aspire senão à categoria de rouxinol ou de lunático. A verdade, todavia, é que a dura realidade contemporânea mata impiedosamente os rouxinóis e os lunáticos. E há, portanto, que tomar partido: ou ser rouxinol morto ou homem vivo.

 

A Revolução Francesa já tinha dado ao músico o sentimento da sua dignidade humana. Se compararmos a condição social do músico antes do século XIX (quando, tanto a sua pessoa como a sua actividade, estavam geralmente dependentes da vontade dos senhores, laicos ou religiosos) com a que veio depois a usufruir, como indivíduo independente e senhor absoluto do seu destino, não podemos deixar de considerar quão importante esse grande movimento libertário foi para a causa da música e dos músicos.

 

Não será de menor alcance para o seu futuro o tomar ele no presente plena consciência da sua função social, considerando não só as condições em que lhe será permitido continuar a gozar da mesma dignidade, mas, outrossim, aquelas que lhe hão-de permitir trabalhar com as garantias de sucesso material e espiritual por que todo o artista aspira, e ainda aquelas (dependentes, em verdade, destas) que lhe hão-de conceder as possibilidades da completa realização da sua personalidade, bastante precárias, umas e outras, na crise tremenda que atravessa a sociedade burguesa.

 

Demais, apregoando-se hoje tanto a necessidade de uma sólida cultura como factor do robustecimento das faculdades criadoras do músico - como conceber que seja menosprezada justamente aquela parte mais vital, mais dinâmica, mais fecunda, mais actual, e que chega mesmo a confundir-se com o próprio conceito de cultura: o problema social, o destino social do homem?

 

O homem e o seu destino, o homem e a sua salvação: eis o grande tema de toda a grande obra de Arte. Especialmente daquelas modalidades da Ate que são capazes de animar, agitar, alevantar o homem, despertar-lhe sentimentos, criar-lhe paixões, insuflar-lhe ideais, fecundar-lhe pensamentos - e a música é uma dessas.

 

Ora, desde sempre que todo o músico quis comunicar ao homem alguma coisa sobre o homem (e todos os grandes nas suas grandes obras o fizeram), foi o alto tema do seu destino, da sua salvação, que, sobretudo, ele abordou nos seus cantos.

 

Mas há a notar que, com o andar dos tempos, a salvação vai passando do plano da idealidade transcendente para o da realidade humana. Assim, para Bach, místico protestante, a salvação está na Piedade. Para Beethoven, místico da Revolução, na Fraternidade. Para Wagner, místico humanitarista, no desprezo do ouro vil. Para Mussorgsky, místico por assim dizer populista, talvez na emancipação do trabalhador (3).

 

Hoje, está o problema da salvação do homem nitidamente colocado no campo social. Pode abstrair disto o músico que não queira ser simplesmente rouxinol? Desprezaríamos nós o génio que, mutatis mutandis, se dirigisse aos homens como se dirigiram um Bach, um Beethoven, um Wagner ou um Mussorgsky? A verdadeira Arte é uma pregação; o verdadeiro artista, um pregador. Há os que pregam apenas a Beleza. Mas há os que pregam a Beleza e mais alguma coisa (4): e não são os menores. Há aí algum músico que, tendo forças para isso, se acobardasse de pregar aos homens de hoje o que é necessário pregar-se hoje aos homens?

 

Desce a Música com isso? Desceu ela porventura alguma coisa quando Bach escrevia a Paixão segundo S. Mateus, o monumento incomparável do lirismo pietista? ou quando Beethoven compunha a 9.ª Sinfonia, o hino sublime da Liberdade e da Fraternidade humanas? ou quando Wagner elaborava a tetralogia do Anel do Nibelungo, verdadeiro drama social (se não socialista, segundo as melhores interpretações)? ou quando Mussorgsky, em Boris Godunoff, fazia ulular o povo, oprimido pela tirania tzarista?

 

Não atingiu ela, pelo contrário, nas primeiras obras porventura os dois mais grandiosos e, nas últimas, dois dos mais belos momentos da sua história?

 

Trata-se, então, de vincular a Música à Política, objectar-se-á.

 

Não se trata de vincular a Música a coisa alguma, a não ser àquilo a que ela pode e deve naturalmente estar vinculada - à Vida.

 

Mas, se a Arte é pois, como se afirma, uma expressão totalista da Vida, não se trata também do contrário, isto é: de negar a possibilidade de um dos aspectos da Vida - o social, para o nosso caso - poder servir de centro ou de ponto de partida à obra de arte, visto que toda obra de arte só vem, afinal, a alcançar esse totalismo vital através de uma irradiação do particular para o universal, mediante um aprofundamento e sublimação de certos momentos ou aspectos singulares da Vida.

 

Ora, se o sentimento totalista da Vida, que a Arte nos dá, se pode polarizar no Amor, no Ódio, na Dor, na Alegria, na Filosofia, na Religião - porque não há-de poder também polarizar-se na Política, tomada a palavra, evidentemente (como, aliás, aquelas o são correntemente), no seu mais elevado sentido, qual é o do problema social do Homem? Amor, Ódio, Dor, Alegria, Filosofia, Religião, Política - não são estas coisas todas aspectos da Vida igualmente aceitáveis, igualmente ricos de possibilidades, igualmente carregados de potencial emotivo? Ao artista a missão de tirar partido deles.

 

Na verdade, nem Bach, nem Mozart, nem Beethoven, nem Wagner, nem Mussorgsky fizeram profissão de fé política, nem enfeudaram a música à política. O que eles fizeram foi exprimir, no campo da sua actividade, certos desejos, certas aspirações, certos problemas, que inquietavam os homens seus contemporâneos. Desejos, aspirações e problemas que noutros campos - no filosófico, no político, no literário - se chamaram, por exemplo, Teocracia, Dogmatismo, Classicismo, Democracia, Criticismo, Romantismo, Socialismo, Materialismo ou Naturalismo, sem que tal diversidade de denominações implique uma diferença de conteúdo entre as concepções artísticas, filosóficas e sociais de determinada época, pois que, no fundo, a questão é uma e só uma - o Homem e o seu Destino (5).

 

Objectar-se-á que, afinal, essa tem sido sempre a condição da Arte; e que nunca ninguém pretendeu divorciar a Arte da Vida, nem afirmou que a obra de arte não mergulha as suas raízes na Vida. Pois sim. Mas para que amputar então à Vida, e, por conseguinte, à Arte, um dos seus mais humanos e mais dramáticos aspectos: o jogo das forças sociais?

 

Esta é que é a questão, que não sei como poderá ser iludida, tanto na música como em qualquer outro ramo da actividade artística.

 

1935

 

 

 

Cinco anos depois (Comentário sem comentários)

 

Darius Milhaud encontra-se em Lisboa, fugindo à trágica derrota da França, ao seu querido Paris, ocupado pelas hordas germânicas, aos rigores de uma inevitável e, porventura, desejada recrudescência do espírito burguês-conservador, inimigo declarado dos novos valores intelectuais e. artísticos. Vai juntar-se na América aos seus pares na arte: Schoenberg, Hindemith, Stravinsky, Bartok, Falla e tantos mais, igualmente vítimas, uns, outros tendo voluntária e prudentemente abandonado um continente que havia conseguido nuns pontos, e ameaçava noutros, estrangular a liberdade de criação artística.

 

Não percamos tempo a definir o que se entende ou o que deve entender-se por liberdade de criação artística, enfronhando-nos num debate, por demais ocioso sobre as condições e os condicionamentos recíprocos da arte e da liberdade, num jogo de sofismas e de incongruências que, na maioria dos casos, não vem a aproveitar nem à arte nem à liberdade... A liberdade de criação não é uma ilusão, nem é um ilusionismo, quando, como nos melhores exemplos, a arte sabe conciliar a sua necessidade de ser livre com a sua obrigação de ser humana, de ser, por assim dizer, objectivamente humana, universalmente humana.

 

Ora, se há músicos que, sem abdicar da sua liberdade de criadores, com tudo o que essa liberdade implica de individualmente revolucionário, com todos os seus atrevimentos, perturbadores do status quo, com todo o seu significado de experiência e de descoberta, nunca tenham perdido o sentido do humano, nunca tenham receado os contactos com o povo, com a multidão, nunca tenham fugido à realidade, no que esta tem de imperativo e de iniludível, Darius Milhaud é um desses músicos.

 

E, como ele, toda a música francesa contemporânea, nos seus sectores realmente vivos e fecundos.

 

Ravel, o grande Ravel, que passava por um aristocrata requintado, não exclamava um dia, cheio de satisfação, ouvindo o tema do seu Bolero, depois de radiodifundido, assobiado numas obras por três trabalhadores: - «Eis como se pode penetrar nas massas! Quem poderia esperar uma coisa destas?... Tenho a certeza de que, se em vez de oferecerem ao povo as costumadas trivialidades, lhe dessem música verdadeira, a música verdadeira teria um público extraordinariamente mais vasto.»

 

Quando se pensa desta maneira, quando pensa desta maneira um artista que, além dos títulos de glória próprios, os quais faziam dele um dos maiores músicos da França e uma das principais figuras da música contemporânea (e a quem a morte relativamente recente poupou a dolorosa provação da catástrofe actual), era de uma nobre e exemplar intransigência moral, nunca tendo consentido que a sua arte descesse a aduladoras contemporizações ou a fáceis compromissos - quando se pensa assim, dizemos, não pode haver receio de que a música se perca, se corrompa, abdicando da sua liberdade, nem de que, conservando-a, seguindo o caminho de descoberta, de conquista, de exploração de todas as suas possibilidades, ela se afasta olimpicamente do povo, ela despreza os valores humanos.

 

E podemos estar seguros de que, como o genial autor de Daphnis et Chloé e do Concerto para a mão esquerda, pensava toda a jovem música francesa, de que Milhaud era o mais vivo, o mais exuberante arauto. No autor ilustre do Cristophe Golomb, das Choéphores, dos Poèmes juifs e de tantas outras obras notáveis, filhas de um temperamento talvez um pouco incontinente, mas sempre forte e curioso, a deliberada ousadia dos processos, o arrojo da linguagem, as inovações técnicas de toda a ordem, que fazem de Milhaud um dos mais notáveis renovadores da música contemporânea, tudo isso se conciliava perfeitamente nele com um realismo vivo, de raiz popular, quer a sua arte comentasse os grandes trágicos gregos, ou os grandes escritores contemporâneos seus compatriotas, um Gide ou um Claudel, quer bebesse a sua inspiração no folclore brasileiro, no jazz ou na canção francesa.

 

A fuga de Milhaud é um símbolo - um trágico símbolo. Ela significa a morte, se um milagre de ressurreição se não der, da música francesa, da única escola musical verdadeiramente viva, fecunda, criadora, dos nossos tempos.

 

Não tenhamos dúvidas: a actividade musical da França, guia e cabeça de todo o movimento criador universal de há cinquenta anos a esta parte, cessou ou cessará, infelizmente - como cessou ou cessará a sua extraordinária actividade no domínio da pintura, que constituía, igualmente, a única escola contemporânea verdadeiramente viva e original.

 

A música francesa acabou ou acabará, como já acabaram a música alemã, a música austríaca, a música checa, a música espanhola, todas as músicas que eram ou ainda permaneciam livres e que dirigiam todos os seus esforços, já no sentido de afirmarem a sua individualidade étnica, já no de enriquecerem as suas possibilidades, de alargarem os seus horizontes técnicos e expressivos, já no de estabelecerem ou restabelecerem um contacto, frequentemente esquecida ou iludido, com o povo.

 

Na França, na França de depois da catástrofe, o que não fizer a reacção burguesa, no seu horror, no seu medo a todas as novidades, fá-lo-á o vigilante nazismo, seu associado, na sua demagogia político-artística, no seu antimodernismo ressentido e impotente. E os compositores franceses, aqueles que contam verdadeiramente e que ainda tiveram a coragem de ficar em França, ou serão forçados a calar o seu canto, ou terão que atraiçoar aquela liberdade que até aqui constituía a razão de ser suprema do espírito francês e da própria França, submetendo a sua arte às imposições de um totalitarismo de razoira, absoluto, aviltante da dignidade da pessoa humana.

 

Milhaud não se quis submeter, não quis sofrer essa ignominiosa servidão intelectual -- e por isso foi obrigado a abandonar a França, que ardentemente amou e nobremente amou com o seu talento, a sua arte, o seu prestígio universal.

 

Saudemos nele um dos mais ilustres filhos da terra de Rameau, de Berlioz e de Debussy, da grande e nobre França, horrorosamente ferida de morte na sua alma, no seu espírito, na sua cultura, formadora da consciência humanista europeia, pelos seus inimigos do exterior e do interior.

 

1940

 

  

Lopes Graça - Reflexões

 

  

(*) Fernando Lopes-Graça (1906-1994) foi um destacadíssimo compositor, musicólogo, pesquisador, animador cultural e resistente antifascista. Nascido em Tomar, onde começou por ser pianista de cinema mudo, frequentou o Curso Superior do Conservatório de Lisboa, sendo aluno de Luis de Freitas Branco, Tomás Borba e Viana da Mota. Estudou ainda composição e orquestração em Paris com Charles Koechlin. Tendo-lhe sido oferecida a cidadania francesa, regressou a Portugal em 1939 para uma vida de banimento, marginalidade e resistência sob a ditadura de Salazar. Participou ativamente no Movimento de Unidade Democrática no pós-guerra e aderiu ao Partido Comunista Português. É autor de obras tão marcantes para a música portuguesa do século XX como a Suite Rústica, as Canções Regionais Portuguesas, as Canções Heróicas, a História Trágico-Marítima, o Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal, as seis Sonatas para piano, o Concerto para piano e orquestra, o Concerto de câmara para violoncelo e a Sinfonia para orquestra. Como pedagogo, animador e divulgador cultural, dirigiu a Academia de Amadores de Música e a sociedade de concertos Sonata. Fez pesquisas e recolhas de música popular portuguesa com Michel Giacometti. Durante muitas décadas exerceu crítica teatral e musical em diversas publicações (v.g. ‘O Diabo’, ‘Seara Nova’, ‘Gazeta Musical e de Todas as Artes’), para além de praticar o ensaísmo e de ter produzido diversos escritos de âmbito teórico, de reflexão musicológica ou de divulgação da cultura musical. As suas “Obras Literárias” seriam editadas em 1972 pelas Edições Cosmos em dezoito volumes, com segunda edição aumentada em 1978. Foi do I Volume desta segunda edição, intitulado ‘Reflexões sobre a música’, que recolhemos este texto. Revelando bem o engajamento antifascista do autor (então partilhado por toda uma geração) esboça também uma interessante teoria da criação estética. As “Obras Literárias” teriam ainda uma reedição em 1984 pela Editorial Caminho.

 

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NOTAS:

 

(1) Em princípio, somente, e considerando o fascismo e o comunismo apenas nos seus aspectos restritos. Porquanto, considerados amplamente, como mentalidades ou como formas de consciência, se torna imediatamente evidente que um quarteto ou uma sonata podem, na realidade, ser comunistas ou fascistas, pelas mesmas razões por que existiu uma música informada por uma mentalidade religiosa.

 

(2) [Nota de 1978] Há aqui um manifesto equívoco, não podendo hoje o autor precisar o que, na altura da redacção do escrito, o poderá ter originado. Na realidade, não há notícia da adesão ou simpatia de Schoenberg por qualquer ideologia política «avançada». Quando muito, teria havido na sua mocidade um certo pendor para a Social Democracia e seus almejos reformadores. Fora disso, a posição do compositor foi sempre a de um apolítico, sem prejuízo, não obstante, do seu tal ou qual misticismo de raiz messiânica e do seu antifascismo, tal como ele transparece, por exemplo, na Ode a Napoleão, de 1943.

 

(3) Sabe-se que o terceiro drama da trilogia popular russa, que Mussorgsky projectava realizar, e de que só chegou a escrever Boris Godumoff e Khovantchina, seria uma representação do levantamento revolucionário dos mujiques, cossacos, kalmucos e kirgizos contra os gentilhomens.

 

(4) É claro que não pretendo diminuir o conceito de Beleza, reduzindo-a, como fazem muitos, a um hedonismo estético ou limitando-a às categorias formais de harmonia, de equilíbrio, de perfeição, etc.. A Arte é para mim, como já disse algures, uma «actividade de conhecimento». Aquele mais alguma coisa refere-se apenas ao poder que certas obras e certos artistas têm de nos comunicarem, além de urna vivência artística, um tal ou qual impulso dinâmico numa determinada direcção do pensamento ou da acção, de fecundarem em nós germes metafísicos, que movem a nossa consciência a uma revisão e estimação de valores éticos.

 

(5) Que esse destino seja terreno ou extraterreno, não importa sob o ponto de vista puramente artístico; embora sob o ponto de vista moral seja menos divina a aspiração a urna plenitude celestial, com todas as características terrenas, do que o desejo de uma realização na terra do Reino dos Céus...