Marx e O Capital

 

Jorge de Sena

Jorge de Sena (*)

 

Não foi Das Kapital - Kritik der politischen Öckonomie o que, há quase um século, foi publicado pela primeira mas apenas o seu Livro I, a única parte que Marx publicou em vida, do magno empreendimento especulativo que era, para ele, a coroação de uma actividade filosófico-política, a que sacrificara tudo. O plano do trabalho era imenso; e a exigência de minúcia nas análises, e de observação e estudo dos dados e documentos pacientemente coligidos, maior ainda. Essa exigência, bem significativa da honestidade intelectual do autor e do seu propósito de objectividade histórico-sociológica, documenta-se perfeitamente na sucinta história editorial desse Livro I, que tratava apenas de «O Processo de Produção do Capital» ( Der Produktionsprozess des Kapitals ), e que veio a ser, com o andar dos tempos e da acumulada incompreensão, identificado à obra vastíssima de que era uma parte.

As maciças 780 páginas da 1ª edição alemã, que é essa que se publicou em Nova Iorque, em 1867, logo Marx, que então rondava os cinquenta anos, as reviu e modificou para a 2ª edição, também da mesma casa editora alemã (1), cinco anos depois, apesar de ter trabalhado naquele Livro I, desde cerca de 1857. A tradução francesa, feita com a assistência de Marx, e publicada de 1872 a 1875, considerava-a ele um novo texto. A 3ª edição alemã, saiu póstuma no ano (1883) em que Marx faleceu em Londres, onde vivera desde 1849, corrigiu-a Friedrich Engels por aquela tradução francesa e pelas anotações que Marx fizera no seu exemplar pessoal (2). A tradução inglesa aparecida em 1887, continha adições do próprio Marx, comunicadas ao tradutor e que Engels incluiu logo na 4ª edição alemã, de 1890. Um tal afã de clarificação e de pormenorização, aplicado a um texto que compendiava mais de duas décadas de experiência e de cultura, mostraria, àqueles que ignoram o que Das Kapital seja, que por certo não era, nem pretendia ser, um panfleto ocasional, ainda que de proporções insólitas, e muito menos um tratado filosófico, sem conexão directa com a realidade e com os factos da História e da Economia, e apenas regido pelas exigências da sua lógica interna. E deveria mostrar, sobretudo, a que ponto Das Kapital , ou mais exactamente o seu Livro I, constituía, para Marx, uma compreensão do que chamaríamos, em especulação filosófica, forma aberta . Não é possível distinguir-se entre o carácter sempre disponível do pensamento de Marx, que se recusa a uma visão sistemática e fechada sobre si mesma, e as circunstâncias da sua vida, que fizeram de Das Kapital uma obra inacabada, mas não uma obra inconclusiva.

Quando Engels assumiu, após a morte do seu grande amigo, o encargo de coordenar-lhe os papéis inéditos, para publicação, extraiu deles o Livro II, dedicado ao estudo de «O Processo de Circulação do Capital» ( Der Circulation prozess des Kapitals ), que publicou em 1885, apresentando em 1893 uma reedição revista que ocupa 500 páginas. Em 1894, Engels editou, em dois tomos, o texto gigantesco do Livro III, «O Processo de Conjunto da Produção Capitalista» ( Der Gesamtprozess der Kapitalistischen Produktion ), que se estendia por 870 páginas. Um suposto Livro IV, que Engels com efeito supunha dever ser a 4ª parte de Das Kapital , mas que Marx redigira antes das outras, já não foi ele quem o publicou, que morrera em 1895, mas Karl Kautsky (3), em três volumes de respectivamente 430, 380 e 600 páginas, aparecidos tardiamente entre 1905 e 1910: é Theorien über den Mehrwert , ou seja, uma história das doutrinas económicas, em função do desenvolvimento da noção de mais valia .

Das Kapital é, pois, um estudo portentoso e desmedido, que Marx não concluiu e que, por certo, como fizera para o Livro I, e para os manuscritos inéditos, não concluiria nunca; e isto não porque andasse à procura, ansiosamente e desorientadamente, de leis históricas e económicas, e de princípios filosóficos, na massa imensa dos dados concretos que coligia, mas porque, a cada instante, e segundo a sua própria metodologia filosófica, o acúmulo desses dados concretos propiciava a melhor explicação e confirmação daquelas leis e daqueles princípios, e permitia a formulação de novos desenvolvimentos, ainda dialecticamente ocultos nas virtualidades do real. Na totalidade das páginas que chegaram até nós, revistas pelo próprio Marx, por Engels, e por Kautsky, Das Kapital atinge a cifra impressionante, nas edições originais, de cerca de 4000 páginas compactas, escritas numa linguagem densa, sem concessões ao ornamentalismo literário, nem aos devaneios metafísicos.

E, contudo, tão monumental empreendimento, em que Marx compendiaria as ultimas conclusões do seu pensamento de filósofo, historiador, economista e político, está longe de ser a única obra representativa, para a interpretação e desenvolvimento ulterior desse pensamento revolucionário (não apenas por pregar a «revolução», mas por sê-lo intrinsecamente em todos os planos da meditação filosófica sobre a situação e destino do Homem) de quem legou o seu nome ao marxismo. Nem este, como filosofia, depende, logo, de início, apenas dos escritos de Marx, mas igualmente dos daquele que não só dedicadamente o protegeu nas horas difíceis, que tantas foram na sua vida, mas cuja colaboração foi tão íntima, com Marx, que difícil é, por vezes, saber o que pertence a um e a outro, na criação de uma metodologia filosófico-política, destinada a transformar o mundo: Friedrich Engeis (4). Em colaboração, em separado, e na correspondência que trocaram e em que cada qual ampliava as ideias do outro, o marxismo foi criação, com efeito, desse exemplar par de amigos, cujos escritos inumeráveis estão longe ainda de terem sido todos convenientemente editados no «ocidente», ou de serem acessíveis para estudo e discussão. E foi-o, apesar da nobilíssima modéstia com que Engels se refere ao facto, no seu luminoso e genial estudo, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886): «Recentemente, e por várias vezes, tem sido feita alusão ao papel que desempenhei na elaboração desta teoria, e é por isso que dificilmente posso dispensar-me de dizer, aqui, algumas palavras que esclareçam este ponto. Não posso negar ter desempenhado, antes e durante a minha colaboração de quarenta anos com Marx, certa parte pessoal, tanto na elaboração, como sobretudo, no desenvolvimento da teoria. Mas a maioria das ideias directoras e fundamentais, particularmente no domínio económico e histórico, e especialmente a definitiva e rigorosa formulação delas, pertence a Marx. O que eu contribuí - com excepção, quando muito, de alguns ramos especializados do conhecimento - Marx o teria realizado sem mim. Mas o que Marx fez, eu não teria podido fazê-lo. Marx ultrapassava-nos, via mais longe, mais amplamente e mais rapidamente. Era um génio, e nós, quando muito, talentos. Sem ele, a teoria estaria, hoje, muito longe de ser o que é. E é, portanto, a justo título, que tem o nome dele».

O marxismo, como doutrina filosófico-política, foi portanto, o fruto da colaboração de Marx e de Engels, ao longo de meio século; e, nos doze anos que Engels sobreviveu a Marx, continuou a sê-lo, porque Engels não ficou solitário, uma vez que, ao tomar sobre si o encargo de coordenar e publicar a obra inédita do amigo, assumiu o de viver e de pensar por ambos. Era, aliás, o que Engels praticamente vinha fazendo já, desde 1872, quando Marx, doente e exausto, quase deixara de escrever, e se limitava a breves notas e revisões. E, nesta ordem de ideias, o marxismo originário deve tanto ser procurado em Das Kapital , como no Manifesto Comunista (1848) e na Ideologia Alemã (1845-6) que são colaboração de ambos, ou nas Teses sobre Feuerbach (1845), na Sagrada Família (1845), na Miséria da Filosofia (1847), e noutros numerosos escritos ou artigos de Marx, como também no Anti-Dühring (1877-8), no Feuerbach , e nos vários estudos que Engels dedicou à problemática filosófica do marxismo. Se o pensamento marxista se formou na íntima colaboração dos dois filósofos, e se a obra magna e culminante cabe sobretudo a um deles e é um monumento inacabado (embora a mais ampla e sistemática exposição do marxismo seja o Anti-Dühring , de Engels), não deve daí concluir-se que o sentido de Das Kapital , como já apontámos, tenha ficado indefinido, ou corresponda menos ao marxismo que a Marx. Cada um dos «livros» imensos de que se comporia a obra é uma unidade em si mesma, historiando e criticando um aspecto concreto da sociedade capitalista, considerada de um ponto de vista económico-político; e, embora se centrem num desses aspectos - o processo produtivo, o processo de circulação ou o processo de conjunto, pelos quais o capitalismo se apropria da «mais valia» -, de forma alguma se confinam em análises especializadas e restritivas que, para desenvolver-se coerentemente, esqueçam os nexos com a totalidade da vida social: e nem sequer esta ultima, ao contrário do que um anti-marxismo primário insiste em proclamar, aparece como redução de uma mais vasta e rica realidade vital que seria a do Homem, colocado acima e fora da sociedade, como medida de todas as coisas. É inteiramente falso que Marx e o marxismo tenham reduzido o Homem ao «homo economicus», apenas definido pelas suas relações económicas no mundo da História, ou que a especulação filosófica ou a historiografia se reduzam, em Marx e no marxismo, àquele subtítulo de Das Kapital : «crítica da economia política». Afirmar que esta redução é operada, significa que se ignora ou finge ignorar como essa crítica implica a crítica da «economia política» clássica, que é precisamente quem opera uma tal redução, quando estuda a vida económica como dissociada da realidade social e das expressões ideológicas da situação humana.

Posto isto, o que é Das Kapital ? Sem dúvida uma das obras mais largamente difamadas e incompreendidas da História da Humanidade, e também um dos raros livros que pode honrar-se de representar, nessa História, realmente ou simbolicamente, um papel decisivo de texto «sagrado», reformulador de uma concepção geral da vida humana, como só o Novo Testamento, o Corão, e poucos mais, representaram e representam na formação e evolução da chamada «civilização ocidental», de que o marxismo é, como filosofia, um coroamento especulativo. Um dos mais terríveis e ridículos equívocos habituais na apreciação do marxismo, e que impede os seus adversários de o apreciarem no justo sentido, é a desesperada obstinação em considerá-lo como algo de monstruoso e de exótico, ao mesmo tempo perversão diabólica das grandes tradições do pensamento ocidental, e irrupção extravagante, no seio desse pensamento, de postulados absurdos, contraditórios e simplistas, oriundos não se sabe de que extra-mundo. Ora filosoficamente, o marxismo não acolheu, para formar-se, nada que seja extrínseco à evolução do pensamento «ocidental», já que decorre simultaneamente do materialismo, do estoicismo, do dialeticismo, e da investigação científica, que são das tradições mais antigas e sólidas, ainda que nem sempre confessas ou dilucidadas, desse pensamento. O marxismo não dependeu, para isso, das filosofias hindus ou chinesas, mas da filosofia ocidental, desde a Grécia antiga à Alemanha de Marx e de Engels, e estes, antes de serem marxistas, são pensadores alemães e europeus. Quanto ao pensamento económico-político, a obra de Marx, como a de Engels, é uma meditação sobre a situação das mais evoluídas sociedades europeias do tempo, em especial a da Inglaterra de então, em que precisamente se haviam desenvolvido, por exigência da expansão económica do capitalismo, os estudos de economia política, dos quais Marx expressamente faz ponto de partida para as suas críticas. Sociologicamente - e em bases não-utópicas a Sociologia nasce efectivamente com Marx (e não há especulações honestas que possam contestá-lo) - o marxismo começa por tomar posição polémica contra as visões «sociológicas» que, na França, na Inglaterra e na Alemanha dos meados do século XIX, diversos pensadores vinham propondo, para solução das tremendas contradições com que a época se deparava, em consequência da expansão das Revoluções Agrárias e Industriais iniciadas na Inglaterra do século XVIII; e essa posição polémica não decorre de Marx negar a legitimidade dessas visões, mas de contestar-lhes autenticidade profunda quanto a poderem solucionar, na realidade e por ela, contradições que apenas procuravam superar idealisticamente, sem enfrentarem os factores concretos que precisamente condicionavam as sociedades europeias do tempo. E, no plano político, Marx não introduzia nada de exótico, ao definir o papel revolucionário do proletariado. Este não era, e não é, uma invenção dos seus sonhos especulativos, mas uma gigantesca e incontestável realidade factual, criada pela própria evolução da sociedade capitalista «ocidental», e cuja realidade preocupou todos os pensadores políticos do tempo; e o papel revolucionário, que Marx lhe atribuiu, não é, de forma alguma, uma simples rebelião destrutiva, como sempre fora, ao longo dos séculos, nas explosões de cólera popular, mas uma consequência lógica da incapacidade daquela sociedade para resolver o problema da subsistência dos seus próprios escravos e da necessidade de estes se organizarem para subsistir. A denúncia da condição esclavagista das tradições «ocidentais», que se reformou sempre, numa base ou noutra, no decurso dos séculos, não tem, em si, nada de excessivo ou de polémico; é apenas, uma corajosa e franca exposição das realidades sociais de um mundo em que o alto pensamento se esquece, em geral, de quanto a pretensa liberdade especulativa de alguns é feita da escravidão material de muitos. E, como filosofia da História, o marxismo não fez mais do que pôr a claro, ao analisar os mecanismos sociais, como estes não eram apenas mecanismos a cuja fatalidade não se podia escapar (o «determinismo» inescapável só interessa, como filosofia, àqueles que detêm as rédeas dos factores determinantes...), nem eram apenas manifestações da força vital daqueles que os construíram ou manejavam (já que ficava demonstrado como a realidade, transformando-se, excede os limites da sua própria transformação e, em consequência, a capacidade do indivíduo como tal). Ora, se alguma ideia havia sido, até então, revolucionariamente específica do «ocidente», fora a ideia de «progresso», pela qual se vislumbra que a realidade era algo que se ampliava na medida em que o homem a dominava. A grande novidade do pensamento marxista foi ter visto claramente que esse domínio se não processava fora do conhecimento que temos da realidade, assim como esta só se oferece ao conhecimento, na medida em que é transformada pela acção humana. Isto, que tem sido interpretado como uma limitação trágica da grandeza do Homem, e da sua capacidade para entender especulativamente o Universo em que vive, é, pelo contrário, a honesta amplificação concreta das virtualidades humanas. Com efeito, quando Marx, em 1845, afirmava, na 11ª Tese sobre Feuerbach, que «os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diferentes maneiras, mas trata-se de transformá-lo», não estava negando a legitimidade dos anseios espirituais do Homem, mas sim, muito realisticamente, conclamando estes a que assumissem as suas responsabilidades plenas, exigindo da especulação que não se considerasse apenas uma possibilidade interpretativa da realidade, mas um agente de apropriação dessa mesma realidade, e pondo, assim, como condição de liberdade, a transformação do real. E, com efeito, o pensamento não é inteiramente livre, desde que começa por aceitar a realidade como algo de absoluto e inamovível, a cuja existência objectiva está sujeito, antes de conceituar-se como pensamento. Marx não contestava a espiritualidade humana: pelo contrário, libertava-a de, em cada caso concreto, resignar-se a ser apenas aquela que as condições permitissem. Pouco se tem visto e revelado a que ponto esta 11ª Tese encerra toda uma dialéctica do sonho e da realidade, pela qual o sonho é tanto mais livre de interpretar quanto mais de perto cinge a realidade, e esta é tanto mais vasta e mais rica, quanto o sonho mais de perto a contempla. Porque não há contemplação que, exercida concretamente, não transforme o objecto contemplado, tal como, reciprocamente, este cria a contemplação de que é objecto. A própria noção de objecto, assim esclarecida, comporta a de transformação dele, cuja natureza não existe como entidade abstracta, mas como resultado de uma dialéctica entre o conhecer e o existir. E só em verdade conhecemos aquilo a que a nossa acção se aplicou. Estranhamente para muitos, essa grande novidade do pensamento marxista estava implícita em toda a civilização «ocidental», que sempre fez da actividade humana, «material» ou «espiritual», a base da sua concepção do mundo. Para o cristianismo tradicional, a concepção oposta de uma contemplação não-activa foi sempre uma heresia atentatória da dignidade da vida humana, e perseguida como tal.

Mas que é então esse famigerado Capital ? Um tratado obsoleto de Economia Política, que mais um século de colossal expansão humana colocou irremediavelmente aquém das realidades económico-sociais? Um mistifório indissociável de historicismo sectário e de filosofia impura por submetida a considerações extrínsecas à elevação abstracta que é timbre dos insignes tratados filosóficos? Um colossal tratado polémico, em que a história humana de séculos é reduzida ao esquematismo de uma política condicionada pela situação europeia do século XIX? Uma indigesta e imensa mastigação de dificuldades filosóficas, traduzidas em divulgação primária, e dispersas no meio de uma multidão caótica de dados estatísticos sobre as actividades comerciais e industriais de uma época? Uma obra ilegível, rebarbativa, cujo impacto é, por isso mesmo, tanto mais explicável? Filosofia, História, Economia, Política, Literatura, Escatologia religiosa?

Das Kapital , na totalidade que hoje possuímos, ou no seu Livro I, é tudo isso e não é. Mas examinemos serenamente as críticas que lhe têm sido feitas, tão contraditórias como superficiais, e até prejudiciais àquilo mesmo que se pretende defender, atacando-o.

O ponto de vista de que uma obra deve ser entendida em função do seu tempo, do qual é resultado e expressão, é um ponto de vista marxista, já que o marxismo, ao definir como «ideologia» as manifestações filosófico-culturais, e ao mostrar como elas reflectem a situação social de que e em que são geradas, mostrou que, fora da compreensão histórica , qualquer expressão de pensamento não tem sentido concreto. Se assim é, quando se acusa Das Kapital de ter mergulhado no seu tempo, e de amarrar-se na aparência a ele, como de ter partido do que ele oferecia como elementos de estudo científico, acusa-se uma obra de ser aquilo mesmo que ela pretendeu ser, não só na intenção que presidiu à sua composição, como no método que expressamente punha em prática. Mas, para Marx, aquele mergulho era a condição sine qua non de qualquer inquirição científica, sem a obediência à qual estaria fazendo «ideologia», analogamente ao que faziam aqueles mesmos que ele denunciava. De modo que, se, para libertar-se do seu tempo, Marx entendia dever mergulhar na realidade dele, não faz sentido que seja acusado, não apenas de ter escrito o que pretendeu escrever, como de ter obedecido a um ponto de vista metodológico, que precisamente se procura voltar contra ele. Quando os partidários da «abstracção eterna» condenam Marx e Das Kapital pelo concreto excessivo, caem assim numa petição de princípio, visto que pretendem invalidar o impacto actual de uma obra que transcendeu, pelo seu método intrínseco, os exemplos concretos em que se apoia, e que deveria, pois, satisfazer-lhes os anseios de «eternidade abstracta». O equívoco, quando o é, assenta na incompreensão do historicismo marxista, segundo o qual é possível, mesmo com referência directa ao real, extrair da realidade histórica, leis genéricas e «absolutas». As análises históricas de Marx não são transponivelmente válidas por analogia , ou porque a História se «repita»; mas porque o método dialéctico permite que, entre o presente e o passado, se estabeleça uma relação interpretativa e recíproca, que transforma a compreensão de um, em função da compreensão do outro. Não há, assim, leis genéricas e abstractas, independentemente das circunstâncias reais que as reflectiriam, mas uma estruturação dialéctica da realidade histórica, pela qual as exigências sociais, a cada momento, criam a própria História. Ao tornar materialista a filosofia hegeliana da História, o marxismo roubou-lhe a idealização abstracta, que culminaria, como culminou nos hegelianos de «direita», num mecanicismo espiritualista. A História humana, cuja autonomia Hegel estabelecera decisivamente, ficava, assim, impedida por Marx de ser uma «política estatal» substituindo-se, para efeitos terrestres, à teocracia medieval. E não pode, pois, Marx ser acusado, contraditoriamente, de postular uma Filosofia da História, a que o seu pensamento vinha opor-se. É absurdo argumentar que o estalinismo estava implícito nessa visão da História: seria o mesmo que admitir - e esses acusadores não admitem - que a Inquisição estava implícita nos Evangelhos. Se há pensamento que não admite a extrapolação histórica, porque a elide na dialéctica entre passado e presente, e entre presente e futuro, é o autêntico marxismo. E não é culpa de Marx que, neste ponto, tenha havido marxistas desastrados.

O ponto de vista, segundo o qual Das Kapital é uma obra indigesta, difícil, rebarbativa, não tem qualquer sentido. Marx não pretendeu escrever uma ficção amena ou apaixonada, mas uma análise implacável das estruturas económicas da sociedade capitalista, tal como podia vê-las num momento particularmente decisivo da História delas. Se uma grande obra de pensamento, para ser válida e reconhecida como texto orientador, deve ser de uma simplicidade luminosa, de leitura fácil, sem terminologias especializadas e requerendo formação específica para pleno entendimento, a Suma Teológica , de São Tomás de Aquino, não poderia ser o corpo principal da filosofia oficial da Igreja Católica, porque jamais se terá escrito um conjunto de tratados tão densamente abstractos, tão especializadamente filosóficos, tão agrestemente rebarbativos. E, sem ascendermos às altas esferas da teologia racional, obras fundamentais do pensamento do «ocidente», como a Crítica da Razão Pura , de Kant, ou a Fenomenologia do Espírito , de Hegel, são inteiramente impenetráveis mesmo ao leitor de razoável formação filosófica - o que, para a leitura imediata, que não para uma compreensão mais profunda, não sucede com nenhum escrito de Marx, em particular com Das Kapital , salvo em alguns passos.

As falsas especializações culturais, que o desenvolvimento da sociedade capitalista criou e impôs, são em grande parte responsáveis pela incompreensão que rodeia a magna obra de Marx. A Economia Politica e a Filosofia, a tal ponto racionalizaram autonomamente a sua alienação das realidades sociais, que é inconcebível para a filosofia tradicional ver-se perante a análise do «processo de produção do Capital», tanto como é, para a economia clássica, apoiada nos esquemas financeiros da sociedade capitalista, deparar-se com a necessidade de meditar filosoficamente os pressupostos daquilo que teoriza, em termos de «renda», «salário», «valor», etc. Precisamente uma e outra, como serventuários ideológicos daquela sociedade, derivam a sua existência especulativa do facto de não correlacionarem, através da realidade social, os respectivos campos, como se filosofar sobre o destino humano não fosse, necessariamente, analisar as condições concretas em que esse destino pode realizar-se.

O mesmo sucede entre a História e Economia Política. Esta última, na medida em que teoriza dos esquemas financeiros, não pode, por forma alguma, fazê-lo em termos históricos, pois que implicitamente ficaria reconhecida a situação concreta - sujeita a uma crítica de ordem sociológica - daqueles esquemas que se querem apenas expressão de uma mecânica que não releve das necessidades humanas, mas das exigências da «realidade financeira», uma realidade do mundo dos negócios, inevitável, imutável, independente de outras circunstâncias «históricas» que não as vicissitudes da produção, da distribuição, do consumo, das taxas de juro, etc. E, reciprocamente, a História dificilmente pode, sem cair no marxismo, reconhecer a supremacia dos factores económicos na vida dos povos. Ainda quando a reconhece, tem de pautar-se pelos limites da «individualidade humana», e do «imprevisível» das acções complexas que regem os fenómenos históricos, para que fiquem bem salvaguardados os princípios «sagrados» da liberdade, do altruísmo, da caridade gratuita, em suma, aquelas virtudes que elevam o homem acima de si mesmo, acima daquilo que, como homo economicus , a cada instante ele pratica. É evidente que, no pensamento de Marx, nem a História se reduz à Economia, perdendo o seu carácter de crítica das acções humanas, nem a Economia se reduz à História, demitindo-se de legislar sobre as estruturas económico-financeiras. É exactamente o contrário que sucede a ambas. A História, posta a claro a engrenagem económico-política, fica precisamente liberta dos dois extremos entre os quais, a sua redacção sempre oscilou: o providencialismo (optimista ou catastrófico) em que as acções humanas perdem qualquer autonomia (e a História, portanto, a sua razão de ser), e a atomização individualista, em que essas acções adquirem um relevo absoluto, cujos fracassos só o acaso explica (e a História, de análogo modo, não tem também razão de ser). E liberta do providencialismo que põe nas mãos de Deus um destino que a maioria das religiões dá como declinado por Ele às mãos dos homens, e do individualismo que põe nas mãos do acaso uma sucessão intemporal de aventuras humanas sem sentido, o que todos os humanismos repudiam ou fingem repudiar, a História pode, na concepção de Marx, conceituar-se, em termos de Humanidade, já que, assim, a aventura humana, diríamos, se acumula, por forma a transformar em providência colectiva o acaso dos individualismos . Tudo se passa como se, nestes termos que são uma concessão à terminologia não marxista, o Homem se tornasse Providência. Por sua parte, a Economia Política, humanizando-se na e pela História, deixa de ser a programação técnica de um status-quo , para ser a planificação de uma realidade social que a ciência permite que o Homem crie para si mesmo.

Não tem sido, a este propósito, o cientificismo de Marx e do marxismo uma das acusações menores que lhes vêm sendo assacadas. O marxismo surgiu, muito naturalmente, do optimismo oitocentista, inspirado pelos progressos da Ciência. É o próprio Engels quem declara que, na conceituação filosófica do marxismo, três grandes descobertas dessa época tiveram importância decisiva: a descoberta da célula, a da transformação da energia, a do evolucionismo darwiniano. E não poucas vezes a teoria da luta de classes, desenvolvida pelo marxismo, tem sido assimilada ao struggle-for-life de Darwin, o que cronologicamente é absurdo para fora de uma análoga reacção à atmosfera mais avançada da cultura do tempo (5). Daqui, em face dos progressos da Ciência no século XX, a considerar-se ultrapassada uma filosofia que tão entusiasticamente assenta em descobertas que hoje nos parecem comesinhas e banais, além de extremamente diversificadas e aprofundadas por novos progressos da Ciência, vai um passo apenas. Passo que tem sido dado. Mas, se esse optimismo parecia e parece excessivo, e se não está em moda, mesmo por parte de cientistas eminentes, uma tão grande confiança na Ciência como transformadora das capacidades humanas, a verdade é que a posição contrária resulta da cisão total, na sociedade capitalista, entre cultura e técnica, pela qual o homem culto não dispõe de instrumentos de acção técnica, e o homem técnico não controla, directa ou indirectamente, as implicações cultas dos progressos que realiza. A descrença nas possibilidades da Ciência (e a ciência é técnica, pois que o artifício de dissociar uma e outra não passa de reflexo da cisão entre especulação e acção) não é mais do que uma projecção moral do sentimento de impotência que resulta, para cientistas e não-cientistas, do facto doloroso de as virtudes da Ciência não serem postas ao serviço da solução dos mais prementes problemas da Humanidade, mas sim condicionadas, inclusivamente nas suas técnicas de investigação teorética, por interesses dominantes que postulam um controle do progresso, que é, afinal e apenas, uma defensiva manobra de retardamento. O optimismo científico de Marx e de Engels - e mais deste do que daquele - não era, por forma alguma, ingénuo, nem sequer prefigurava o fascínio literato dos pseudo-marxistas sem formação científica, vítimas da cisão cultural do «ocidente», e constantemente apelando para a «Ciência», como se ela fosse uma divindade transcendente. Era, muito clara e delimitadamente, a expressão da confiança do pensamento marxista na actividade concreta, que é ela mesma o único critério da verdade.

Amiudadamente a praxis inerente ao pensamento marxista tem sido entendida como «maquiavelismo» oportunista, que corre constantemente o risco de ser, ou como relativismo filosófico, que, por sua própria natureza, lhe é vedado que seja. Afirmar que a pesquisa da verdade é uma questão prática, aferível na vida social, e não uma questão teórica, restrita ao domínio da especulação pura, não é negar que esta exista, nem é fazer que a «verdade» flutue ao sabor das conveniências ocasionais. Se é por aquilo que realiza que se mede o Homem, não há uma fronteira entre a teoria e a prática, e não se pode, portanto, pretender atingir uma verdade exterior ao real a que ela se aplique, do mesmo modo que a «verdade» não é algo de relativo, com cuja circunstancialidade devamos contentar-nos. O que se afirma é que, fora do acto de transformar a realidade, a verdade não tem sentido algum. A verdade não é eterna como eternas não são as formas que a realidade assume. A verdade é conexa com a actividade que a descobre nas próprias formas que cria (6).

E atingimos, assim, o núcleo aparentemente mais temeroso do pensamento marxista, conquanto, no íntimo, não seja ele, mas as decorrências políticas o que mais aflige os críticos do marxismo. Esse núcleo, que por forma alguma é essencial, ao contrário do que possa pensar-se, é o ateísmo. O marxismo, com efeito, faz tábua rasa do eterno, da existência de Deus; mas não expressamente, nem determinadamente. Não é o ateísmo que é basilar no marxismo, mas o materialismo, de que aquele ateísmo é então decorrência lógica. O ateísmo não foi, e historicamente não é, uma invenção polémica do marxismo. Pode ser-se ateu, e, ao longo dos séculos e ainda hoje, muita gente o tem sido, sem ser--se, apenas por isso, marxista ou, sequer, materialista sem marxismo. O problema da existência de Deus, que ocupou desde sempre a filosofia «ocidental», com a sua preocupação racionalista de demonstrar e apreender a essência divina, é na verdade um falso problema, criado precisamente pela alienação racionalista de pretender-se que a razão ultrapasse os seus limites naturais de instrumento de apreensão da realidade observada. Daí que, em desespero de causa, se tenha caído no extremo oposto de demonstrar-se aquela existência pelo «absurdo», ou de crer-se que a vivência irracional do divino bastava a provar a existência deste. Mas o ateísmo marxista não é um ponto de partida, é, sim, um ponto de chegada; é o reconhecimento de que, posta a ênfase na capacidade do Homem para libertar-se, e na materialidade intrínseca das relações entre a Natureza e o Homem, não tem qualquer sentido a inquirição teológica. Tal como para alguns Padres da Igreja primitiva, que Deus exista ou não é exactamente o mesmo, para todos os efeitos humanos: e a doutrina da Graça, tão cara àqueles Padres e aos Doutores da Igreja, podemos considerá-la, afinal, como expressão lógica ainda que transposta, de que a sanção moral é, acima de tudo, um atributo da consciência responsável, quer a ilumine ou não a Graça divina, ou, noutros termos, quer Deus actue ou não, quer Ele exista ou não... A posição ateísta do marxismo não é, assim, simplisticamente antiateística, e está muito mais próxima da vivência mística de alguns santos, que nunca puseram a existência de Deus como condição prévia para a sua Fé, do que estes santos o estão das crenças supersticiosas das religiões estabelecidas, as quais fazem depender a sanção moral de uma sanção transcendente às próprias acções a que ela mesma se refere. Como decorrência do materialismo, o ateísmo marxista é inimigo da transcendência, a qual nega, e do espiritualismo, cuja legitimidade contesta. Mas é óbvio: do espiritualismo como filosofia idealista, postulando a primazia do «espírito» sobre a «natureza»; e, de forma alguma, da espiritualidade humana sobrepondo-se à natureza que, transformando, humaniza. Em não fazerem esta distinção, que nada tem de subtil ou sofística, se albergam muitos dos equívocos «anti-materialistas».

Tal como o ateísmo, o materialismo não foi uma invenção marxista. Houve sempre, desde as origens pré-socráticas do pensamento «ocidental», orientações mais ou menos declaradamente materialísticas; e, nos séculos XVIII e XIX, o materialismo conheceu um surto enorme - cuja crítica impiedosa foi feita, não pelos espiritualistas, mas por Marx e por Engels. Com efeito, o materialismo greco-latino, e que principalmente grassou na França e depois na Alemanha, não era mais do que a expressão, primeiro revolucionária e depois autoritária, da luta da burguesia pelo poder político, na primeira fase combatendo o feudalismo, e na segunda aliando-se com ele, contra as forças populares geradas pelo industrialismo. Era um materialismo que, inspirado nos progressos da Física, os quais estavam dando à burguesia o domínio técnico das riquezas naturais, via o mundo como um mecanismo sem História, cujas leis sociais eram tão «eternas» como as da Física e tão garantidas, que bastava deixar-se o comércio e a indústria em liberdade para que o equilíbrio «natural» constantemente e automaticamente fosse encontrado... Pôr em relevo o carácter progressivo do materialismo setecentista , o marxismo fê-lo; mas igualmente denunciou a que ponto ele está oculto mesmo nas mais espirituais manifestações da civilização burguesa, para garantir a esta o inalterável e indiscutível domínio de uma sociedade que não deve mudar como a natureza não muda... E, por isto mesmo, é tão incongruente, mas também tão significativo, que seja o capitalismo norte-americano, herdeiro directo daquele mecanicista materialismo aristocrático-burguês do século XVIII, o mais incompreensivo adversário do marxismo, e que a ele se associem, nessa incompreensão, correntes espiritualistas, como muito catolicismo, que, todavia, deveriam sentir-se bem mais afins de um materialismo dialéctico, em que o homem se encarna na natureza que transforma.

Mas não são afinal os aspectos teológicos, filosóficos, históricos, económicos, sociológicos do pensamento que Marx aplicou, no Capital , à análise das estruturas económico-sociais da civilização capitalista, o grande escolho à compreensão. São-no os aspectos políticos, e em especial a palavra terrífica que os consubstancia: comunismo. Acontece que o comunismo, genericamente considerado, ou primitivisticamente vivido, não foi também uma invenção de Marx ou de Engels. É característico da organização social de muitas populações primitivas, é observável em numerosos núcleos populacionais de civilização agrária, existiu sob diversos aspectos em algumas fases de civilizações exaustas, como a egípcia, a incaica, etc., e constitui sempre, quer na vida religiosa quer na vida intelectual, do chamado «ocidente», um dos sonhos mais persistentes, congeminado por Platão, vivido por comunidades pré-cristãs e cristãs primitivas, descrito pelos utopistas dos séculos XVI e XVII, e teorizado politicamente por alguns precursores europeus de Marx, desde pensadores da Revolução Puritana, na Inglaterra do século XVII, a políticos da Revolução Francesa, no fim do século XVIII. A abolição da propriedade «privada» não é, portanto, um diabolismo, especificamente marxista ou materialista; pelo contrário, foi desesperadamente sonhada por homens desaforadamente espiritualistas, e precisamente porque o eram. Especificamente marxista, porém, é a proclamação de que os instrumentos da produção , de que depende o bem-estar da colectividade, não podem, na fase actual da civilização, ser propriedade privada de ninguém que não seja ou não represente a própria colectividade, e isso porque o «capital», detendo a propriedade daqueles instrumentos, estabelece o seu poderio na mais-valia , ou seja, no rendimento que extrai da diferença entre o salário pago e o valor real do trabalho vendido pelo assalariado. O escândalo maior do marxismo não é, afinal, a proclamação de um comunismo que nunca assustou ninguém, senão muito relativamente, mas o desmascaramento da expoliação inerente à «civilização ocidental», e que se consubstancia no escamoteamento da mais-valia . E esse escândalo, com efeito, estala nas exaustivas análises dos quatro Livros do Capital, com uma minúcia que só tem paralelo na gigantesca persistência com que Tomás de Aquino analisou, de um ponto de vista dogmático, as condições racionais das relações entre essência e existência. Porque a mais-valia , revertendo sobre o trabalho como uma taxa de exploração, corresponde a uma escravização recíproca do valor do dinheiro com que o trabalho é pago, e do homem que, produzindo esse trabalho, não só não recebe essa diferença, como a tem constantemente subtraída, pelo processo económico-financeiro, ao próprio valor do dinheiro com que lhe pagam. É um esclavagismo tanto mais profundo e tanto mais terrível, quanto nenhum estatuto pode, como sucedia no autêntico esclavagismo directo da antiguidade ou contemporâneo, reger as condições em que o senhor deve prover à subsistência do seu escravo. A demonstração desta irreversibilidade do processo de produção capitalista continua a ser um dos mais clamorosos «crimes» de Das Kapital . E, no entanto, o capitalismo moderno não tem feito outra coisa senão atentar nessa demonstração, e procurar, pelos mais variados meios, obviar ao catastrofismo fatal desse processo que teve início na mercantilização do mundo ocidental, nos fins do século XVI, e que postula a existência de classes proletarizadas, cuja subsistência seja um equilíbrio precário entre uma carência que as embarateça como produtoras de trabalho, e uma suficiência que as multiplique como consumidores virtuais.

Todavia, ainda nem isto constitui a maior hipoteca que pesa sobre o reconhecimento da alta categoria especulativa do pensamento agente que presidiu à relação de Das Kapital . A maior de todas é que Marx não foi apenas um filósofo, um historiador, um economista, um sociólogo, um pensador político, que, longe de misturar os campos respectivos destas disciplinas (como tem sido metodologicamente acusado de ter feito), criou as condições em que elas, repudiando as pretensas dissociações metodológicas da cultura de base capitalista, não extrapolam , porque são aspectos de uma mesma e única realidade, que é a do mundo dos homens. O caso é que Marx foi, com a formidável capacidade de um sintetizador e transfigurador dialéctico de séculos de pensamento e de experiência humana, um agitador político. E um agitador cujas ideias, após décadas de aparente dormência, conheceram um triunfo sem precedentes, a ponto de o mundo se encontrar dividido, hoje, entre os que se lhe opõem, e aqueles para os quais o pensamento de Marx e de Engels é a própria estrutura da vida. É um erro tremendo comparar a situação política actual, com a da queda do paganismo greco-romano ante o impacto do cristianismo, ou com a luta, hoje superada, que, durante séculos, opôs cristãos e muçulmanos. A derrocada do Império Romano não foi um efeito do cristianismo, mas um processo que vinha desenvolvendo-se desde muito antes que este surgisse; e o cristianismo tudo fez para encarnar-se nele, e para herdar a coroa imperial. O cristianismo não opunha, à organização romana, novas concepções políticas; apenas atomizava, no individualismo inerente à salvação da alma, as estruturas colectivas, decorrentes do regime de democracias urbanas, em que essa organização se originara, O que ele, como consequência política, trazia de novo era a dissolução das classes tradicionais, na igualdade universal da dignidade humana. Mas essa igualdade, logo sacrificada à sua adjectivação universalista, só nos tempos modernos (e em termos de sociedade burguesa) conseguiu impor-se politicamente ao mimetismo obsessivo com que o universalismo cristão se identificou com a hierarquização imperial. Sob certos aspectos, e praticamente, o cristianismo não fez mais que continuar, e ampliar a formas mais generalizadas, a estrutura esclavagista das civilizações que herdou. Quando, no século XIX, a burguesia se empenhou filantropicamente na abolição dos últimos resquícios da escravatura ostensiva, fazia-o afinal impelida pela necessidade urgente de não ser obrigada, por que já não podia economicamente sê-lo, a sustentar os seus próprios escravos... Por outro lado, se cada vez mais hoje se entende a expansão do maometismo como uma crise do cristianismo mediterrânico, essa crise reflectia sobretudo uma oposição de interesses sociais de vastos grupos populacionais - a Europa agro-patriarca e o Oriente Médio itinerante e mercantilista -, e não uma luta de classes que, nuns e noutros grupos, evoluíam igualmente de um primitivismo tribal, à margem das civilizações urbanas greco-romanas, para um feudalismo assente na exploração da terra ou na do tráfego das rotas do comércio. O mundo estaria hoje dividido, como o esteve na Idade Média, se dois feudalismos de interesses concorrentes se combatessem, sem que as concepções fundamentais divergissem muito. Mas não são dois feudalismos que se opõem hoje, enquanto as concepções fundamentais divergem muitíssimo mais. O que ideologicamente se opõe são duas concepções, ambas consubstanciação, em fases específicas da história humana, de correntes que vieram desenvolvendo-se ao longo dela. Uma das concepções é esclavagista, ainda quando ardentemente deseje não o ser; a outra não o é, ainda que as circunstâncias alguma vez a tenham forçado a sê-lo. Naquela, a liberdade prevalece sobre a justiça social; nesta, a justiça social é que prevalece sobre a liberdade, ou mais exactamente, sobre o mito de uma liberdade que só existe em duas situações extremas: a do indivíduo que, pela sua riqueza pode considerar-se livre de sujeições a que sacrificou definitivamente a consciência, ou a do indivíduo que, pela sua abjecção, pela total abdicação da sua dignidade humana, se conformou com a liberdade, que é reservada aos escravos, de não assumirem a responsabilidade pela sua própria existência (7). Trata-se, pois, de um dilema muito mais profundo, apenas prefigurado nas divisões anteriores. Remonta, na verdade, à noite dos tempos, e só agora ascendeu decisivamente à realidade social e colectiva. O que está em jogo não são, ao contrário do que é correntemente dito, dois tipos possíveis de sociedade humana, que podem coexistir e competir pela vitória final. Sob esse aspecto, nem um nem o outro estariam isentos de uma imitação mútua, que faria o «ocidental» converter-se à «planificação» do «oriental», enquanto este pretenderia assumir a pureza moralística que o «ocidental» viciosamente teria pervertido. O que está em jogo é algo mais: saber-se se o homem está disposto a confiar apenas em si mesmo, a emergir definitivamente da «condição humana» que é a do animal perdido numa natureza e numa sociedade que o regem, e a escolher entre dominá-las ou ser dominado por elas.

Repudiando a transcendência, o marxismo é, por força do seu pensamento dialéctico, o transcendentalismo elevado à mais alta dignidade, porque é uma filosofia da superação do homem por si mesmo, graças a uma metodologia que não depende dos exemplos obsoletos com que se manifeste, uma vez que se identifica à própria estrutura da nossa representação intelectual do universo, ou à forma como o universo se transformará à medida do homem. Pouco importa que o marxismo seja «a verdade». Importa, primacialmente, não ceder a coisa alguma, ao próprio Deus que seja, uma parcela da imensa dignidade humana que, mal saídos de uma pré-história sinistra, apenas difusamente vislumbramos. E, se depois alguém estiver ainda interessado em salvar a própria alma, quem sabe se não descobriremos que nunca teremos essa alma imortal, enquanto cientificamente a não tivermos inventado.

E muito provável que o marxismo, sobretudo o marxismo de Marx e de Engels, venha a ser superado. Jamais houve pensamento a que tal não sucedesse, sem que, por isso, possamos concluir que ele deixou de ser válido. Superados que foram uns pelos outros, ao longo de séculos, os filósofos do Ocidente, algum deles, apesar de quão pouco directamente se ligue à nossa realidade imediata, deixou totalmente de interessar-nos? As descobertas de quase todos, porque incidem na investigação do conhecimento humano, seus modos e suas regras possíveis, fazem parte do nosso património científico. E acontece que raríssimos nos deixaram um método de análise do real, tão distinto de uma visão sistemática, como (invertendo o idealismo de Hegel) Marx e Engels se aplicaram em deixar. Porque essa inversão genial da dialéctica genial de Hegel não consistiu apenas em substituir, nela, o «espírito» pela «matéria». Consistiu, principalmente, em mostrar que, cientificamente, a dicotomia matéria-espírito não tem significado algum . Para combater as alienações que se escondem na noção de «espírito», o marxismo tinha de ser polémico. Mas o seu carácter polémico implicava, afinal, muito mais que a mera oposição, já que se colocava expressamente, não aquém da «matéria», como o materialismo tradicional, mas, além dela , lá onde os espiritualismos colocavam um espírito que não é mais que emanação ilusória, e alienada, das virtualidades incontáveis do Homem. Daí que a superação do marxismo, tão profetizada, nos apareça necessariamente como uma decorrência metodológica do próprio marxismo. E quem mais anseia que o marxismo se supere contribui, queira ou não queira, para que ele melhor se realize.

Nesta «realização», que vem sendo experimentada à escala de milhões de seres humanos, reside uma das maiores e mais graves acusações feitas ao marxismo: a de, pretendendo-se estritamente «científico», ser afinal uma metafísica, uma escatologia dogmática, susceptível de reger não apenas intelectualmente, mas no dia-a-dia político, nações inteiras. Marx teria, assim, praticado um erro fatal: da análise «científica», que afinal se reconhece válida, das contradições inerentes ao processo capitalista, teria visionariamente saltado para o mito da ditadura do proletariado, confiando a este uma missão , um papel escatológico, um messianismo redentor. E o marxismo não seria afinal, mais do que um cristianismo indignado consigo mesmo, por não haver cumprido a sua promessa milenária de, pela encarnação divina, libertar o Homem. Se nos colocarmos no ponto de vista da História dos últimos dois milénios, é incontestável que o marxismo surge como produto final de uma decomposição do mundo esclavagista das civilizações mediterrânicas, de que o cristianismo foi o sinal de rebate. Mas um produto final pode não ser, como o cristianismo até certo ponto não foi, outra coisa que o início de um novo processo de organização das sociedades humanas, baseado numa concepção cada vez mais ecuménica do mundo, cada vez menos restrita às ideologias activas das classes dirigentes tradicionais. O «salto» de Marx, hoje sobretudo denunciado pelos sociólogos profissionais, que o acusam de ter politizado a ciência que ele próprio criou, não é, assim, o que propriamente se pode chamar um «salto» da realidade para as visões. Acusá-lo disso, eis o que fundamentalmente pretende esquecer a natureza dialéctica do seu pensamento, e o papel que, nesse pensamento, é atribuído à autonomia da vontade humana. A acumulação quantitativa que, dialecticamente, produz uma modificação de qualidade não é, em Marx, um processo mecânico e automático, tal como era em Hegel, mas o resultado de uma vontade que se forma, se difunde, se afirma, num número cada vez maior de homens. De modo que Marx, ao confiar ao «proletariado», na situação actual do mundo histórico, um papel dito messiânico, não salta da realidade que o proletariado é, para o visionarismo do que seja um Estado regido por ele. Apenas aplica o seu método dialéctico à realidade criada por uma doutrina que se quer, como a sua, a vontade do maior número. E esta dialéctica do maior número, que a ciência moderna, com o seu carácter estatístico, veio confirmar estrondosamente, põe a claro a impossibilidade de falar-se em messianismo, porque, não havendo limite ao maior número de homens, não há um fim dos tempos, uma idade de ouro, em que a História se suspenda e acabe, para dar lugar ao reino messiânico do proletariado. Este tem apenas, na actual fase da civilização humana - a capitalista -, um papel histórico a cumprir. Se esse maior número deseja efectivamente a liberdade, em termos de justiça, ou se resiste, pela força de um hábito milenário, a sair da «condição humana», é essa uma outra questão. Mas, por grande que tenha sido, e foi, a generosidade de Marx, por firme que tenha sido, e foi, a sua confiança nas virtualidades do Homem, a sua lucidez não o deixou esquecer-se de que o Homem teme a liberdade, teme ver-se entregue a si mesmo, precisamente porque, na História, nunca fez a experiência de ser livre, sem alienar de si, para sê-lo, alguma liberdade autêntica. Mas melhor que ninguém Marx denunciou como isto não é inerente à condição humana, e sim o efeito de uma situação histórica, de um hábito, de um hábito milenário, quando as sociedades se constituíram como defesa colectiva contra uma natureza hostil ou indiferente. E, por isso, ao postular que o Estado deve ter posse dos instrumentos de produção, e que ao proletariado cabe a direcção do Estado, Marx não pretendia eliminar fisicamente ninguém, mas suprimir, entre o trabalho humano e o domínio que este fim permite da natureza, os intermediários; e a supressão dos intermediários, quando alienadamente os homens sempre viveram num mundo em que todos são intermediários entre a Natureza (como se a não fôssemos) e Deus (como se Ele nos não fosse), implica, necessariamente, que os homens sejam obrigados a ser livres. Na complexidade social do mundo moderno, é este o terrível dilema: como pode o Estado obrigar os homens a ser livres, sem roubar-lhes a liberdade, e como podem os homens, sem garantia alguma de sanção transcendente, assumir a sua própria liberdade. Das Kapital apontou um método de apropriação da realidade social. Se o Homem não sabe ou não pode administrar a mais-valia , que é o preço da sua liberdade, é porque, sendo inferior a si mesmo, não é digno do que Marx, herdeiro da filosofia ocidental, imaginou que ele era. Mas acreditar que o homem é, por natureza, inferior ao melhor que se sonhe dele (e é, assim, naturalmente incapaz de realizar a sua liberdade), não é mais do que uma alienação última. Porque o dilema não se configura entre acreditar ou não acreditar nas capacidades do Homem. Acreditemos ou não, estamos perante ele. Chegaram os tempos dolorosos e difíceis, mas gloriosos também, de o Homem ser obrigado a fazer, ainda que o não queira, a experiência da sua liberdade. Para o homem de hoje, não é já uma figura de retórica, mas uma realidade inescapável, aquela alternativa das revoluções do século passado: Liberdade ou Morte.

                                                        1962 
       
       
       
       
       

(*) Jorge de Sena (1919-1978), poeta, dramaturgo, ficcionista, académico, historiador, ensaísta, crítico literário, uma das duas ou três figuras maiores da cultura portuguesa do século XX, não necessita de grandes apresentações. Este texto sobre 'O Capital' foi escrito para o volume respectivo da colecção Livros que Abalaram o Mundo, da Editora Cultrix de São Paulo. Data dos primeiros anos do seu exílio no Brasil, dito "voluntário", embora na realidade produto da perseguição que lhe era movida pelo regime salazarista. Equivocada embora, em certos pontos, a compreensão por Sena da obra de Marx não deixa de revelar profundidade, tocada por aquele halo de gravidade ontológica que lhe é próprio, e que se expressará também no poema 'Uma sepultura em Londres', deste mesmo ano de 1962 e incluído no volume Peregrinatio ad loca infecta .

____________________

NOTAS:

(1) A de Otto Meissner, de Hamburgo, representada em Nova lorque, para efeitos de publicação, por L. W. Schmidt. É Meissner quem também edita as três edições seguintes.

(2) Nascido em 5 de Maio de 1818, em Treves (Trier) Karl Marx doutorou-se em Filosofia em lena, com uma tese sobre «A diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e em Epicuro». Lançado no jornalismo político, a carreira universitária é-lhe fechada. Perseguido, exila-se em Paris, onde escreve e medita, e firma a sua amizade com Engels. É colaboração de ambos, nessa época, A Ideologia Alemã , publicada postumamente, em que são criticados a filosofia alemã do tempo e o socialismo utópico que então se difundia na Alemanha. Mas um ensaio de 1843, «Crítica do Direito Público de Hegel», marcara já a ruptura de Marx com o hegelianismo oficial, em que se formara. A Miséria da Filosofia , em que Marx critica, apoiado numa sólida cultura económica, a Filosofia da Miséria , de Proudhon, é publicada em 1847. Envolvido nos acontecimentos revolucionários que ensanguentaram a Europa em 1848, com insurreições libertárias logo sufocadas, Marx, que regressara à Alemanha, exila-se definitivamente em Londres. 1848 é também o ano do Manifesto Comunista , obra de Marx e de Engels. Daí em diante, Marx, vivendo do jornalismo como correspondente internacional e dos auxílios de Engels, cujo pai era um rico industrial com empresas na Inglaterra, dedicar-se-á à polémica, em defesa dos seus ideais, e aos estudos de Filosofia e de Economia Política, exaurindo-se gradativamente na miséria em que vive com a família que constituíra, na devoção sempre atenta à causa do proletariado, e na investigação incessante para os estudos que constantemente projecta e refunde, e cujas publicações têm por vezes vicissitudes dolorosas. Morreu em Londres, onde jaz, a 14 de Março de 1883.

(3) Kautsky (1854-1938), chefe socialista alemão, amigo e discípulo de Marx, e mais tarde partidário da «Social-Democracia» e adversário da Revolução Russa. A publicação que empreendeu não era integral.

(4) Engels nasceu numa pequena cidade da Renânia, em 28 de Setembro de 1820, filho de um industrial rico com interesses na Inglaterra. Por isso, em 1842 o jovem Friedrich vai para Manchester trabalhar na firma do pai. As suas tendências socialistas e libertárias logo o integram no movimento dirigido por Robert Owen e na agitação «cartista», que então estavam na ordem do dia. O encontro de Paris, com Marx, foi decisivo na sua carreira de pensador e político. Em 1869, abandonando a participação activa nos seus negócios, cujos rendimentos lhe garantiam uma subsistência que sempre faltou a Marx, instalou-se em Londres, onde morreu a 5 de Agosto de 1895.

(5) A obra célebre de Darwin - The Origin of the Species - foi publicada em 1859, quando Marx desenvolvera, já pelo menos uma década antes, a teoria da «luta de classes».

(6) Deve acentuar-se que, para Marx, a noção de «prática» não pode confundir-se com a de «praxis». A «prática» é individual, a experiência de cada um. Mas a «praxis» é eminentemente social. Este carácter definidor da «praxis» não permite que a assimilemos também a um somatório de «práticas». Só na medida em que o acumulado somatório de «práticas» se transmuta em «prática» colectiva, a assimilação é possível. Porque a «praxis» representa a relação dialéctica entre a consciência social e a realidade que lhe corresponde. Em compensação, a actividade teorética, a «teoria», é eminentemente individual, mas é «ideologia», desde que se não comporte como critica e sim como apologia da situação social em que é formulada.

(7) No pensamento marxista, a liberdade não é uma essência abstracta, de que possa falar-se substantivamente. Reporta-se sempre a uma situação histórica concreta. Isso não implica que ela seja entendida como uma pluralização de «liberdades», que serão lícitas ou ilícitas, conforme as circunstâncias. Pelo contrário: significa que ela é sempre o resultado de uma conquista histórica; não um direito natural, mas um direito que é tomado natural pela actividade humana.