O enquadramento histórico da revolução de 1640 (*)

 

 

 

Jofre Amaral Nogueira

 

 

Para grande parte dos Portugueses - talvez para a maioria das pessoas cultas -, a revolução de 1640 enquadra-se num conjunto de circunstâncias que lhe conferem um significado iniludível e peremptório, a tal ponto que não se poderá sequer imaginar-lhe uma interpretação diversa da que geralmente se aceita.

 

Dentro desse enquadramento, o desastre de Alcácer Quibir (surgido pelo acidentalíssimo acaso dum anónimo e irresponsável «tem-te!, tem-te!», que paralisou e desfez todo o ímpeto decisivo da nossa cavalaria...) teria iniciado a tremenda frustração em que o País vai perder a sua independência. No esboçar da derrocada de grandezas passadas, o empobrecimento dos nobres, as dificuldades económicas gerais, a tragédia dum rei senil, a redução dum grande e derrotado exército a frangalhos impotentes, a obliteração das energias patrióticas com o desânimo e apatia teriam propiciado o êxito dos tortuosos processos de intriga com que Filipe II abriu o caminho para instalar-se no trono de Portugal.

 

Enleando-nos com falsas promessas, os descendentes de Carlos V tornaram-se senhores do vasto território que os nossos «reis naturais», os heróis e descobridores, haviam granjeado. A Espanha absorve-se em prolongadas guerras na Europa, que atraem sobre os nossos territórios ultramarinos as represálias dos seus inimigos, enquanto os nossos, barcos e homens de guerra, ruinosamente malbaratados ao seu serviço, escassearão para nos defendermos. Expulsando de Portugal os mercadores holandeses, Filipe lI obrigá-los-á a irem disputar-nos no Índico e no Brasil as mercadorias que anteriormente lhes vendíamos com largo proveito em Lisboa e, assim, a arrebatar-nos uma parte das nossas terras de além-mar.

 

Quando os efeitos de toda essa nefasta política filipina atingem o seu auge, a impiedosa e crescente sobrecarga dos impostos faz levedar a revolta dos povos. O Duque de Olivares ordena que se proceda ao levantamento dum exército, que iria lutar nos Pirenéus ou na Flandres sob o comando do Duque de Bragança, e que, arrebatando-nos as derradeiras forças, seria o prelúdio duma anexação iminente e irreversível. Será então, no último momento, quando parecia soar a hora final da Nação Portuguesa, que 40 conjurados, as lâminas das espadas brilhando ao sol da suprema decisão, restauraram a liberdade colectiva, entregando a coroa a um rei português, em cujas veias corria o sangue misturado do Mestre de Avis e de Nuno Álvares Pereira.

 

É neste contexto que a revolução de 1640 foi colocada, como numa sarça-ardente de emotividade, com maior ou menor retumbância retórica, com mais ou menos riqueza de erudição, pela historiografia tradicional de absolutistas ou liberais, de monárquicos e republicanos. E essa história da revolução seiscentista, desse modo tornada subproduto ideológico, oferece, em boa verdade, perspectivas bastante úteis para quem aprecie ou esteja interessado em aproveitá-las.

 

A explicação da perda da independência como resultado duma catástrofe quase apocalíptica, por sua vez desencadeada por um acidente puramente ocasional, bastaria, ao que parece, para impedir e tornar supérflua qualquer indagação mais cuidada sobre os motivos reais do trágico acontecimento, evitando-se assim uma análise do valor e culpabilidade de instituições ou estruturas políticas implicadas nos sucessos e que se deseje manter incólumes de máculas prejudiciais à sua sobrevivência ou prestígio.

 

Outra vantagem do enquadramento clássico reside na explicação que faculta para a pungente decadência de vitalidade da nossa expansão ultramarina. Porque teríamos, após a gesta ímpar de Quatrocentos, descido à apagada e vil tristeza dos séculos XVII e XVIII, passando da pujança de senhores do meio mundo de Tordesilhas a desesperados herdeiros arruinados dum património reduzido a periclitantes restos ou sobras daquilo que fora? Nada mais fácil do que atribuir aos reis estrangeiros o que, de tal modo, não precisa de atribuir-se a uma carência de virtudes colectivas, à incapacidade dos homens ou de peculiares formas de vida política, económica, social e espiritual...

 

Tudo isso, porém, não pode eximir-nos de considerar com mais atenção os elementos da perspectiva apontada e que, sem apreciáveis variações, vem sendo a versão que circula vulgarmente nas artérias da consciência pública.

 

Não é verdade, antes de mais, que Portugal se encontrasse, nessa altura, debilitado por uma profunda e incapacitadora anemia económica, directa ou indirectamente resultante do fracasso de Alcácer Quibir. O correspondente do banqueiro alemão Fugger, em carta datada de Lisboa, de Agosto de 1578, refere que, apesar da batalha, «os negócios aqui continuam como se nada fosse». Joel Serrão mostrou, na base de documentos bastantes, que o comércio da Índia não apenas se manteve vigoroso até 1619, como ainda beneficiou de algum acréscimo. Magalhães Godinho, citando a correspondência para os Fugger, informa que uma procissão organizada em 2 de Setembro de 1582 pelos mercadores da capital portuguesa, após a unificação das duas coroas, «custou mais de 100 000 escudos, sem contar as jóias e adornos, e o correspondente... comenta que nunca vira, fosse onde fosse, tal magnificência e estadão» (1). Em 1597, os comerciantes portugueses dispõem-se a conceder ao Rei de Espanha um empréstimo de 4 milhões. Não foi, por conseguinte, sob a pressão duma economia arruinada que em Portugal faleceram as energias para impedir o acesso de Filipe II ao trono, mesmo que a situação financeira da nobreza houvesse sofrido com os resgates e despesas bélicas.

 

Não é também correcto o argumento de que o dinheiro filipino ou as promessas feitas hajam corrompido uma fidalguia ansiosa de resolver prementes dificuldades pecuniárias. Sempre a fidalguia, neste como em qualquer outro país, fez questão de que lhe fossem generosamente pagos os serviços que prestou. O próprio Nuno Álvares Pereira, modelo de cavalaria, chegou a iniciar, por uma razão destas, com os seus homens de armas, a caminhada cujo termo, se não fosse sustida, seria o arraial do rei de Castela. Mas em 1580, outras razões imperavam no sentido duma política de junção com a Espanha. O nosso comércio com o Oriente, principal esteio económico da Nação, só podia realizar-se em pleno na medida em que tivéssemos o ouro ou a prata com que pagar na origem as mercadorias que lá íamos buscar. O ouro da Mina, em baixa de produção, não bastava. Era a prata da Espanha, arrancada das minas das Américas, que podia manter esse nosso tráfego. E para o obtermos, além do contrabando dos pegureiros do Brasil, era necessário vendermos aos nossos vizinhos o açúcar ou outros produtos que fizessem correr essa prata para as nossas mãos, já que sem ela teriam de regressar vazios as naus e os galeões. Por isso, a união com a Espanha, com a consequente abertura das fronteiras, era o corolário ansiosamente desejado, duma necessidade comercial amplamente divulgada. As condições dessa união, juradas pelo rei espanhol nas cortes de Tomar, serão ipsis verbis as mesmas que proclamara e prometera, em hipótese semelhante mas inversa, o nosso rei D. Manuel. Por isso mesmo, feita esta união (com protestos das classes dirigentes castelhanas), tornar-se-á português um quarto da população de Sevilha e a articulação comercial desta com Lisboa «é que comanda de oravante o tráfico do caminho marítimo para a India» (2).

 

Na América do Sul, em direcção às minas, desencadeia-se uma autêntica invasão, que atinge o auge na década que precede 1640, e que acabou por entregar à coroa portuguesa quase dois terços do actual Brasil, em pleno território reservado à Espanha, pelo Tratado de Tordesilhas. Assim, por meados de 1635, «o número dos portugueses crescera de tal forma nas principais cidades peruanas que excediam os seis mil e em Lima, a capital, andavam por cerca de um terço da população branca», enquanto «o comércio desde el mas vil negro de Guinea hasta la perla mas preciosa - diz uma relação da época -- estava nas suas mãos» (3). Em 1637, os paulistas chegam ao coração da actual Bolívia. O governador espanhol do Paraguai queixa-se de que os nossos colonos começam a instalar-se nos contrafortes andinos, perto da crucial região de La Plata e Potosi. Torna-se portuguesa 30 por cento da população de Buenos Aires. Uma expedição de Pedro Teixeira, em 1638, sobe o Amazonas até às nascentes, atravessa os Andes e chega a Quito, onde o vice-rei do Peru, conde de Chinchón, quer prendê-los porque «aviam excedido lo que les tocava». É que sob os Filipes (como se pretendera) ganha-se pràticamente o direito de ir negociar nas «conquistas de Castela».

 

Se com D. Manuel se ergueu já uma política de ligação com a Espanha, acentua-se depois entre nós (conforme o mostrou Queirós Veloso) (4) a influência dum partido pró-espanhol acaudilhado pela mulher de D. João III, que se mostra dominante ainda bem antes de Alcácer Quibir. Ao acrescentar-se-lhe o interesse duma grande parte do nosso capitalismo ultramarino, não é de surpreender que, com isso, se forjassem os destinos imediatos dum Portugal em que os escritores redigiam em castelhano uma grande parte das suas obras, em que um volumoso e crescente número de estudantes ia frequentar as universidades espanholas. É nesse ambiente que será decidida e apoiada a entronização de Filipe. E o argumento da falta de recursos militares com que apoiar a tentativa do prior do Crato, não possui vigor suficiente, uma vez que, na própria altura em que o duque de Alba a enfrentava na ribeira de Alcântara, ali mesmo quase ao lado de Cascais, estacionavam forças portuguesas bastantes para impedir-lhe o desembarque e desbaratá-lo, mas que se mantiveram quedas, porque não quiseram intervir.

 

Os males que se atribuem ao domínio dos Filipes, por outro lado, sem deixarem de ser verdadeiros como sucessos acontecidos, aparecem-nos todavia deslocados do seu natural contexto, quer no plano do sincronismo com as realidades do tempo, quer no plano da posição que ocupam no processo evolutivo da sucessão histórica. E por isso mesmo será fácil verificar que, apresentados como o vêm sendo, nos dão dos acontecimentos uma panorâmica deformada, geradora de erros palmares.

 

Assim, por exemplo, não será falsa a afirmação de que o facto de Portugal e a Espanha serem governados pelo mesmo rei facultou aos inimigos desta a oportunidade de atacarem os nossos territórios e a nossa navegação. Mas é facto, também, que instauradas e confirmadas pela autoridade papal as talassocracias portuguesa e espanhola, considerados os mares e as terras descobertas como monopólio das nações ibéricas, nem a Inglaterra, nem a França, nem a Holanda deixariam de lutar contra esse exclusivo que as expulsava do mundo descoberto. A teoria da liberdade dos mares, defendida por Grócio, impugna o valor da partilha efectuada em Tordesilhas, sobretudo depois que, com a Reforma, a autoridade papal, consagrante daqueles exclusivos, deixa de ser reconhecida por várias e fortes nações. Mais cedo ou mais tarde, fossem quais fossem os reis de Portugal e da Espanha, essas potências contestariam todas as tentativas de manutenção do statu quo. Como poderia atribuir-se aos Filipes esse fenómeno que se inscreve necessàriamente no devir duma situação criada antes deles e que se prolongará, para nós, depois deles, pràticamente até aos nossos dias?

 

Creio que não será indispensável ir mais longe, nem descer a pormenores òbviamente fatigantes, para que se torne visível em que medida o enquadramento tradicional e corrente da revolução de 1640 é frágil e falaz. Nem seria preciso - suponho - evocar outros acontecimentos ou argumentos, para imaginarmos quanta complexidade caracteriza a situação do Portugal seiscentista em que relampejou, a certo momento, esse triunfante «golpe de mão» do primeiro de Dezembro. Analisemos, por isso, dois fundamentais aspectos ou problemas da época: o político e o económico-social.

 

Pela segunda vez na História, a mecânica da sucessão real ou transmissão do Poder, jogara a monarquia - tal como institucionalmente se definira - contra a independência do País. Em 1385 não se consumara, por um lado, o desastre e pôde João das Regras fazer crer, com a sua argumentação de legista, por outro lado, que a solução encontrada e vitoriosa se inscrevia com lídima validade nas próprias normas tradicionais daquela sucessão. Ficara iludido o verdadeiro impasse político do momento: o facto de, pelas regras geralmente aceites, a passagem da coroa duma pessoa a outra, por via hereditária, acarretar o perigo de ir contra a autonomia ou independência duma colectividade. Mas tudo se resolvera sem pôr em causa a realeza, contestando esse imprescindível componente da sua realidade e personalidade jurídica, ou seja, o seu mecanismo sucessório. Agora, a questão assumia outra acuidade. Como poderia negar-se àquele que ocupava o trono, ao neto legítimo do que fora alçado pelas cortes de Tomar, ao filho dum rei indiscutido, ao rei legalmente reinante, o poder de reinar? Numa época em que a realeza se encontra já sacralizada e estão abertos os caminhos para o absolutismo e para a teoria do direito divino dos monarcas, em que bases se poderia despedir do seu cargo Filipe IV? Como poderia justificar-se a revolução de 1640 sem pôr em causa as regras vigentes, que davam à realeza a sua estabilidade e consagração, libertando-a do alvedrio dos vassalos?

 

Na monarquia visigótica, de que os reinos peninsulares derivaram, o poder real ganhara consistência e nitidez de contornos, sem atingir uma plenitude institucional. A pressão organizadora do catolicismo, inspirada no conceito de autoridade papal (ela própria sugerida pelo cesarismo romano) e na tradição bíblica de Saul, consegue que nos concílios de Toledo se afirme já a origem divina do poder. Mas as tradições germânicas, ainda muito fortes, do carácter precário do cargo e da base contratual com que ele se firmara em Espanha, contribuem para que se estabeleça em 633, no IV concílio, a regra de que «rex ejus eris si recta facis, si autem non facis non eris», segundo a qual o direito da realeza se mantinha apenas enquanto fosse recto o procedimento do rei. Dois conceitos opostos se enfrentavam: o da natureza divina do poder real, que tendia a torná-lo independente da vontade dos povos e, quando muito, subordinado ao da Igreja; o da soberania popular, apenas delegada ao soberano enquanto este mantivesse o seu compromisso para com os povos. Na altura em que a aclamação ou eleição dos reis começa a ceder o lugar à hereditariedade da função régia, é aquele princípio de soberania que se apaga perante o da auto-suficiência legal do monarca.

 

Quando se formou a monarquia portuguesa, já essa evolução se encontrava em adiantado estádio. Os nossos primeiros reis ainda associam os filhos primogénitos ao trono e dispõem deste a favor deles, por testamento, como se a coroa fosse um bem privado e pessoal. Depois, o direito de legá-la aos descendentes será substituído pelo direito destes a recebê-la. A teoria da origem divina do poder afirma-se decisivamente. D. Dinis, na sua lei contra o jogo, de 1 de Junho de 1340, diz que «o regimento dos ditos reinos por Deus nos foi outorgado», confirmando o que dissera Afonso X de Espanha, no «Espéculo»: «Jesus Cristo pôs os reis neste mundo para governarem os reinos da terra segundo o que disse - os reis por mim hão de reinar». D. Fernando, em 1372, nas cortes do Porto, declara: «a nossa pessoa foi por Deus escolhida para em seu nome fazermos justiça na terra». E a majestática linguagem do formulário oriental alcança também o rio Tejo, quando D. João I, em 1385, numa carta de privilégios, decide em nome de «nossa certa ciência e poder absoluto».

 

Mas a tendência que estas expressões denotam não se impõe logo por completo, com a exclusão da base contratual estabelecida pelo direito visigótico. Continua vigente o aforismo de que regnum non est propter regem, sed rex propter regnum, significando que é o rei que existe para o reino e não o reino que existe para o rei, embora abundem os exemplos de que, na realidade, muitas vezes se procedia ao invés. Os teóricos eclesiásticos ou leigos (um Suarez, um Alvaro Pais, um Infante D. Pedro) advogam a doutrina de que o poder vem de Deus, independentemente das formas concretas que possa tomar, justificando-se pelo estado de imperfeição e pecado em que vivem os homens, mas reside nos príncipes por consentimento dos povos. Observa Paulo Merea que a «fusão dos interesses do monarca com os do povo não implicava a renúncia, por parte deste, a uma posição autónoma em face da realeza; antes pelo contrário, sempre foi convicção geral que o rei devia guardar os foros e costumes dos povos, e os próprios reis o reconheciam» (5). A observância destes foros e costumes constituía - segundo Gama Barros - o «cumprimento dum pacto bilateral entre a coroa e os seus vassalos, que o monarca firmava no começo do seu reinado» ratificando-os, «e que a nação subscrevia prestando menagem ao novo rei» (6).

 

É a partir destas noções duma autonomia dos vassalos perante o rei, dum contrato bilateral em que o monarca dispõe dum poder governativo por delegação tácita do povo, da existência dum conjunto de realidades preestabelecidas que o soberano não pode desfazer e de que é, por função, o protector, que o conceito de nação, ainda inexistente, começa a formar-se. Na verdade, tal conceito é uma tardia criação na vida política das nossas sociedades. Na linguagem medieval a palavra apenas serve para designar as espécies animais ou vegetais e, depois, para nomear os grupos de estudantes das universidades, conforme as suas origens geográficas. A palavra «povos», com que se designam os súbditos dum rei, nada possui que a identifique com «nação», por falta daquele sentido de unidade geral histórica e política que este conceito pressupõe. A palavra «república», tirada pelos legistas dos textos jurídicos romanos, designa, é certo, a comunidade sobre que se exerce o poder do monarca e contém já a ideia da unidade orgânica das populações, mas carece ainda daquele significado, essencial, de continuidade histórica, de desenvolução de tradições, de acumulação de esforços dos homens de várias épocas, que são característicos do conceito de nação. A palavra «reino» exprime uma unidade política derivada e evocativa da extensão do poder do soberano, centrada a imagem da colectividade na da governação monárquica: não podemos, por isso, confundi-la com a de nacionalidade, em si própria fundamentada.

 

Se a ideia de nação, porém, só modernamente se estruturou e definiu de modo a tornar-se fonte de direito, princípio coordenador de interesses e poderes, instrumento da unificação teórica e jurídica de épocas sucessivas, nem por isso deixou de existir esparsa, incompleta ou indefinida, misturada por vezes com outros conceitos e sentimentos, nos séculos que precederam a sua cristalização conceptual. Abeiraram-se os povos e os vassalos do conceito de nação, quando se definiram, por oposição à realeza, como fontes de poder ou como objectos duma governação realizada em seu proveito; abeiraram-se o reino e a república do conceito de nação ao marcarem a individualidade legal, a institucionalidade, a realidade própria dum conjunto estruturado de interesses, valores, pessoas, bens e direitos, suficientemente corporizados para se imporem por si próprios. Abeira-se a própria realeza do conceito de nação quando, em luta pelo seu destino e poderio, se faz o arauto do interesse colectivo contra os privilégios de alguns, quando procura desfazer os particularismos jurídicos, subordinando as diversas regiões ou as diferentes classes à uniformização legal, quando derruba muitas das barreiras fiscais privativas para generalizar o âmbito das trocas comerciais, fazendo de cada país um único mercado.

 

Podemos dizer que, em muitos passos do seu desenvolvimento, a monarquia e a nacionalidade cresceram de braço dado e lutaram tão unidas que a vitória duma qualquer delas era inevitàvelmente uma vitória da outra. Mas a tendência da realeza para colocar dentro de si mesma a sua razão de ser, evoluindo no sentido do absolutismo, possuiu tal força que nenhum obstáculo pôde impedi-Ia de absorver em si o conceito nascente de nação, despojando-o em seu proveito do conteúdo jurídico e emocional que lhe pertencia, do mesmo modo que conseguirá absorver também a relação religiosa entre os homens e Deus, tornando-se corporização política do poder divino e objecto imediato das obrigações dos indivíduos para com o Criador. A majestade do monarca revigora-se com a transferência para este da majestade da Nação, a realeza passa a conter em si tudo o que a nacionalidade representa. O serviço do rei é o serviço do País, defender a Pátria é defendero rei - não existe a Nação fora do âmbito da realeza, na qual se alienou. O rei - o Estado, como diríamos hoje; o Poder, como se dirá também—, legitimam-se em si mesmos porque contêm no âmago da sua realidade tanto a Nação como Deus.

 

Era este o processo evolutivo em que se encontrava a monarquia quando os Filipes dominavam em Portugal, ou seja, num estádio de desenvolvimento do absolutismo em que, por toda a Europa, se travavam os derradeiros combates para impedir-lhe o triunfo ou para dar-lhe a vitória. Estádio que se iniciara, em Inglaterra, com Henrique VIII e caminhava para a fase das lutas decisivas do tempo dos Stuarts, do mesmo modo que o iniciara, em França, um Francisco I, para se desenrolar, através das frondas, até ao tempo de Luís XIV, como se esboçara, na Alemanha, com Maximiliano, como se vinha claramente formulando, entre nós, desde o reinado de D. João II. Poderemos espantar-nos de que os Filipes não respeitassem os compromissos assumidos quanto à guarda dos nossos foros e costumes, nessa época de quase-termo da evolução absolutista da monarquia? Haviam os Reis Católicos, Fernando e Isabel, respeitado os foros e costumes a cuja manutenção se tinham comprometido para com as populações hebraicas e muçulmanas do Sul da Espanha? Mantiveram os reis franceses as cláusulas do Edito de Nantes? Respeitou Carlos I, de Inglaterra, a Petição de Direitos? E os nossos reis bragantinos, entronizados pela Restauração, cumpriram eles depois as obrigações para com os seus vassalos, de cujo não cumprimento acusamos os Filipes?

 

Quando os revolucionários de 1640 enfrentam o grave problema político de destronar Filipe III, sabem que estão diante duma tarefa de tomo. A armadura ideológica que cerca já então o poder real, o nimba de sacralidade, lhe confere a virtude de existir por si mesmo, independentemente da vontade dos vassalos, constituía uma força poderosa. Era preciso justificar a revolta dentro das concepções da época. As supostas actas das cortes de Lamego, piedosa falsificação, não possuíam consistência bastante. A legitimidade preferencial da Casa de Bragança fora prejudicada pelas decisões das cortes de Tomar, que não podiam ser esquecidas nem invalidadas: não possuíssem elas a legitimidade suprema duma decisão nacional...

 

Os defensores da Restauração tiveram de ir mais longe nas suas razões de natureza jurídica e política. Foram ressuscitar - alinhando com as forças que por toda a Europa ainda afrontavam o absolutismo -, a natureza contratual da monarquia, o esquecido princípio de que «rex ejus eris si recta facis», a ideia, afinal, de que a soberania reside no povo, embora competisse aos príncipes exercê-la, enquanto aquele não julgasse infringido o acordo que tal permitia. Frei Luís de Sá, lente da Universidade conimbricense, proclama: «nós os vassalos nos obrigamos a sê-lo de um rei quando o juramos, e também ele se obriga a guardar-nos nossos foros com o próprio juramento, e quebrando-os, e quebrando-o, em boa consciência podemos não estar pelo contrato». O canonista Navarro afirmará que o poder pertence ao rei in actu, mas pertence ao povo de direito. O doutor Francisco Vaz de Gouveia, indo ainda mais longe, acrescenta que a legalidade a que os monarcas devem obediência, não é constituída apenas pelo direito escrito, mas é também constituída pelo direito consuetudinário estabelecido através dos tempos (7).

 

Será de acordo com esta tese que as cortes de Lisboa de 1641 expulsarão do trono o último dos Filipes, colocando nele D. João IV. E será ela que os nossos embaixadores irão apresentar em Paris, em Roma, na Haia, em Londres ou em Estocolmo, para justificarem o acto praticado. Deste modo, perante uma realeza em vésperas de atingir o apogeu duma evolução que a apresentava como legítima em si mesma, corporizando o conteúdo ideológico e legal da ideia de nacionalidade, os homens de 1640 dissociam a Nação da Realeza, pondo à mostra o contraste que surge entre as formas e acidentes de evolução a que o regime monárquico fora conduzido, por imperativos da sua textura, e os interesses ou realidades com que a Nação viva, concreta, se apresentava, por força do devir histórico. Ao gesto nacionalista de repor um rei português no trono de Portugal acresceu o gesto muito mais e amplamente nacionalista de devolver à Nação a sua soberania, restaurando-a nos seus direitos e nos seus poderes em face do monarca. Ficará frustrada tal política com a sequência governativa dos Braganças, mas quando, nos princípios do século XIX, se proceder de novo àquela dissociação, com o triunfo da revolta de 1820, poderá com justiça afirmar um Almeida Garrett que se reencontrou uma autêntica tradição nacional.

 

Embora causem uma dolorosa impressão pelos termos em que se traduzem, as dificuldades financeiras encontradas por D. João IV após 1640 podem explicar-se pelos enormes encargos da luta que travávamos com a Espanha. Percebe-se que as cortes aprovem o encerramento das escolas, excepto o da Universidade de Coimbra, para que os rendimentos que as sustentavam possam acorrer às necessidades da guerra. Admite-se a desvalorização da moeda de prata, recunhando o mesmo valor facial em peças de menor valor intrínseco, mesmo sem esquecermos que os Filipes haviam cumprido com a promessa de o não fazerem. Compreendemos as declarações do Conselho de Fazenda de que «Sendo necessário tresentos mil cruzados, ...se não podem ajuntar com facilidade tresentos mil réis», ou quando afirma ao Rei que chega «a não haver donde se pague uma pequena esmola que V. Magestade manda dar» (8).

 

Tudo isso se atribuirá às tremendas necessidades do momento, às despesas duma guerra prolongada para que se não estava preparado, até mesmo, se o quiserem, aos impostos excessivos com que os monarcas espanhóis teriam exaurido a população. Mas o que mais nos choca dentro da perspectiva clássica é o nível da decadência financeira a que chegou um país que podia ainda recordar-se do período áureo dos Descobrimentos, quando Lisboa regurgitava de azáfama mercantil e de cosmopolita desvario; quando as jóias, os damascos, as sedas, as madeiras raras, as especiarias, os perfumes, os animais exóticos, se espalhavam pelos lares e pelas praças, pelos armazéns da Casa da Índia e pelas boticas das ruas da Baixa; quando, nos templos, a cruz de Cristo ou as imagens dos santos reinavam sobre o oiro acumulado das talhas; quando D. Manuel, «senhor do comércio do Oriente», com uma deslumbrante e famosa embaixada, arrojava à face do Chefe da cristandade o esplendor da sua riqueza e o orgulho da sua submissão.

 

Está ainda por fazer, com a necessária minúcia ou sistemática, a história económica e social desse período decisivo do nosso passado. Mas as investigações mais recentes, vindas a lume nesta última vintena de anos, tendem a acentuar a importância de alguns aspectos fundamentais da evolução que se processou desde o reinado de D. João III e preencheu todo o período filipino. Há, em primeiro lugar, a continuidade do comércio oriental, posta em relevo por Joel Serrão, e que o francês Frédéric Mauro (9) assegura ter vigorado em plenitude até cerca de 1620-1621. Referi-me a ela, há pouco, ao evocar a necessidade por si determinada de angariarmos os metais preciosos indispensáveis ao tráfego das mercadorias provenientes do Índico, uma vez que nada possuíamos para dar em troca delas, na origem, ou nada careciam os orientais de que fôssemos produtores. E vimos já que, sendo a Espanha a principal detentora da prata das Américas, o nosso interesse por obtê-la esteve na base dessa vontade de união ibérica que haveria de trazer Filipe II ao trono de Portugal, depois de não haver logrado levar ao trono de Castela ou de Espanha, nem um Afonso V, nem um João II, nem um D. Manuel. Esse comércio, de que proviera o fausto económico do reinado deste último rei, entra em plena recessão a partir de 1621. Os ataques de Ingleses ou Holandeses a Goa, Ceilão, Ormuz, Macau, Solor, Mombaça, tornam periclitante o abastecimento de especiarias, de porcelanas e ricos artefactos chineses, de seda e pedras preciosas. A nossa intolerância religiosa até em terra alheia, a servir de capa - tantas vezes! - a interesses mercantis monopolistas, fecha-nos as portas do Japão e do seu comércio com Macau, um dos mais importantes escoadouros da prata deste e da seda da China. Tudo circunstâncias ou fenómenos que se prolongarão muito para aquém de 1640, depois de expulsos os Filipes. Mas agora, em guerra com estes e, por isso, aliados da Holanda nas questões europeias, continuávamos a luta nas paragens do Ultramar, e dos seus portos importávamos, em barcos seus, a maior parte dos produtos comprados no estrangeiro. Num quadro estatístico inserto na publicação O Porto de Lisboa, editado em 1960 pela respectiva Administração-Geral, podemos ver, com efeito, que dum total de 100 barcos entrados em 1642, 72 eram estrangeiros, sendo holandeses 37 por cento destes; nos anos seguintes até 1645 os totais entrados e estrangeiros serão 137 e 98,89 e 64,59 e 42, sendo a percentagem dos holandeses respectivamente de 55,50 e 52, o que significa, grosso modo, que dois terços do nosso comércio externo marítimo se faz em navios estrangeiros, metade dos quais pertencia à Holanda. Seria apenas por motivo das acções bélicas que estaríamos cedendo a outros o comércio do Oriente?

 

Outro facto que parece definir a conjuntura económica do nosso século XVII, é a crescente presença do Brasil, após os arquipélagos da Madeira, dos Açores e de Cabo Verde, nas relações que mantemos com os mercados europeus. A exploração do pau-brasil, do açúcar e do tabaco aumentam sem cessar desde o reinado de D. João III e tomam, sob os Filipes, uma importância primordial. Mostrou Lúcio de Azevedo, na sua obra Épocas de Portugal Económico, uma primeira perspectiva da grande importância nacional e internacional desse comércio do Brasil. Mas foi sobretudo Jaime Cortesão quem, dum modo mais cabal e melhor fundamentado, apontou a importância e o significado do surto económico das terras de Santa Cruz.

 

A união dinástica permitiu, como vimos, na América do Sul um fenómeno idêntico ao da Península Ibérica, uma invasão em grande escala dos territórios espanhóis pelos mercadores e comércio portugueses, em que a actividade de contrabando do ouro e da prata ocupa um lugar de tomo. Mas os produtos de exploração agrícola do Brasil constituirão, apesar disso, o elemento fundamental do vigor adquirido pelo nosso tráfego atlântico. O açúcar, de que a produção madeirense atingira tal desenvolvimento que já D. Manuel, em 1498, querendo evitar a descida do preço proibira que saíssem da ilha mais do que 120 mil arrobas por ano (10), alcançava no Brasil, em 1570, o valor de 180 mil arrobas anuais e, em 1583, chegará a cerca de 350 mil. E Gama Barros acrescentará que, na «primeira década do século XVIII, ..., nenhum indício havia de declínio. Pelo contrário, a indústria atingira o seu maior desenvolvimento. Nunca houve no Brasil tantos engenhos, nem a tanto se elevara a produção» (11). Do pau-brasil dirá o mesmo autor que, «no tempo dos Filipes esteve o monopólio arrendado por 21 contos de réis» e passados duzentos anos, ainda... constituía verba considerável das receitas do erário, avaliada em 120 contos no orçamento para 1803». Quanto ao tabaco, ao findar o século XVII, «entravam na alfândega de Lisboa 30 mil rolos - anualmente -, com o peso de 240 mil arrobas». Se os negócios orientais, fortemente monopolizados, se concentravam em Lisboa, nas mãos de muito poucos, os negócios do Brasil parece haverem multiplicado uma burguesia marítima espalhada por todo o nosso litoral. Observa Jaime Cortesão que Pedro Teixeira, no Atlas de 1630, «encarece o movimento mercantil, a quantidade de navios dos seus naturais ou a intensidade da construção naval» nos portos de Viana, Vila do Conde, Porto, Aveiro, Peniche, Lisboa, Setúbal, Sines, Portimão, Faro e Tavira.

 

Também esta corrente comercial irá ser abalada pela intromissão dos Batavos em Pernambuco e, já em 1640, em Luanda, Benguela e S. Tomé. E o autor que acabámos de citar aventa a explicação de que teriam sido esses interesses feridos, por um lado desejosos de se libertarem agora da aliança com a Espanha, por causa da necessidade de paz com a Holanda e o perigo de os Filipes acabarem por ceder às reclamações contra o nosso alargamento territorial, quem haveria contribuído decisivamente para a revolução de 1640. Observe-se, porém, que, de qualquer modo, os ataques dos Holandeses não se detiveram por isso, nem podem explicar-se pelas acções dos Filipes, pois se inserem na própria lógica da evolução económica do tempo, correspondendo às necessidades internas dos imperialismos coloniais e mercantis que se haviam formado. E acentue-se que a evolução do nosso comércio ultramarino e internacional, embora sofrendo com aqueles ataques de Franceses, Ingleses e Holandeses, não se desvia, na época filipina, dum sentido de marcha que adquirira em período bastante recuado e se prolongará ainda por muito tempo mais, após a Restauração, tornando-se assim incorrecta a tese de que se deve aos reis espanhóis a decadência da nossa economia. Até porque, afinal, ao contrário do que se pretendeu, como o demonstram os factos que atrás ficaram sintetizados, se podemos falar duma decadência económica e social portuguesa no decurso do século XVII, ela não parece traduzir-se num relevante abaixamento do volume e importância do nosso comércio internacional, considerado na sua totalidade.

 

Creio que noutras circunstâncias se encontrará o motivo da revolução de 1640, como noutros aspectos das estruturas económicas seiscentistas poderemos achar a explicação das nossas frustrações. Lembra Magalhães Godinho, numa análise aos acontecimentos de 1580-1581, uma carta do italiano Sassetti sobre a revolta da Terceira, em que se afirma que Filipe II conta com «il migliori» da ilha, mas quem dela tem o governo é «la gente bassa». É, na verdade, «la gente bassa» que se mostra indiferente às razões que levaram a gente boa ao redil da união ibérica. E será essa mesma gente bassa, cerca de 800 camponeses, que fará a revolta de Torres Vedras e da Ericeira. Na verdade, como se afirma, o «abismo social que se cavara entre a concentração de riqueza numa minoria e a sorte mísera das grandes massas suscitam, pois, os motins e se fazia pender a primeira para se entregar ao rei estrangeiro, empurrava as últimas para a resistência e amoldava-se a sentimentos fortemente enraizados».

 

A evolução que se consumará ao longo dos reinados dos Filipes ainda mais acentua o desequilíbrio económico-social do País, em que as actividades agrícolas e pastoris formam pouco mais do que um terço da actividade económica geral, as actividades artesanais e piscatórias atingem outro terço, enquanto a nobreza, o clero e a burguesia constituirão cerca do terço restante. Daí que a produção de base seja «nitidamente insuficiente para sustentar tal estrutura em que há desmedido avolumar quer das ordens ou classes improdutivas quer das que participam na circulação». A gente bassa, progressivamente mais espoliada, está sujeita, em terra, ao carácter tentacular dos latifúndios, aumentados (segundo escrevia, em 1655, Severim de Faria) com a junção dos morgadios; está sujeita, no mar (acrescenta o mesmo autor), a ser dizimada em escala assustadora pelo escorbuto, resultante da péssima alimentação predominantemente constituída por biscoito mal fabricado e podre, e ainda pelos numerosos naufrágios que resultam da má construção dos barcos. Quando ela, na década de 30, se recusa em muitas vilas e cidades ao pagamento dos impostos e se levanta em revolta contra eles em Évora e no Algarve, - emparceirando, afinal, com os levantamentos que na mesma época e por motivos semelhantes se dão um pouco por toda a parte na Europa - encontra-se só. «A nobreza e os letrados - conclui Magalhães Godinho - deixam esmagar as sublevações que podiam pôr em causa a ordem social estabelecida, e até ajudam sem pejo a esse esmagamento; mas tiram daí a lição de que têm eles de realizar a sua conspiração palaciana, a fim de evitar que venha a triunfar um movimento vindo de baixo».

 

Não bastará isso, contudo, para resolver os problemas postos no campo da economia nacional, a que a Restauração tinha de fazer face. Esses resultavam de condicionalismos intrínsecos à contextura da nossa vida económica. Um dos mais importantes, julgo eu, foi posto a nu por um mercador-nobre francês, o cavaleiro de Villaut, encarregado por Colbert duma expedição comercial a Cabinda, quando explica ao seu amo (12) que Ingleses, Holandeses e Franceses, tiravam do seu comércio um lucro maior do que nós, porque, no fim de contas, o preço pelo qual ficavam os produtos comprados aos autóctones dependiam do preço por que ficavam ao negociante as mercadorias que ele levava para permuta; ora os estrangeiros fabricavam em suas terras essas mercadorias, enquanto os Portugueses não as produziam e tinham, por isso, de comprá-las aos seus concorrentes. Quando se extingue a cornucópia do ouro e da prata, avoluma-se a importância decisiva da nossa incapacidade de produtores. Ficámos apenas comerciantes, inaptos para resolver os problemas da produção, quer de artefactos, quer de géneros agrícolas de sustentação. Era esse atraso persistente em organizarmos uma economia produtiva que nos colocava diante da fatalidade de só podermos desenvolver o nosso comércio em zonas politicamente estanques, vedadas à concorrência de estranhos, ou com produtos de que os outros não dispusessem, apenas figurando como produtores nos casos em que se tratasse de géneros exclusivos de regiões em nosso poder, ou se pudéssemos usufruir duma mão-de-obra muito barata. Mas nem aquela exclusividade se pôde manter muito tempo, já que outros acabaram sempre por encontrar regiões igualmente aptas, nem a manutenção dum baixo nível de vida económica da mão-de-obra se prolongava sem o perigo duma vasta e desastrosa emigração. É o que acontecerá, quanto ao último termo da alternativa, no reinado de D. João V, quando este se vê obrigado a decretar, em 20 de Março de 1720, que apenas seriam admitidos no Brasil os funcionários públicos (os quais não poderiam ser acompanhados de mais criados do que aqueles que estivessem em relação com a sua categoria), os bispos e missionários, os religiosos que regressassem aos respectivos conventos e ali tivessem professado, os particulares que lá tivessem negócios e se comprometessem ao regresso.

 

Foi portanto a debilidade concorrencial da nossa economia, nanja o domínio filipino -, que frustrou o aproveitamento das ocasiões que nos foram dadas pelas riquezas da Índia e do Brasil. Por sua culpa, tais riquezas serão fumo que se desfaz, no dizer de Albuquerque, empobrecendo bàsicamente a generalidade da população. A enraizada inaptidão produtiva, em que aquela debilidade se esteou, ficará bem patente se nos lembrarmos, por exemplo, do caso da Angola setecentista, absorvida pelo comércio negreiro, onde se torna indispensável importar do Brasil a mandioca para a alimentação dos habitantes de Luanda ou Benguela, não obstante serem as terras boas para produzi-Ia, ser grande o custo dos transportes, e ter sido dali que a cultura tinha emigrado para as Américas. Daí resultará, como consequência saliente que as estatísticas portuárias metropolitanas acusem um constante e avultado excesso das importações sobre as exportações, apesar das sucessivas pragmáticas com que se pretendeu obviar à entrada dos produtos estranhos. Em consequência daquela característica não concorrencial da nossa economia, tivemos de erguer em volta dos nossos territórios, por meios militares e políticos, essa barreira protectora que nos isolou da marcha do mundo, nos fechou sobre nós mesmos e fez crescer cada vez mais o nosso atraso e a nossa incapacidade, mantendo ainda a grande maioria da população em regime de sinistro subdesenvolvimento político, económico e espiritual.

 

Os contemporâneos da Restauração não ignoraram o problema, antes e depois de 1640. Duarte Gomes Solis, em 1622, nos Discursos sobre los Comercios de las Dos Indias, aconselha a desenvolver a indústria, aproveitar as lezírias e diminuir as coutadas. Severim de Faria, em 1655, nas Notícias de Portugal, pretende que se acabe com a união dos morgadios, que se ponha limites aos dotes das filhas das famílias nobres, que se estimulem as indústrias de tecelagem, as olarias e ferrarias, que se proíba a exportação das respectivas matérias-primas, que se aproveitem as terras incultas com a instalação de colónias de povoamento. Duarte Ribeiro de Macedo, em 1675, no Discurso sobre a Introdução das Artes em Portugal, insurge-se contra as sucessivas desvalorizações da moeda, propondo o fomento das actividades industriais, em especial daquelas que produziam as mercadorias cujo maior valor resultava da mão-de-obra. E se esta foi a atitude dos teóricos, não deixou também de ser a dos responsáveis da governação, pois que, terminada a guerra com Espanha, logo se adopta, com o Conde da Ericeira, uma política de fomento baseada nos moldes do mercantilismo. Por isso me parece que tal atitude caracteriza plenamente a posição do movimento restaurador face aos problemas da nossa vida económica nessa época.

 

Se caracterizarmos a Restauração, no plano político, como uma tentativa de recuperação para a colectividade nacional dos poderes e conteúdo jurídico, ou doutrinário e emocional, que a Realeza lhe havia usurpado, e ainda, no plano económico, por uma tentativa de conversão da economia portuguesa ao signo da produtividade de bens em termos de concorrência internacional, -poderemos com razão perguntar-nos em que medida, nesses fundamentais aspectos da nossa História, será possível falar do seu triunfo ou do seu fracasso.

 

Pelo que respeita ao plano político, todos sabemos como o absolutismo, repelido pelas cortes de Lisboa de 1641 e contido na sua tendência para prosseguir o crescimento, até ao fim da regência de D. Luísa de Gusmão, retoma a marcha interrompida com o governo de Castelo Melhor e assume formas definitivas com D. Pedro II. Pelo que respeita ao plano económico e social, o próprio facto de haver ilustrado os males do sistema com exemplos colhidos em grande parte após este reinado, será bastante (nos naturais limites deste trabalho) para concluirmos que não se obteve assinalável êxito. Como explicar tais resultados?

 

Por mim, creio que o factor mais decisivo de tal frustração reside em terem persistido entre nós estruturas económicas e políticas medievais. Com efeito, nós constituímos inicialmente o que Lúcio de Azevedo chamou «uma monarquia agrária», em que o rei era o maior lavrador. Ao lado dele, os nobres principais, os bispos, as ordens religiosas eram também grandes lavradores. Mas em Portugal, pela sua tardia formação relativamente à Idade Média e talvez por condições peculiares de desenvolvimento, o sistema feudal não atingiu plenitude. As tendências centralizadoras da Realeza impediram, desde muito cedo, uma excessiva força económica dos nobres e acabaram por forçá-los a ficar largamente na dependência dos favores reais e, portanto, da necessidade de servi-lo e agradar-lhe. A nobreza tornou-se de facto, após o reinado de D. João II, uma simples clientela. Os Descobrimentos, com a expansão ultramarina que deles decorreu, transformaram o rei de «o maior lavrador do País» no maior comerciante de Portugal, graças ao monopólio régio das grandes produções comerciáveis. Então, as sinecuras de além-mar tornam-se a moeda com que a coroa paga os serviços que recebe ou a subserviência que lhe prestam. E o crescimento em número e valor dessas sinecuras - que se disputam pela intriga, sem pejo nem medida - acabará por colocar o mundo português nas mãos duma clientela improdutiva que tende a paralisar o desenvolvimento da nossa economia com a fixação e alargamento de privilégios que a sustentam. Do facto se queixará ao Rei, ainda no século XVII, quanto a Angola, entre outros um Baltasar Rebelo de Aragão, atribuindo-lhe o declínio do comércio naquele território, ao dizer que os «presídios não rendem nada a Sua Majestade, nem há neles coisa que tenha nome real, porque tudo levam os capitães e governadores»; ou, que governadores, ouvidores, secretários haviam provocado o fracasso das feiras, porque «eles escolhem os bons escravos e deixam ao miserável povo o rebutalho ou refugo que mesmo assim é comprado, dada a necessidade de os obterem para honra de seus compromissos», embora «sendo ruins, pelo preço que levavam as boas» (13). Ao findar o século XVI, Jorge de Albuquerque obtinha da antiga capitania de Pernambuco uma renda de dez mil cruzados por ano, ou seja, cinco vezes a retribuição anual do governador-geral do Brasil (14). Uma das primeiras cautelas administrativas de Filipe II, após 1581, foi a de fazer elaborar a relação das rendas disponíveis ou cargos beneficiados de tenças que havia em todos os presídios ou estabelecimentos dos nossos territórios, para com eles dotar os seus partidários. Depois, inclusive com os Braganças, os estancos reais, os contratadores e dizimeiros, os beneficiários de monopólios, cobrirão a Metrópole e as Colónias, arrebatando os restos de independência também aos negociantes. Por isso, no tempo de Pombal, o que fiara daquela burguesia dos séculos XVI e XVII, de mercadores que adiantavam muitas vezes grossos cabedais aos próprios reis, era, no dizer do Marquês, gente diminuta, sendo a maior parte ignorante e de reduzidos capitais, não sabendo sequer ler e escrever muitos deles.

 

Essa classe-clientela que possuía a grande parte da nossa economia, que vive de privilégios estabelecidos, que é senhora do País, está interessada na manutenção das estruturas económicas que a sustentam. Assim, ao fenómeno duma fraca produtividade ou poder concorrencial do nosso sistema económico, - que nos fecha dentro das fronteiras e nos furta ao estímulo de contactos estranhos -, junta-se internamente o imobilismo a que nos condena o peso de privilégios adquiridos e tornados sistema de apropriação da riqueza nacional, - que nos fecha o caminho da modernização económica e aquisição de vigor concorrencial. É uma solidariedade política-económica que faz do Estado, dispensador dos privilégios, e dos privilegiados, sustentadores do Estado, como que uma entidade colectiva que o absolutismo político e económico estrutura e se toma a si mesma como sendo a Nação. Daí resultará fundamentalmente esse drama dum país que se agita no anseio de se erguer e marchar a compasso dos restantes, ao mesmo tempo que não sabe libertar-se dessa poderosa força paralisante que lhe entrava o processo de desenvolvimento ao querer conciliar uma renovação da vida com a conservação de condições que a impediam.

 

É indubitável que o fenómeno da existência dessa classe-clientela não é peculiar do nosso caso histórico e se deu um pouco por toda a parte. Entre nós, porém, foi suficientemente poderoso para impedir, na altura própria, uma evolução verdadeiramente capitalista com a formação ou manutenção duma burguesia capaz, por um lado, de reter na Nação a soberania conquistada em 1640, e de fazer evoluir, por outro lado, a nossa economia no sentido normal dos próprios imperativos económicos.

 

A situação histórica em que se inscreve a revolução de 1640, por conseguinte, apresenta-se bastante complexa e problemática para que, ao contrário do que dizia Pinto Ribeiro, tudo pudesse reduzir-se a «ir ali abaixo ao Terreiro do Paço, tirar um rei e pôr outro».

 

 

 

 

 

(*) O presente ensaio foi publicado originalmente na revista ‘Vértice’ de Coimbra, Vol. 29, n.º 304, de Janeiro de 1969. Posteriormente foi incluído no excelente volume ‘Um humanismo à nossa medida’, Editorial Inova, Porto, 1971, que reúne diversos ensaios e artigos dispersos seus, sendo o único repositório existente deste pensamento denso, rigoroso e elegante.

  

Jofre Amaral Nogueira - Vértice

 

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NOTAS:

 

(1) v. Vitorino Magalhães Godinho, artigo «Restauração», em Dicionário de História de Portugal.

 

(2) v. Jaime Cortesão, Introdução à História das Bandeiras, vol. I.

 

(3) Idem.

 

(4) Queirós Veloso, D. Sebastião.

 

(5) História de Portugal, Barcelos, vol. III.

 

(6) v. História da Administração Pública em Portugal, vol. I.

 

(7) v. História de Portugal, ed. Barcelos, vol. VI.

 

(8) v. Francisco António Correia, História Económica de Portugal.

 

(9) v. Le Portugal et l'Atlantique au XVIIe Siècle, Paris, 1960.

 

(10) v. Lúcio de Azevedo, Épocas de Portugal Económico.

 

(11) v. Lúcio de Azevedo, Ibidem.

 

(12) v. J. A. Nogueira, Os Povos da Margem Direita do Zaire, em «Boletim do Instituto de Angola», n.° 1.

 

(13) v. Luciano Cordeiro, Questões Histórico-Coloniais, vol. I.

 

(14) v. Lúcio de Azevedo, Ibidem.